Principais resultados
Desigualdades sociodemográficas na realização de sete ou mais consultas de pré-natal se reduziram na Baixada Litorânea, mas seguem menores o número de consultas e a adequação do acesso para mulheres adolescentes, de baixa escolaridade e raça/cor da pele preta e parda.
Introdução
A realização do pré-natal desempenha papel fundamental na promoção da saúde da gestante, do feto e do recém-nascido.1-3 O pré-natal adequado identifica possíveis situações de risco para o binômio mãe-filho e aumenta as chances de intervenções oportunas para promover nutrição adequada, prevenir doenças de transmissão vertical e controlar morbidades maternas, como hipertensão arterial, diabetes mellitus e infecção urinária.2,3
A cobertura do pré-natal no Brasil é quase universal. Entretanto, a adequação da assistência à gestante ainda não foi atingida de forma plena,4,5 havendo muito a evoluir em relação ao número de consultas e aos exames e procedimentos, segundo o preconizado pela estratégia Rede Cegonha.5 Esta iniciativa, criada em 2011, ampliou a atenção humanizada na gestação e parto, fortalecendo programas nacionais voltados à saúde da mulher e da criança.5 No componente pré-natal, a estratégia prevê o acolhimento, a classificação de risco e vulnerabilidade, a ampliação do acesso e a melhoria da qualidade do pré-natal.
A adequação do pré-natal tem sido bem estudada, a partir de diferentes abordagens e definições de pré-natal adequado.4 Contudo, não há um consenso em relação ao conceito de adequação, e podem ser usados critérios simples, quantitativos, como número de consultas, ou critérios mais complexos, incluindo exames e procedimentos, infraestrutura, e vinculação da gestante a uma maternidade.4,6-8
Estudos que avaliam o número de consultas como indicador de qualidade, na dimensão de utilização dos serviços de pré-natal,9-12 podem se valer de dados secundários, como os do Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (Sinasc), disponíveis de forma pública e atualizada. O Ministério da Saúde propôs um indicador de adequação do acesso, que leva em conta o número de consultas e o início do atendimento pré-natal, também disponível no Sinasc.13
Em duas avaliações nacionais do pré-natal, com base em número de consultas e início do acompanhamento por esse serviço,12,13 a região Sudeste apresentou bom desempenho. O estado do Rio de Janeiro referiu a menor média de consultas realizadas e o menor percentual de mulheres com início do pré-natal no primeiro trimestre da gravidez,12 além de proporções mais baixas do índice de adequação do acesso ao atendimento,13 quando comparado aos demais estados da região. Não foram identificados estudos recentes, após a implementação da Rede Cegonha, que houvessem analisado o número de consultas e/ou o início do pré-natal nas diferentes localidades do estado, além da capital. No entanto, os relatórios da Secretaria de Estado de Saúde mostram menor proporção de mulheres com sete ou mais consultas de pré-natal nas regiões fora do eixo metropolitano, caso da Baixada Litorânea.14
É imprescindível, além da adequação, estudar desigualdades no pré-natal. Estudos mostram que tanto o número de consultas como outras medidas de adequação do pré-natal podem ser socialmente determinadas.15-18 Nesse contexto, a identificação de populações com menor acesso e/ou adequação no atendimento pode subsidiar estratégias nas políticas de saúde voltadas à redução de desigualdades, tanto nos programas de saúde específicos como naqueles intersetoriais.5,17,19 Intervenções adequadas durante o pré-natal e alta cobertura de populações negligenciadas, efetivamente, reduzem a morbimortalidade materna e infantil.2,17,19
Adolescência, baixa escolaridade e raça/cor da pele parda e preta são características maternas frequentemente relacionadas a disparidades na assistência à saúde materno-infantil, como menor acesso, menor número de consultas e desfechos perinatais desfavoráveis.15-18,20-22 A disponibilização, pelo Sinasc, de dados sobre idade, escolaridade e raça/cor da pele possibilita estudos dessa natureza.
O objetivo deste estudo foi analisar a tendência das desigualdades sociodemográficas no acesso e utilização do serviço pré-natal na região de saúde da Baixada Litorânea, estado do Rio de Janeiro, Brasil, no período de 2000 a 2020.
Métodos
Foi realizado um estudo ecológico de série temporal, sobre o período 2000-2020, na Baixada Litorânea do estado do Rio de Janeiro. Considerou-se como unidade de análise a fração de tempo “ano”.23 Cada indicador foi avaliado anualmente, e sua variabilidade temporal estimada.
A Baixada Litorânea fluminense, com 823.899 habitantes, agrega nove municípios: Araruama, Armação dos Búzios, Arraial do Cabo, Cabo Frio, Casimiro de Abreu, Iguaba Grande, Rio das Ostras, São Pedro da Aldeia e Saquarema.14 O índice de desenvolvimento humano (IDH) dos municípios varia entre 0,709 (Saquarema) e 0,773 (Rio das Ostras). A cobertura populacional exercida pela Atenção Básica do Sistema Único de Saúde (SUS) na região foi de 67,5% em 2017; Araruama, Rio das Ostras e Saquarema apresentaram os menores percentuais. A Baixada Litorânea apresenta o menor percentual de realização de sete ou mais consultas de pré-natal, no estado do Rio de Janeiro.14
A população do estudo foi composta por mulheres residentes na região, que tiveram nascidos vivos de gestação única, igual ou superior a 22 semanas, e com 500 g ou mais de peso.
A fonte dos dados foi o Sinasc, disponível nas páginas eletrônicas da Secretaria de Estado de Saúde do Rio de Janeiro (SES/RJ) e do Departamento de Informática do SUS (Datasus), do Ministério da Saúde, acessadas em abril de 2022.24,25 A Declaração de Nascido Vivo (DN), instrumento cujos dados servem de base para o Sinasc, sofreu modificações em 2011, incluindo a ampliação das informações sociodemográficas, reprodutivas e assistenciais (início do pré-natal, número detalhado de consultas, relação entre trabalho de parto e cesariana).26 Anteriormente, os campos da DN referentes a idade e escolaridade maternas eram fechados, preenchidos apenas por categorias; a partir de 2011, foram incluídos campos abertos, com essas informações mais detalhadas. Os sítios eletrônicos da SES/RJ e do Datasus disponibilizam a informação das variáveis sociodemográficas, tanto na forma detalhada como em categorias, permitindo a comparação entre períodos anteriores e posteriores a 2011.
As variáveis analisadas foram:
-
Sociodemográficas maternas, de forma categórica, obedecendo à disponibilidade da versão tabnet do Sinasc:
- Idade (em anos: até 19; 20 a 34; ≥ 35).
- Escolaridade (em anos de estudo: 0 a 3; 4 a 7; 8 a 11; e ≥ 12).
- Raça/cor da pele (branca; preta; parda; amarela; indígena).
-
Pré-natal, de acordo com dois indicadores:
- Utilização do pré-natal - considerou-se apenas a variável “número de consultas”, informação categorizada e disponível para todo o período analisado; adotou-se, como ponto de corte, sete ou mais consultas realizadas, número compatível com a categorização do Sinasc e mais próximo da recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS).1
- Adequação do acesso ao pré-natal, definida conforme recomendação do Ministério da Saúde, com base nas informações sobre o número de consultas e o período de início do pré-natal, quais sejam, (i) “Não fez” (nenhuma consulta), (ii) “Inadequado” (início/após o 3º mês e/ou menos de três consultas), (iii) “Intermediário” (início no 3º mês ou antes e três a cinco consultas), (iv) “Adequado” (início no 3º mês ou antes e seis consultas) e (v) “Mais que adequado” (início no 3º mês ou antes e sete ou mais consultas);13 registros com informação sobre o número de consultas e início do pré-natal ausente ou ignorada compuseram a categoria “Não classificados”.13
Desde 2014, a variável “adequação do acesso ao pré-natal”, disponível na base nacional do Sinasc (no Datasus), é categorizada em cinco faixas, conforme descrito no parágrafo anterior. Analisou-se a adequação do acesso segundo idade, escolaridade e raça/cor da pele maternas. Considerando-se a ordenação crescente de qualidade da variável, foram comparadas as proporções das situações extremas: “não fez/inadequado” ou “adequado/mais que adequado”, sem considerar, portanto, a categoria intermediária.
Foram descritas as distribuições absolutas e a proporção anual da adequação do acesso para o total de nascidos vivos e aqueles com idade gestacional igual ou superior a 37 semanas (a termo). Outros indicadores de adequação ajustam o número de consultas para a idade gestacional (IG), pois sabe-se que, quanto menor a IG, menor o tempo para obtenção do número ideal de consultas. Como esse indicador - adequação do acesso - não inclui essa variável em sua formulação, analisou-se o total de nascidos vivos com ≥ 37 semanas de gestação, tempo suficiente para alcançar sete consultas. O indicador “adequação do acesso” foi analisado apenas para o período disponível na base nacional do Sinasc, de 2014 a 2020.
Na análise estatística da série temporal, utilizou-se o programa Joinpoint Regression, que ajusta, em uma escala logarítmica, tendências lineares e mudanças dessas tendências (pontos de junção). Para o teste de significância, é usado o Monte Carlo Permutation Method, que ajusta a melhor linha para cada segmento. Uma vez que esses segmentos são estabelecidos, a direção e a magnitude das tendências estimadas são representadas pelos respectivos percentuais anuais de mudança (APC). O APC é calculado da seguinte forma:
onde I é o indicador no ano (It) e no ano seguinte (It +1). Considerando-se a regressão em escala logarítmica, log (It) = (b0 + b1t),
Os modelos foram avaliados com e sem termo de autocorrelação (AC), sendo mantido o termo quando a APC sofreu mudança superior a 0,2%.
Foram estimadas as tendências temporais, de acordo com as variáveis sociodemográficas, para os dois indicadores: a proporção de mulheres que realizaram sete ou mais consultas, 2000 a 2020; e a proporção de mulheres nas categorias “não fez/inadequado” e “adequado/mais que adequado” acesso, 2014 a 2020. Ressalta-se que, como o comportamento temporal pode diferir entre as variáveis, e entre as categorias de uma mesma variável, os períodos resultantes nem sempre são iguais.
Para avaliar desigualdades, foram calculadas medidas de associação (diferenças absolutas e relativas) para os dois indicadores (proporção de realização de sete ou mais consultas; proporção de adequação de acesso), segundo as variáveis “idade”, “escolaridade” e “raça/cor da pele”, em 2014 e 2020. As diferenças foram calculadas usando-se as categorias de melhor resultado - maior proporção do indicador - como referência. Para estimar a diferença absoluta (DA), foi realizada a subtração dos valores das proporções entre as categorias extremas (de maior e menor valor do indicador); e para a diferença relativa (DR), a razão entre as proporções das mesmas categorias (maior e menor valor). Quando as diferenças, absoluta e relativa, das proporções das categorias extremas das variáveis se aproximam, respectivamente de zero e 1, elas indicam ausência de desigualdade.27
Este estudo é um recorte da pesquisa Estudo sobre indicadores de saúde da mulher e da criança nas regiões de saúde do estado do Rio de Janeiro, aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal Fluminense [Certificado de Apresentação de Apreciação Ética (CAAE) nº 29721320.0.0000.5243] mediante Parecer nº 4.091.556, emitido em 16 de junho de 2020.
Resultados
No período de 2000 a 2020, na Baixada Litorânea, ocorreram 207.325 nascidos vivos, de feto único, sendo 8.563 em 2000 e 10.808 em 2020. Naquele período, a informação sobre número de consultas teve percentual de ignorados menor que 2%.
A proporção de mulheres que conseguiram realizar sete ou mais consultas aumentou de 51,7%, em 2000, para 63,4% em 2020. Houve estabilidade entre 2000 e 2013, e tendência crescente significante entre 2013 e 2020 (2,4% ao ano). Quando analisada segundo as variáveis sociodemográficos, a tendência foi diferenciada em magnitude (APC) e direção (Tabela 1).
Variável | 2000 n = 8.563 | 2020 n = 10.808 | Mudança percentual anual (IC95%a) | Tendência |
---|---|---|---|---|
Total | 51,7 | 63,4 | 2000-2003: 3,5 (-1,2;8,5) | Estabilidade |
2003-2013: -0,2 (-1,1;0,6) | Estabilidade | |||
2013-2020: 2,4 (1,1;3,7) | Aumento | |||
Idade materna (em anos) | ||||
≤ 19 | 45,1 | 51,4 | 2000-2004: 3,3 (-0,9;7,8) | Estabilidade |
2004-2007: -7,4 (-19,0;5,7) | Estabilidade | |||
2007-2020: 1,8 (1,1;2,5) | Aumento | |||
20-34 | 53,4 | 64,2 | 2000- 2004: 3,1 (0,4; 5,9) | Aumento |
2004-2009: -1,2 (-3,9;1,5) | Estabilidade | |||
2009-2020: 1,3 (0,7;1,9) | Aumento | |||
≥ 35 | 56,5 | 71,1 | 2000-2020: 1,0 (0,6;1,3) | Aumento |
Escolaridade (em anos de estudo) | ||||
Nenhuma | 35,0 | 25,0 | 2000-2020: -0,9 (-3,4;1,7) | Estabilidade |
1-3 | 34,9 | 37,2 | 2000-2020: -0,2 (-1,2;0,7) | Estabilidade |
4-7 | 46,5 | 47,8 | 2000-2013: -1,4 (-2,4;-0,5) | Redução |
2013-2020: 2,7 (0,2;5,3) | Aumento | |||
8-11 | 57,5 | 62,6 | 2000-2003: 2,9 (0,1;6,0) | Aumento |
2003-2009: -2,0 (-3,2;-0,7) | Redução | |||
2009-2020: 1,3 (1,0;1,9) | Aumento | |||
≥ 12 | 80,8 | 81,9 | 2000-2004: -1,5 (-3,5;0,6) | Estabilidade |
2004-2020: 0,5 (0,2;0,8) | Aumento | |||
Raça/cor da pele | ||||
Branca | 57,5 | 70,0 | 2000-2020: 0,8 (1,2;6,1) | Aumento |
Parda | 39,7 | 60,3 | 2000-2002: 12,2 (1,0;24,7) | Aumento |
2002-2007: -2,5 (-5,7;0,9) | Estabilidade | |||
2007-2020: 2,7 (2,1;3,3) | Aumento | |||
Preta | 44,5 | 61,1 | 2000-2020: 1,6 (1,0;2,2) | Aumento |
a) IC95%: Intervalo de confiança de 95%.
Todas as faixas etárias mostraram tendência crescente em algum momento. Para mulheres adolescentes, essa tendência foi significante apenas no período de 2007 a 2020. Já aquelas com ≥ 35 anos apresentaram tendência de crescimento em todo o período. Quanto maior a idade materna, maior a proporção de realização de sete ou mais consultas. Mulheres com menos de oito anos de estudo mostraram padrão predominante de estabilidade. Aquelas com oito ou mais anos de estudo, ao contrário, tiveram tendência crescente. Quanto maior a escolaridade, maior a proporção de sete ou mais consultas. Observou-se tendência crescente para todas as categorias de raça/cor da pele, mais intensa para as mulheres pardas entre 2007 e 2020, e constante para brancas e pretas. As mulheres brancas mantiveram o maior percentual em todo o período (Tabela 1).
A categoria de adequação do acesso “mais que adequado” foi a predominante no período, variando de 45,4% (2014) para 52,8% (2020); somada a esta a categoria “adequado”, foram contempladas 60,9% das mulheres em 2020. O percentual médio de registros não classificados foi de 12,2% no período. Quando analisados apenas os nascidos vivos a termo, os números foram semelhantes (Tabela 2).
Classificação | 2014 | 2015 | 2016 | 2017 | 2018 | 2019 | 2020 |
---|---|---|---|---|---|---|---|
Todos os nascidos vivosa | n = 11.028 | n = 11.465 | n = 10.879 | n = 11.186 | n = 11.508 | n = 11.276 | n = 10.808 |
Não fez | 0,3 | 0,3 | 0,4 | 0,4 | 0,5 | 0,4 | 0,4 |
Inadequado | 22,7 | 21,8 | 21,8 | 19,7 | 17,6 | 18,2 | 17,6 |
Intermediário | 8,8 | 8,5 | 8,2 | 9,1 | 8,0 | 8,3 | 9,8 |
Adequado | 8,7 | 9,0 | 8,4 | 8,8 | 7,8 | 7,5 | 8,1 |
Mais que adequado | 45,4 | 46,3 | 48,3 | 50,7 | 54,1 | 56,0 | 52,8 |
Não classificados | 14,1 | 14,1 | 12,9 | 11,3 | 12,0 | 9,6 | 11,3 |
Nascidos vivos a termob | n = 9.819 | n = 10.304 | n = 9.654 | n = 10.016 | n = 10.329 | n = 10.039 | n = 9.647 |
Não fez | 0,3 | 0,3 | 0,3 | 0,4 | 0,4 | 0,4 | 0,3 |
Inadequado | 22,1 | 21,4 | 21,3 | 19,5 | 17,5 | 18,1 | 17,3 |
Intermediário | 7,9 | 7,5 | 7,2 | 8,3 | 6,9 | 7,3 | 8,8 |
Adequado | 8,4 | 8,6 | 8,0 | 8,4 | 7,4 | 7,1 | 7,9 |
Mais que adequado | 47,0 | 47,4 | 50,0 | 52,1 | 55,7 | 57,5 | 54,3 |
Não classificados | 14,3 | 14,8 | 13,2 | 11,4 | 12,1 | 9,6 | 11,4 |
a) NV: Feto único, peso ≥ 500 g e idade gestacional ≥ 22 semanas; b) NV a termo: Feto único, peso ≥ 500 g e idade gestacional ≥ 37 semanas.
Na série temporal de 2014 a 2020 (Tabela 3), registrou-se predomínio de tendência crescente das categorias “adequado” e “mais que adequado”, e queda da inadequação. Mesmo com as mudanças favoráveis, cerca de 25% das adolescentes mantiveram-se na categoria “não fez/inadequado” e pouco mais de 50% alcançaram adequação. Mulheres com 35 anos ou mais, apesar da estabilidade, tiveram sempre mais que 60% de adequação. A faixa de 20 a 34 anos teve resultado intermediário, ou seja, conforme a idade da mãe, gradativamente aumentava a adequação do acesso. De forma semelhante, quanto maior o número de anos de estudo, maior era a proporção de mulheres com pré-natal adequado/mais que adequado. Mulheres de todas as raças/cores da pele tiveram tendência crescente de adequação, porém as brancas se destacaram com maior percentual de adequado/mais que adequado (sempre maior que 60%) (Tabela 3).
Classificação/variáveis | 2014 | 2020 | Mudança percentual anual (IC95%a) | Tendência |
---|---|---|---|---|
Total de gestantes | ||||
Não fez/inadequado | 22,4 | 17,1 | 2000-2020: -4,3 (-5,9;-2,7) | Redução |
Adequado/mais que adequado | 55,4 | 62,2 | 2000-2020: 2,6 (1,2;4,0) | Aumento |
Idade (em anos) | ||||
10-19 | ||||
Não fez/inadequado | 30,6 | 25,1 | 2000-2020: -3,1 (-4,8;-0,1) | Redução |
Adequado/mais que adequado | 44,0 | 52,6 | 2000-2020: 3,7 (2,0;5,3) | Aumento |
20-34 | ||||
Não fez/inadequado | 21,2 | 16,8 | 2000-2020: -4,1 (-5,9;-2,2) | Redução |
Adequado/mais que adequado | 57,4 | 63,4 | 2000-2020: 2,2 (1,0;3,5) | Aumento |
≥ 35 | ||||
Não fez/inadequado | 15,8 | 14,3 | 2000-2020: -3,1 (-6,0;0,0) | Estabilidade |
Adequado/mais que adequado | 62,3 | 65,6 | 2000-2020: 1,9 (-0,3;4,2) | Estabilidade |
Escolaridade (em anos de estudo) | ||||
≤ 7 | ||||
Não fez/inadequado | 32,3 | 30,4 | 2000-2020: -0,3 (-3,5;3,1) | Estabilidade |
Adequado/mais que adequado | 41,1 | 47,2 | 2000-2020: 2,8 (0,4;5,3) | Aumento |
8-11 | ||||
Não fez/inadequado | 21,0 | 16,4 | 2000-2020: -4,1 (-5,9;-2,2) | Redução |
Adequado/mais que adequado | 56,4 | 62,8 | 2000-2020: 2,2 (0,8;3,7) | Aumento |
≥ 12 | ||||
Não fez/inadequado | 11,6 | 8,8 | 2014-2018: -9,5 (-17,0;-1,4) | Redução |
2018-2020: 5,2 (-21,1;40,2) | Estabilidade | |||
Adequado/mais que adequado | 72,7 | 75,0 | 2000-2020: 0,6 (-0,1;1,3) | Estabilidade |
Raça/cor da pele | ||||
Branca | ||||
Não fez pré-natal/inadequado | 18,9 | 12,3 | 2000-2020: -6,1 (-9,8;-3,1) | Redução |
Adequado/mais que adequado | 61,3 | 67,6 | 2000-2020: 1,9 (0,3;3,5) | Aumento |
Preta | ||||
Não fez pré-natal/inadequado | 28,2 | 19,2 | 2000-2020: -5,6 (-8,7;-2,5) | Diminuição |
Adequado/mais que adequado | 47,6 | 61,1 | 2000-2020: 4,1 (3,1;5,2) | Aumento |
Parda | ||||
Não fez pré-natal/inadequado | 25,2 | 19,8 | 2000-2020: -4,1 (-5,4;-2,8) | Redução |
Adequado/mais que adequado | 49,6 | 60,3 | 2000-2020: 3,8 (2,0;5,5) | Aumento |
a) Não incluída a categoria intermediária.
Entre 2014 e 2020, diminuíram as diferenças absolutas na realização de sete ou mais consultas, entre mulheres ≥ 35 anos e demais faixas etárias. Ressalta-se que ainda foi elevada a desigualdade absoluta para adolescentes, porém a diferença relativa caiu. Cotejadas à faixa etária ≥ 12 anos de estudo, mulheres dos demais níveis de escolaridade diminuíram a diferença absoluta; exceto a faixa de 0 a 3 anos, que manteve ambas as desigualdades. As diferenças absolutas e relativas entre brancas, pardas e pretas diminuíram (Tabela 4).
Variável | Proporção de 7 consultas ou mais de pré-natal | Proporção da adequação de acesso do pré-natal (RN a termo) | |||||||||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
2014 (n = 11.028) | 2020 (n = 10.808) | 2014 (n = 10.913) | 2020 (n = 9.647) | ||||||||||||
Diferenças | Diferenças | Diferenças | Diferenças | ||||||||||||
% | Absoluta | Relativa | % | Absoluta | Relativa | % | Absoluta | Relativa | % | Absoluta | Relativa | ||||
Idade (em anos) | |||||||||||||||
≤ 19 | 43,3 | 24,1 | 1,6 | 51,4 | 19,7 | 1,4 | 42,1 | 19,4 | 1,5 | 52,6 | 13,0 | 1, 2 | |||
20-34 | 60,1 | 7,2 | 1,1 | 64,2 | 6,9 | 1,1 | 56,2 | 5,3 | 1,1 | 63,4 | 2,2 | 1,1 | |||
≥ 35a | 67,4 | - | - | 71,1 | - | - | 61,5 | - | - | 65,6 | - | - | |||
Escolaridade (em anos de estudo) | |||||||||||||||
0-3 | 34,9 | 45,9 | 2,3 | 35,8 | 46,1 | 2,3 | 33,3 | 39,5 | 2,2 | 40,4 | 34,6 | 1,9 | |||
4-7 | 41,7 | 39,1 | 1,9 | 47,8 | 34,1 | 1,7 | 42,2 | 30,5 | 1,7 | 47,7 | 27,3 | 1,6 | |||
8-11 | 61,2 | 19,6 | 1,3 | 62,6 | 19,3 | 1,3 | 56,4 | 16,4 | 1,3 | 62,8 | 12,2 | 1,2 | |||
≥ 12b | 80,8 | - | - | 81,9 | - | - | 72,7 | - | - | 75,0 | - | - | |||
Raça/cor da pele | |||||||||||||||
Parda | 52,8 | 13,2 | 1,3 | 60,3 | 9,7 | 1,2 | 49,6 | 11,7 | 1,2 | 60,3 | 7,3 | 1,1 | |||
Preta | 52,1 | 12,5 | 1,2 | 61,1 | 8,9 | 1,1 | 47,6 | 13,7 | 1,3 | 61,1 | 6,5 | 1,1 | |||
Brancac | 65,3 | - | - | 70,0 | - | - | 61,3 | - | - | 67,6 | - | - |
a) Categoria de referência da idade materna para o cálculo das diferenças; b) Categoria de referência da escolaridade materna para o cálculo das diferenças; c) Categoria de referência da raça/cor da pele materna para o cálculo das diferenças.
As desigualdades absolutas e relativas da adequação do acesso ao pré-natal reduziram-se para todas as faixas etárias, de escolaridade e raça/cor da pele (Tabela 4); entretanto mantiveram-se elevadas entre mulheres com baixa escolaridade e adolescentes.
As diferenças absolutas e relativas dos indicadores - proporção de ≥ 7 consultas (2014 e 2020) e proporção de pré-natal adequado (2014 e 2020) -, por categorias extremas de idade, escolaridade e raça/cor da pele materna, estão expressas na Figura 1. Apesar da tendência crescente dos indicadores em todas as categorias, observou-se magnitude superior em mães na idade de 35 anos ou mais, com 12 ou mais anos de estudo e de raça/cor branca, em relação às menos favorecidas. As maiores diferenças absolutas foram observadas para a escolaridade, seja pelo número de consultas, seja na adequação do acesso.
Discussão
O estudo identificou aumento tanto do número de consultas como da adequação do acesso ao pré-natal na Baixada Litorânea do estado do Rio de Janeiro. Entretanto, esse aumento mostrou-se insuficiente diante da meta estabelecida, de 70% para o primeiro indicador,14 e da persistência de desigualdades em ambos os indicadores. Adolescentes, mulheres com menos de oito anos de escolaridade e aquelas de raça/cor da pele parda ou preta apresentaram os resultados mais desfavoráveis, cujas diferenças foram atenuadas, mas não revertidas, durante o período do estudo.
Houve tendência crescente da categoria de sete ou mais consultas de pré-natal, até alcançar, em 2020, o percentual de 63,4%. Para o Brasil, em 2013, esse indicador foi de 63,2% para gestações únicas, embora na região Sudeste ele houvesse atingido 73%, quase dez pontos percentuais acima do encontrado na Baixada Litorânea;13 dados do Brasil, de 2015, mostram aumento para 66,9%.13 Quando se compara a Baixada Litorânea a outras localidades, apenas Fortaleza/CE tinha percentuais mais baixos, 56,8%, enquanto Campinas e São Paulo/SP, e Porto Alegre/RS, apresentaram entre 74% e 79% em 2015-2016.11 A análise da tendência temporal na Baixada Litorânea só identificou aumento no período de 2013 a 2020, provavelmente resultante de medidas da estratégia Rede Cegonha, implantada no ano de 2011 em nível nacional.5 Contudo, é necessário manter ou aumentar esse ritmo de crescimento para alcançar pelo menos o patamar da região Sudeste, nos próximos anos.
O indicador de sete ou mais consultas no pré-natal teve gradiente crescente com o aumento da idade materna; porém, as adolescentes constituíram um grupo desfavorecido, com menor percentual, enquanto as mais velhas tiveram os maiores valores, comportamento semelhante ao demonstrado por estudo nacional de 2013.13 Destaca-se que, na Baixada Litorânea fluminense, os valores para adolescentes foram menores que no nível nacional.13 Mulheres com menos de oito anos de estudo tiveram as proporções mais baixas, sempre inferiores a 50%, enquanto aquelas com ≥ 12 anos de estudo atingiram o maior valor, 81,9% em 2020, semelhantemente aos achados de estudos nacionais.9,10 Na Baixada Litorânea, todavia, houve estagnação do indicador, contrariamente ao ocorrido no Brasil, entre 2000 e 2015, quando se observou aumento mais intenso para as faixas de baixa escolaridade, cerca de 3,2% ao ano.10
O percentual de realização de sete ou mais consultas entre mulheres brancas foi sempre superior ao das pardas e pretas, como em nível nacional.9,10 Entretanto, as mulheres brancas da Baixada Litorânea só atingiram 70%, proporção inferior aos valores nacionais.9,10 O fato de a Baixada Litorânea não ter acompanhado as melhorias na utilização do pré-natal sugere falhas na captação e acompanhamento das gestantes, principalmente daquelas mais vulneráveis. Por sua vez, características regionais na configuração das vulnerabilidades poderiam explicar, ainda que em parte, esse cenário, que deverá subsidiar gestores na definição de ações de saúde materno-infantil. Por exemplo, adolescentes que engravidam já se caracterizam como um grupo mais vulnerável, acumulando outros fatores como baixa escolaridade e baixa renda, os quais também potencializam menor acesso e utilização dos cuidados pré e perinatais.23
Ainda são poucos os estudos com o indicador da adequação de acesso ao pré-natal.11,13 Os valores relatados para o somatório das categorias “adequado” e “mais que adequado”, em nível nacional, referentes ao ano de 2015, foram mais elevados nas regiões Sul e Sudeste (> 76%), e mais baixos no Nordeste (63,8%) e Norte (53,1%). A região Centro-Oeste (71,7%) teve o valor mais próximo do Brasil (70,2%).13 O estado do Rio de Janeiro, onde se situa a região estudada, teve o menor valor do Sudeste, 70%, embora a Baixada Litorânea oscilasse entre 55% e 62%, comportamento semelhante ao das regiões Norte e Nordeste do país. Deve ser ressaltado que a Baixada Litorânea teve melhor desempenho no item “início do pré-natal”, dado que cerca de 80% das mulheres da região conseguiram iniciar o atendimento no primeiro trimestre (dado não mostrado na tabela), faltando melhorar a longitudinalidade desse atendimento.
Comparado aos dados das categorias “adequado” e “mais que adequado” do Brasil nos anos de 2014 e 2015,13 o comportamento na Baixada Litorânea foi mais desfavorável para as mulheres adolescentes, pretas e pardas, e de baixa escolaridade, todas com valores inferiores aos nacionais,13 mostrando maior vulnerabilidade para essa região do estado do Rio de Janeiro. Características regionais, na organização dos serviços, na implementação da Rede Cegonha e na distribuição das vulnerabilidades na população podem explicar por que essa região se mantém com indicadores inferiores aos do restante do estado.14
Como alternativa para avaliar a desigualdade no pré-natal, um estudo em nível nacional explorou as diferenças relativas e absolutas, no período de 2000 a 2015.10 Identificou-se queda de ambos os tipos de diferença para a realização de sete ou mais consultas, em relação à escolaridade e raça/cor da pele, não sendo analisada a idade materna. Segundo o presente estudo, na Baixada Litorânea, adotando-se a mesma abordagem, embora para um período mais curto, de 2014 a 2020, as desigualdades se atenuaram, mas persistiram: na escolaridade, observou-se o comportamento de bottom inequality,27 ou exclusão marginal, pois as mulheres com 12 ou mais anos de estudo têm cobertura adequada, e são grandes as diferenças relativas, tanto maiores quanto menor a faixa de escolaridade. As diferenças foram de menor magnitude para a comparação da raça/cor da pele, e diminuíram para pardas e pretas.
Por último, a desigualdade, tanto relativa como absoluta, diminuiu para adolescentes, mas, ainda assim, manteve-se elevada, corroborando a vulnerabilidade dessa faixa etária. Cabe destacar que se tem identificado esse padrão de desigualdades em outros estudos sobre saúde da mulher, mostrando que há um acúmulo prejudicial no período reprodutivo.15,21,22
Como limitações do estudo, estão aquelas relacionadas à qualidade dos dados dos sistemas de informações. Uma análise do Sinasc, em nível nacional (2019), mostrou discreta superestimação do percentual de sete ou mais consultas de pré-natal e da escolaridade alta (12 e mais anos de estudo), com concordância boa: índice de Kappa de 0,639 e 0,680, respectivamente.28 Outra limitação deste trabalho é inerente ao indicador apenas quantitativo, uma vez que não é possível explorar com profundidade a qualidade do atendimento pautando-se apenas pelo número de consultas. No entanto, os resultados de estudos nacionais recentes, com indicadores mais refinados de adequação do pré-natal, identificaram as mesmas desigualdades: associação de pré-natal inadequado com idade menor que 20 anos, escolaridade menor que oito anos de estudo e raça/cor da pele preta.6,15-18 Por último, ao se incluir o ano de 2020, pode ter havido distorção na análise de tendências, pois todos os serviços de saúde sofreram o impacto da pandemia de COVID-19, inclusive o atendimento pré-natal.29 Afinal, analisou-se a série sem e com o ano de 2020, e as diferenças foram pequenas, embora seja importante destacar a queda havida no número de consultas em 2020.
Como virtude do estudo, ele foi o primeiro a analisar a utilização e a adequação do acesso ao pré-natal na Baixada Litorânea do estado do Rio de Janeiro. A análise regional alinha-se à forma como a gestão da Rede Cegonha se organiza e pode subsidiar as mudanças necessárias. Confirmou-se a potência do Sinasc como fonte de dados para estudos da área materno-infantil, bem como para o monitoramento de indicadores de saúde e de desigualdades. O uso de diferenças absolutas e relativas fortaleceu a análise de desigualdades e pode ser incorporado a estudos ulteriores.
Conclui-se que persistem desigualdades sociodemográficas na atenção pré-natal. Na avaliação de tendência, observou-se equidade inversa, ou seja, novas intervenções atingem primeiramente os grupos mais favorecidos e, mais tardiamente, os menos favorecidos, com persistência das desigualdades.30 A Baixada Litorânea do estado do Rio de Janeiro está mais desfavorecida que outros locais onde tem havido redução das desigualdades,17,20 apontando para a necessidade de priorizar os cuidados às gestantes com menor escolaridade, de raça/cor de pele preta ou parda e adolescentes.