Contribuições do estudo
Principais resultados
Em 2020, foram registradas 146.340 notificações de doenças, agravos e eventos de saúde pública a menos que em 2019, com maior redução a partir da Semana Epidemiológica 12 de 2020.
Introdução
A vigilância epidemiológica hospitalar (VEH) tem papel de extrema importância, uma vez que o produto do seu trabalho proporciona aos gestores elementos essenciais e concisos para apoiar a tomada de decisão, frente a emergências em saúde pública no país.1-4 O Subsistema Nacional de Vigilância Epidemiológica Hospitalar institui os núcleos hospitalares de epidemiologia (NHEs) para alcançar os objetivos previstos pela VEH.5,6 Esses núcleos são unidades operacionais articuladoras, que identificam e monitoram situações específicas, e assim, garantem o olhar contínuo sobre a situação epidemiológica local, incluindo sutis alterações no perfil de morbimortalidade da população.1,6
Os NHEs vinculados ao Ministério da Saúde (MS) compõem a Rede Nacional de Vigilância Epidemiológica Hospitalar (Renaveh) e têm por objetivo central detectar, monitorar e dar uma resposta imediata a potenciais emergências de saúde pública no contexto hospitalar.6-9 A representatividade das notificações de doenças, agravos e eventos de saúde pública (DAEs) registrados pela Renaveh nos últimos anos foi, em média, de 8% das notificações gerais registradas pelo país.10
A pandemia da COVID-19, assim declarada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em março de 2020, expôs os profissionais de saúde a situações constantes de estresse, além de ter sobrecarregado os sistemas de saúde em todos os níveis de assistência, principalmente o hospitalar, em todos os países do mundo.11-15
As equipes de saúde, tanto as que atuam na assistência como na vigilância em saúde, foram afetadas pela elevada demanda de trabalho insalubre, além do desgaste físico, mental e social desses profissionais.16-18
Considerando-se a relevância e a importância do trabalho realizado pela VEH na formulação de estratégias, no âmbito das políticas públicas de saúde, torna-se indispensável avaliar os reflexos que a pandemia trouxe ao serviço de vigilância epidemiológica hospitalar no Brasil.
O objetivo deste estudo foi descrever as notificações compulsórias de DAEs, registradas pela Renaveh antes e durante a pandemia da COVID-19 no Brasil.
Métodos
Foi realizado um estudo ecológico descritivo das DAEs registradas no Brasil pelos NHEs vinculados à Renaveh. A rede é composta por 238 NHEs, distribuídos em 145 municípios das 27 Unidades da Federação (UFs).19 Foram analisadas as notificações realizadas no período das semanas epidemiológicas (SEs) 1 de 2017 (1º de janeiro de 2017) a 52 de 2020 (26 de dezembro de 2020). O período pré-pandêmico refere-se às notificações realizadas até a SE 11 de 2020; e o pandêmico, a partir da SE 12 do mesmo ano.12
Os dados utilizados na pesquisa foram extraídos do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) e referem-se ao período de 2017 a 2020. Os dados secundários, anonimizados, tiveram autorização de uso concedida, por meio da assinatura do Termo de Cessão de Bases de Dados, pela Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde (SVS/MS) em 27 de fevereiro de 2021, e foram extraídos e disponibilizados em 30 de fevereiro do mesmo ano.
As variáveis analisadas foram: número da notificação (NU_NOTIFIC); ano de notificação (NU_ANO); SE de notificação (SEM_NOT); e agravo notificado (ID_AGRAVO).
A tabulação e a análise dos dados foram realizadas utilizando-se o programa Microsoft Excel, em sua versão de 2010. Para o cálculo da proporção simples, foi utilizada a seguinte fórmula: Tamanho da amostra/valor total *100 (para cada variável)
Na análise da média, para cada uma entre todas as variáveis do estudo, segundo ano e SE, a fórmula utilizada foi:
Para calcular as variações, foi utilizada a seguinte fórmula: Variação = [(Valor Final do NU_NOTIFIC - Valor Inicial do NU NOTIFIC)/Valor inicial do NU_NOTIFIC)]
As variações foram organizadas usando-se uma cor escura quando apresentaram acréscimo e uma cor clara quando apresentaram decréscimo.
Por utilizar informações públicas, sem qualquer possibilidade de identificação dos casos, o projeto da pesquisa não necessitou ser submetido a análise e aprovação de um Comitê de Ética em Pesquisa.
Resultados
No período entre a SE 1 de 2017 e a SE 52 de 2020, os NHEs vinculados à Renaveh registraram 1.258.455 fichas de DAEs no Brasil: 327.793 (26,0%) em 2017; 334.160 (26,6%) em 2018; 371.421 (29,5%) em 2019; e 225.081 (17,9%) em 2020. Foram notificados mais de 60 agravos em cada ano, sendo que violência doméstica, sexual e/ou outras violências, acidente por animais peçonhentos e dengue foram os mais registrados no período analisado (Tabela 1).
Ano | CIDa - DAEsb | Notificações registradas | ||||
---|---|---|---|---|---|---|
N° | % | Média por anoc | Diferença | Variação (%) | ||
2017 | 61 | 327.793 | 26,0 | 344.458 | - | - |
2018 | 63 | 334.160 | 26,6 | 6.367 | 2,0 | |
2019 | 65 | 371.421 | 29,5 | 37.261 | 11,0 | |
2020 | 66 | 225.081 | 17,9 | 225.081 | -146.340 | -39,0 |
Total | - | 1.258.455 | 100,00 | 314.614 | - | - |
a) CID: Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde; b) DAEs: Doenças, agravos e eventos de saúde pública; c) A média refere-se ao número de registros no período.
A média de notificações do período pré-pandêmico foi de 344.458 notificações por ano, 119.377 registros a mais que o número total de notificações registradas no ano pandêmico de 2020 (Tabela 1). A diferença do total de notificações de DAEs realizadas entre 2017 e 2018 foi de 6.367 registros, representado variação de 2,0% de acréscimo. Entre 2018 e 2019, a diferença foi de 37.261 registros, representando variação de 11,0% de acréscimo. Entre 2019 e 2020, a diferença foi de -146.340 registros, representando variação de 39,0% de decréscimo (Tabela 1).
De acordo com o comportamento da série temporal por SE das notificações de DAEs registradas entre 2017 e 2020, observou-se que os registros semanais de notificações realizadas pela Renaveh foram predominantemente superiores a 5 mil notificações. Em 2020, o mesmo comportamento foi observado entre as SEs 2 e 11. No entanto, a partir da SE 12, houve decréscimo na curva epidemiológica, apresentando padrão linear de aproximadamente 4 mil notificações de DAEs até a SE 52 (Figura 1).
Com relação à variação das notificações registradas no período de 2017 a 2020, não foi possível identificar um padrão de comportamento das notificações entre os meses do mesmo ano, tampouco entre os meses dos anos analisados (Quadro 1).
Meses | Ano | |||
---|---|---|---|---|
2017 | 2018 | 2019 | 2020 | |
Janeiro e fevereiro | -0,089 | -0,107 | -0,043 | -0,096 |
Fevereiro e março | 0,245 | 0,089 | 0,095 | -0,062 |
Março e abril | -0,122 | -0,005 | -0,152 | -0,353 |
Abril e maio | -0,136 | 0,019 | 0,091 | -0,077 |
Maio e junho | -0,132 | -0,063 | -0,225 | 0,067 |
Junho e julho | -0,042 | 0,060 | 0,002 | 0,024 |
Julho e agosto | 0,156 | 0,013 | -0,016 | 0,023 |
Agosto e setembro | -0,138 | -0,106 | -0,017 | 0,019 |
Setembro e outubro | 0,074 | 0,104 | 0,050 | -0,095 |
Outubro e novembro | -0,084 | -0,104 | -0,137 | -0,183 |
Novembro e dezembro | -0,017 | -0,011 | -0,034 | -0,122 |
Média anual | -0,001 | -0,010 | -0,007 | -0,078 |
a) As variações estão identificadas em cor escura, quando apresentam acréscimo, e na cor clara quando apresentam decréscimo.
Na análise de variação dos registros de DAEs, observou-se decréscimo na média mensal em todos os anos estudados: -0,001 em 2017; -0,010 em 2018; -0,007 em 2019; e -0,078 em 2020. Destaca-se que a maior média de decréscimo mensal foi registrada em 2020 (Quadro 1).
Discussão
Os resultados deste estudo mostraram mudança no perfil das notificações realizadas pela Renaveh, caracterizada por uma acentuada diferença no número de notificações entre o período pré-pandêmico, 2017 a 2019, e no decorrer da pandemia, 2020.
A hipótese da associação entre a pandemia e decréscimo das notificações da Rede foi reforçada pela redução em mais de mil registros por SE a partir do momento em que a OMS declarou a pandemia pelo SARS-CoV2, ou seja, na SE 12 de 2020.12 Essa redução pode ser decorrente das repercussões negativas da pandemia nos serviços de saúde, principalmente naqueles de alta complexidade,20,21 que passaram a dar prioridade ao atendimento de pessoas com COVID-19, em unidades muitas vezes superlotadas, com escassez de recursos, e no limite do esgotamento físico e psicológico dos profissionais de saúde.13,16,22 Ao mesmo tempo, pode ter contribuído para a redução das notificações o receio da população de contrair a infecção pelo SARS-CoV2 ao procurar o serviço de saúde e, como consequência, dificuldades na manutenção do sistema de vigilância epidemiológica ativo.
As medidas de distanciamento social adotadas no território nacional para a COVID-19 podem ter influenciado o cenário epidemiológico de outras doenças transmissíveis.23-27 Estudos realizados no Brasil analisaram o potencial impacto da pandemia de COVID-19 sobre as ações de controle da dengue e verificaram que, provavelmente, houve subnotificação de casos dessa doença, influenciada pelo comprometimento das atividades do programa de controle da dengue e inacessibilidade a serviços de assistência, em razão da pandemia.28,29 Outro estudo mostrou que no Brasil, de janeiro a agosto de 2020, houve aumento de 23% e 14% nas taxas de internação e de mortalidade por dengue, respectivamente, confirmando a hipótese de subnotificação.30
Com relação à interpretação dos dados deste estudo, é preciso pautar as discussões considerando-se o contexto geográfico em que a Renaveh está estabelecida. Os NHEs vinculados à rede estão distribuídos em apenas 2,6% (145) dos municípios do país, sendo possível que os resultados do presente estudo não reflitam a realidade de todos os municípios brasileiros. Outro ponto a considerar é o de que os achados deste estudo se limitam, tão somente, aos três anos anteriores à pandemia, não sendo possível realizar comparações tendo em conta períodos anteriores. Também é importante destacar que a queda abrupta das notificações na SE 52 de 2018, provavelmente, não esteja relacionada às falhas de notificação e sim a problemas de registro na base de dados consultada.
Conclui-se que houve decréscimo de aproximadamente 150 mil notificações compulsórias de DAEs registradas pela Renaveh do Brasil, em 2020. Esta redução no número de notificações pode estar relacionada às repercussões da pandemia da COVID-19 no sistema de saúde no país. Assim, é importante que, além das ações voltadas ao controle da pandemia, ocorra o fortalecimento da vigilância epidemiológica das demais doenças nos serviços de saúde, sendo necessário assegurar que as medidas de promoção, prevenção e recuperação da saúde sejam desenvolvidas juntamente com as medidas de resposta à pandemia da COVID-19.