Contribuições do estudo
Principais resultados
Para portadores da doença de Chagas, a chance de concessões de benefícios assistenciais foi maior entre residentes em áreas urbanas, na região Nordeste, pessoas do sexo feminino, e com 60 anos ou mais de idade.
Introdução
Até a década de 1990, a doença de Chagas era considerada a doença parasitária de maior impacto socioeconômico na América Latina. A carga da doença, aferida pelo indicador ‘anos de vida perdidos ajustados por incapacidade’ (tradução do título do indicador em inglês, Disability-Adjusted Life Years - DALY), era maior que a de todas as demais doenças parasitárias combinadas.1 O DALY mede, simultaneamente, os efeitos da mortalidade e dos problemas de saúde que afetam a qualidade de vida dos indivíduos.2 Atualmente, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), cerca de 8 milhões de pessoas estão infectadas com Trypanosoma cruzi em todo o mundo, principalmente na América Latina.3
Apesar de grande número das infecções serem assintomáticas, até 30% das pessoas cronicamente infectadas desenvolvem alterações cardíacas e até 10% alterações digestivas, neurológicas ou mistas, o que exige tratamento específico. Para alcançar a cura completa, o tratamento deve se iniciar nas fases precoces da infecção.4
A doença de Chagas ocasiona grande impacto biopsicossocial nos indivíduos, além de altos custos para os sistemas de saúde, devido à elevada procura por atendimento e demanda por exames, medicamentos e intervenções cirúrgicas e procedimentos.5 Ademais, existem graves consequências econômicas geradas pela perda de mão de obra qualificada, custos trabalhistas, absenteísmo, redução da produtividade e custos da seguridade social.6
A Constituição Federal de 1988, em seu art. 194, define a seguridade social como “um conjunto integrado de ações de iniciativa dos poderes públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social”.7 Cabe ressaltar que os dois primeiros direitos são de caráter não contributivo, enquanto a previdência social tem caráter eminentemente contributivo.7
No Brasil, a saúde é um direito fundamental de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas.8 A assistência social é a política social que provê o atendimento das necessidades básicas, traduzidas em proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência, à velhice e à pessoa com deficiência. A Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), nº 8.742/93, dispõe sobre a organização da assistência social e determina que esta se realize de forma integrada às políticas setoriais, visando ao enfrentamento da pobreza, à garantia dos mínimos direitos sociais, ao provimento de condições para atender contingências sociais e à universalização dos direitos sociais.9 A previdência social, por sua vez, tem filiação obrigatória, entendendo-se por filiação o vínculo estabelecido entre as pessoas que contribuem para a previdência social, da qual decorrem direitos e obrigações. Trata-se de um serviço público, destinado a amparar seus filiados e dependentes em situações de riscos ou contingências sociais previstas em lei, mediante concessão de benefícios.10
Estudos sobre a seguridade social relativos a doenças específicas, com dados pormenorizados, são extremamente raros, principalmente pela dificuldade de acesso às fontes de informações.11,12 No que se refere à doença de Chagas especialmente, desconhece-se a existência de estudo de abrangência nacional que aborde a sua situação em relação à seguridade social. São poucos os estudos que analisaram o problema - além de serem publicações antigas -, em sua maioria conduzidos nas décadas de 1970 e de 1980, limitados a casuísticas pequenas.13-15
O número de portadores de doença de Chagas crônica, todavia, é desconhecido no Brasil. Apenas recentemente, foi estabelecida a notificação compulsória desses casos, a princípio no estado de Goiás, em 2013, seguido por Minas Gerais, em 2018, e para todo o país em 2020.16-18 Assim, um estudo dos portadores de doença de Chagas beneficiários da seguridade social pode contribuir para a caracterização da doença no Brasil.
O presente estudo teve como objetivo caracterizar o perfil sociodemográfico de beneficiários da seguridade social brasileira portadores da doença de Chagas e identificar fatores associados à concessão de benefícios assistenciais a esses brasileiros, no período de 2004 a 2016.
Métodos
Estudo transversal, com base em dados do Sistema Único de Informações de Benefícios do Ministério do Trabalho e Previdência Social (Suibe). O Suibe, de acesso restrito, possui dados sociodemográficos dos beneficiários e relacionados às concessões de benefícios. Esse sistema foi implantado em meados de 2003, mas somente em 2004 passou a contar com maior número de variáveis, por isso a escolha desse ano para o início da coleta de dados. O acesso aos dados ocorreu após solicitação encaminhada ao nível central de gerência do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Os dados foram disponibilizados em planilha Excel®, no mês de janeiro de 2017.
Foram incluídos indivíduos que receberam benefícios assistenciais e previdenciários concedidos pelo INSS entre 2004 e 2016, decorrentes de agravos de saúde codificados como B57, para doença de Chagas e seus complementos/comprometimentos para a saúde, definidos na Décima Revisão da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID-10) dessa forma: B57 (doença de Chagas); B57.0 (forma aguda da doença de Chagas, com comprometimento cardíaco); B57.1 (forma aguda da doença de Chagas, sem comprometimento cardíaco); B57.2 (doença de Chagas crônica, com comprometimento cardíaco); B57.3 (doença de Chagas crônica, com comprometimento do aparelho digestivo); B57.4 (doença de Chagas crônica, com comprometimento do sistema nervoso); B57.5 (doença de Chagas crônica, com comprometimento de outros órgãos); K23.1 (megaesôfago na doença de Chagas); e K93.1 (megacólon na doença de Chagas).
Foram analisadas as seguintes variáveis: sexo (masculino; feminino), idade no início da doença (em anos) e da incapacidade (em anos), tempo decorrido entre a doença e a incapacidade (em anos), faixa etária (em anos: até 29; 30 a 49; 50 a 59; 60 ou mais), zona de residência (urbana; rural), macrorregião geográfica de residência (Norte; Nordeste; Sudeste, Sul; Centro-Oeste), tipo de benefício recebido (assistencial; previdenciário), ano de concessão do benefício (2004 a 2016) e forma de filiação à previdência social (autônomo; segurado especial; empregado; desempregado; outros). A variável ‘sexo’ manteve como base a distinção biológica, conforme recomendado pelas Diretrizes para Equidade de Sexo e Gênero na Pesquisa.19
Foi realizada a análise de completude e consistência dos dados, antes da análise estatística inferencial. Os dados foram avaliados de forma descritiva, por meio de porcentagens (para as variáveis categóricas), e medidas de tendência central e de dispersão (para as variáveis numéricas). Os campos em branco ou com valores discrepantes foram verificados: aqueles com possibilidade de correção, pela análise das demais variáveis, foram alterados; e os demais, descartados da análise específica.
O programa Epi Info 7.2.2 (CDC, Atlanta, USA) foi utilizado nas análises estatísticas. Para as variáveis contínuas, foram calculadas médias e desvios-padrão (DP). As frequências de concessões de benefícios assistenciais, previdenciários e totais foram ajustadas para cada 100 mil habitantes, para fins de comparação no mosaico de mapas das macrorregiões geográficas. Foi utilizada a estimativa de população do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para o ano de 2016, aplicando-se as seguintes fórmulas:
BA = (Total de BA na MG/População estimada MG) x 100 mil hab.
BP = (Total de BP na MG/População estimada MG) x 100 mil hab.
BT = (Total de BC na MG/População estimada MG) x 100 mil hab.
onde: BA = benefícios assistenciais; MG = macrorregião; BP = benefícios previdenciários; BT = benefícios totais (previdenciários e assistenciais); BC = benefícios concedidos.
Para a espacialização dos dados, utilizou-se o Sistema de Informação Geográfica, QGIS 2.18, com o intuito de elaborar os mosaicos de mapas. As unidades analíticas foram as cinco macrorregiões brasileiras.
A associação entre as variáveis independentes e o tipo de benefício recebido foi analisada por regressão logística. Sexo, faixa etária, zona de residência e macrorregião geográfica foram utilizadas como variáveis independentes, sendo o tipo de benefício recebido a variável dependente (benefício previdenciário como categoria de referência). Nos modelos brutos, cada variável independente foi analisada em relação à variável dependente, individualmente. O modelo ajustado incluiu as quatro variáveis independentes simultaneamente. As categorias de referência para as análises foram as que apresentavam menor frequência de benefícios assistenciais. Os resultados da regressão logística foram apresentados como razão de chances (odds ratio - OR) e intervalo de confiança de 95% (IC95%).
O projeto do estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisas com Seres Humanos da Universidade Federal de Uberlândia, sob Parecer nº 1.560.139, emitido em 17 de maio de 2016.
Resultados
Entre 2004 e 2016, 36.023 benefícios foram concedidos, a maior parte deles para indivíduos do sexo masculino (22.503; 62,5%) e pessoas residentes de áreas urbanas (24.155; 67,0%). A forma crônica da doença de Chagas com comprometimento cardíaco predominou (20.424; 56,7%) e apenas 824 (2,3%) concessões foram devidas a formas agudas da doença (Figura 1). A maior parte dos benefícios foram concedidos para adultos nas faixas etárias de 30 a 49 (14.794; 41,1%) e 50 a 59 anos (15.400; 42,7%).
Legenda: B57 = Doença de Chagas (sem especificação); B57.0 = Forma aguda da doença de Chagas, com comprometimento cardíaco; B57.1 = Forma aguda da doença de Chagas, sem comprometimento cardíaco; B57.2 = Doença de Chagas (crônica) com comprometimento cardíaco; B57.3 = Doença de Chagas (crônica) com comprometimento do aparelho digestivo; B57.4 = Doença de Chagas (crônica) com comprometimento do sistema nervoso; B57.5 = Doença de Chagas (crônica) com comprometimento de outros órgãos; K23.1 = Megaesôfago na doença de Chagas; K93.1 = Megacólon na doença de Chagas.
A concessão total dos benefícios predominou na região Sudeste (16.828; 46,7%). No entanto, a análise de concessão de benefícios por 100 mil hab. apontou a região Centro-Oeste como a que apresentou maiores valores desse indicador para benefícios previdenciários (37,32/100 mil hab.) e assistenciais (3,80/100 mil hab.) (Figura 2).
O principal benefício concedido foi o auxílio por incapacidade temporária (23.417; 65,0%), seguido pela aposentadoria por incapacidade permanente (10.116; 28,1%) e o amparo assistencial ao portador de deficiência (2.367; 6,6%). A média de idade dos beneficiários das aposentadorias por incapacidade permanente foi de 52 (DP = 9,0) anos. Entre as formas de filiação ao regime de previdência, o segurado especial (11.597; 32,2%), o empregado (8.411; 23,4%), o desempregado (7.495; 20,8%) e o autônomo (6.147; 17,1%) foram as mais frequentes. O segurado especial foi a forma de filiação predominante (11.597; 97,7%) entre os residentes na zona rural.
Em média, os indivíduos permaneceram 4,7 (DP = 7,3) anos doentes, antes da incapacidade laboral. A média de idade do início da doença foi de 44 (DP = 10) anos, e a média do início da incapacidade laboral, de 49 (DP = 9,2) anos.
O sexo feminino teve duas vezes mais chances de receber o benefício assistencial (OR = 2,0; IC95% 1,8;2,1) (Tabela 1). A concessão de benefícios assistenciais também esteve positivamente associada à residência em áreas urbanas (OR = 134,9; IC95% 78,0;233,2), quando comparadas às rurais. As faixas etárias ‘até 29 anos’ e dos ‘60 anos ou mais’ apresentaram as maiores chances para a concessão de benefícios assistenciais OR = 1,5; IC95% 1,1;1,9 e OR = 1,6; IC95% 1,3;1,7, respectivamente), quando comparadas ao estrato de 30 a 39 anos (Tabela 1). As macrorregiões nacionais com maiores chances de concessão de benefícios assistenciais foram o Nordeste (OR = 2,9; IC95% 2,5;3,1) e o Norte (OR = 2,8; IC95% 2,1;3,7) (Tabela 1).
Características | Benefícios da previdência social | Benefícios da assistência social | Total | ORba(IC95%)b | ORac(IC95%)b |
---|---|---|---|---|---|
n (%) | n (%) | n (%) | |||
Sexo | |||||
Masculino | 21.373 (95,0) | 1.130 (5,0) | 22.503 (100,0) | 1,00 | 1,00 |
Feminino | 12.283 (90,8) | 1.237 (9,2) | 13.520 (100,0) | 1,9 (1,7;2,1) | 2,0 (1,8;2,1) |
Faixa etária (em anos) | |||||
≤29 | 761 (92,5) | 61 (7,5) | 822 (100,0) | 1,5 (1,1;1,9) | 1,5 (1,1;1,9) |
30-49 | 14.032 (94,8) | 762 (5,2) | 14.794 (100,0) | 1,00 | 1,00 |
50-59 | 14.367 (93,3) | 1.033 (6,7) | 15.400 (100,0) | 1,3 (1,2;1,4) | 1,2 (1,1;1,3) |
≥60 | 4.496 (89,3) | 511 (10,7) | 5.007 (100,0) | 2,1 (1,9;2,3) | 1,6 (1,3;1,7) |
Zona de residência | |||||
Rural | 11.855 (99,9) | 13 (0,1) | 11.868 (100,0) | 1,00 | 1,00 |
Urbana | 21.801 (90,2) | 2.354 (9,8) | 24.155 (100,0) | 98,5 (57,1;169,9) | 134,9 (78,0;233,2) |
Macrorregião geográfica | |||||
Sudeste | 15.924 (94,6) | 904 (5,4) | 16.828 (100,0) | 1,00 | 1,00 |
Norte | 599 (90,3) | 64 (9,7) | 663 (100,0) | 1,9 (1,4;2,5) | 2,8 (2,1;3,7) |
Nordeste | 10.313 (93,4) | 732 (6,6) | 11.045 (100,0) | 1,3 (1,1;1,4) | 2,9 (2,5;3,1) |
Sul | 976 (93,1) | 72 (6,9) | 1.048 (100,0) | 1,3 (1,0;1,7) | 1,3 (1,0;1,7) |
Centro-Oeste | 5.844 (90,7) | 595 (9,3) | 6.439 (100,0) | 1,8 (1,6;2,0) | 1,6 (1,5;1,8) |
a) ORb: Odds ratio (razão de chances) bruta; b) IC95%: Intervalo de confiança de 95%; c) ORa: Odds ratio (razão de chances) ajustada por sexo, faixa etária, zona de residência e região geográfica.
O maior número de benefícios totais foi concedido no ano de 2004 (5.217; 14,5%), e decresceu gradativamente até 2016 (1.415; 3,9%), com excessão do ano de 2013 (Figura 3).
Discussão
A análise mostrou que, no período entre 2004 e 2016, os beneficiários da seguridade social brasileira com doença de Chagas eram principalmente do sexo masculino, residiam em áreas urbanas, na região Sudeste, portadores da forma cardíaca crônica da doença e na idade entre 50 e 59 anos. A concessão de benefícios assistenciais esteve associada à residência em áreas urbanas, à macrorregião Nordeste, ao sexo feminino e à faixa etária de 60 anos ou mais.
A doença de Chagas possui ampla distribuição no continente americano, onde o parasita T. cruzi é considerado endêmico.3 No Brasil, foram confirmados 3.222 casos de doença de Chagas entre 2004 e 2016,20 e, durante aquele período, um total de 36.023 benefícios relacionados à doença foram concedidos pela seguridade social. Essa discrepância entre notificações de casos e benefícios concedidos pode-se atribuir a dois fatores. Um deles é a regulamentação da notificação compulsória dos casos crônicos da doença de Chagas para todo o Brasil, que somente ocorreu em 2020.18 Assim, os casos da doença notificados no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) durante o período-objeto de estudo representaram apenas casos em sua forma aguda. Além disso, com a evolução lenta e progressiva da doença ao longo dos anos, é provável que a maioria dos benefícios tenham sido concedidos a indivíduos infectados no passado.21 A baixa porcentagem de casos agudos reportados neste estudo corrobora essa afirmação.
O diagnóstico de doença de Chagas é realizado, na maioria das vezes, em sua fase crônica,6 quando a gravidade das manifestações tem forte impacto na saúde dos trabalhadores e trabalhadoras, incapacitando-os(as) para o exercício de suas funções laborais e, por conseguinte, o que implica maior número de concessões de benefícios pela previdência e pela assistência social. A cardiopatia chagásica crônica possui particular relevância, por ser a forma clínica mais frequente da doença de Chagas e possuir grande potencial incapacitante.22
A média de idade do início da doença e da incapacidade laboral para os indivíduos afetados mostrou-se abaixo dos 50 anos. Em estudo que utilizou dados do Global Burden of Disease Study 2016, relativos ao período de 1990 a 2016, foi estimada uma perda de 141.640 DALYs decorrente da doença de Chagas em 2016, o que corresponde a uma redução de 36,7% DALYs em comparação com as estimativas do indicador para o ano de 1990.23 Um DALY significa um ano de vida saudável perdido, levando-se em consideração as mortes prematuras e os anos vividos com incapacidade.2 Esses dados comprovam que, apesar da redução de casos experimentada nas últimas décadas, a doença de Chagas continua a ser uma importante causa de morbidade, mortalidade e incapacidade no Brasil.
Observou-se maior frequência de benefícios (previdenciários e assistenciais) concedidos a pessoas do sexo masculino. Entretanto, as maiores chances de recebimento de benefício assistencial foram do sexo feminino. A cobertura previdenciária para mulheres no Regime Geral da Previdência Social Brasileira, regime analisado neste estudo, sempre foi inferior à mesma cobertura para homens, inclusive após as mudanças ocorridas nos anos 1990, quando a taxa de participação das mulheres no mercado de trabalho aumentou significantemente, e continuou a crescer nos anos 2000.24 Mulheres são maioria nas posições de trabalhadores sem carteira, não remunerados e trabalhadores na produção para o próprio consumo, fatos que se refletem nas diferenças de percentuais de benefícios previdenciários concedidos entre os sexos, observadas neste estudo.24 No entanto, as mulheres possuem maior representatividade do que os homens entre os contribuintes dos Regimes Próprios de Previdência Social estatutários, por serem maioria entre os servidores da Saúde e da Educação.25
Na primeira metade do século XX, no Brasil, a maioria dos casos de doença de Chagas concentravam-se em áreas rurais, habitat natural dos vetores da doença. A industrialização do país, o crescimento das cidades e o êxodo rural fizeram com que indivíduos infectados no passado, em áreas rurais, migrassem para áreas urbanas, configurando-se um novo contexto epidemiológico.6 A maior frequência de benefícios da seguridade social para portadores de doença de Chagas crônica residentes em áreas urbanas reflete essa mudança no perfil da doença. Além disso, o mundo rural tem menor acesso aos serviços sociais e de saúde e, portanto, o número reduzido de reivindicações de benefícios concedidos a residentes nessas áreas pode estar associado a uma falta de conhecimento da população que vive no campo sobre seus direitos sociais.6
A população rural ainda apresenta características que diferem, sobremaneira, da população urbana, e o percentual de indivíduos filiados como ‘segurado especial’ ao regime de previdência social é um exemplo. Os segurados especiais são representados pelos pequenos agricultores e pescadores artesanais, que exercem suas atividades laborais de forma individual ou em regime de economia familiar, sem empregados.25 Entende-se como regime de economia familiar as atividades em que o trabalho dos membros da família é indispensável à própria subsistência e ao desenvolvimento socioeconômico do núcleo familiar.25 Dessa forma, a vulnerabilidade social (individual e familiar) é amenizada, fato que também resulta no menor número de benefícios concedidos, principalmente os assistenciais.
Com a diminuição da incidência da doença de Chagas nas últimas décadas e o envelhecimento da população que se infectou no passado (logo, com maiores chances de desenvolver manifestações clínicas), espera-se maior ocorrência da doença entre adultos e idosos.6 Com efeito, a maior parte dos beneficiados foram adultos de 30 a 59 anos; idosos representaram menos de 15%. Esta baixa frequência entre idosos pode estar associada à alta mortalidade da doença nas faixas etárias mais avançadas. Um estudo realizado no Brasil, com dados de 2000 a 2019, mostrou relação direta da taxa de mortalidade por doença de Chagas com a progressão das faixas etárias, alcançando o valor máximo entre indivíduos na idade maior ou igual a 80 anos (42,3/100 mil hab.).26
No presente estudo, a abordagem da concessão de benefício assistencial restringiu-se ao amparo assistencial às pessoas com deficiência relacionada à doença, mais associada às faixas etárias mais jovens e às mais avançadas. Considerando-se a evolução lenta e crônica da doença, chama a atenção a incapacidade laboral entre indivíduos até 29 anos de idade. Aqueles que fazem jus aos benefícios assistenciais demonstram situação de vulnerabilidade importante, caracterizada pela incapacidade de possuir meios de prover a própria manutenção, incapacidade laboral ocasionada pela doença (com maior impacto social na faixa etária mais jovem) e condições familiares precárias (renda por pessoa do grupo familiar menor que 1/4 do salário mínimo). Nas faixas etárias mais altas, a cronicidade da doença de Chagas, associada às comorbidades do processo de envelhecimento, amplifica os riscos para os indivíduos e as demandas para o sistema de saúde, representando um grande desafio do Sistema Único de Saúde.6
O Sudeste apresentou maiores frequências de concessões, tanto previdenciárias quanto assistenciais. Essa macrorregião, além de ser a mais populosa e urbanizada do país, apresenta maiores índices de desenvolvimento humano, fazendo com que sua população residente esteja mais apta a contribuir com a previdência; e mais informada quanto aos direitos assistenciais existentes e pertinentes.27 Porém, quando os benefícios foram analisados segundo a população, o Centro-Oeste exibiu o maior número de benefícios concedidos, tanto assistenciais quanto previdenciários. Essa distribuição geográfica coincide com uma área considerada de alta endemicidade e intensa transmissão vetorial em décadas passadas, sendo exemplo o estado de Goiás, onde ocorreu intensa migração de pessoas de áreas rurais endêmicas para centros urbanos, como o Distrito Federal.6,26,28 Maiores chances para a concessão de benefícios assistenciais estiveram associadas às macrorregiões Norte e Nordeste, o que sugere maior vulnerabilidade social de suas populações.27
O auxílio por incapacidade temporária foi o tipo de concessão mais frequente, seguido pela aposentadoria por incapacidade permanente. Isto demonstra que a maioria dos beneficiários portadores de doença de Chagas crônica eram contribuintes da previdência social e colaboravam com a força de trabalho do país, antes do reconhecimento de sua incapacidade laboral temporária ou permanente. Em pesquisas semelhantes também realizadas no Brasil, sobre seguridade social e aids, para o mesmo período deste estudo, demonstrou-se que, de 99.369 beneficiários, 26,5% recebiam benefícios assistenciais e 51% eram desempregados.11,12
Houve progressiva redução do número de concessões de benefícios para portadores de doença de Chagas crônica no Brasil, no período analisado. Esse número acompanhou o perfil epidemiológico da doença no território nacional. Com o controle e a redução da transmissão intradomiciliar por vetores e o controle da transmissão por transfusão de sangue, a incidência da doença reduziu-se drasticamente, nas últimas décadas, no país.6 As consequências dessas ações evidenciam-se nos baixos percentuais de concessão de benefícios entre as faixas etárias mais jovens, o que, em conjunto com a mortalidade pela doença entre indivíduos a partir da faixa etária de 50 a 59 anos, contribuiu com a redução de seu impacto no sistema previdenciário e assistencial.26
Chama a atenção, igualmente, o pico de benefícios concedidos no ano de 2013. Surtos de doença de Chagas aguda não podem justificar esse aumento, visto que, em geral, não atingem mais do que algumas dezenas de pessoas, além de nem todas serem beneficiárias da seguridade social ou ficarem incapacitadas para o trabalho.6 Outrossim, a maioria desses surtos têm se desenvolvido no estado do Pará, que exibiu, neste trabalho, um dos menores percentuais de concessão de benefícios.6 Picos de benefícios concedidos também podem ocorrer como decorrência da divulgação social, por parte dos próprios beneficiários, de suas solicitações previdenciárias e assistenciais atendidas, ou pelo trabalho de advogados especializados em determinados tipos de causas previdenciárias e que as solicitam, sucessivamente, para um grupo de pessoas.
Com a reforma da previdência social no ano de 2019, houve redução importante nos valores a serem recebidos, nos benefícios de aposentadoria por incapacidade permanente e auxílio por incapacidade temporária.29 Considerando-se que grande parte dos portadores de doença de Chagas crônica fazem jus a esses benefícios, espera-se um aumento da vulnerabilidade social desse grupo tão duramente afetado. Ademais, com o advento da pandemia da COVID-19, o acesso aos benefícios da seguridade social foi dificultado pela falta de atendimento administrativo presencial e pela necessidade de uso de tecnologias digitais na resolução das pendências relacionadas aos requerimentos de benefícios, dado que parte da população não conta com acesso à internet e/ou domínio dessas ferramentas.30 Esta realidade constitui um importante elemento de redução na concessão de benefícios observada, a ser considerado em casuísticas futuras.
A Incerteza sobre a confiabilidade dos dados - inerente a qualquer estudo que utilize dados secundários - é uma limitação a ser considerada neste estudo. A falta de pesquisas anteriores sobre o tema impossibilitou comparações; por essa razão ela pode ser apontada como uma limitação. Tampouco foram incluídas na análise pessoas com doença de Chagas não inscritas no sistema previdenciário e/ou aquelas sem os requisitos básicos para terem direito aos benefícios assistenciais. Enquanto estão na informalidade, elas não são captadas pela seguridade social, no âmbito da previdência e assistência social, e, por conseguinte, essa sua condição pode levar a uma subestimação do número de trabalhadores afetados pela doença, constituindo mais uma importante limitação do estudo em tela.
A análise dos dados pesquisados preenche uma lacuna no conhecimento sobre a seguridade social e a doença de Chagas no contexto brasileiro. Apesar da redução na incidência da doença no país, casos infectados no passado continuam a impactar, de forma significativa, os sistemas de saúde, previdência e assistência social brasileiros, sobretudo entre a população adulta e idosa. Políticas públicas de saúde voltadas aos doentes crônicos devem ser implantadas, no sentido de se proporcionar maior qualidade de vida aos doentes e contribuir para a estabilização, retardo ou até mesmo melhora clínica dos casos, e, consequentemente, diminuir o impacto trabalhista da doença de Chagas no Brasil.