Contribuições do estudo
Principais resultados
Os atendimentos antirrábicos realizaram-se, majoritariamente, no sexo masculino, na idade < 19 anos, em residentes urbanos, por mordedura de cão, em mãos e pés. Em geral, a conduta profilática foi adequada, com maior frequência de observação e vacina.
Introdução
A raiva é uma doença viral infecciosa, caracterizada por encefalite aguda e progressiva, com alta letalidade, de aproximadamente 100%.1 Essa antropozoonose é transmitida ao homem pelas secreções salivares de um mamífero infectado, principalmente via mordedura em mãos ou pés. Os animais potencialmente transmissores da raiva estão agrupados em diferentes ciclos de transmissão entre eles e interagindo com a espécie humana: o ciclo urbano (cães e gatos), o ciclo silvestre aéreo (morcegos), o ciclo silvestre terrestre (raposas, primatas, guaxinins etc.) e o ciclo rural (bovinos, equinos, caprinos e outros de interesse econômico).2
A doença encontra-se amplamente distribuída no mundo, havendo transmissão em mais de 150 países.3 As mortes em humanos concentram-se nos continentes asiático e africano, os quais, juntos, somam um número estimado de mais de 56 mil mortes anuais, principalmente decorrentes de agressões provocadas por cães domésticos infectados pelo vírus do gênero Lyssavirus.3 Em virtude da magnitude da doença no mundo, a Organização Mundial da Saúde (OMS) estabeleceu, como meta, a eliminação das mortes em decorrência da raiva humana pela variante canina do vírus até o ano de 2030.3 No Brasil, desde a década de 1990 até 2017, foram notificados 594 casos de raiva humana, majoritariamente registrados em zonas urbanas e provocados pela variante canina do Lyssavirus.4
As diversas ações de prevenção e controle da raiva, que envolvem campanhas massivas de vacinação de cães e gatos, além do bloqueio de foco animal e da vigilância laboratorial, promoveram a diminuição na ocorrência de casos humanos, sobretudo aqueles relacionados à transmissão no ciclo urbano. Entretanto, a partir do ano 2000, notou-se um aumento de casos resultantes de agressões provocadas por animais silvestres, em especial quirópteros.5
A principal forma de prevenção da raiva humana é a profilaxia pós-exposição, que inclui a lavagem imediata do ferimento com água e sabão, a observação do animal agressor, geralmente cão ou gato, por dez dias e a administração de imunobiológicos (vacina e soro antirrábico; ou imunoglobulina), cuja indicação depende do tipo de exposição, das características do ferimento, da espécie e da condição do animal agressor (se cão, gato ou animal silvestre), segundo as diretrizes preconizadas pelo Ministério da Saúde (MS).
Em 2017, com base em evidências científicas, o MS recomendou a alteração do esquema completo de profilaxia pós-exposição da raiva, que consistiu na redução de 5 para 4 doses da vacina.2,5-7 Um estudo de avaliação econômica, sobre os gastos federais do Programa Nacional de Imunizações entre 2004 e 2015 (período que antecedeu a alteração do esquema profilático), demonstrou que o Sistema Único de Saúde (SUS) investiu, em um período de 12 anos, um valor aproximado de R$ 821 milhões na aquisição de imunobiológicos para a profilaxia antirrábica humana.4
No Brasil, a média anual de notificações registradas, entre os anos de 2009 e 2013, foi de 591.871.5 Considerando-se sua alta relevância para a saúde pública, em virtude da alta letalidade e dos elevados custos relacionados à profilaxia e à assistência em saúde, qualquer acidente envolvendo animal potencialmente transmissor da raiva é de notificação imediata e compulsória, em nível municipal. O caso é registrado mediante preenchimento e digitação da ‘Ficha de Investigação - Atendimento Antirrábico Humano’, instrumento do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), independentemente de a pessoa acidentada ter indicação ou não para receber a profilaxia.2,8,9
O processamento, a análise e a divulgação dos dados referentes aos atendimentos antirrábicos humanos de profilaxia pós-exposição contribuem para o monitoramento, o planejamento, a avaliação e o aprimoramento das ações de vigilância em saúde, bem como dos serviços de saúde.
O presente estudo teve como objetivo analisar os atendimentos antirrábicos humanos de profilaxia pós-exposição no Brasil, no período de 2014 a 2019.
MÉTODOS
Trata-se de um estudo descritivo dos atendimentos antirrábicos humanos de profilaxia pós-exposição notificados no Sinan, no Brasil, no período de 2014 a 2019.
Foram analisados os atendimentos de acidentes provocados por qualquer animal potencialmente transmissor da raiva, notificados pelos serviços de saúde. São considerados animais potencialmente transmissores da raiva os mamíferos em geral: caninos, felinos, animais silvestres (quirópteros, raposas, cachorros-do-mato, gatos-do-mato, jaritatacas, mãos-peladas, marsupiais, primatas), bovinos e equinos, entre outros.2
As variáveis de interesse analisadas foram:
-
Sociodemográficas
- Sexo (masculino; feminino);
- Faixa etária (em anos: menos de 1; 1 a 19; 20 a 39; 40 a 59; 60 e mais);
- Raça/cor da pele (parda; branca; preta; amarela; indígena);
- Escolaridade (analfabeto; ensino fundamental I; ensino fundamental II; ensino médio; ensino superior);
- Zona de residência (urbana; rural; periurbana); e
- Unidade da Federação (UF) de residência.
-
Antecedentes epidemiológicos
- Tipo de exposição (mordedura; arranhadura; lambedura; contato indireto; outros);
- Localização do ferimento (mãos e pés; membros inferiores; membros superiores; cabeça/pescoço; tronco; mucosa);
- Ferimento (único; múltiplo; sem ferimento);
- Tipo de ferimento (superficial; profundo; dilacerante);
- Espécie do animal agressor (canina; felina; quiróptera; primata; raposa; herbívoro doméstico; outra); e
- Condição do animal, para fins de conduta profilática (sadio; suspeito; morto/desaparecido; raivoso).
-
Profilaxia atual
- Condição final do animal [negativo para raiva (clínica); negativo para raiva (laboratório); morto/sacrificado/sem diagnóstico; positivo para raiva (clínica) e positivo para raiva (laboratório)];
- Profilaxia indicada (dispensa de profilaxia; observação do animal; observação e vacina; vacina; soro antirrábico e vacina; esquema de reexposição);
- Interrupção da profilaxia (sim; não);
- Motivo da interrupção (abandono; indicação da unidade de saúde; transferência);
- Busca ativa, se houve abandono da profilaxia e a unidade de saúde procurou a pessoa acidentada (sim; não); e
- Indicação de soro antirrábico (sim; não).
Para se identificar a conduta profilática indicada, definida como adequada ou inadequada, os atendimentos antirrábicos humanos de profilaxia pós-exposição foram primeiramente classificados segundo o tipo de exposição, conforme orienta o MS: contato indireto; acidentes envolvendo animais silvestres; acidentes graves; e acidentes leves.2 Foram classificados como acidentes graves aqueles em que i) a localização do ferimento foi em mucosa, cabeça e pescoço, ou mãos e pés, ii) o ferimento foi múltiplo ou, ainda, iii) aqueles em que o tipo do ferimento foi profundo ou dilacerante. Os demais acidentes, que não atenderam a essa definição, foram classificados como leves. O contato indireto refere-se aos acidentes que envolvem a manipulação de utensílios potencialmente contaminados, por exemplo.
Para as condutas profiláticas classificadas inicialmente como inadequadas, estabeleceu-se uma nova subclassificação, na qual a conduta inadequada ‘insuficiente’ e a conduta inadequada ‘excessiva’ sugerem que a profilaxia indicada não estava de acordo com as recomendações das autoridades de saúde, por insuficiência ou excesso respectivamente. A conduta profilática classificada como adequada sugere que a profilaxia indicada seguia as normas estabelecidas pelo país.6,10,11
Os dados dos atendimentos antirrábicos humanos provieram da base de dados do Sinan. O sistema encontra-se sob a gestão do Departamento de Análise em Saúde e Vigilância de Doenças não Transmissíveis, da Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde, e seus dados foram extraídos em 24 de junho de 2020.
Realizou-se análise descritiva dos dados, calculando-se frequências absolutas e relativas, medidas de tendência central e de dispersão (média e desvio-padrão) e taxa de incidência. A taxa de incidência foi obtida pela razão entre o número absoluto das notificações das UFs de residência nos anos 2014-2019 e a população estimada para 2017 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), multiplicada por mil.12 As variáveis que apresentaram registros ignorados ou em branco superiores a 50,0% foram excluídas da análise (considerando-se esse parâmetro de completude, que varia de classificação baixa a muito baixa).13,14 Para fins de processamento e análise de dados, utilizou-se o software Excel 2013®.
O projeto da pesquisa foi submetido à Comissão Nacional de Ética em Pesquisa do Conselho Nacional de Saúde (CNS), em 13 de novembro de 2020, e aprovado mediante o Parecer nº 4.396.733 - Certificado de Apresentação para Apreciação Ética nº 39003820.9.0000.0008 -, em cumprimento à Resolução CNS nº 466, de 12 de dezembro de 2012.
Resultados
No Brasil, foram notificados 4.128.364 atendimentos antirrábicos humanos entre 2014 e 2019, sendo 97,7% (n = 4.033.098) de profilaxia pós-exposição e 2,3% (n = 95.266) de profilaxia pré-exposição, estes últimos excluídos da análise. As notificações de profilaxia pós-exposição apresentaram, em média, 672.183 (DP: ±41.238,3) notificações ao ano. Observou-se um aumento de 11,0% no número de notificações, entre 2014 (n = 645.335) e 2019 (n = 716.455).
Em relação ao perfil sociodemográfico dos atendidos, a maioria era do sexo masculino (n = 2.111.369; 52,4%), na faixa etária de 1 a 19 anos (n = 1.368.486; 33,9%), de raça/cor da pele parda (n = 1.604.912; 46,5%) ou branca (n = 1.575.682; 45,7%), e com nível de escolaridade fundamental II (n = 711.513; 34,5%). A maior parte dos atendimentos antirrábicos humanos de profilaxia pós-exposição ocorreu em área urbana (n = 3.386.589; 88,1%) (Tabela 1).
Características sociodemográficas | n | % |
---|---|---|
Sexo (n = 4.031.640) | ||
Masculino | 2.111.369 | 52,4 |
Feminino | 1.920.271 | 47,6 |
Faixa etária (em anos) (n = 4.033.084) | ||
<1 | 54.947 | 1,4 |
1-19 | 1.368.486 | 33,9 |
20-39 | 1.054.952 | 26,2 |
40-59 | 947.557 | 23,5 |
≥60 | 607.142 | 15,0 |
Raça/cor da pele (n = 3.451.110) | ||
Parda | 1.604.912 | 46,5 |
Branca | 1.575.682 | 45,7 |
Preta | 224.721 | 6,5 |
Amarela | 28.436 | 0,8 |
Indígena | 17.359 | 0,5 |
Escolaridade (n = 2.063.631)a | ||
Analfabeto | 66.629 | 3,2 |
Ensino fundamental I | 562.932 | 27,3 |
Ensino fundamental II | 711.513 | 34,5 |
Ensino médio | 555.174 | 26,9 |
Ensino superior | 167.383 | 8,1 |
Zona de residência (n = 3.842.981) | ||
Urbana | 3.386.589 | 88,1 |
Rural | 436.408 | 11,4 |
Periurbana | 19.984 | 0,5 |
a) Não se aplica a menores de 7 anos (n = 557.923).
São Paulo, com 708.307 (17,6%) atendimentos antirrábicos humanos de profilaxia pós-exposição, seguido por Minas Gerais, com 438.500 (10,9%), e Rio de Janeiro, com 312.107 (7,7%), foram os estados que mais notificaram. Amapá, Acre e Roraima, com, respectivamente, 12.323 (0,3%), 16.387 (0,4%) e 20.134 (0,5%) notificações, apresentaram a menor frequência de atendimentos notificados. Com relação à taxa de incidência, obtida a partir das notificações registradas, os estados de Roraima e Tocantins foram os que apresentaram as maiores taxas, 38,5 e 27,8 por mil habitantes, respectivamente (Figura 1).
Em se tratando das variáveis relacionadas aos antecedentes epidemiológicos, a mordedura e a arranhadura representaram, juntas, 95,6% (n = 4.176.973) dos registros. Lesões em mãos e pés compreenderam 35,3% (n = 1.541.201) dos locais dos ferimentos, seguidos pelos membros inferiores 34,1% (n = 1.488.110); agressões em mucosas representaram 2,1% (n = 89.807) das notificações. O ferimento foi único em 59,8% (n = 2.336.416) dos atendimentos, 51,0% (n = 2.015.477) de lesões superficiais e 43,6% profundas (n = 1.719.434) (Tabela 2).
Quanto à espécie do animal agressor, 96,7% (n = 3.893.880) corresponderam a agressões relacionadas com o ciclo urbano de transmissão da raiva, ou seja, por animais das espécies canina e felina. Os animais silvestres, como quirópteros, primatas e raposas, foram responsáveis por 1,4% (n = 57.216) dos registros. Um percentual de 1,6% (n = 65.853) das notificações envolveu outras espécies de animal agressor e, nesses casos, foram registrados acidentes tanto por animais potencialmente transmissores da doença (outros mamíferos) como por animais que não fazem parte do ciclo de transmissão (artrópodes, anfíbios, répteis e aves). A condição do animal registrada como sadia representou 71,3% (n = 2.762.232) do total de notificações (Tabela 2).
Variáveis | n | % |
---|---|---|
Antecedentes epidemiológicos | ||
Tipo de exposiçãoa (n = 4.368.254) | ||
Mordedura | 3.575.717 | 81,9 |
Arranhadura | 601.256 | 13,7 |
Lambedura | 105.643 | 2,4 |
Contato indireto | 52.294 | 1,2 |
Outros | 33.344 | 0,8 |
Localização do ferimentoa (n = 4.360.995) | ||
Mãos/pés | 1.541.201 | 35,3 |
Membros inferiores | 1.488.110 | 34,1 |
Membros superiores | 704.660 | 16,2 |
Cabeça/pescoço | 337.007 | 7,7 |
Tronco | 200.210 | 4,6 |
Mucosa | 89.807 | 2,1 |
Ferimento (n = 3.908.181) | ||
Único | 2.336.416 | 59,8 |
Múltiplo | 1.541.099 | 39,4 |
Sem ferimento | 30.666 | 0,8 |
Tipo de ferimentoa (n = 3.948.063) | ||
Superficial | 2.015.477 | 51,0 |
Profundo | 1.719.434 | 43,6 |
Dilacerante | 213.152 | 5,4 |
Espécie do animal agressor (n = 4.028.237) | ||
Canina | 3.281.190 | 81,5 |
Felina | 612.690 | 15,2 |
Quiróptera | 31.786 | 0,8 |
Primata | 19.769 | 0,5 |
Raposa | 5.661 | 0,1 |
Herbívoro doméstico | 11.288 | 0,3 |
Outra | 65.853 | 1,6 |
Condição do animal (n = 3.872.508) | ||
Sadio | 2.762.232 | 71,3 |
Suspeito | 638.614 | 16,5 |
Morto/desaparecido | 455.362 | 11,8 |
Raivoso | 16.300 | 0,4 |
Profilaxia atual | ||
Condição final do animal (n = 2.420.706) | ||
Negativo para raiva (clínica) | 2.083.834 | 86,1 |
Morto/sacrificado/sem diagnóstico | 283.273 | 11,7 |
Negativo para raiva (laboratório) | 42.593 | 1,8 |
Positivo para raiva (clínica) | 5.057 | 0,2 |
Positivo para raiva (laboratório) | 5.949 | 0,2 |
Profilaxia indicada (n = 3.929.787) | ||
Observação + vacina | 1.736.036 | 44,2 |
Observação do animal | 1.044.030 | 26,6 |
Vacina | 754.452 | 19,2 |
Soro antirrábico + vacina | 329.124 | 8,4 |
Dispensa de profilaxia | 56.850 | 1,4 |
Esquema de reexposição | 9.295 | 0,2 |
Interrupção da profilaxia (n = 2.226.105) | ||
Não | 1.684.981 | 75,7 |
Sim | 541.124 | 24,3 |
Motivo da interrupção (n = 541.124) | ||
Abandono | 339.356 | 62,7 |
Indicação da unidade de saúde | 167.363 | 30,9 |
Transferência | 34.405 | 6,4 |
Busca ativa, realizada pela unidade de saúde (n = 307.048) | ||
Sim | 236.862 | 77,1 |
Não | 70.186 | 22,9 |
Indicação de soro antirrábico (n = 2.133.632) | ||
Não | 1.867.673 | 87,5 |
Sim | 265.959 | 12,5 |
a) Admite mais de uma categoria.
No que se refere às variáveis relacionadas à profilaxia atual, a condição final do animal, considerando-se o somatório dos critérios clínico e laboratorial, foi negativa em 87,9% (n = 2.126.427) dos atendimentos antirrábicos humanos. A indicação de profilaxia composta por observação e vacina correspondeu a 44,2% (n = 1.736.036) dos atendimentos, enquanto a profilaxia apenas com vacina correspondeu a 19,2% (n = 754.452), e com soro antirrábico e vacina, a 8,4% (n = 329.124). Houve interrupção da profilaxia em 24,3% (n = 541.124) dos registros, a maioria por abandono: 62,7% (n = 339.356). A busca ativa foi realizada pela unidade de saúde em 77,1% (n = 236.862) dos que interromperam a profilaxia por motivo de abandono. Do total de notificações, foi indicada profilaxia com a administração de soro antirrábico em 12,5% (n = 265.959) das agressões (Tabela 2).
No que diz respeito à conduta profilática dos atendimentos antirrábicos humanos de profilaxia pós-exposição, foi possível classificar 93,0% (n = 3.752.100) das notificações; 7,0% (n = 280.998) não foram classificadas, por apresentarem dados incompletos. Entre os registros classificados, 1,3% (n = 49.252) representava contato indireto, 1,3% (n = 50.969) acidentes envolvendo animais silvestres, 20,9% (n = 783.225) foram classificados como acidentes leves e 76,5% (n = 2.868.654) como acidentes graves (Figura 2).
Nota: As condutas adequadas foram classificadas da seguinte forma: contato indireto (dispensa de tratamento); acidentes envolvendo animais silvestres (soro antirrábico + vacina); acidentes leves envolvendo animais domésticos sem suspeita de raiva (observação do animal ou observação + vacina); acidentes leves envolvendo animais domésticos suspeitos de raiva (observação + vacina ou vacina); acidentes leves envolvendo animais domésticos raivosos, desaparecidos ou mortos (vacina); acidentes graves envolvendo animais domésticos sem suspeita de raiva (observação + vacina ou soro antirrábico + vacina); acidentes graves envolvendo animais domésticos suspeitos de raiva (soro antirrábico + vacina); e acidentes graves envolvendo animais domésticos raivosos, desaparecidos ou mortos (soro antirrábico + vacina).
No tocante à conduta profilática indicada, entre as exposições classificadas como contato indireto (n = 49.252), 3,3% (n = 1.648) tiveram conduta profilática classificada como adequada (dispensa de profilaxia). Entre os acidentes leves envolvendo animais domésticos sem suspeita de raiva (n = 541.874), 85,9% (n = 465.891) das condutas profiláticas - observação do animal; observação e vacina - foram adequadas. Entre os acidentes leves com animais domésticos suspeitos de raiva (n = 144.681), as condutas profiláticas adequadas (observação e vacina; vacina) representaram 77,8% (n = 112.505) das notificações, enquanto para os acidentes leves com animais domésticos raivosos, desaparecidos ou mortos (n = 96.670), as condutas profiláticas adequadas (vacina) corresponderam a 81,4% (n = 78.663) (Tabela 3).
Variáveis | Adequado | Inadequado | ||||
---|---|---|---|---|---|---|
Insuficiente | Excessivo | |||||
n | % | n | % | n | % | |
Contato indireto (n = 49.252) | ||||||
Dispensa de profilaxia | 1.648 | 3,3 | -a | -a | -a | -a |
Observação do animal | -a | -a | -a | -a | 8.929 | 18,1 |
Observação + vacina | -a | -a | -a | -a | 17.468 | 35,5 |
Vacina | -a | -a | -a | -a | 13.656 | 27,7 |
Soro antirrábico + vacina | -a | -a | -a | -a | 7.551 | 15,3 |
Acidentes leves com animais domésticos sem suspeita de raiva (n = 541.874) | ||||||
Dispensa de profilaxia | -a | -a | 12.878 | 2,4 | -a | -a |
Observação do animal | 294.670 | 54,4 | -a | -a | -a | -a |
Observação + vacina | 171.221 | 31,5 | -a | -a | -a | -a |
Vacina | -a | -a | -a | -a | 58.979 | 10,9 |
Soro antirrábico + vacina | -a | -a | -a | -a | 4.126 | 0,8 |
Acidentes leves com animais domésticos suspeitos de raiva (n = 144.681) | ||||||
Dispensa de profilaxia | -a | -a | 2.361 | 1,6 | -a | -a |
Observação do animal | -a | -a | 20.162 | 13,9 | -a | -a |
Observação + vacina | 45.193 | 31,3 | -a | -a | -a | -a |
Vacina | 67.312 | 46,5 | -a | -a | -a | -a |
Soro antirrábico + vacina | -a | -a | -a | -a | 9.653 | 6,7 |
Acidentes leves com animais domésticos raivosos, desaparecidos ou mortos (n = 96.670) | ||||||
Dispensa de profilaxia | -a | -a | 2.051 | 2,1 | -a | -a |
Observação do animal | -a | -a | 4.648 | 4,8 | -a | -a |
Observação + vacina | -a | -a | 1.091 | 1,1 | -a | -a |
Vacina | 78.663 | 81,4 | -a | -a | -a | -a |
Soro antirrábico + vacina | -a | -a | -a | -a | 10.217 | 10,6 |
Acidentes graves com animais domésticos sem suspeita de raiva (n = 2.123.730) | ||||||
Dispensa de profilaxia | -a | -a | 20.137 | 0,9 | -a | -a |
Observação do animal | -a | -a | 654.262 | 30,8 | -a | -a |
Observação + vacina | 1.247.007 | 58,7 | -a | -a | -a | -a |
Vacina | -a | -a | 167.116 | 7,9 | -a | -a |
Soro antirrábico + vacina | 35.208 | 1,7 | -a | -a | -a | -a |
Acidentes graves com animais domésticos suspeitos de raiva (n = 437.035) | ||||||
Dispensa de profilaxia | -a | -a | 3.548 | 0,8 | -a | -a |
Observação do animal | -a | -a | 43.361 | 9,9 | -a | -a |
Observação + vacina | -a | -a | 178.398 | 40,8 | -a | -a |
Vacina | -a | -a | 153.763 | 35,2 | -a | -a |
Soro antirrábico + vacina | 57.965 | 13,3 | -a | -a | -a | -a |
Acidentes graves com animais domésticos raivosos, desaparecidos ou mortos (n = 307.889) | ||||||
Dispensa de profilaxia | -a | -a | 4.530 | 1,5 | -a | -a |
Observação do animal | -a | -a | 2.523 | 0,8 | -a | -a |
Observação + vacina | -a | -a | 16.331 | 5,3 | -a | -a |
Vacina | -a | -a | 148.904 | 48,4 | -a | -a |
Soro antirrábico + vacina | 135.601 | 44,0 | -a | -a | -a | -a |
Acidentes envolvendo animais silvestres (n = 50.969) | ||||||
Dispensa de profilaxia | -a | -a | 803 | 1,6 | -a | -a |
Observação do animal | -a | -a | 580 | 1,1 | -a | -a |
Observação + vacina | -a | -a | 3.607 | 7,1 | -a | -a |
Vacina | -a | -a | 10.778 | 21,1 | -a | -a |
Soro antirrábico + vacina | 35.201 | 69,1 | -a | -a | -a | -a |
Contato indireto (n = 49.252) | 1.648 | 3,3 | -a | -a | 47.604 | 96,7 |
Acidentes leves (n = 783.225) | 657.059 | 83,9 | 43.191 | 5,5 | 82.975 | 10,6 |
Acidentes graves (n = 2.868.654) | 1.475.781 | 51,4 | 1.392.873 | 48,6 | -a | -a |
Acidentes envolvendo animais silvestres (n = 50.969) | 35.201 | 69,1 | 15.768 | 30,9 | -a | -a |
Total | 2.169.689 | 57,8 | 1.582.411 | 42,2 |
a) Não é possível esse tipo de classificação.
Entre os acidentes graves envolvendo animais domésticos sem suspeita de raiva (n = 2.123.730), 60,4% (n = 1.282.215) das condutas profiláticas foram adequadas (observação e vacina; soro antirrábico e vacina). Para os acidentes graves com animais domésticos suspeitos de raiva (n = 437.035) e animais domésticos raivosos, desaparecidos ou mortos (n = 307.889), a conduta foi inadequada ou insuficiente (dispensa de profilaxia; observação do animal; observação e vacina; apenas vacina) em 86,7% (n = 379.070) e 56,0% (n = 172.288) dos atendimentos, respectivamente. Sobre os acidentes envolvendo animais silvestres (n = 50.969), a conduta profilática foi adequada (soro antirrábico e vacina) em 69,1% (n = 35.201) dos casos atendidos (Tabela 3).
Do total de atendimentos antirrábicos humanos de profilaxia pós-exposição classificados quanto à conduta profilática (n = 3.752.100), 57,8% (n = 2.169.689) das condutas foram classificadas como adequadas e 42,2% (n = 1.582.411) como inadequadas. Entre as condutas profiláticas inadequadas, 91,7% (n = 1.541.832) foram consideradas insuficientes e 8,3% (n = 130.579) excessivas. O contato indireto e os acidentes graves corresponderam a 36,5% (n = 47.604) das condutas excessivas e a 95,9% (n = 1.392.873) das condutas insuficientes, respectivamente (Tabela 3).
Discussão
Durante o período analisado, foram registradas mais de 4 milhões de notificações de atendimentos antirrábicos humanos de profilaxia pós-exposição, com maior frequência absoluta de registros na região Sudeste e maior taxa de incidência na região Norte do país. As agressões ocorreram majoritariamente em jovens, do sexo masculino, com ferimentos localizados em mãos e pés, e provocadas por cães e gatos. Apesar de a conduta profilática ter sido indicada de forma adequada na maior parte dos atendimentos de profilaxia antirrábica humana pós-exposição, ainda houve indicações inadequadas.
A elevada carga identificada sugere que tanto a população como a comunidade assistencial e de vigilância em saúde reconhecem a necessidade de buscar por um serviço de saúde quando se sofre uma agressão por animal potencialmente transmissor de raiva, além da importância da notificação desse evento para a saúde pública.
Entretanto, é importante destacar que, em virtude da alta letalidade, a procura por profilaxia pós-exposição é necessária, mesmo para agressões leves, principalmente aquelas provocadas por animais silvestres; ainda que em situações de adentramento de morcegos no interior de edificações, onde se desconhece o risco da exposição.2 Por menor que seja a agressão, as pessoas devem ser orientadas a buscar o serviço de saúde para avaliação da conduta de profilaxia pós-exposição, evitando casos e surtos esporádicos de raiva humana provocados, principalmente, por morcegos.
Por se tratar de um sistema de vigilância passiva, é provável que atendimentos antirrábicos humanos de profilaxia pós-exposição não sejam efetivamente captados pelo sistema de informações, possibilitando a subnotificação desses registros no país,15 especialmente nas zonas rurais de difícil acesso, como áreas ribeirinhas na Amazônia, onde fatores culturais também podem influenciar a ocorrência de agressões, dado haver contato frequente com animais, inclusive animais silvestres, e o acesso aos serviços de saúde ser limitado.16
Observou-se um aumento no número de registros, principalmente quando comparados às médias de notificações ao ano, entre o período deste estudo e o quinquênio analisado anteriormente (2009-2013), muito embora se tenha utilizado a mesma base de dados em ambas pesquisas.5 Esse aumento pode estar relacionado à divulgação, pelo MS, da Nota Informativa n. 26-SEI/2017, sobre as alterações no esquema de profilaxia pós-exposição da raiva humana, o que pode ter sensibilizado os profissionais de saúde para a importância das medidas de prevenção e controle da raiva humana.6 Outros fatores, relacionados ao aumento das interações entre homens e animais, desmatamento florestal e urbanização desordenada das cidades, por exemplo, também podem ter contribuído com o aumento observado.
Outrossim, em decorrência do aumento das notificações, é possível que haja impacto nos custos de investimentos do SUS em ações de profilaxia pós-exposição à raiva humana, tendo em vista implicações como o aumento do uso de imunobiológicos, do tempo de trabalho despendido e dos recursos humanos disponibilizados para a vigilância e assistência aos atendimentos antirrábicos humanos. Nesse sentido, faz-se necessário refletir sobre a importância da indicação da conduta profilática com ênfase na observação de cães e gatos, durante dez dias, sem início imediato da administração de imunobiológicos, quando possível, conforme recomendação da OMS.3 Considerando-se o cenário epidemiológico brasileiro, em que o último caso de raiva humana provocado pela variante canina foi registrado no ano de 2015, essa reflexão é oportuna para o uso racional dos imunobiológicos e redução de custos para o SUS.4
A população do sexo masculino encontra-se mais exposta aos acidentes com animais potencialmente transmissores da raiva, o que, possivelmente, estaria relacionado às atividades laborais.1 Além disso, de acordo com as evidências apresentadas em análise nacional pregressa com os registros de atendimento antirrábico humano de profilaxia pós-exposição, sobre os anos de 2009 a 2013, a faixa etária mais acometida foi a mais jovem (1 a 19 anos).5
A região Sudeste, representada pelos estados de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, nesta ordem, concentrou os maiores números absolutos de notificações no período sob análise, corroborando os resultados de estudos anteriores, desde o ano 2000.5, 17 Contudo, as maiores taxas de incidência de atendimentos antirrábicos humanos de profilaxia pós-exposição foram observadas na região Norte do país, nos estados de Roraima e Tocantins.
Os cães e gatos, que constituem o ciclo urbano de transmissão da raiva, correspondem às espécies de animais agressores mais frequentemente relacionadas aos atendimentos antirrábicos humanos de profilaxia pós-exposição.1,5,18 Entretanto, é importante destacar que os últimos registros de raiva humana no Brasil devem-se a agressões provocadas por animais silvestres, principalmente morcegos.4,19 Este fato aponta para a transição da transmissão da raiva humana, do ciclo urbano para o ciclo silvestre, especialmente o aéreo, inclusive com a ocorrência de surtos registrados não apenas no Brasil, mas também em outros países da América Latina, como Equador e Peru.4,20,21 Em razão da alta letalidade, a busca pela profilaxia pós-exposição é necessária, mesmo quando se trata de agressões leves, principalmente as provocadas por animais silvestres.
Essa transição no cenário epidemiológico da raiva humana justifica os esforços das autoridades sanitárias em prol da eliminação da doença transmitida por cães, na América Latina e no Caribe, principalmente por meio de campanhas massivas de vacinação desses animais.22 Cumpre lembrar a especial atenção devida aos casos secundários, em decorrência da infecção de cães e gatos por variantes de morcegos, e desenvolver estratégias de prevenção e controle específicas nesse sentido.4
A mordedura é considerada o tipo de exposição mais comum entre as notificações, e isso pode ser explicado pelo fato de os animais agressores encontrarem nesse ato uma maneira de se defender.5 Os locais mais agredidos foram mãos e pés, que são utilizados, mais frequentemente, como forma de proteção no momento da agressão, corroborando achados de outros autores.17,18,23,24 Além disso, a localização, o tipo do ferimento e a condição do animal no momento da agressão são importantes para a classificação dos acidentes enquanto leves ou graves, considerando-se a ação do vírus no sistema nervoso central, visando orientar as condutas de profilaxia pós-exposição.6,23
O tipo de profilaxia mais indicado foi a observação e vacinação, coerentemente com o tipo de animal agressor, principalmente cães e gatos negativos para raiva conforme critério clínico.5 É importante refletir sobre a possibilidade de tornar a observação - sem início do esquema profilático com a utilização de vacina - a conduta ideal diante de agressões provocadas por animais sem sinais clínicos sugestivos de raiva, e a possibilidade de observação deles, no sentido de contribuir com a utilização racional dos imunobiológicos nos serviços de saúde, conforme recomenda a OMS.7 Observou-se que a interrupção da profilaxia deu-se, na maior parte das vezes, pelo abandono da terapia profilática, como descrito em outros estudos.5,24 Nesses casos, é fundamental a realização de busca ativa pelos serviços de saúde, para fins de conclusão da profilaxia. A não realização ou inconclusão do esquema profilático adequado pode resultar em casos de raiva humana.
De forma geral, a maior parte dos atendimentos antirrábicos humanos de profilaxia pós-exposição contou com a conduta profilática adequada. Para determinadas exposições, como o contato indireto e o envolvimento de animais domésticos suspeitos da raiva e animais raivosos, desaparecidos ou mortos, observa-se um considerável número de atendimentos antirrábicos humanos de profilaxia pós-exposição cuja conduta profilática indicada foi realizada de maneira inadequada, ora excessiva, ora insuficiente.
É importante ressaltar que condutas profiláticas inadequadas podem acarretar casos de raiva humana se o esquema profilático envolvendo a aplicação de imunobiológico (soro antirrábico e vacina) for insuficiente, ao passo que sua indicação de forma desnecessária (excessiva) pode ocasionar desperdícios e até incorrer no desabastecimento por falta de imunobiológicos, ademais de expor as pessoas ao risco de evento adverso desnecessário.9,10 Assim, as atualizações constantes dos profissionais de saúde envolvidos na indicação da profilaxia pós-exposição, reforçando a importância da lavagem do ferimento com água e sabão imediatamente após a agressão, bem como a administração adequada dos imunobiológicos, são fundamentais.
Existe a possibilidade de os resultados do presente estudo serem influenciados por algumas limitações, decorrentes de sua própria natureza. A utilização de um banco de dados secundários pode implicar viés de informação, no caso de incompletude e/ou inconsistência das notificações. Alguns registros, por exemplo, ficaram impossibilitados de classificação quanto ao tipo de exposição grave ou leve, o que pode ter subestimado os resultados do estudo.
Diante do cenário apresentado, é importante que as autoridades de saúde permaneçam com seus esforços concentrados na prevenção, controle e eliminação da raiva, no sentido de se alcançar o objetivo da OMS para 2030: nenhuma morte por raiva humana provocada por variante canina.