INTRODUÇÃO
A despeito da lacunas de dados, as estimativas de pessoas transexuais e travestis no Brasil apontam para 0,69% da população geral.1 No âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), o denominado processo transexualizador, garantido por lei desde 2008, em conjunto com as diretrizes da Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (LGBT), são indispensáveis.2 O Ministério da Saúde ampliou o processo, com diretrizes da integralidade da atenção, multidisciplinaridade e interdisciplinaridade, e apontou a necessidade de sua integração com a Atenção Básica.3 Considera-se a idade mínima para adesão aos procedimentos 18, e a máxima, 75 anos, sendo obrigatório o acompanhamento durante o período mínimo de dois anos no pré-operatório, e por até um ano no pós-operatório.4
O tratamento hormonal é descrito como a administração de agentes endócrinos exógenos para induzir mudanças no corpo,5 reduzir níveis de hormônios sexuais endógenos e aumentar níveis hormonais consistentemente com a identidade de gênero da pessoa.6 No país, ele é indicado para pessoas que receberam diagnóstico de ‘incongruência de gênero ou transgênero’.7 A Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (Rename), encarregada de apontar os medicamentos disponíveis, é um instrumento fundamental no SUS.8
No processo de cuidado das pessoas transexuais e travestis, o tratamento hormonal é mais um ponto crítico. Também podem-se citar outros, como a escassa rede de estabelecimentos de saúde especializados, a desinformação, a falta de padronização de atendimento, o uso dos hormônios, e o acompanhamento.9
Na região Sul do país, o Rio Grande do Sul apresenta o maior número de estabelecimentos de saúde especializados no atendimento a pessoas transexuais e travestis; apenas um desses é um hospital apto a realizar o processo transexualizador.
Contribuições do estudo | |
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Principais resultados | A pesquisa descreveu os medicamentos prescritos para o tratamento hormonal do processo transexualizador em sete estabelecimentos de saúde de atendimento especializado para pessoas transexuais e travestis no estado do Rio Grande do Sul, Brasil. |
Implicações para os serviços | Os achados trazem conhecimentos sobre a atenção farmacológica dispensada no processo transexualizador, reforçando a necessidade de aprimorá-lo no que tange a melhores escolhas terapêuticas e promoção do acesso e do cuidado em saúde. |
Perspectivas | É preciso corroborar a produção de informação sobre a Política Nacional de Saúde Integral LGBT, ampliando o envolvimento das minorias sexuais e de gênero, ademais da comunidade científica, nas discussões sobre sua implementação no SUS. |
Considerando-se a problemática em tela, este estudo teve por objetivo descrever os medicamentos prescritos para o tratamento hormonal como parte do processo transexualizador, em estabelecimentos de saúde de atendimento especializado para pessoas transexuais e travestis no estado do Rio Grande do Sul, Brasil.
MÉTODOS
Estudo descritivo dos estabelecimentos de saúde do SUS que realizavam atendimento especializado para pessoas transexuais e travestis no Rio Grande do Sul, entre maio e setembro de 2020.
A amostra correspondeu à totalidade desses serviços especializados referidos pela Secretaria da Saúde do Estado, de âmbito ambulatorial e hospitalar. De acordo com o Ministério da Saúde, a habilitação de um serviço de saúde no processo transexualizador, com custeio dos procedimentos, requer o cumprimento de uma série de critérios e normas. Naquele momento, no Rio Grande do Sul, apenas um serviço de saúde hospitalar estava habilitado para realizar esse processo. Os sete estabelecimentos estavam localizados em Porto Alegre (capital), Canoas (região metropolitana), Santa Maria (região central), Passo Fundo (região norte), Pelotas e Rio Grande (região sudeste).
A Coordenação de Políticas de Saúde da População LGBT, da Secretaria da Saúde do Estado, forneceu aos(às) pesquisadores(as) uma lista com os contatos dos serviços. Foram enviados e-mails às respectivas coordenações para apresentar os objetivos da pesquisa e explicações sobre a coleta de dados, com link dirigido ao questionário a ser preenchido.
Os dados foram obtidos a partir desse instrumento padronizado, elaborado na plataforma Google®, respondido de forma remota e sem a interferência dos(as) pesquisadores(as), entre maio e setembro de 2020. As questões faziam referência ao período de atuação dos estabelecimentos de saúde. A Coordenação de Políticas de Saúde da População LGBT da Secretaria da Saúde participou da revisão do instrumento e da avaliação da qualidade dos dados.
O instrumento contemplava questões organizadas em quatro dimensões: i) perfil de usuários(as) vinculados(as); ii) perfil de profissionais de saúde; iii) características do cuidado em saúde; e iv) características farmacológicas do tratamento hormonal. As variáveis apresentadas nesta nota de pesquisa foram: tempo de funcionamento, em anos ou meses; protocolo ou recomendação utilizada como apoio técnico ao serviço; número de pessoas atendidas, conforme identidade de gênero; número de pessoas em consultas regulares e informação sobre tempo de acompanhamento de usuários(as) durante o tratamento hormonal (dado relatado pela pessoa respondente, como número aproximado de anos); e nome dos fármacos prescritos pelo estabelecimento de saúde. Os dados foram descritos como frequência absoluta.
O projeto da pesquisa foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (CEP/UFRS) e aprovado mediante
Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (CAAE) no 82036018.6.0000.5347/2018.
RESULTADOS
Não houve recusa para o preenchimento do instrumento. A Tabela 1 apresenta as características dos sete estabelecimentos de saúde especializados no atendimento de pessoas transexuais e travestis no estado, no ano de 2020. Eles possuíam entre cinco meses e 20 anos de funcionamento. Em relação a protocolos ou recomendações para prescrição de medicamentos, em cinco serviços, eles eram os mesmos dos Estados Unidos,12 em dois, do Canadá,13 e em um, do Uruguai.14 Dois serviços informaram não fazer uso de protocolos ou recomendações internacionais para a prescrição.
Estabelecimento de saúde e cidade | Tempo de funcionamento | Protocolo ou ecomendação |
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Hospital | ||
Porto Alegre | 20 anos | Estados Unidos12 |
Santa Maria | 5 meses | – a |
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Ambulatório | ||
Porto Alegre | 1 ano | Estados Unidos,12 Canadá13 e Uruguai14 |
Canoas | 3 anos | Estados Unidos12 e Canadá13 |
Rio Grande | 2 anos | – a |
Pelotas | 2 anos | Estados Unidos12 |
Passo Fundo | 5 anos | Estados Unidos12 |
a) Informaram não fazer uso de protocolos ou recomendações internacionais na prescrição de medicamentos para terapia hormonal.
O número mensal de atendimentos de pessoas autoidentificadas como mulheres transexuais variou de três a 52. Já para travestis, esse valor foi de zero a dez; para homens transexuais, de três a 69; e para pessoas não binárias, de zero a nove (Tabela 2). A quantidade de pessoas acompanhadas regularmente nos estabelecimentos de saúde variou entre um e 130. O estabelecimento com maior tempo de funcionamento acompanhava os(as) usuários(as), durante o tratamento hormonal, por um período de três a quatro anos. Dois desses estabelecimentos informaram que o acompanhamento ocorria enquanto se realizasse o tratamento necessário, ao passo que três referiram o período de um a dois anos.
Estabelecimento de saúde e cidade | Mulheres transexuais atendidas por mês | Travestis atendidas por mês | Homens transexuais atendidos por mês | Pessoas não bináriasatendidas por mês | Pessoas que realizam consultas regulares | Tempo aproximado de acompanhamento dos(as) usuários(as) |
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Hospital | ||||||
Porto Alegre | 30 | – | 20 | – | 50 | 3 a 4 anos |
Santa Maria | 6 | 2 | 3 | – | 1 | Menos de 1 ano |
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Ambulatório | ||||||
Porto Alegre | 52 | 10 | 69 | 9 | 130 | 1 a 2 anos |
Canoas | 10 | – | 25 | 3 | 50 | 1 a 2 anos |
Rio Grande | 6 | – | 14 | – | 20 | Enquanto for necessário |
Pelotas | 3 | – | 3 | 1 | 20 | Enquanto for necessário |
Passo Fundo | 10 | 1 | 27 | 2 | 80 | 1 a 2 anos |
Nota: As categorias de gênero foram autorreferidas pelos(as) beneficiados(as) com o tratamento.
Os medicamentos prescritos para mulheres transexuais e travestis encontram-se listados na Tabela 3. Medicamentos antiandrogênicos e espironolactona foram prescritos em todos os serviços. Com exceção de um estabelecimento de saúde, os demais prescreveram ciproterona: dois prescreviam terapia combinada de ciproterona e etinilestradiol; quatro prescreviam a combinação de ciproterona e finasterida; e um prescreveu ciproterona e dutasterida. Todos os estabelecimentos realizaram prescrição de medicamentos a base de estrógenos, com diferenças na via de administração: seis realizavam prescrição de estradiol ou valerato de estradiol por via oral; cinco, de estrógeno por via transdérmica; três, de estradiol e estradiol hemi-hidratado em gel; e três, de estradiol hemi-hidratado em adesivo transdérmico. Um estabelecimento consultado prescrevia estradiol em combinação com progestógeno por via oral; dois, a combinação de estradiol com noretisterona injetável; um, medroxiprogesterona combinada com estradiol; e um, a combinação de enantato de estradiol e algestona acetofenida. Os demais estabelecimentos não prescreviam estrógeno em combinação com progestógeno para administração injetável (Tabela 3).
Usuários(as) | Classe de medicamento e via de administração | Medicamento | Frequência absoluta |
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Mulheres transexuais e travestis | Antiandrógenos (via oral) | Ciproterona | 6 |
Espironolactona | 7 | ||
Finasterida | 4 | ||
Dutasterida | 1 | ||
Ciproterona + etinilestradiol | 2 | ||
Não prescreve | – | ||
Estrógenos (via oral) | Estradiol | 6 | |
Valerato de estradiol | 6 | ||
Não prescreve | – | ||
Estrógenos (via transdérmica) | Estradiol em gel | 2 | |
Estradiol hemi-hidratado gel | 3 | ||
Estradiol hemi-hidratado adesivo | 3 | ||
Não prescreve | 2 | ||
Estrógenos + progestógenos (via oral) | Noretisterona + estradiol | 1 | |
Não prescreve | 6 | ||
Estrógenos + progestógenos (via intramuscular) | Noretisterona + estradiol | 2 | |
Medroxiprogesterona + estradiol | 1 | ||
Algestona acetofenida + enantato de estradiol | 1 | ||
Não prescreve | 3 | ||
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Homens transexuais | Andrógenos (via intramuscular) | Cipionato de testosterona | 7 |
Undecilato de testosterona | 5 | ||
Ésteres combinados de testosterona | 4 | ||
Andrógenos (via transdérmica) | Testosterona em gel | 5 | |
Não prescreve | 2 |
Todos os sete estabelecimentos de saúde informaram realizar prescrição de medicamentos para homens transexuais (Tabela 3), qual seja, andrógenos para administração intramuscular ou via transdérmica. Quanto aos ministrados via muscular, sete prescreviam cipionato de testosterona; cinco, undecilato de testosterona; e quatro, a combinação de ésteres de testosterona. A testosterona na apresentação farmacêutica em gel transdérmico era prescrita em cinco estabelecimentos.
DISCUSSÃO
Os achados apontam para um conjunto limitado de transexuais e travestis atendidos(as), e para uma diversidade de medicamentos prescritos no tratamento hormonal, nos sete serviços especializados disponíveis no estado do Rio Grande do Sul. Os resultados apresentados são preliminares, de uma pesquisa multidimensional desenvolvida no bojo das políticas de equidade que, embora recentes no SUS, devem ser avaliadas e asseguradas como garantias inalienáveis dos usuários do sistema público de saúde.15
Nesse cenário, insere-se o uso de hormônios, uma tecnologia biomédica de modificação do corpo que, quando desejada por transexuais e travestis e realizada de modo seguro, é importante para a qualidade de vida do indivíduo beneficiado.17 O presente levantamento, contudo, revelou baixa quantidade de pessoas atendidas, o que vai ao encontro de outros estudos19 que retratam um panorama comum para transexuais e travestis no SUS: a persistência dos obstáculos ao acesso e a longa espera por atendimento. Nesse sentido, recomendam-se a ampliação dos serviços e a oportunidade no tratamento hormonal, contribuindo com a integralidade do cuidado e a superação da perspectiva patológica.22
A prescrição de diferentes fármacos, bem como a menção, nos estabelecimentos de saúde, de diversos protocolos internacionais, indicam a necessidade de se ampliar a produção de informações sobre o tema no SUS. Considerando-se que a atual legislação submete parte dos medicamentos a um controle especial,26 como é o caso da testosterona, cabe ao Estado possibilitar a melhor escolha terapêutica para todos(as) os(as) usuários(as) e evitar a automedicação. O uso de hormônios por conta própria, ou obtidos de modo ilegal, além dos riscos e gastos impostos ao SUS, afeta o cotidiano das pessoas transexuais, travestis, intersexo e não binárias, e aumenta sua vulnerabilização.27 Uruguai,12 Argentina29 e Alemanha30 relatam experiências bem-sucedidas em seus sistemas de saúde, nesse sentido, com a adoção de protocolos para terapia hormonal, guias para profissionais elaborados pelos respectivos ministérios da saúde e participação ativa das pessoas atendidas no processo transexualizador.
Ainda que o estudo tenha envolvido a totalidade de serviços de saúde especializados na prestação de atendimento a transexuais e travestis no Rio Grande do Sul, limitações devem ser consideradas. Elas dizem respeito ao viés de memória do(a) respondente, aos distintos métodos de registro dos atendimentos e à coleta de dados remota. Entretanto, os(as) pesquisadores(as) adotaram procedimentos de revisão e aferição da qualidade dos dados coletados.
À guisa de conclusão, é mister implementar a Política Nacional de Saúde Integral LGBT de modo articulado, nos diferentes níveis de atenção e Unidades da Federação. Reitera-se, outrossim, a necessidade da interação entre as áreas da assistência farmacológica e da incorporação de tecnologia pelo SUS.
A terapia hormonal é um direito e deve ser vista como uma urgência. É compromisso do SUS avançar na produção de evidências científicas sobre os medicamentos, sua eficácia e segurança, além de prover referências terapêuticas de melhor escolha para pessoas transexuais, travestis e não binárias.