Principais resultados
Com exceção do ofidismo, os demais acidentes por animais peçonhentos apresentaram tendência temporal crescente na maioria das regiões brasileiras. Escorpionismo (51,2%), ofidismo (17,4%) e araneísmo (17,3%) totalizaram 86% dos acidentes notificados.
Introdução
Os acidentes com animais peçonhentos são eventos de notificação compulsória no Brasil, devido à magnitude da morbimortalidade e à capacidade de produzir sequelas temporárias ou permanentes.1 São quase 140 mil acidentes por ano entre 2001 e 2019, constituindo um problema de saúde pública que afeta principalmente as populações mais vulneráveis do país, sendo o ofidismo, particularmente, umas das doenças tropicais negligenciadas (DTNs) segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS).1-3
O Brasil possui dimensão continental, inclui zonas tropicais e subtropicais, seis tipos de biomas e diversas espécies de animais peçonhentos e venenosos.4 Dessa forma, o perfil epidemiológico dos acidentes causados por animais peçonhentos no país apresenta variações no espaço, entre suas grandes regiões geográficas, e no tempo. Essas variações estão relacionadas não apenas ao tipo de vegetação, clima ou relevo, senão também às ações antrópicas, alterações climáticas, crescimento urbano desordenado e eliminação de predadores naturais, entre outros fatores.1,5
As análises de tendência temporal dos acidentes envolvendo animais peçonhentos são excelentes estratégias para analisar como esses fenômenos oscilam na natureza, permitindo verificar se eles apresentam redução, crescimento ou estacionariedade na incidência, em um determinado lugar.6
Embora a literatura reúna diversos estudos de análise do perfil epidemiológico dos acidentes por animais peçonhentos no Brasil,1,5,7 até o momento da conclusão deste relato, não há estudos atualizados que comparem as tendências temporais nas grandes regiões geográficas brasileiras.
O conhecimento do perfil epidemiológico é necessário para nortear políticas de prevenção desse tipo de acidente e orientar a produção e distribuição de soros antiveneno entre as Unidades da Federação (UFs), e direcionar esforços a determinado grupo de risco ou localidade.7
O estudo teve como objetivo analisar a tendência temporal dos acidentes causados por animais peçonhentos no Brasil, no período de 2007 a 2019.
Métodos
Trata-se de um estudo do tipo ecológico, utilizando as grandes regiões geográficas brasileiras como unidades de análise. O Brasil possui cerca de 213 milhões de habitantes a ocupar uma área de 8,5 milhões de km2.8 Sendo um dos maiores e mais populosos do mundo, o país possui grande biodiversidade de fauna e flora.4 A federação brasileira reúne 27 UFs, distribuídas entre cinco grandes regiões geográficas: Norte (7), Nordeste (9), Sudeste (4), Sul (3) e Centro-Oeste (4). O território nacional apresenta cinco compartimentos climáticos, definidos como Equatorial, Temperado, Tropical Brasil Central, Tropical Nordeste Oriental e Tropical Zona Equatorial; e seis classes de biomas, quais sejam, Amazônia, Mata Atlântica, Cerrado, Caatinga, Pampa e Pantanal.4
O estudo foi realizado sobre os casos de acidentes por animais peçonhentos no Brasil, registrados nas fichas de notificação obrigatória do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) no período de 2007 a 2019. Os dados desses casos foram extraídos do TABNET, sistema disponibilizado pelo Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (Datasus), acessados em 14 de maio de 2021.3
Sobre a plataforma TABNET, os dados foram filtrados por:
ano de notificação (2007-2019);
sexo (masculino; feminino);
idade, estratificada por faixas etárias (em anos: 0 a 4; 5 a 9; 10 a 14; 15 a 19; 20 a 39; 40 a 59; 60 a 69; 70 a 79; ≥ 80);
região de residência (Norte; Nordeste; Sudeste; Sul; Centro-Oeste); e
tipo de acidente (causado por serpente, aranha, escorpião, lagarta, abelha e outros).
São categorizados em "outros" os acidentes causados por animais peçonhentos com menor repercussão sanitária, como himenópteros (formigas e vespas), coleópteros (besouros), quilópodes (lacraias), peixes diversos, cnidários (águas-vivas e caravelas); e entende-se por "ignorado" o acidente cujo animal causador é desconhecido. Esta última categoria não foi contemplada no estudo.
Para o cálculo da taxa de incidência, foram extraídos dados demográficos do TABNET utilizando-se filtros para sexo e faixa etária.9 As taxas de incidência foram obtidas com a divisão do número de novos casos de cada tipo de acidente pelo número de pessoas em risco, segundo as variáveis "sexo" e "faixa etária". A razão obtida foi multiplicada por 100 mil, para se obter o número de casos a cada 100 mil habitantes.
A associação das taxas de incidência com o sexo foi analisada pelos cálculos do risco relativo (RR), utilizando-se a incidência do sexo masculino como numerador e a incidência no sexo feminino como denominador. Os intervalos de confiança de 95% (IC95%) para cada RR também foram calculados por região brasileira.
A letalidade foi estimada dividindo-se o número de óbitos segundo tipo de acidente notificado, filtrados do sistema TABNET a partir da variável "evolução do caso", pelo total de acidentes do mesmo tipo notificados, multiplicado por 100.
O método de regressão linear de Prais-Winsten foi utilizado nas análises de tendência temporal, considerando-se os anos avaliados, 2007 a 2019, como variáveis independentes, no cálculo do incremento percentual anual (IPA) e respectivo IC95%. As taxas de incidência de acidentes com animais peçonhentos foram transformadas para a escala logarítmica (base 10).
A tendência temporal foi considerada decrescente quando os valores do IC95% eram negativos; crescente, quando os valores do IC95% eram positivos; e estacionária, quando o IC95% incluiu o valor zero. O nível de significância adotado foi de 5%.6 As análises foram realizadas com o uso do software STATA 13.
Este tipo de estudo, por envolver dados de domínio público e sem identificação dos indivíduos, não necessitou ser submetido à aprovação de um Comitê de Ética em Pesquisa (CEP).
Resultados
No Brasil, entre os anos de 2007 e 2019, foram notificados 2.102.657 casos de acidentes com animais peçonhentos, a uma média anual de 175.222. O escorpionismo foi o acidente de maior ocorrência (51,2%), seguido pelo ofidismo (17,4%) e o araneísmo (17,3%), totalizando 86% dos casos.
Alguns desses acidentes foram mais frequentes em determinadas regiões do país (Tabela 1). O escorpionismo foi mais frequente no Nordeste (68,6/100 mil hab.), seguido pelo Sudeste (41,2/100 mil hab.) e pelo Centro-Oeste (26,5/100 mil hab.), enquanto o ofidismo predominou nas regiões Norte (53,1/100 mil hab.) e Centro-Oeste (19,0/100 mil hab.). O araneísmo, com 61,3/100 mil hab., os acidentes apílicos, com 9,2/100 mil hab., e o erucismo, com 6,3/100 mil hab., predominaram no Sul. Os acidentes categorizados como "outros" foram mais frequentes na região Norte (6,6/100 mil hab.).
Observou-se, também, variação na letalidade. Esta foi maior por acidentes ofídicos, de 0,40%, e apílicos, de 0,29%, respectivamente nas regiões Centro-Oeste e Norte (Tabela 1).
Tipo de acidente | Macrorregiões e Brasil | n | % | Média | Óbitos | Letalidade (%) | Incidênciaa |
---|---|---|---|---|---|---|---|
Escorpionismo | Centro-Oeste | 53.153 | 2,5 | 4.089 | 69 | 0,12 | 26,5 |
Nordeste | 496.039 | 23,6 | 38.157 | 492 | 0,09 | 68,6 | |
Norte | 44.414 | 2,1 | 3.416 | 76 | 0,17 | 19,9 | |
Sudeste | 457.710 | 21,8 | 35.208 | 433 | 0,09 | 41,2 | |
Sul | 26.247 | 1,2 | 2.019 | 7 | 0,02 | 6,9 | |
Brasil | 1.077.563 | 51,2 | 82.889 | 1.077 | 0,09 | 32,6 | |
Ofidismo | Centro-Oeste | 37.157 | 1,8 | 2.858 | 163 | 0,43 | 19,0 |
Nordeste | 93.927 | 4,5 | 7.225 | 507 | 0,53 | 13,1 | |
Norte | 117.128 | 5,6 | 9.010 | 495 | 0,42 | 53,1 | |
Sudeste | 84.115 | 4,0 | 6.470 | 232 | 0,27 | 7,6 | |
Sul | 32.637 | 1,6 | 2.511 | 76 | 0,23 | 8,8 | |
Brasil | 364.964 | 17,4 | 28.074 | 1.473 | 0,40 | 20,3 | |
Araneísmo | Centro-Oeste | 8.142 | 0,4 | 626 | 18 | 0,22 | 4,0 |
Nordeste | 17.812 | 0,8 | 1.370 | 50 | 0,28 | 2,4 | |
Norte | 10.171 | 0,5 | 783 | 19 | 0,18 | 4,5 | |
Sudeste | 99.012 | 4,7 | 7.616 | 48 | 0,04 | 8,9 | |
Sul | 228.325 | 10,9 | 17.564 | 48 | 0,02 | 61,3 | |
Brasil | 363.462 | 17,3 | 27.959 | 183 | 0,05 | 16,3 | |
Acidentes apílicos | Centro-Oeste | 6.926 | 0,3 | 533 | 29 | 0,41 | 3,4 |
Nordeste | 46.222 | 2,2 | 3.556 | 135 | 0,29 | 6,3 | |
Norte | 7.230 | 0,3 | 556 | 26 | 0,35 | 3,1 | |
Sudeste | 59.969 | 2,9 | 4.613 | 150 | 0,25 | 5,4 | |
Sul | 34.599 | 1,6 | 2.661 | 110 | 0,31 | 9,2 | |
Brasil | 154.946 | 7,4 | 11.919 | 450 | 0,29 | 5,5 | |
Outros | Centro-Oeste | 6.182 | 0,3 | 476 | 9 | 0,14 | 3,1 |
Nordeste | 23.404 | 1,1 | 1.800 | 19 | 0,08 | 3,2 | |
Norte | 14.903 | 0,7 | 1.146 | 11 | 0,07 | 6,6 | |
Sudeste | 29.095 | 1,4 | 2.238 | 19 | 0,06 | 2,6 | |
Sul | 13.647 | 0,6 | 1.050 | 6 | 0,04 | 3,6 | |
Brasil | 87.231 | 4,1 | 6.710 | 64 | 0,07 | 3,8 | |
Erucismo | Centro-Oeste | 2.000 | 0,1 | 154 | 1 | 0,05 | 1,0 |
Nordeste | 4.998 | 0,2 | 385 | 7 | 0,14 | 0,6 | |
Norte | 2.886 | 0,1 | 222 | - | 0,00 | 1,2 | |
Sudeste | 20.996 | 1,0 | 1.615 | 7 | 0,03 | 1,9 | |
Sul | 23.611 | 1,1 | 1.816 | 14 | 0,05 | 6,3 | |
Brasil | 54.491 | 2,6 | 4.192 | 29 | 0,05 | 2,2 |
a) Taxa de incidência (casos/100 mil hab.).
A magnitude do risco diferiu no espaço e no tempo, conforme é apresentada na Figura 1, pela qual é evidente que, em algumas regiões, as linhas das séries históricas não cruzaram entre si, a exemplo do escorpionismo no Nordeste, do ofidismo no Norte, e do araneísmo e do erucismo no Sul.
De todos os tipos de acidentes observados, o ofidismo apresentou tendência temporal decrescente apenas no Sul; nas demais regiões, mostrou-se estacionário. O erucismo teve tendência estacionária no Norte, Sudeste e Sul. Os demais acidentes por animais peçonhentos - inclusive os classificados na categoria "outros" - revelaram tendência temporal crescente (Tabela 2).
Tipo de acidente | Macrorregião | IPAa (%) | IC95%b | Tendência | |
---|---|---|---|---|---|
Limite inferior | Limite superior | ||||
Escorpionismo | Centro-Oeste | 6,6 | 0,06 | 0,08 | Crescente |
Nordeste | 4,4 | 0,04 | 0,05 | Crescente | |
Norte | 2,6 | 0,18 | 0,34 | Crescente | |
Sudeste | 5,4 | 0,05 | 0,06 | Crescente | |
Sul | 5,3 | 0,04 | 0,06 | Crescente | |
Ofidismo | Centro-Oeste | -0,3 | -0,01 | 0,01 | Estacionária |
Nordeste | 0,2 | -0,01 | 0,02 | Estacionária | |
Norte | 0,0 | -0,00 | 0,00 | Estacionária | |
Sudeste | -0,5 | -0,01 | 0,00 | Estacionária | |
Sul | -1,2 | -0,02 | -0,01 | Decrescente | |
Araneísmo | Centro-Oeste | 4,4 | 0,03 | 0,06 | Crescente |
Nordeste | 5,0 | 0,04 | 0,06 | Crescente | |
Norte | 3,0 | 0,02 | 0,04 | Crescente | |
Sudeste | 3,0 | 0,02 | 0,04 | Crescente | |
Sul | 0,4 | 0,00 | 0,01 | Crescente | |
Erucismo | Centro-Oeste | 5,9 | 0,03 | 0,09 | Crescente |
Nordeste | 5,5 | 0,04 | 0,07 | Crescente | |
Norte | 3,1 | -0,00 | 0,06 | Estacionária | |
Sudeste | 2,0 | -0,00 | 0,04 | Estacionária | |
Sul | -0,6 | -0,03 | 0,02 | Estacionária | |
Acidentes apílicos | Centro-Oeste | 4,6 | 0,03 | 0,06 | Crescente |
Nordeste | 7,2 | 0,06 | 0,09 | Crescente | |
Norte | 6,2 | 0,05 | 0,07 | Crescente | |
Sudeste | 3,8 | 0,03 | 0,04 | Crescente | |
Sul | 2,7 | 0,02 | 0,03 | Crescente | |
Outros | Centro-Oeste | 4,2 | 0,03 | 0,05 | Crescente |
Nordeste | 5,5 | 0,04 | 0,07 | Crescente | |
Norte | 5,1 | 0,04 | 0,06 | Crescente | |
Sudeste | 4,2 | 0,03 | 0,06 | Crescente | |
Sul | 2,0 | 0,01 | 0,03 | Crescente |
a) IPA: Incremento percentual anual; b) IC95%: Intervalo de confiança de 95%.
Escorpionismo, ofidismo e araneísmo incidiram sobretudo em indivíduos na idade economicamente ativa. Comportamento inverso apresentou o erucismo, mais incidente em jovens e idosos. Por sua vez, acidentes apílicos e "outros" apresentaram risco maior em sentido decrescente, mais em jovens e menos em idosos; a exceção coube à região Norte, onde o risco foi maior em indivíduos na idade economicamente ativa (Figura 2).
No período de estudo, observou-se maior incidência de acidentes com animais peçonhentos no sexo masculino, para todos os agravos; sobretudo no que se refere ao ofidismo, cujo risco entre indivíduos do sexo masculino no Brasil foi 3,47 vezes maior que no sexo feminino (Tabela 3). No Nordeste, ser do sexo masculino mostrou-se um fator de proteção para escorpionismo (RR = 0,8).
Tipo de acidente | Macrorregiões e Brasil | Incidência (casos/100 mil hab.) | IC95%b | |||
---|---|---|---|---|---|---|
Masculino | Feminino | RRa | Mínimo | Máximo | ||
Escorpionismo | Centro-Oeste | 28,5 | 26,1 | 1,09 | 1,07 | 1,10 |
Nordeste | 61,3 | 76,8 | 0,80 | 0,79 | 0,80 | |
Norte | 25,1 | 15,1 | 1,67 | 1,63 | 1,70 | |
Sudeste | 46,9 | 37,0 | 1,27 | 1,26 | 1,27 | |
Sul | 7,7 | 6,4 | 1,21 | 1,18 | 1,23 | |
Brasil | 41,9 | 41,0 | 1,02 | 1,02 | 1,03 | |
Ofidismo | Centro-Oeste | 29,4 | 8,9 | 3,30 | 3,22 | 3,38 |
Nordeste | 20,2 | 6,3 | 3,19 | 3,15 | 3,24 | |
Norte | 83,4 | 22,4 | 3,72 | 3,67 | 3,77 | |
Sudeste | 12,0 | 3,5 | 3,41 | 3,35 | 3,46 | |
Sul | 13,5 | 4,2 | 3,22 | 3,14 | 3,31 | |
Brasil | 22,1 | 6,4 | 3,47 | 3,44 | 3,50 | |
Araneísmo | Centro-Oeste | 4,7 | 3,6 | 1,30 | 1,24 | 1,36 |
Nordeste | 2,6 | 2,4 | 1,06 | 1,03 | 1,09 | |
Norte | 5,6 | 3,6 | 1,55 | 1,49 | 1,61 | |
Sudeste | 11,1 | 7,1 | 1,55 | 1,53 | 1,57 | |
Sul | 60,8 | 62,0 | 0,98 | 0,97 | 0,99 | |
Brasil | 14,9 | 13,1 | 1,14 | 1,13 | 1,15 | |
Acidentes apílicos | Centro-Oeste | 4,7 | 2,4 | 1,94 | 1,84 | 2,04 |
Nordeste | 8,5 | 4,5 | 1,88 | 1,85 | 1,92 | |
Norte | 4,2 | 2,3 | 1,81 | 1,73 | 1,90 | |
Sudeste | 7,2 | 3,8 | 1,90 | 1,87 | 1,94 | |
Sul | 11,8 | 6,9 | 1,69 | 1,66 | 1,73 | |
Brasil | 7,8 | 4,2 | 1,84 | 1,82 | 1,86 | |
Erucismo | Centro-Oeste | 1,0 | 1,0 | 1,01 | 0,92 | 1,10 |
Nordeste | 0,8 | 0,6 | 1,25 | 1,18 | 1,32 | |
Norte | 1,4 | 1,2 | 1,12 | 1,04 | 1,21 | |
Sudeste | 2,2 | 1,6 | 1,38 | 1,34 | 1,42 | |
Sul | 7,2 | 5,5 | 1,31 | 1,28 | 1,34 | |
Brasil | 2,4 | 1,8 | 1,31 | 1,29 | 1,33 | |
Outros | Centro-Oeste | 3,4 | 2,9 | 1,16 | 1,10 | 1,22 |
Nordeste | 3,7 | 2,9 | 1,27 | 1,23 | 1,30 | |
Norte | 9,2 | 4,3 | 2,15 | 2,08 | 2,22 | |
Sudeste | 3,1 | 2,2 | 1,39 | 1,35 | 1,42 | |
Sul | 3,9 | 3,4 | 1,15 | 1,11 | 1,18 | |
Brasil | 3,9 | 2,8 | 1,40 | 1,38 | 1,42 |
a) RR: Risco relativo, utilizando-se o sexo masculino como grupo de referência (masculino; feminino); b) IC95%: Intervalo de confiança de 95%.
Discussão
O escorpionismo foi o agravo de maior incidência entre os acidentes causados por animais peçonhentos no Brasil, no período estudado;1 e apresentou tendência crescente do número de casos, em todas as grandes regiões nacionais.
Tityus serrulatus, conhecido também como escorpião-amarelo, é a espécie mais comumente associada a esse tipo de acidente10 e sua distribuição espacial tem aumentado em todas as regiões brasileiras, haja vista sua alta adaptabilidade a ambientes urbanos e rápida proliferação: o T. serrulatus se reproduz sem a necessidade de acasalamento, adapta-se a diferentes zonas térmicas e sobrevive a longos períodos sem alimento e sem água.11 As tentativas de controle das populações de escorpião dessa espécie no Brasil não têm obtido êxito significativo.11
A região Nordeste destacou-se como a de maior incidência de escorpionismo, sendo suas vítimas sobretudo do sexo feminino.12 Este achado do estudo, provavelmente, deve-se a fatores ocupacionais e comportamentais observáveis no ambiente doméstico, onde há maior exposição do sexo feminino.13
O escorpionismo incidiu maiormente entre indivíduos na idade ativa mais avançada, demonstrando possível associação do ambiente domiciliar como local de risco para picadas de escorpiões. Em sua maioria, as vítimas desse tipo de acidente foram apontadas por outro estudo como estudantes, donas de casa e aposentados/ pensionistas.14
Uma pesquisa realizada na Paraíba não encontrou associação entre os fatores socioeconômicos analisados e a localização geográfica do escorpionismo; todavia, espera-se que piores condições de moradia apresentem taxas de escorpionismo mais elevadas.7
A letalidade do escorpionismo no Brasil foi de 0,09% no período estudado, inferior à relatada em outra pesquisa, que reportou letalidade de 0,13% no país entre os anos de 2009 e 2013.12 Embora as picadas de escorpiões sejam frequentes e ocasionem apenas apresentações clínicas locais, na maioria das vezes, o mesmo não é verificado nas manifestações sistêmicas, para as quais 5% dos casos notificados são graves, e destes, 0,3% fatais.15 A região Norte apresentou maior letalidade por escorpionismo (0,17%), em relação às demais regiões do país. Os casos letais foram observados na região amazônica, principalmente após picadas de Tityus metuendus e Tityus obscurus.16
Quanto ao ofidismo, o Norte foi a região brasileira a registrar maior frequência de acidentes no período, corroborando resultados de outros estudos.17,18 Destaca-se ainda que o número de registros pode ser superior ao encontrado aqui, devido às subnotificações na região, especialmente dos casos ocorridos em localidades isoladas.18
Com relação ao perfil das vítimas por ofidismo no Brasil, o estudo evidenciou, maiormente, os indivíduos do sexo masculino e na idade economicamente ativa, o que sugere risco ocupacional.12,17 Resultados semelhantes foram apresentados em outra pesquisa, segundo a qual pessoas do sexo masculino e com ocupação vinculada ao meio rural são as mais afetadas.19 O ofidismo também foi descrito como acidente de risco ambiental, para grupos populacionais tradicionais residentes em comunidades afastadas dos centros urbanos, a exemplo de nômades, indígenas, caçadores e coletores.20 Ainda sobre o ofidismo, ele apresentou tendência temporal estacionária em quase todas as regiões do país; apenas no Sul, sua tendência foi de decréscimo.
O ofidismo foi o de maior letalidade entre todos os acidentes com animais peçonhentos no país, destacando-se as regiões Centro-Oeste e Norte, onde se localizam os biomas do Pantanal e da Amazônia respectivamente. Estes resultados foram semelhantes aos observados em outro estudo, que analisou os acidentes por animais peçonhentos no Brasil, no período de 2007 a 2013.12 Vários fatores podem estar relacionados à letalidade por ofidismo, como o tempo decorrido entre o acidente e o atendimento, e a dificuldade de acesso a um serviço de saúde. Além disso, outros estudos constataram que algumas vítimas ou responsáveis optaram por medidas terapêuticas inadequadas, capazes de agravar o caso antes da chegada ao serviço de saúde, como uso de chá caseiro, incisão e/ou aplicação de substâncias no local da mordedura, procedimento de torniquete, busca por curandeiro/feiticeiro, entre outras.19,21
No mundo, o ofidismo acomete cerca de 2,7 milhões de pessoas, e destas, 80 mil a 140 mil evoluem para óbito, a maioria - 50 mil - na Índia, seguida do Paquistão, com 8 mil, e de Bangladesh, com 6 mil. Nas Américas, entretanto, as mortes por ofidismo são estimadas em centenas, tão somente; no Brasil, são 119 óbitos por ano.2,12 Cerca de 87% dos acidentes ofídicos no país estão relacionados a serpentes do gênero Bothrops.22
O araneísmo apresentou tendência temporal crescente nas cinco grandes regiões nacionais e foi responsável por 17,3% das notificações, com destaque para a região Sul. Outro estudo indica que a incidência de araneísmo no Sul é dez vezes superior à das demais regiões:1 no Brasil meridional, a probabilidade de araneísmo parece não guardar diferença entre os sexos, fato possivelmente relacionado a sua ocorrência mais frequente na zona urbana e nos domicílios;12 o araneísmo do Sul atinge principalmente pessoas em idade economicamente ativa, enquanto, nas demais regiões, observa-se risco relativo discretamente maior para o sexo masculino.
A letalidade por araneísmo no Brasil foi de 0,05%, com destaque para as regiões Nordeste (0,28%) e Centro-Oeste (0,22%), responsáveis pelas maiores taxas durante os 13 anos analisados.1,12
O Nordeste e o Sul apresentaram as maiores incidências de acidentes apílicos; cumpre destacar, outrossim, que todas as regiões brasileiras exibiram tendência temporal crescente. Este problema vem sendo registrado no país desde 1956, após a liberação acidental de abelhas africanizadas que se disseminaram pelas Américas e se tornaram problema de saúde pública nos países que colonizaram.23 As abelhas africanizadas são significativamente mais defensivas do que outras abelhas, atacam com pouco estímulo, em maior quantidade, perseguem a vítima por períodos mais longos e, supostamente, liberam maior quantidade de veneno.23
Indivíduos de 0 a 9 anos de idade e o sexo masculino foram os mais afetados por acidentes apílicos. Em todas as regiões do país, os dados sugerem não haver casualidade entre esse tipo de acidente e a população economicamente ativa. Estudo realizado em um município do Nordeste apontou que a maioria dos casos de acidentes apílicos ocorreu na zona urbana e sem relação com o trabalho.24
A letalidade dos acidentes apílicos no Brasil foi de 0,29%, tendo-se observado maiores valores nas regiões Centro-Oeste (0,41%) e Norte (0,35%), no período estudado. Um estudo realizado nos anos de 2001 a 2012 mostrou que a letalidade variou de 0,3% a 0,4% em todas as regiões, apontando para a gravidade dos desfechos associada à grande quantidade de veneno inoculado após múltiplas picadas, o que pode resultar em reação anafilática.1 Outro estudo verificou que os acidentes apílicos cresceram mais de 200% ao longo da década de 2009-2019, sendo a fatalidade dos casos maior em pessoas idosas e residentes no Nordeste.25
Espera-se que acidentes apílicos sejam menos letais que acidentes ofídicos ou escorpiônicos. Entretanto, as letalidades por acidentes apílicos encontradas no presente estudo apontam valores similares ou até superiores às letalidades por ofidismo e escorpionismo, em diversas regiões brasileiras. Uma hipótese possível para essas evidências é a maior frequência de notificação dos acidentes apílicos mais graves (com múltiplas picadas e indivíduos alérgicos), e ainda, uma subnotificação de casos leves pelo fato de a vítima não buscar atendimento médico, o que afeta diretamente o cálculo da letalidade.
O erucismo, acidente por contato com lagartas, apresentou tendência temporal estacionária nas regiões Norte, Sudeste e Sul, e tendência crescente nas regiões Centro-Oeste e Nordeste. De acordo com outros estudos, no futuro, o erucismo será mais incidente e de extensa distribuição geográfica, em virtude (i) do aquecimento global, (ii) da destruição do habitat natural, forçando as lagartas a viverem em outras regiões, especialmente em árvores localizadas nas proximidades urbanas, e (iii) da morte dos predadores naturais pelo uso extensivo de agrotóxicos.26
O erucismo foi o acidente que apresentou menor incidência, em relação aos demais agravos analisados neste trabalho. Contudo, embora subnotificado, talvez seja esse o acidente mais comum a envolver os animais peçonhentos, principalmente nas zonas de clima tropical, não só pelo contato direto como também indireto (aéreo), e com quadros diversificados.26
A região Sul contribuiu com as maiores incidências de erucismo, resultado observado em outros estudos. É possível que as modificações antrópicas na ocupação e uso da terra tenham levado à diminuição de hospedeiros arbóreos e, consequentemente, à necessidade de adaptação e migração dos animais envolvidos para novos ambientes hospedeiros, como pomares próximos de áreas urbanas.27
O erucismo apresentou pouca diferença na incidência sobre os sexos. Efetivamente, ele foi maior sobretudo em crianças, independentemente da região do país, e uma possível explicação desse resultado seria o fato de as faixas etárias mais jovens estarem mais expostas, movidas pela curiosidade em pegar ou tocar lagartas. Entre adultos, é possível que esses acidentes estejam relacionados com ocupações que desenvolvam contato ou proximidade com plantas e se realizem ao ar livre.28
Os acidentes registrados como "outros" no Sinan, causados por himenópteros, coleópteros, quilópodes, cnidários, peixes diversos e demais, apresentaram tendência temporal crescente em todas as regiões do país, sendo responsáveis por menos de 5% das notificações. No Norte, sua maior incidência referiu-se ao sexo masculino, sugerindo acidentes laborais; nas demais regiões, houve pouca distinção entre sexos; crianças menores de 5 anos foram as mais acidentadas, provavelmente por serem mais indefesas em relação a formigas, vespas, besouros e lacraias, entre outros. Pressupõe-se que os casos classificados como "outros" ocorram no ambiente intradomiciliar. A propósito, nota-se a escassez de estudos dedicados a interpretar esse tipo de dado.
Com base nos resultados da análise temporal deste estudo, projeta-se, para os próximos anos, um incremento anual de todos os acidentes causados por animais peçonhentos, a serem atendidos nos serviços de saúde. As exceções dessa previsão remetem ao ofidismo; e ao erucismo nas regiões Norte, Nordeste e Sul do país.
Para mitigação desse tipo de agravo, seja em ambiente urbano, seja no meio rural, tendo-se em vista que muitos acidentes apresentados possuem risco ocupacional e, portanto, são passíveis de prevenção, recomenda-se especial atenção ao uso de equipamentos de proteção individual (EPIs) em determinadas atividades laborais. Para reduzir acidentes intradomiciliares, é igualmente recomendável a dedetização de ambientes domésticos, a limpeza constante do peridomicílio e a eliminação de possíveis abrigos para animais peçonhentos.17
Pesquisas com unidades geográficas de menor escala, como estados e municípios, são também recomendadas, uma vez que podem demonstrar padrões diferentes dos apresentados em nível macrorregional.
Conclui-se que a tendência temporal para a maioria dos acidentes com animais peçonhentos foi crescente no período de estudo. A distribuição espacial desses acidentes ocorreu de forma heterogênea, apresentando padrões epidemiológicos distintos.