Principais resultados
A tendência das taxas de mortalidade foi crescente no estado. Houve correlação negativa dos homicídios com renda per capita e correlação positiva com proporção de famílias chefiadas por mulheres e taxa de mortalidade masculina por agressão.
Introdução
O feminicídio é a face mais perversa da violência de gênero. Fenômeno presente em todas as sociedades, a violência contra as mulheres é um problema de saúde pública.1 No mundo, aproximadamente 35% das mulheres sofrem ou já sofreram algum tipo de violência, com prevalência mais comum de agressão por parceiros íntimos.2 Quando essa violência culmina em morte, estima-se, em nível global, que 38% de todos os homicídios de mulheres sejam cometidos por parceiros íntimos.1 O termo "feminicídio", criado para designar as mortes de mulheres decorrentes da violência de gênero, é motivado tão somente pela condição de a vítima ser mulher,3 o que permite reconhecer essas mortes como um fenômeno social e político.4
O perfil de mulheres que sofrem violência e/ou homicídio é representado, majoritariamente, por negras, jovens, em vulnerabilidade social e econômica, de baixa escolaridade, com profissões não qualificadas e que residem em regiões urbanas com pouca ou nenhuma segurança.5-7 Os agressores, geralmente, são jovens, com grau de escolaridade inferior ao das mulheres, parceiros conjugais ou conhecidos das vítimas, com antecedentes criminais e histórico de violência.5,6 Além disso, os feminicídios são associados a fatores como sociedade patriarcal, situação de privação econômica, machismo e/ou tentativa de afirmação da masculinidade perante a mulher.8 Ainda merecem menção o domicílio da vítima em regiões de maior desigualdade social, localidades onde há crime organizado, tráfico de drogas, e lugares onde se registra número elevado de homicídios de homens.9
Os homicídios de mulheres apresentam tendência crescente em todo o mundo; e os países da América Central são aqueles que apresentam as maiores taxas.10 No Brasil, observou-se que a taxa de mortalidade aumentou, de 5,84 por 100 mil mulheres, em 2002, para 6,16 por 100 mil mulheres em 2012, apesar da tendência estável. Apenas na região Sudeste foi caracterizado declínio anual, da ordem de 3,41%; e as maiores taxas de mortalidade foram observadas em estados com mais elevada desigualdade social.11 Mesmo com o aumento dos relatos nos últimos anos, ainda se acredita haver número expressivo de subnotificações, principalmente de homicídios ocorridos fora do âmbito familiar, situações em que há dificuldade para se identificar o autor, estabelecer a motivação e, inclusive, registrar o óbito.10,12
Os dados brasileiros sobre feminicídios ainda são escassos, apesar da relevância do tema. Os homicídios femininos no estado do Maranhão, entre 2010 e 2015, apresentaram aumento de 52,8% dos casos, com incremento de 124,4% na taxa de mortalidade feminina por agressão;13 porém, inexistem informações mais específicas sobre o perfil das mulheres e a evolução/tendência dos óbitos.
O objetivo deste estudo foi analisar o perfil e a tendência temporal dos homicídios femininos no estado do Maranhão, Brasil, no período de 2000 a 2019.
Métodos
Trata-se de estudo ecológico, de série temporal, cuja unidade de análise foi o estado do Maranhão e mesorregiões. O estado possui 217 municípios, distribuídos em cinco mesorregiões: Leste, Norte, Centro, Oeste e Sul Maranhense. Em 2010, 52,2% dos 6.674.789 de habitantes do Maranhão eram mulheres, e destas, 45,3% possuíam filhos, 38,5% não estudavam e não trabalhavam, e 76,4% eram de raça/cor de pele negra.14
Foram utilizados dados secundários, do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) (http://www.datasus.gov.br/mortalidade e http://www.ibge.com.br), acessados em setembro de 2021. Todos os casos de mortes femininas por agressão ocorridos entre 2000 e 2019 foram analisados, incluindo todas as faixas etárias. Optou-se por utilizar a mortalidade feminina por agressão como proxy dos feminicídios no Maranhão, uma alternativa considerada compensatória para os altos índices de subnotificação.6,9,15
Os perfis dos óbitos e das mulheres foram avaliados de acordo com a faixa etária (em anos: 0 a 9; 10 a 19; 20 a 29; 30 a 39; 40 a 49; 50 a 59; 60 a 69; 70 ou mais), estado civil (solteira; casada; separada; outra), escolaridade (em anos de estudos: nenhum; 1 a 3; 4 a 7; 8 a 11; 12 ou mais), raça/cor da pele (branca; preta; amarela; parda; indígena), local de ocorrência (domicílio; via pública; estabelecimento de saúde), causa do óbito (um dos códigos X85-Y09) e ano do óbito (em quinquênios: 2000-2004; 2005-2009; 2010-2014; 2015-2019).
Calculou-se a taxa de mortalidade feminina por agressão no estado, por ano, para todo o período de 2000 a 2019, utilizando-se a classificação do capítulo XX da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde - 10ª Revisão (CID-10), com os códigos compreendidos entre X85 e Y09. Realizou-se a correção das mortes por meio da redistribuição proporcional dos óbitos classificados como "intenção indeterminada" (Y10-Y34), já empregada em outro estudo.16 Para tal, determinou-se inicialmente o número de óbitos por causas externas: traumatismos acidentais (W00-X59), lesões autoprovocadas (X60-X84) e intervenções legais (Y35). Em seguida, calculou-se a proporção de óbitos por agressões (X85-Y09) em relação ao total de óbitos por causas externas, cujo resultado foi multiplicado pelo número de mortes identificadas como "intenção indeterminada", sendo esse valor empregado como numerador para o cálculo das taxas de mortalidade feminina por agressão; o denominador foi constituído pelo total da população feminina na faixa etária considerada, por ano, e o resultado da divisão, multiplicado por 100 mil mulheres.
As variáveis independentes foram divididas em indicadores socioeconômicos e de saúde. Os indicadores socioeconômicos foram:
índice de Gini, que expressa o grau de desigualdade na distribuição da renda domiciliar per capita, variando de 0 (não há desigualdade) a 1 (desigualdade máxima);
índice de desenvolvimento humano (IDH), que expressa o grau de desenvolvimento econômico e de qualidade de vida de uma população, com variação de 0 (nenhum desenvolvimento) a 1 (total desenvolvimento);
renda per capita, representada pela razão entre o somatório da renda per capita de todos os indivíduos e o número total desses indivíduos (em R$);
taxa de desemprego, representada pela relação entre o número de pessoas procurando emprego e o número de pessoas economicamente ativas em um determinado período;
proporção de famílias chefiadas por mulheres, ou percentual de famílias em que a mulher era responsável pela família;
taxa de analfabetismo, representada pelas pessoas com idade de 15 anos ou mais que não sabem ler e escrever sobre o total da população na mesma faixa etária, multiplicado por 100; e
expectativa de vida ao nascer, calculada pelo número médio de anos de vida esperados para um recém-nascido, mantido o padrão de mortalidade existente na população residente, em determinado espaço geográfico, no ano considerado.
Por sua vez, os indicadores de saúde foram:
taxa de natalidade, representada pelo número de nascidos vivos, por 1 mil habitantes, em determinado espaço geográfico, no ano considerado;
taxa de mortalidade por câncer do colo do útero, representada pelo número de óbitos de residentes por câncer de colo de útero, sobre a população feminina residente, multiplicado por 100 mil;
taxa de mortalidade por câncer de mama, representada pelo número de óbitos de residentes por câncer de mama, sobre a população feminina, multiplicado por 100 mil;
taxa de mortalidade masculina por agressão, representada pelo número de óbitos do sexo masculino por causas externas (agressão), sobre a população masculina residente, multiplicado por 100 mil; e
taxa de mortalidade masculina e feminina por causas mal definidas, ou o percentual de óbitos por causas mal definidas, por sexo, sobre o número total de óbitos de residentes, multiplicado por 100.
Calculou-se a taxa de mortalidade feminina por agressão, por ano e por mesorregião do estado. As tendências das taxas de mortalidade foram avaliadas utilizando-se a regressão linear segmentada, por ponto de inflexão (joinpoint), com determinação da variação percentual anual (VPA) e intervalos de confiança de 95% (IC95%). Considerou-se que ocorreu aumento nos coeficientes quando a tendência de mortalidade feminina por agressão foi crescente e o valor mínimo do IC95% maior que 0; e que ocorreu redução nessa mortalidade quando houve declínio na tendência e o valor máximo do IC95% foi menor que 0. A estabilidade foi definida quando, independentemente da tendência, o IC95% incluiu o valor 0. Para investigar a associação entre os indicadores e a taxa de mortalidade, foi realizada análise bivariada utilizando-se o teste de correlação de Pearson, com cálculo do coeficiente de correlação (r): correlação muito fraca (0,01 a 0,19), fraca (0,20 a 0,39), moderada (0,40 a 0,69), forte (0,70 a 0,89) e muito forte (0,90 a 0,99). Realizou-se regressão linear múltipla, com inclusão das variáveis no modelo quando p-valor < 0,20 pelo método stepwise backward. A significância estatística foi estabelecida quando p-valor < 0,05, sendo as análises conduzidas com auxílio do programa SPSS (versão 20).
Por se tratar de pesquisa com dados de domínio público e sem possibilidade de indexação das informações das mulheres, não houve exigência de análise por Comitê de Ética em Pesquisa.
Resultados
Entre 2000 e 2019, foram notificadas 1.915 mortes femininas por agressão no estado do Maranhão. A Tabela 1 mostra que as notificações foram mais frequentes entre mulheres de 20 a 29 anos (29,9%), solteiras (62,0%), com 4 a 7 anos de estudo (29,7%), de raça/cor da pele parda (71,3%). O domicílio foi o local de morte mais frequente (31,9%). A mesorregião Norte Maranhense apresentou o maior número de notificações no período da série temporal (39,9%). Entre 2015 e 2019, foi registrada a maior proporção de casos (35,0%), frente aos demais quinquênios. Isoladamente, os principais meios de agressão que culminaram na morte de mulheres maranhenses foram objetos cortantes ou penetrantes (37,1%) e armas de fogo (X93/X94/X95), estas registradas em 41,1% dos casos.
Variáveis | n | % |
---|---|---|
Faixa etária (em anos)a | ||
≤ 9 | 76 | 4,0 |
10-19 | 264 | 13,8 |
20-29 | 573 | 29,9 |
30-39 | 475 | 24,8 |
40-49 | 248 | 12,9 |
50-59 | 124 | 6,5 |
60-69 | 67 | 3,5 |
≥ 70 | 76 | 4,0 |
Estado civilb | ||
Solteira | 1.187 | 62,0 |
Casada | 290 | 15,2 |
Separada | 35 | 1,8 |
Outro | 253 | 13,2 |
Escolaridade (em anos de estudo)c | ||
Nenhum | 222 | 11,6 |
1-3 | 305 | 15,9 |
4-7 | 569 | 29,7 |
8-11 | 470 | 24,5 |
≥ 12 | 111 | 5,8 |
Raça/cor da peled | ||
Branca | 280 | 14,6 |
Preta | 219 | 11,4 |
Amarela | 3 | 0,2 |
Parda | 1.366 | 71,3 |
Indígena | 14 | 0,7 |
Local de ocorrênciae | ||
Domicílio | 610 | 31,9 |
Via pública | 468 | 24,4 |
Estabelecimentos de saúde | 520 | 27,2 |
Outros | 297 | 15,5 |
Mesorregião do estado | ||
Norte | 761 | 39,9 |
Oeste | 527 | 26,5 |
Centro | 214 | 12,8 |
Leste | 308 | 15,5 |
Sul | 105 | 5,3 |
Categoria (CID-10)f | ||
Arma de fogo (X93/X94/X95) | 788 | 41,1 |
Objeto cortante/perfurante (X99) | 710 | 37,1 |
Objeto contundente (Y00) | 127 | 6,6 |
Meios não especificados (Y08/Y09) | 99 | 5,2 |
Enforcamento/estrangulamento/sufocação (X91) | 94 | 4,9 |
Força corporal (Y04) | 30 | 1,6 |
Impacto de veículo a motor (Y03) | 18 | 0,9 |
Síndromes de maus tratos (Y07) | 12 | 0,6 |
Fumaça/fogo/chamas (X97) | 9 | 0,5 |
Afogamento/submersão (X92) | 10 | 0,5 |
Produtos químicos/subst. não especificadas (X90) | 6 | 0,3 |
Agressão sexual por meio de força física (Y05) | 6 | 0,3 |
Negligência/abandono (Y06) | 3 | 0,2 |
Período do óbito | ||
2000-2004 | 247 | 12,9 |
2005-2009 | 353 | 18,4 |
2010-2014 | 645 | 33,7 |
2015-2019 | 670 | 35,0 |
Total de notificações | 1.915 | 100,0 |
a) Dados ignorados: 12 (0,6%); b) Dados ignorados: 150 (7,8%); c) Dados ignorados: 238 (12,5%); d) Dados ignorados: 33 (1,8%); e) Dados ignorados: 20 (1,0%); f) CID-10: Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde - 10ª Revisão -, quais sejam, produtos químicos/substâncias especificadas (X89) - 1 (0,066%) -, material explosivo (X96) - 01 (0,066%) - e projeção/colocação da vítima diante de objeto em movimento (Y02) - 01 (0,066%); Os CIDs X85, X86, X87, X88, X98 e Y01 não apresentaram nenhum caso.
Todas as mesorregiões apresentaram aumento das taxas de mortalidade por agressão feminina, durante o período, tendo a Sul Maranhense respondido pela maior variação, de 0,78/100 mil mulheres, em 2000, para 5,32/100 mil mulheres em 2015 (dados não apresentados em tabela). A tendência das taxas de mortalidade por agressão feminina no Maranhão exibiu aumento no período 2000-2019 (VPA = +8,21; IC95% 5,18;10,28); efetivamente, todas as mesorregiões maranhenses apresentaram tendência de crescimento dessas taxas, com destaque para a Leste (VPA = +11,93; IC95% 9,12;14,84) e a Sul (VPA = +13,10; IC95% 9,66;17,82) (Tabela 2).
Maranhão e mesorregiões do estado | TMa | VPAb (IC95%)c | p-valorc | Tendência | |
---|---|---|---|---|---|
2000 | 2019 | ||||
Maranhão | 1,53 | 5,34 | 8,21 (5,18;10,28) | < 0,001 | Crescente |
Norte | 2,07 | 5,43 | 6,92 (4,04;10,32) | < 0,001 | Crescente |
Oeste | 1,44 | 5,48 | 7,67 (5,15;10,29) | < 0,001 | Crescente |
Centro | 2,11 | 4,83 | 7,32 (3,74;10,78) | 0,001 | Crescente |
Leste | 0,50 | 4,07 | 11,93 (9,12;14,84) | < 0,001 | Crescente |
Sul | 0,78 | 5,12 | 13,10 (9,66;17,82) | < 0,001 | Crescente |
a) TM: Taxa de mortalidade; b) VPA: Variação percentual anual; c) IC95%: Intervalo de confiança de 95%..
A Tabela 3 mostra os indicadores socioeconômicos e de saúde em 2010, com descrição das médias e dos valores mínimo e máximo. Naquele ano, a renda per capita média do estado era de R$ 225,7 e 38,7% das famílias residentes no Maranhão eram chefiadas por mulheres. Além disso, chamou a atenção a taxa de mortalidade masculina por agressão: 27,8/100 mil.
Variáveis | Média | Mínimo; máximo |
---|---|---|
Indicadores socioeconômicos | ||
Índice de Gini | 0,56 | 0,45;0,72 |
Índice de desenvolvimento humano (IDH) | 0,57 | 0,44;0,76 |
Renda per capita (em R$) | 225,70 | 95,59;770,52 |
Proporção de famílias chefiadas por mulheres (%) | 38,70 | 19,22;56,20 |
Expectativa de vida ao nascer (em anos) | 71,40 | 67,4;74,70 |
Desemprego (%) | 7,40 | 1,28;22,44 |
Analfabetismo (%) | 26,39 | 4,61;38,60 |
Indicadores de saúde | ||
Natalidade (nascidos vivos/ 1 mil hab.) | 20,85 | 10,34;29,80 |
Mortalidade por câncer de colo do útero (por 100 mil) | 16,75 | 0;32,84 |
Mortalidade por câncer de mama (por 100 mil) | 15,88 | 0;35,77 |
Mortalidade masculina por agressão (por 100 mil) | 27,82 | 0,64;31,57 |
Mortalidade masculina por causas mal definidas (%) | 8,67 | 0,78;12,78 |
Mortalidade feminina por causas mal definidas (%) | 7,92 | 0,93;16,48 |
A Tabela 4 apresenta a correlação bivariada entre a taxa de mortalidade feminina por agressão e os indicadores socioeconômicos e de saúde. Observou-se correlação moderada e positiva entre mortalidade por agressão e IDH (r = 0,532; p-valor = 0,034), proporção de famílias chefiadas por mulheres (r = 0,673; p-valor < 0,001), taxa de desemprego (r = 0,477; p-valor = 0,001), taxa de mortalidade por câncer de colo do útero (r = 0,451; p-valor = 0,001), taxa de mortalidade por câncer de mama (r = 0,562; p-valor = 0,001), taxa de mortalidade masculina por agressão (r = 0,634; p-valor < 0,001) e proporção de óbitos masculinos por causas mal definidas (r = 0,546; p-valor < 0,001). Outrossim, houve correlação moderada e negativa entre mortalidade por agressão e renda per capita (r = -0,658; p-valor < 0,001).
Variáveis | Coeficiente de correlação (r) | Interpretação da correlação | p-valor |
---|---|---|---|
Indicadores socioeconômicos | |||
Índice de Gini | 0,045 | Muito fraca | 0,624 |
Índice de desenvolvimento humano (IDH) | 0,532 | Moderada | 0,034 |
Renda per capita (em R$) | -0,658 | Moderada | < 0,001 |
Proporção de famílias chefiadas por mulheres (%) | 0,673 | Moderada | < 0,001 |
Expectativa de vida ao nascer (em anos) | -0,479 | Moderada | 0,341 |
Desemprego (%) | 0,477 | Moderada | 0,001 |
Analfabetismo (%) | 0,307 | Fraca | 0,065 |
Indicadores de saúde | |||
Natalidade (nascidos vivos/ 1 mil hab.) | -0,253 | Fraca | 0,221 |
Mortalidade por câncer de colo do útero (por 100 mil) | 0,451 | Moderada | 0,001 |
Mortalidade por câncer de mama (por 100 mil) | 0,562 | Moderada | 0,001 |
Mortalidade masculina por agressão (por 100 mil) | 0,634 | Moderada | < 0,001 |
Mortalidade masculina por causas mal definidas (%) | 0,546 | Moderada | < 0,001 |
Mortalidade feminina por causas mal definidas (%) | 0,361 | Fraca | 0,356 |
No modelo múltiplo, após ajustes, permaneceram associados à mortalidade feminina por agressão três indicadores: quanto menor a renda per capita (β = -0,553; p-valor = 0,031), maior foi o coeficiente de mortalidade; entretanto, quanto maiores foram a proporção de famílias chefiadas por mulheres (β = 0,637; p-valor = 0,001) e a taxa de mortalidade masculina por agressão (β = 0,624; p-valor = 0,001), mais elevados foram os coeficientes de mortalidade por agressão (Tabela 5).
Variáveis | β | IC95%a | p-valor |
---|---|---|---|
Modelo de entrada | |||
Índice de desenvolvimento humano (IDH) | 0,598 | 0,438;0,635 | 0,032 |
Renda per capita (em R$) | -0,573 | -0,378;-0,796 | 0,041 |
Proporção de famílias chefiadas por mulheres (%) | 0,641 | 0,492;0,845 | 0,001 |
Desemprego (%) | 0,480 | -0,897;0,576 | 0,431 |
Mortalidade por câncer de colo do útero (por 100 mil) | 0,431 | -0,761;0,653 | 0,538 |
Mortalidade por câncer de mama (por 100 mil) | 0,591 | -0,909;0,754 | 0,281 |
Mortalidade masculina por agressão (por 100 mil) | 0,658 | 0,451;0,833 | 0,001 |
Mortalidade masculina por causas mal definidas (%) | 0,501 | -0,758;0,745 | 0,221 |
Modelo final | |||
Índice de desenvolvimento humano (IDH) | 0,573 | 0,421;0,702 | 0,423 |
Renda per capita (em R$) | -0,553 | -0,329;-0,843 | 0,031 |
Proporção de famílias chefiadas por mulheres (%) | 0,637 | 0,381;0745 | 0,001 |
Mortalidade masculina por agressão (por 100 mil) | 0,624 | 0,398;0,786 | 0,001 |
a) IC95%: Intervalo de confiança de 95%.
Discussão
Os dados do presente estudo evidenciam que as tendências de mortalidade feminina por agressão aumentaram no Maranhão, no período de 2000 a 2019. O perfil predominante das vítimas foi de mulheres adultas jovens, solteiras, com baixa escolaridade, de raça/cor da pele parda e tendo o domicílio como principal local de óbito. Além disso, houve correlação negativa com a renda per capita; e correlação positiva com a proporção de famílias chefiadas por mulheres e com a taxa de mortalidade masculina por agressão.
O feminicídio não está especificado na Declaração de Óbito brasileira (DO), impossibilitando a identificação desse tipo de morte nos dados secundários. Tendo isso em vista, o conceito de mortalidade feminina por agressão, neste estudo, foi utilizado como proxy para feminicídios no estado do Maranhão, com correção das mortes classificadas como "indeterminadas" para o cálculo das taxas de mortalidade.16 Se, por um lado, há possibilidade de esse indicador superestimar os reais números de feminicídios encontrados, por outro lado, esta é uma alternativa descrita na literatura como forma de compensação para a subnotificação do feminicídio.6
A tendência de aumento na mortalidade por agressão foi verificada tanto para as mesorregiões como para todo o estado do Maranhão. É possível que tal fato tenha ocorrido não somente pela maior vigilância e visibilidade que o feminicídio alcançou na sociedade, senão também pelo aumento real de mortes femininas relacionadas a questões de gênero. Os dados do presente estudo corroboram o aumento da tendência da mortalidade feminina por agressão observado nas macrorregiões Nordeste, Centro-Oeste e Sul do país, entre 2002 e 2012.11 Além disso, mesmo levando-se em consideração discrepâncias regionais, estados com tercis mais baixos de IDH e maior desigualdade, como o Maranhão e o Amazonas, exibiram taxas mais altas e ascendentes de mortalidade.11 Em 2014, o Maranhão apresentou taxa de mortalidade feminina por agressão (4,74 por 100 mil mulheres) mais alta que os conjuntos das regiões Nordeste (4,05 por 100 mil mulheres) e Sul (3,82 por 100 mil mulheres).17 Entretanto, é mister considerar que a não redução desse tipo de mortalidade, mesmo após a implementação da Lei nº 13.641, de 3 de abril de 2018, conhecida como Lei Maria da Penha, decorra de possível falha na implementação e fiscalização da lei em todas as fases do processo.18
Mulheres jovens e solteiras foram as principais vítimas identificadas na presente pesquisa. Outros estudos ratificam a mortalidade por agressão como responsável por grande parcela dos óbitos de mulheres em idade reprodutiva, com potenciais anos de vida perdidos na população feminina, além de trazer questões jurídicas, carcerárias e de saúde pública, gerando danos físicos e psicológicos para suas famílias.13,17,19 A maior prevalência de feminicídios entre solteiras também foi observado em estudos nacionais.5,15,19 Em outros países, as taxas de mortalidade feminina por agressão foram cerca de oito vezes superiores às daquelas que, apesar de viverem com seus companheiros, não são casadas formalmente.8 Contudo, sabe-se que mulheres, ao tomarem a iniciativa de buscar a separação de seus companheiros/parceiros, maridos e até mesmo namorados, têm mais chance de serem prováveis vítimas.1,3 Grande parte da população não considera a união estável como casamento ou como situação juridicamente válida e, por isso, muitas vítimas não fatais de violência têm retratado que, mesmo estando em relações estáveis, ainda se consideram solteiras.20
Nesta pesquisa, a escolaridade mais frequente das mulheres assassinadas foi de 4 a 7 anos de estudo, fato já observado em estudos prévios.6,19,21 Não há consenso sobre as razões de a baixa escolaridade das mulheres ser fator de risco para o feminicídio, porém um dos motivos para esse resultado poderia ser o fato de a menor instrução formal proporcionar menor empoderamento das mulheres e, por conseguinte, levá-las a procurar ajuda com menos frequência, em casos de violências prévias.3 Outra característica observada foi a predominância de mulheres de raça/cor de pele parda como as principais vítimas de mortes, muito embora, no Maranhão, a maior parcela da população ser constituída de negros.14 Apesar de, provavelmente, ocorrer intersecção com outras vulnerabilidades, entre as quais se destaca a baixa escolaridade dessa população,22 o fato é que, entre 2006 e 2013, houve redução de 2,1% no número de mortes de mulheres brancas e aumento de 35% entre as negras.23
O local de ocorrência de agressões é um indicador característico dos feminicídios. Neste estudo, encontrou-se o domicílio como o principal local do homicídio, seguido pelos estabelecimentos de saúde. Os elevados índices dessas mortes no domicílio reforçam a representação de que são casos relacionados à violência perpetrada por parceiros íntimos, familiares ou conhecidos das vítimas. Ainda assim, permite-se relacionar tais mortes com questões de gênero, caracterizando-as como feminicídios.3,10 Entre 1980 e 2014, houve distribuição equivalente dessas mortes entre domicílio, hospital e via pública, no Brasil e na região Nordeste em particular, sendo a via pública o principal local dessas ocorrências.17 Outras investigações também apontam a maior incidência da via pública enquanto principal local dos homicídios femininos, seguida das mortes nas residências das mulheres, o que indica altos índices de violência doméstica.22,23 Uma possibilidade para o aumento de mortes em via pública estaria na constatação de muitos agressores serem ex-maridos e/ou ex-companheiros das vítimas e, portanto, conhecerem toda a sua rotina e agredi-las na saída de casa para o trabalho, ou o contrário.17
Assim como observado no Maranhão, diversas pesquisas evidenciaram predominância do uso de armas de fogo como instrumento da agressão e morte de mulheres.17,18,22 Em 2015, quase metade (48,8%) dos homicídios de mulheres foram determinados por armas de fogo no Brasil, apesar do crescimento dos óbitos por estrangulamento e/ou sufocação, seguido pelo uso de objetos perfurocortantes.23 Sabe-se que a posse legal de arma de fogo pelo perpetrador é um dos fatores de risco para o feminicídio,9 causando preocupação a recente flexibilização, promovida pelo governo brasileiro, da posse e do porte de armas. Em diferentes localidades, contudo, o meio empregado pelo agressor varia, com maior prevalência do uso de objetos perfurocortantes, conforme observado em Manaus, capital do estado do Amazonas, e no município de Campinas, estado de São Paulo.21,24 Muitas vezes, nesse tipo de homicídio, além de matar, há desfiguração da vítima, com elevado número de lesões contusas na face, indicando crimes de ódio ou por motivos banais e fúteis.10,23
A renda per capita mostrou correlação negativa com o coeficiente de mortalidade feminina por agressão. O Maranhão é o estado brasileiro com os maiores índices de desigualdade social, tendo renda domiciliar per capita anual de R$ 636,00, IDH de 0,639, a menor taxa de urbanização do país (58,3%) e a maior taxa de mortalidade infantil (24,7 mortes/1 mil nascidos vivos).25 Sabe-se que sociedades com maiores níveis de desigualdade expressam maiores taxas de mortalidade feminina por agressão,11 sendo as mulheres mais pobres as mais atingidas.9 Há evidências de que localidades com menores níveis de IDH e maior desigualdade social exibem taxas de mortalidade de mulheres por agressão mais elevadas.11 Fatores como desemprego, tráfico de drogas, desagregação familiar e desigualdade social, especialmente entre os jovens, exacerbam a violência estrutural e aumentam a vulnerabilidade das mulheres, com maior impacto na violência de gênero.24,26
Outro indicador associado à mortalidade feminina por agressão, de acordo com os achados deste estudo, foi a proporção de famílias chefiadas por mulheres. Ao subverter normas tradicionais de gênero, as mulheres tensionam os valores de uma sociedade patriarcal e elevam a chance de violência doméstica.4 Por um lado, a entrada da mulher no mercado de trabalho e as mudanças nos papéis sociais promoveram e facilitaram a independência feminina. Por outro lado, esses fatos podem gerar mais conflitos com os homens, uma vez que o papel de provedor da família deixou de ser exclusividade masculino, ocasionando comportamentos agressivos pela não aceitação desse novo papel da mulher.9 Para impor sua autoridade frente à companheira, tais homens, muitas vezes, utilizam-se da força bruta por sentimento de inferioridade, aumentando o risco de feminicídio.27,28
É conhecido o fato de as mortes por agressão predominarem no sexo masculino, representando cerca de 90% dos óbitos por violência, com taxas 11,5 vezes maiores que as do sexo feminino.29 Além da magnitude, os assassinatos femininos são comumente motivados por questões baseadas no gênero, centradas nas crenças da superioridade masculina e da isenção de punição. Apesar dessas diferenças, locais com altos índices de mortes de homens por agressão também apresentam elevadas prevalências de violência contra a mulher, podendo resultar em homicídios femininos,29 como observado na atual pesquisa. Homens mais jovens, aqueles que vivem em regiões de vulnerabilidade social, com uso abusivo de álcool e drogas ilícitas, além de autores de violência de gênero, são aqueles mais sujeitos à morte por agressão.17 No Brasil, entre 2010 e 2014, a taxa de mortalidade masculina por agressão foi de 133,3/100 mil hab., e no Maranhão, durante esse período, a taxa foi superior à nacional (158,2/100 mil hab.). A grande quantidade de jovens desempregados, que não frequentaram ou não frequentam a escola e com famílias desestruturadas, são fatores que contribuem para o aumento da violência30 e de crimes de gênero.5,6,11,15,19
Este estudo apresenta limitações que devem ser destacadas. Primeiramente, por se tratar de um estudo com dados secundários, apenas as variáveis disponíveis na DO foram utilizadas, dificultando a compreensão mais abrangente desse fenômeno multidimensional. Ademais, a incompletude de algumas variáveis favorece a invisibilidade dos dados e prejudica a análise do real padrão dos óbitos. Em segundo lugar, não foi possível saber a motivação dos homicídios femininos, uma vez que não há dados referentes ao agressor no SIM ou se o que levou a mulher ao óbito foi uma questão de gênero. Ao se utilizar a correção por mortes cujas causas são indeterminadas, há chance de superestimação dos feminicídios. Apesar disso, esta é uma alternativa compensatória para a subnotificação frequente da mortalidade feminina por agressão. Em terceiro lugar, finalmente, deve ser considerada a possibilidade de falácia ecológica, típica do delineamento deste estudo. Logo, pode ser inadequada a generalização dos resultados obtidos da população do estado para os indivíduos que dele fazem parte.
Mesmo com essas limitações, o estudo é pioneiro, ao utilizar informações sobre a morte de mulheres por agressão no Maranhão. Os dados obtidos podem permitir o desenvolvimento de políticas públicas de proteção à mulher e o aprimoramento de estratégias para refinar a qualidade dos registros. Sendo um fenômeno grave e vergonhoso para qualquer sociedade, uma visão mais fidedigna sobre os feminicídios é estratégia necessária para sua erradicação. Apesar dos avanços na legislação de proteção à mulher, é possível observar aumento nos casos de homicídios femininos. Ao se levar em consideração a invisibilidade e subnotificação típicas desse fenômeno, os dados deste estudo ganham ainda mais relevância. Tais resultados reforçam tanto a magnitude como as omissões que marcam o roteiro dos assassinatos de mulheres, indicando a necessidade de novos estudos epidemiológicos para melhor compreensão e contínua vigilância dos feminicídios.