Contribuições do estudo
Principais resultados
Em 2019, na assistência pública à doença renal crônica no estado de São Paulo, houve simultaneamente desperdício, falta de oferta e rastreamento deficiente de procedimentos importantes.
Introdução
A doença renal crônica é problema mundial de saúde pública. Ela acomete cerca de 10% dos adultos, 12% das pessoas com hipertensão arterial, 15% daquelas com diabetes mellitus e 30% dos idosos. A Organização Mundial da Saúde (OMS) definiu essa doença como a condição crônica não transmissível mais negligenciada no mundo. Globalmente, observa-se falta de sistemas de vigilância e de programas nacionais de assistência às fases iniciais da doença renal crônica. Além disso, em muitos países, a doença não foi incluída nos planos de enfrentamento das condições crônicas e muitas pessoas ainda morrem todos os anos, sem acesso à diálise.1
De acordo com a Sociedade Internacional de Nefrologia, a doença renal crônica é definida por taxa de filtração glomerular estimada abaixo de 60 ml/min/1,73 m2 ou pela presença de marcador de doença renal por mais de três meses.2 Dois exames simples, de baixo custo e disponíveis no Sistema Único de Saúde (SUS), são suficientes para esse diagnóstico.3 Um desses exames é a creatinina sérica. A partir da dosagem da creatinina sérica e utilizando-se idade, sexo e etnia, obtém-se a taxa de filtração glomerular estimada. Esse exame mede a função global dos dois rins. Outro exame indispensável para definir a doença renal crônica é a proteinúria (dosagem de proteínas urinárias). Este marcador é o mais importante na prática clínica, porque se altera mais precocemente que a taxa de filtração glomerular estimada na história natural da doença renal crônica e, assim, constitui o principal fator prognóstico de indivíduos com essa condição. Comparados a indivíduos com proteinúria normal, aqueles com alteração desse exame têm maior risco de hospitalização, evento cardiovascular e necessidade de diálise.2,3
A linha de cuidado às pessoas com essa condição está bem estabelecida por diretrizes brasileiras e internacionais.2,3 No nível de Atenção Primária à Saúde (APS), todo indivíduo com hipertensão ou diabetes deve realizar, no mínimo anualmente, dosagem de creatinina sérica e de proteinúria. No Brasil, entretanto, informações sobre a adesão a essas diretrizes são escassas. Estudos internacionais mostraram que menos de 6% dos indivíduos com doença renal crônica são diagnosticados nas fases iniciais da doença. Esses estudos também mostraram que apenas 25% dos casos foram submetidos a rastreamento adequado na APS e que o encaminhamento tardio ao nefrologista foi realizado em 40% a 80% deles.4,5
A agenda global de enfrentamento à doença renal crônica envolve, além do treinamento profissional e de campanhas de conscientização, a ampliação da cobertura assistencial.1 Para esta última ação, determinar as estimativas das necessidades de cada população e monitorar a oferta de serviços de saúde é fundamental.
No Brasil, a metodologia de cálculo de necessidade de serviços de saúde no SUS (consultas, exames, leitos hospitalares, entre outros) utiliza como base evidências científicas nacionais e internacionais, pareceres de especialistas e consultas públicas, culminando com o protocolo estabelecido na Portaria nº 1.631, de 1º de outubro de 2015, que estabelece os critérios e parâmetros assistenciais para o planejamento e programação de ações e serviços de saúde no âmbito do SUS.6
Globalmente, na assistência à doença renal crônica, estudos comparativos do número de consultas e exames realizados, com a necessidade da população, são escassos. Sendo assim, o objetivo deste estudo foi determinar a razão oferta/necessidade de procedimentos relacionados com o diagnóstico e assistência à doença renal crônica no SUS, no estado de São Paulo, Brasil.
Métodos
Desenho do estudo
Trata-se de estudo descritivo, realizado com base em dados do Sistema de Informações Ambulatoriais (SIA/SUS) e do Sistema de Informações Hospitalares (SIH/SUS) do SUS. O período analisado foi o de 1º de janeiro a 31 de dezembro de 2019, e o local, o estado de São Paulo. A justificativa para a escolha do período de 2019 foi ser este o ano mais recente livre da interferência da pandemia de COVID-19 na assistência às condições crônicas. A extração dos dados de ambos os sistemas de informações ocorreu entre os meses de janeiro e abril de 2021.
Contexto
O SIA/SUS e o SIH/SUS são bases de dados secundários e armazenam informações de procedimentos relacionados à assistência à saúde (consultas, exames, cirurgias, medicamentos de alto custo, internações, entre outros). Esses sistemas, de abrangência nacional, englobam todos os estabelecimentos de saúde prestadores de serviços ao SUS e seu objetivo é cobrar informações sobre o montante de procedimentos realizados. Essas informações são enviadas mensalmente, por via eletrônica, dos estabelecimentos de saúde para o Ministério da Saúde. Este é responsável pela consolidação dessas informações e sua publicação no sítio eletrônico do Departamento de Informática do SUS (Datasus), no prazo de até 90 dias. Trata-se de dados de domínio público, que permitem estratificações por município, departamento regional de saúde (divisões administrativas do SUS) ou Unidade da Federação (UF).7
População de referência
A população de referência do estudo foi o número de adultos com hipertensão e/ou diabetes, excluídos os usuários da saúde suplementar, para a análise das razões oferta/necessidade de dosagens de creatinina sérica e de proteinúria. Para a análise das razões oferta/necessidade de consultas com nefrologista, ultrassonografias renais e biópsias renais, considerou-se como população de referência a população total do estado de São Paulo, sendo novamente excluída a população usuária da rede suplementar (Figura 1).
Variáveis
As variáveis de estudo foram obtidas para cada departamento regional de saúde e para a totalidade do estado de São Paulo. A escolha dos procedimentos relacionados com o diagnóstico e a assistência à doença renal crônica foi realizada de acordo com os seguintes critérios: relevância científica; disponibilidade das informações em bancos de dados secundários do SUS; e presença de estimativa de necessidade em diretrizes vigentes ou portarias ministeriais. As características sociodemográficas, econômicas e estruturais de cada departamento regional de saúde foram determinadas com o objetivo de relacioná-las à razão oferta/necessidade dos procedimentos de diagnóstico e assistência à doença renal crônica. As variáveis analisadas foram:
consultas com nefrologista (número de consultas ambulatoriais com nefrologista no SUS);
dosagens de creatinina sérica (número de dosagens de creatinina sérica pelo SUS);
dosagens de albuminúria (número de dosagens de albuminúria pelo SUS);
dosagens de proteinúria de 24 horas (número de dosagens de proteinúria de 24 horas pelo SUS);
ultrassonografias renais (número de exames de ultrassonografia renal realizados no SUS);
biópsias renais (número de biópsias renais realizadas no SUS);
taxa de analfabetismo (população não alfabetizada sobre o total da população residente);
grau de urbanização (percentual da população urbana sobre o total da população residente);
produto interno bruto (PIB) per capita (em R$ correntes);
renda média per capita (em R$ correntes);
densidade de nefrologistas (número de nefrologistas com vínculo SUS, por 100 mil habitantes.);
densidade de endocrinologistas (número de endocrinologistas com vínculo SUS, por 100 mil hab.);
densidade de clínicos gerais (número de clínicos gerais com vínculo SUS, por 100 mil hab.);
consultas médicas em APS (número de consultas médicas na APS realizadas por profissional médico no ano, por habitante); e
densidade de aparelhos de ultrassonografia (número de aparelhos de ultrassonografia em uso no SUS, por 100 mil hab.).
Fontes de dados
Os montantes de consultas e exames relacionados com doença renal crônica foram extraídos das bases de dados do SIA/SUS e do SIH/SUS.7 As características sociodemográficas, econômicas e estruturais dos departamentos regionais de saúde foram obtidas a partir da Matriz de Indicadores de Saúde da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, e do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES).8,9
Mensuração
Utilizou-se como estimativa de necessidade uma testagem anual de creatinina sérica e uma testagem anual de proteinúria para cada adulto com hipertensão arterial e/ou diabetes.6 O número total de adultos do estado de São Paulo e de cada departamento regional de saúde foi obtido do sítio eletrônico da Fundação Sistema Estadual de Dados (Seade).9 As prevalências de adultos com hipertensão e diabetes foram estimadas em 23,0% e 8,0%, respectivamente.10 A combinação dessas duas condições foi estimada em 6,5%.11 Portanto, para o cálculo do número de pessoas com hipertensão e/ou diabetes, o estudo considerou uma prevalência de 24,5% dos adultos. Sendo assim:
Necessidade de dosagens de creatinina = 1 x nº de adultos x 24,5%
Necessidade de dosagens de proteinúria = 1 x nº de adultos x 24,5%
A necessidade de consultas com nefrologista foi estimada em 1.600 consultas/100 mil hab. da população total, independentemente de idade ou comorbidades, e a necessidade de ultrassonografias renais, estimada em 800/100 mil hab.6 A estimativa de necessidade de biópsias renais para este estudo foi empiricamente estabelecida em 10 biópsias por 100 mil, haja vista ser a média dos valores observados na literatura.11 Por conseguinte:
Necessidade de consultas com nefrologista = 1.600 x nº de hab./100 mil
Necessidade de ultrassonografias renais = 800 x nº de hab./100 mil
Necessidade de biopsias renais = 10 x nº de hab./100 mil
A razão oferta/necessidade de consultas e procedimentos relacionados com a doença renal crônica foi expressa em percentuais e calculada de acordo com as seguintes etapas:
Oferta = nº de procedimentos realizados
Necessidade = nº de procedimentos necessários para cada população
Razão oferta/necessidade (%) = (oferta/necessidade) x 100
Controle de viés
Para os cálculos de necessidade de cada procedimento analisado neste estudo, a população total e a portadora de hipertensão e/ou diabetes foram reduzidas do percentual de cobertura da saúde suplementar em cada departamento regional de saúde e no estado de São Paulo. Esta informação foi obtida do sítio eletrônico da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), a agência reguladora de planos de saúde privados no Brasil.12 A fórmula utilizada para o cálculo da população de referência foi:
População de referência = população x (1 - % de cobertura da saúde suplementar)
Métodos estatísticos
As variáveis do estudo foram registradas em planilhas modeladas utilizando-se o software Microsoft Excel, em sua versão 2019. Com o mesmo aplicativo foram calculados o número de adultos com hipertensão e/ou diabetes, o número de procedimentos necessários de acordo com os parâmetros preestabelecidos e, por fim, as razões oferta/necessidade.
As correlações entre as razões de oferta/necessidade para cada procedimento relacionado com doença renal crônica, e as variáveis sociodemográficas, econômicas e estruturais dos departamentos regionais de saúde, foram calculadas pelo teste de correlação de Spearman, utilizando-se o software SPSS Inc., Chicago, IL, USA, versão 19.0. O nível de significância adotado para esse coeficiente foi de 5%.
Resultados
No estado de São Paulo, em 2019, os departamentos regionais de saúde mais populosos e com maior número de adultos com hipertensão arterial e/ou diabetes eram os da Grande São Paulo (21.734.682 habitantes e 3.865.442 adultos com hipertensão e/ou diabetes) e de Campinas (4.671.287 e 847.930, respectivamente). Os departamentos menos populosos e com menor número de adultos portadores de hipertensão arterial e/ou diabetes eram os de Registro (284.509 e 49.539, respectivamente) e Barretos (440.907 e 80.893, respectivamente). Os departamentos com as maiores coberturas da saúde suplementar, em 2019, eram os da Grande São Paulo (43,0%) e Campinas (41,8%), e aqueles com as menores coberturas, os de Registro (9,0%) e Marília (19,8%) (Tabela 1).
Departamento regional de saúde | População totala | População acima de 20 anos de idadea | Adultos com hipertensão e/ou diabetesa,b | Percentual de cobertura da saúde suplementarc |
---|---|---|---|---|
Grande São Paulo | 21.734.682 | 15.777.313 | 3.865.442 | 43,0 |
Araçatuba | 791.256 | 602.709 | 147.664 | 23,5 |
Araraquara | 1.025.982 | 767.356 | 188.002 | 35,5 |
Baixada Santista | 1.865.397 | 1.359.370 | 333.046 | 36,8 |
Barretos | 440.907 | 330.176 | 80.893 | 29,5 |
Bauru | 1.800.757 | 1.332.249 | 326.401 | 23,3 |
Campinas | 4.671.287 | 3.460.938 | 847.930 | 41,8 |
Franca | 718.176 | 521.324 | 127.724 | 31,7 |
Marília | 1.149.132 | 866.792 | 212.364 | 19,8 |
Piracicaba | 1.586.546 | 1.174.604 | 287.778 | 40,9 |
Presidente Prudente | 775.627 | 586.950 | 143.803 | 22,8 |
Registro | 284.509 | 202.198 | 49.539 | 9,0 |
Ribeirão Preto | 1.523.682 | 1.124.229 | 275.436 | 36,9 |
São João da Boa Vista | 834.872 | 630.473 | 154.466 | 29,7 |
São José do Rio Preto | 1.629.470 | 1.248.033 | 305.768 | 30,4 |
Sorocaba | 2.534.157 | 1.844.086 | 451.801 | 27,7 |
Taubaté | 2.552.610 | 1.867.047 | 457.427 | 29,4 |
Estado de São Paulo | 45.919.049 | 33.695.847 | 8.255.483 | 37,3 |
a) Fundação Sistema Estadual de Dados (Seade); b) Departamento de Análise em Saúde e Vigilância de Doenças Não Transmissíveis (Vigitel Brasil 2019); c) Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).
Em todo o estado de São Paulo, no ano de 2019, foram realizadas 389.414 consultas com nefrologista pelo SUS, houve uma oferta de 11.540.371 dosagens de creatinina sérica, foram aplicados 412.772 testes de albuminúria, 292.937 dosagens de proteinúria de 24 horas, e realizadas 438.123 ultrassonografias renais e 1.045 biópsias renais. A razão oferta/necessidade de consultas com nefrologista no estado foi de 84,6%, sendo as regiões onde foi maior Taubaté (205,9%) e Barretos (146,2%), e onde ela foi menor, Piracicaba (36,8%) e Araraquara (44,6%). A razão oferta/necessidade de dosagens de creatinina sérica foi de 223,0% no estado de São Paulo, sendo que as regiões com os maiores índices foram Barretos (348,4%) e a Grande São Paulo (262,7%), e as regiões com menores índices, Araçatuba (70,1%), Araraquara (146,6%) e Presidente Prudente (147,4%) (Tabela 2).
Departamento regional de saúde | n (%)a | |||||
---|---|---|---|---|---|---|
Consulta com nefrologista | Creatinina sérica | Albuminúria | Proteinúria de 24 horas | Ultrassonografias renais | Biópsias renais | |
Grande São Paulo | 129.717 (65,4) | 5.793.701 (262,7) | 199.533 (9,0) | 159.150 (7,2) | 215.650 (217,4) | 733 (59,1) |
Araçatuba | 4.726 (48,8) | 79.183 (70,1) | 2.386 (2,1) | 1.663 (1,5) | 6.014 (124,1) | 1 (1,7) |
Araraquara | 4.725 (44,6) | 177.792 (146,6) | 4.012 (3,3) | 3.814 (3,1) | 8.870 (167,6) | 0 (0,0) |
Baixada Santista | 20.764 (110,0) | 432.517 (205,4) | 16.292 (7,7) | 7.860 (3,7) | 18.530 (196,4) | 3 (2,5) |
Barretos | 7.273 (146,2) | 198.692 (348,4) | 4.980 (8,7) | 3.591 (6,3) | 5.162 (207,6) | 2 (6,4) |
Bauru | 20.851 (94,3) | 429.834 (171,6) | 10.831 (4,3) | 21.188 (8,5) | 12.976 (117,4) | 26 (18,8) |
Campinas | 36.101 (83,0) | 1.036.812 (210,1) | 63.506 (12,9) | 29.257 (5,9) | 39.441 (181,3) | 79 (29,1) |
Franca | 7.840 (99,8) | 137.917 (158,0) | 6.189 (7,1) | 1.582 (1,8) | 9.471 (241,2) | 8 (16,3) |
Marília | 8.810 (59,7) | 264.126 (155,0) | 3.883 (2,3) | 3.402 (2,0) | 8.577 (116,3) | 20 (21,7) |
Piracicaba | 5.522 (36,8) | 360.660 (212,1) | 7.824 (4,6) | 4.940 (2,9) | 9.896 (132,0) | 4 (4,3) |
Presidente Prudente | 5.703 (59,5) | 163.686 (147,4) | 4.687 (4,2) | 2.109 (1,9) | 9.060 (189,1) | 26 (43,4) |
Registro | 2.025 (48,9) | 99.276 (220,2) | 997 (2,2) | 461 (1,0) | 5.306 (256,1) | 3 (11,6) |
Ribeirão Preto | 21.366 (138,9) | 443.680 (255,2) | 20.457 (11,8) | 10.520 (6,1) | 11.770 (153,0) | 81 (84,2) |
São João da Boa Vista | 5.551 (59,1) | 171.300 (157,8) | 3.676 (3,4) | 2.686 (2,5) | 7.993 (170,3) | 4 (6,8) |
São José do Rio Preto | 25.191 (138,9) | 408.133 (191,8) | 11.385 (5,4) | 13.184 (6,2) | 24.286 (267,8) | 13 (11,5) |
Sorocaba | 23.883 (81,4) | 577.184 (176,6) | 19.633 (6,0) | 10.124 (3,1) | 20.402 (139,2) | 12 (6,5) |
Taubaté | 59.366 (205,9) | 765.878 (237,2) | 32.501 (10,1) | 17.406 (5,4) | 24.719 (171,5) | 30 (16,7) |
Estado de São Paulo | 389.414 (84,6) | 11.540.371 (223,0) | 412.772 (8,0) | 292.937 (5,7) | 438.123 (190,3) | 1.045 (36,3) |
a) São apresentados os números absolutos, e entre parênteses, a razão oferta/necessidade em percentuais.
Para o conjunto do estado, as dosagens de albuminúria representaram 8,0% da necessidade estimada, e as testagens de proteinúria de 24 horas, 5,7%. Os departamentos regionais de saúde com as maiores razões de oferta/necessidade de albuminúria foram os de Campinas (12,9%) e Ribeirão Preto (11,8%), e aqueles onde essas relações se mostraram menores, os de Araçatuba (2,1%), Registro (2,2%), Marília (2,3%) e Araraquara (3,3%). As maiores razões de oferta/necessidade de proteinúria de 24 horas foram identificadas em Bauru (8,5%) e na Grande São Paulo (7,2%), e as menores, em Registro (1,0%) e Araçatuba (1,5%). Em todo o estado, o número de ultrassonografias renais realizadas representou 190,3% da necessidade estimada para os paulistas, com percentuais maiores nas regiões de São José do Rio Preto (267,8%) e Registro (256,1%), e menores nas regiões de Marília (116,3%) e Bauru (117,4%). O montante de biópsias renais realizadas no estado representou 36,3% da necessidade estimada, sendo que os departamentos regionais de saúde com as maiores razões de oferta/necessidade desse procedimento foram os de Ribeirão Preto (84,2%) e da Grande São Paulo (59,1%), e os departamentos com os menores índices, de Araraquara (0,0%) e Araçatuba (1,7%) (Tabela 2).
As maiores taxas de analfabetismo foram observadas em Registro (8,5%) e Presidente Prudente (6,8%), e as menores na Grande São Paulo (3,5%) e Taubaté (3,8%). O grau de urbanização foi maior na Baixada Santista (99,8%) e na Grande São Paulo (98,9%), e menor em Registro (71,2%) e Sorocaba (86,3%). Os maiores PIBs per capita foram os de Campinas (R$ 65.048,00) e da Grande São Paulo (R$ 55.053,00), e os menores, de Presidente Prudente (R$ 29.387,00) e Registro (R$ 30.831,00) (Tabela 3).
Departamento regional de saúde | Taxa de analfabetismo (%) | Grau de urbanização (%) | PIBa per capita (R$) | Renda per capita (R$) | Densidade de nefrologistasb | Densidade de endocri-nologistasb | Densidade de clínicos geraisb | Consultas médicas de APSc/ano/habitante | Densidade de aparelhos de ultrassonografiad |
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Grande São Paulo | 3,5 | 98,9 | 55.053 | 1.175,0 | 2,7 | 1,8 | 52,9 | 1,1 | 7,3 |
Araçatuba | 5,9 | 92,3 | 31.007 | 817,7 | 0,6 | 1,0 | 78,5 | 1,9 | 9,4 |
Araraquara | 5,0 | 95,3 | 38.041 | 888,9 | 1,7 | 3,1 | 116,4 | 1,0 | 7,9 |
Baixada Santista | 4,0 | 99,8 | 34.319 | 967,8 | 2,4 | 1,4 | 79,4 | 0,7 | 7,9 |
Barretos | 5,6 | 94,8 | 41.710 | 803,9 | 3,2 | 3,2 | 127,0 | 2,3 | 11,6 |
Bauru | 5,3 | 91,9 | 32.840 | 857,4 | 2,7 | 2,1 | 85,9 | 1,2 | 9,8 |
Campinas | 3,9 | 95,6 | 65.048 | 1.073,4 | 2,2 | 1,6 | 70,8 | 0,8 | 6,5 |
Franca | 5,0 | 95,2 | 33.115 | 816,1 | 1,7 | 1,7 | 85,5 | 1,5 | 9,7 |
Marília | 6,0 | 91,4 | 31.020 | 791,1 | 1,3 | 3,0 | 107,3 | 1,5 | 9,2 |
Piracicaba | 4,2 | 95,3 | 45.468 | 938,5 | 2,2 | 1,0 | 110,4 | 1,0 | 7,3 |
Presidente Prudente | 6,8 | 89,3 | 29.387 | 795,2 | 1,8 | 1,3 | 121,7 | 1,5 | 8,5 |
Registro | 8,5 | 71,2 | 30.831 | 524,2 | 0,7 | 0,4 | 52,0 | 1,1 | 15,1 |
Ribeirão Preto | 4,6 | 97,0 | 41.833 | 1.014,7 | 3,2 | 2,0 | 84,6 | 1,6 | 12,4 |
São João da Boa Vista | 5,2 | 90,7 | 34.215 | 819,5 | 1,6 | 1,8 | 76,8 | 1,5 | 7,8 |
São José do Rio Preto | 5,8 | 91,7 | 33.611 | 887,8 | 2,0 | 2,1 | 108,3 | 2,9 | 10,5 |
Sorocaba | 4,9 | 86,3 | 38.333 | 798,5 | 1,9 | 2,0 | 58,1 | 1,1 | 6,9 |
Taubaté | 3,8 | 94,1 | 45.475 | 910,4 | 2,4 | 1,9 | 86,5 | 1,0 | 8,5 |
Estado de São Paulo | 4,2 | 95,9 | 48.538 | 1.036,5 | 2,4 | 1,8 | 70,3 | 1,2 | 7,9 |
a) PIB: Produto interno bruto; b) Número de profissionais com vínculo no Sistema Único de Saúde (SUS), por 100 mil habitantes; c) APS: Atenção Primária à Saúde; d) Número de aparelhos em uso no SUS, por 100 mil habitantes.
As localidades com as maiores densidades de nefrologistas foram Barretos (3,2) e Ribeirão Preto (3,2), e aquelas com as menores densidades desses profissionais, Araçatuba (0,6) e Registro (0,7). As maiores densidades de médicos clínicos gerais foram observadas em Barretos (127,0) e Presidente Prudente (121,7), e as menores, em Registro (52,0) e na Grande São Paulo (52,9). As regionais de saúde com as maiores médias de consultas médicas na APS/hab./ano foram as de São José do Rio Preto (2,9) e Barretos (2,3), e aquelas com as menores médias, da Baixada Santista (0,7) e de Campinas (0,8). A densidade de aparelhos de ultrassonografia foi maior em Registro (15,1) e Ribeirão Preto (12,4), e menor em Campinas (6,5) e Sorocaba (6,9) (Tabela 3).
A razão oferta/necessidade de consultas com nefrologista apresentou correlação direta com a densidade de nefrologistas (r = 0,64; p-valor = 0,004). A razão oferta/necessidade de dosagens de creatinina sérica apresentou correlação inversa - e significante - com a taxa de analfabetismo (r = -0,51; p-valor = 0,031), e correlação direta com PIB per capita (r = 0,67; p-valor = 0,002) e densidade de nefrologistas (r = 0,75; p-valor < 0,001). A razão oferta/necessidade de dosagens de proteinúria apresentou correlação inversa - e significante - com a taxa de analfabetismo (r = -0,71; p-valor = 0,001), e correlação direta com população total (r = 0,64; p-valor = 0,004), grau de urbanização (r = 0,63; p-valor = 0,005), PIB per capita (r = 0,79; p-valor < 0,001), renda per capita (r = 0,72; p-valor = 0,001) e densidade de nefrologistas (r = 0,85; p-valor < 0,001) (Tabela 4).
Razão oferta/ necessidade | ra (p-valorb)c | |||||||||
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População | Taxa de analfabetismo | Grau de urbanização | PIBa per capita | Renda per capita | Densidade de nefrologistasb | Densidade de endocrinologistasb | Densidade de clínicos geraisb | Consultas médicas de APSc/ano/habitante | Densidade de aparelhos de ultrassonografiad | |
Consultas com nefrologista | 0,26 (0,287) | -0,28 (0,266) | 0,25 (0,324) | 0,28 (0,257) | 0,21 (0,404) | 0,64 (0,004) | 0,43 (0,077) | 0,13 (0,610) | 0,22 (0,389) | 0,32 (0,200) |
Creatinina sérica | 0,34 (0,163) | -0,51 (0,031) | 0,44 (0,066) | 0,67 (0,002) | 0,45 (0,060) | 0,75 (< 0,001) | 0,10 (0,781) | -0,20 (0,414) | -0,18 (0,483) | 0,08 (0,754) |
Proteinúria | 0,64 (0,004) | -0,71 (0,001) | 0,63 (0,005) | 0,79 (< 0,001) | 0,72 (0,001) | 0,85 (< 0,001) | 0,32 (0,192) | -0,06 (0,817) | -0,17 (0,509) | -0,16 (0,531) |
Ultrassonografias renais | -0,09 (0,705) | -0,04 (0,864) | 0,18 (0,645) | 0,07 (0,773) | 0,08 (0,760) | 0,15 (0,559) | -0,17 (0,508) | -0,15 (0,559) | 0,04 (0,867) | 0,20 (0,433) |
Biópsias renais | 0,32 (0,191) | -0,16 (0,520) | 0,12 (0,622) | 0,20 (0,418) | 0,24 (0,336) | 0,33 (0,179) | 0,02 (0,938) | -0,22 (0,372) | 0,10 (0,680) | 0,08 (0,742) |
a) r: Coeficiente de correlação; b) Teste de correlação de Spearman; c) São apresentados os coeficientes de correlação, e entre parênteses, o p-valor da correlação; d) PIB: Produto interno bruto; e) APS: Atenção Primária à Saúde.
Discussão
O estudo sugere que há, simultaneamente, desperdício e carência de diferentes procedimentos relacionados com o diagnóstico e acompanhamento da doença renal crônica pelo SUS no estado de São Paulo. Se, por um lado, o montante de dosagens de creatinina sérica ofertadas e de ultrassonografias renais realizadas foi maior que a estimativa de necessidade da população, por outro lado, as dosagens de proteína urinária, biópsias renais e consultas com nefrologistas estiveram aquém do considerado adequado. Ademais, foi possível identificar diferenças importantes entre os departamentos regionais de saúde do estado no que se refere a esses parâmetros.
Algumas limitações do estudo devem ser reconhecidas. Primeiramente, as análises foram feitas unicamente com base no montante de consultas e exames informados pelos prestadores de assistência médica no SUS do estado de São Paulo, não sendo possível avaliar absenteísmo ou fila de espera. Em segundo lugar, as bases de dados disponíveis não permitiram identificar as características dos profissionais solicitantes, médicos de APS ou especialistas, e tampouco os dados demográficos e o perfil de comorbidades dos indivíduos para quem as consultas e exames foram realizados. E, finalmente, a condição de fonte secundária de dados do estudo não permitiu avaliar duplicidade na realização de consultas ou exames. Além disso, é possível que as razões de oferta/necessidade de consultas e exames indicados para portadores de doença renal não sejam os únicos fatores relacionados a desfechos importantes não mensurados neste estudo, como hospitalizações, letalidade e início planejado de diálise. Vale ressaltar, ademais, que indicadores de qualidade da assistência - o percentual de controle de pressão arterial e diabetes e o uso de bloqueadores do sistema renina-angiotensina -, e a oferta de equipe multiprofissional (nutricionista, psicólogo, enfermeiro, assistente social) são, sabidamente, influenciadores de desfechos em pessoas com doença renal crônica.1,15,16
O número de exames de creatinina sérica e de ultrassonografias renais realizados no estado foi cerca de duas vezes maior que a estimativa de necessidade. Este achado pode estar relacionado com a repetição de exames. Outrossim, é possível que a carência de prontuário eletrônico e a fragmentação da assistência à saúde pelo SUS dificultem a racionalização no uso de exames subsidiários.17 Corroborando os resultados apresentados aqui, estudos isolados, anteriormente realizados no país, mostraram o uso desnecessário de exames subsidiários em cenários específicos: no cuidado a pessoas com hipertensão e diabetes em APS, na rotina de pré-operatório de cirurgia de catarata e no acompanhamento de indivíduos com dor lombar.18-20 Na mesma direção, estudos prévios indicaram aumento expressivo do montante de exames de imagem de alta complexidade, no Brasil e no mundo.21,22 O maior acesso à saúde e à tecnologia, sobretudo em regiões com maior taxa de urbanização, associado ao modelo de pagamento por produção, podem explicar esse aumento.
O montante de dosagens de creatinina obtido pelo SIA/SUS inclui os testes realizados em pessoas que se encontram em terapia renal substitutiva. Este fato poderia ser mais um motivo para o excesso de exames observado. No entanto, considerando-se que o número estimado de pessoas em diálise pelo SUS no estado de São Paulo é de 19 mil, e que esses usuários do sistema realizam dosagem mensal de creatinina, o percentual alcançaria apenas 2,0% do montante realizado, ou seja, 228 mil dosagens do total de 11.140.371.3
Diferentemente do que se observou na avaliação do montante de exames realizados de creatinina sérica, a avaliação renal por meio de dosagens de proteinúria foi inferior a 20% da necessidade estimada quando se considerou a soma dos dois métodos mais específicos disponíveis no SUS. Provavelmente, esse achado deveu-se ao baixo índice de solicitação de proteinúria, uma vez que se trata de exame simples, disponível e de baixo custo.7 Em amostra representativa de indivíduos assistidos pelo Medicare, o sistema de saúde pública dos Estados Unidos, enquanto a probabilidade de uma pessoa com hipertensão ou diabetes ter uma dosagem anual de creatinina sérica foi de praticamente 100%, a probabilidade de testagem de albuminúria representeou apenas 30%.23 Os baixos índices de dosagem de proteinúria observados nesse e em outros locais, provavelmente, refletem o baixo conhecimento de médicos generalistas e não nefrologistas sobre (i) a importância desse exame como fator prognóstico e (ii) a definição e a classificação atuais da doença renal crônica.24 Destaca-se que a política pública brasileira de abordagem das doenças crônicas mais prevalentes, quais sejam, hipertensão e diabetes mellitus, determina que a solicitação dos exames de proteinúria e creatinina sérica seja feita na APS, por médicos não nefrologistas, com a finalidade de rastreamento de lesão renal.6,25
As diferenças regionais entre as razões de oferta/necessidade de procedimentos relacionados à doença renal, apontadas neste estudo, podem ser explicadas, ainda que em parte, pelas características sociodemográficas e econômicas dos departamentos de saúde. Efetivamente, as razões de oferta/necessidade de dosagens de creatinina e de proteinúria encontradas apresentaram correlação inversa com as taxas de analfabetismo e associação direta com o PIB per capita, corroborando estudos prévios.23,26 Maior grau de escolaridade e melhores condições financeiras e sociais podem manter relação com maior conhecimento sobre doenças crônicas, mais fácil acesso a unidades de saúde e, por conseguinte, maior utilização de exames laboratoriais. Além do que, a densidade de nefrologistas correlacionou-se, de maneira significativa, com as razões de oferta/necessidade de dosagens de creatinina e de proteinúria, indicando a possibilidade de a solicitação desses exames, proporcionalmente, realizar-se mais na atenção especializada e menos na APS. Outras explicações possíveis, embora não avaliadas neste estudo, seriam as diferenças de prevalência de hipertensão e de diabetes, além das práticas assistenciais, entre as regiões de saúde do estado de São Paulo.
A baixa quantidade de consultas com nefrologista e de biópsias renais realizadas no estado pode-se atribuir ao reduzido número de profissionais dessa especialidade, bem como à referência tardia, desde que a doença renal crônica é oligossintomática em suas fases iniciais e existem falhas em sua identificação na APS.27,28 Entre 2008 e 2018, enquanto o número de nefrologistas no Brasil aumentou 25%, o número estimado de pessoas submetidas a diálise cresceu 52%.27 Essa tendência parece ser um fenômeno mundial; nos Estados Unidos, por exemplo, entre 1996 e 2012, o número de nefrologistas para cada mil indivíduos em diálise caiu de 18 para 10.28
A referência tardia ao nefrologista, provavelmente, está também associada ao menor número de biópsias renais realizadas, um procedimento que não é rotineiramente indicado para casos em fases avançadas da doença renal.29 De acordo com o Censo Brasileiro de Diálise de 2018, o percentual de pessoas em diálise e cuja etiologia da doença renal foi identificada como glomerulopatia é de, no mínimo, 10%; entretanto, o mesmo Censo encontrou outros 10% de portadores de doença renal crônica ‘de etiologia indeterminada’, uma proporção que pode englobar mais casos de glomerulopatias, entre outras doenças não diagnosticadas precocemente devido à referência tardia.30
Conclui-se que existem, simultaneamente, desperdício e carência de consultas e exames relacionados com a assistência à doença renal crônica no estado de São Paulo. A análise apresentada pode ser um instrumento auxiliar no planejamento e tomada de decisões. É necessário avaliar medidas para corrigir as discrepâncias encontradas, visando melhorar a eficiência da assistência às pessoas com doença renal crônica e àquelas sob maior risco de contrair a doença.