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Epidemiologia e Serviços de Saúde

versão impressa ISSN 1679-4974versão On-line ISSN 2237-9622

Epidemiol. Serv. Saúde vol.31 no.esp1 Brasília  2022  Epub 09-Jun-2022

http://dx.doi.org/10.1590/ss2237-9622202200007.especial 

Artigo Original

Associação do autorrelato de problemas no sono com morbidades e multimorbidades segundo sexo: Pesquisa Nacional de Saúde 2019

Asociación de los problemas de sueño autoinformados con morbilidades y multimorbilidades según el sexo: Encuesta Nacional 2019

Margareth Guimarães Lima (orcid: 0000-0001-6996-0745)1  , Marilisa Berti de Azevedo Barros (orcid: 0000-0003-3974-195X)1  , Deborah Carvalho Malta (orcid: 0000-0002-8214-5734)2  , Lhais de Paula Barbosa Medina (orcid: 0000-0001-7033-9809)2  , Célia Landmann Szwarcwald (orcid: 0000-0002-7798-2095)3 

1Universidade Estadual de Campinas, Departamento de Saúde Coletiva, Campinas, SP, Brasil

2Universidade Federal de Minas Gerais, Escola de Enfermagem, Belo Horizonte, MG, Brasil

3Fundação Instituto Oswaldo Cruz, Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

Resumo

Objetivo:

Avaliar a associação do autorrelato de problemas no sono com a presença de doenças crônicas não transmissíveis (DCNTs) e multimorbidades, e se essas associações diferem por sexo.

Métodos:

Estudo transversal realizado com dados da Pesquisa Nacional de Saúde 2019. Razões de prevalências entre morbidades, número de DCNTs e autorrelato de problemas no sono foram estimadas por regressão de Poisson com variância robusta, por sexo.

Resultados:

Foram analisados 85.531 brasileiros com idade ≥ 18 anos. Os problemas no sono autorrelados associaram-se a todas as morbidades e multimorbidades. A prevalência dos problemas no sono foi maior nos que declararam uma ou duas (RP = 2,37; IC95% 2,22;2,54) e três ou mais DCNTs (RP = 4,73; IC95% 4,37;5,11). As razões de prevalências da associação com diabetes, doenças pulmonares, mentais, renais e multimorbidades foram mais elevadas entre o sexo masculino.

Conclusão:

As DCNTs impactaram significativamente a qualidade do sono em ambos os sexos, com associação mais forte para o sexo masculino.

Palavras-chave: Sono; Doenças não Transmissíveis; Morbidade; Inquéritos Epidemiológicos; Distribuição por Sexo

Resumen

Objetivo:

Evaluar la asociación de problemas de sueño con la presencia de enfermedades crónicas no transmisibles (ECNTs) y multimorbilidades, y si estas asociaciones difieren por sexo.

Métodos:

Estudio transversal con datos de la encuesta epidemiológica Pesquisa Nacional de Saúde 2019. Se estimaron las razones de prevalencia entre morbilidades, número de ECNTs y problemas de sueño por regresión de Poisson con variación robusta, por sexo.

Resultados:

Se analizaron 85.531 brasileños ≥ 18 años. El autoinforme de problemas de sueño se asoció con todas las morbilidades estudiadas y con multimorbilidades. La prevalencia de problemas de sueño fue mayor en aquellos que informaron uno o dos (PR = 2,37; IC95% 2,22;2,54) y tres o más ECNTs (RP = 4,73; IC95%4,37;5,11). Las razones de prevalencia de la asociación de diabetes con enfermedades pulmonares, mentales, renales y multimorbilidades han sido más fuertes en el sexo masculino.

Conclusión:

Las ECNTs tienen un impacto significativo en la calidad del sueño con fuerte asociación en ambos sexos, masculino y feminino.

Palabras clave: Sueño; Enfermedades No Transmisibles; Morbilidad; Encuestas Epidemiológicas; Distribución por Sexo

Contribuições do estudo

Principais resultados

Foram observadas fortes associações dos problemas no sono, morbidades e multimorbidades segundo sexo. Embora as associações entre doenças crônicas não transmissíveis (DCNTs) e sono tenham ocorrido em ambos os sexos, as razões de prevalência foram mais expressivas no sexo masculino

Implicações para os serviços

A prevalência das doenças crônicas é alta e crescente, além de acompanhar outros problemas de saúde, como os do sono, o que demanda atenção particular dos serviços de saúde, com ênfase especial para a saúde dos homens.

Perspectivas

Os cuidados de saúde da população com DCNTs, na atenção primária, devem considerar a possiblidade de estratégias de cuidados especiais com o sono de pessoas com doenças crônicas, considerando-se sua importância para a saúde e a vida diária.

Introdução

A importância da duração e qualidade do sono para a saúde encontra-se amplamente evidenciada.1-3 A restauração diária do organismo propiciada pelo sono é necessária para a preservação da adequada funcionalidade dos sistemas imune, endócrino e metabólico, prevenindo inúmeros agravos à saúde e doenças.1 Os principais problemas que afetam o sono são a duração insuficiente, a insônia, a apneia do sono e a sonolência diurna.4

Estudos têm evidenciado a associação da pior qualidade do sono com a presença de doenças cardiovasculares,1,3 metabólicas,5,6 respiratórias,7,8 mentais9,10 e musculoesqueléticas.11 Há indicações de que associações entre distúrbios do sono e doenças podem ser bidirecionais: enquanto alguns estudos detectam os impactos de morbidades sobre a qualidade do sono,8,12,13,14 outros sugerem que a insuficiência e os distúrbios do sono podem desenvolver processos patológicos e originar doenças. Evidências neste sentido são mais consistentes em relação às doenças cardiovasculares.2,3,15

As mulheres tendem a avaliar seu sono relativamente pior que os homens,8,9,16 como também acontece em outras dimensões do estado de saúde.17 As prevalências de doenças crônicas também são mais elevadas no sexo feminino em comparação ao masculino.18 No entanto, é reconhecido que os problemas de saúde acometem a população masculina de maneira mais intensa e letal e são múltiplas as diferenças entre os sexos quanto às condições de saúde, percepção de doenças e procura por atenção médica.17

Muitos dos estudos que avaliaram a associação dos problemas do sono com doenças dedicaram-se às associações com alguma doença específica,3,7,10 sem considerar um conjunto maior de morbidades crônicas de diferentes etiologias potencialmente associadas ao evento. Poucas pesquisas analisaram o papel do sexo nesta associação, tendo algumas encontrado maior ocorrência no sexo masculino19,20 e outras obtido resultados contraditórios,21,22 o que pode ser um ponto importante, considerando-se a forte determinação de gênero nas questões de saúde. Nesse sentido, o objetivo do presente estudo foi avaliar a associação do autorrelato de problemas no sono com a presença de doenças crônicas não transmissíveis (DCNTs) e de multimorbidades, e se estas associações diferem por sexo.

Métodos

Trata-se de um estudo transversal, de base populacional, conduzido com dados da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) realizada em 2019 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em parceria com o Ministério da Saúde. Os dados foram acessados em março de 2021, no site https://bit.ly/3P5yPSa.

A amostra da PNS é probabilística, representativa da população brasileira com idade maior ou igual a 15 anos. A amostragem foi feita por conglomerados em três estágios de seleção: i) setores censitários; ii) domicílios; e iii) um morador de cada domicílio. Em todos os estágios foi utilizada amostragem aleatória simples. A estimativa do tamanho da amostra foi norteada por alguns indicadores da PNS de 2013, como a prevalência de doenças crônicas, de comportamentos de saúde e outros. O processo amostral da PNS de 2019 encontra-se detalhado em publicação anterior.23 Neste estudo, especificamente, foi analisada a população com idade ≥ 18 anos.

A variável de desfecho (dependente) foi o autorrelato de problemas no sono, derivada da pergunta: Nas duas últimas semanas, com que frequência o(a) Sr(a). teve problemas no sono, como dificuldade para adormecer, acordar frequentemente à noite ou dormir mais do que de costume? As opções de resposta “Nem um dia” e “Menos da metade dos dias” foram agregadas e constituíram a categoria 1: “Não teve problemas no sono frequentemente”. As respostas “Mais da metade dos dias” e “Quase todos os dias” foram agregadas e formaram a categoria 2: “Teve problemas no sono frequentemente”. Esta questão única foi extraída do instrumento Patient Health Questionnaire-9 (PHQ-9), cuja função é rastrear indivíduos com depressão maior.24

As variáveis de exposição principais foram: i) o diagnóstico médico autorreferido de DCNTs, que englobou hipertensão, diabetes, doenças cardíacas, acidente vascular cerebral, asma, outra doença do pulmão [enfisema pulmonar, bronquite crônica ou doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC)], artrite ou reumatismo, problema de coluna ou dor crônica nas costas, depressão, outra doença mental [transtorno de ansiedade, síndrome do pânico, esquizofrenia, transtorno bipolar, psicose ou transtorno obsessivo-compulsivo (TOC)], câncer e insuficiência renal crônica; ii) o número de DCNTs relatadas: 0, 1-2, 3 ou mais. Foi considerada multimorbidade a presença de 3 ou mais morbidades.

Faixa etária foi utilizada para ajustes de confundimento (18 a 29; 30 a 49; 50 a 59; 60 a 69; ≥ 70); e sexo (feminino; masculino), para ajuste e estratificação.

A associação do autorrelato do sono com cada DCNT e com o número de morbidades foi analisada por meio de regressão de Poisson, com variância robusta, ajustada por faixa etária e sexo na população geral, e por faixa etária na análise estratificada por sexo. A magnitude da associação foi estimada pelo cálculo das razões de prevalências (RP), com os respectivos intervalos de confiança de 95% (IC95%). Os resultados foram considerados estatisticamente significantes quando apresentaram níveis de significância estatística (p-valores) menores do que 0,05. As RP e os IC95% também foram calculados segundo estratificação por sexo.

Para avaliar o papel do sexo nas associações dos problemas no sono com as DCNTs específicas ou com o número de morbidades, foi utilizado um modelo com termos de interação multiplicativa de sexo com a DCNT considerada (ou o número de comorbidades), controlando pelos efeitos marginais de sexo, faixa de idade, e a DCNT específica (ou o número de morbidades). As variáveis para avaliar interação foram construídas a partir da multiplicação entre as variáveis de doenças crônicas específicas com sexo e de número de doenças crônicas com sexo.

As análises foram conduzidas com uso do software estatístico Stata 15.0, módulo survey (svy), com a finalidade de considerar o efeito de desenho da pesquisa na análise de dados.

A PNS foi aprovada pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa e pelo Conselho Nacional de Saúde sob o Parecer nº 3.529.376, emitido em 23 de agosto de 2019.

Resultados

Foram avaliados 88.531 indivíduos com idade ≥ 18 anos, com idade média de 44,9 anos (±17,2). A maior parte da população era do sexo feminino (53,2%) e se encontrava na faixa etária entre 30 e 49 anos (39,2%). Problemas no sono foram relatados por 18,6% das pessoas, com maior percentual no sexo feminino (23,1%) em relação ao masculino (13,6%) (Tabela 1).

Tabela 1 Distribuição etária e prevalência de problemas no sono e das DCNTsa estudadas na população adulta brasileira segundo sexo, Pesquisa Nacional de Saúde 2019, Brasil 

Variáveis n Prevalência % (IC95%f)
Total Feminino Masculino
Total 88.531 100,0 53,2 (52,6;53,8) 46,8 (46,2;47,4)
Faixa etária (anos)
18 a 29 15.394 22,1 (21,5;22,7) 21,0 (20,2;21,7) 23,4 (22,5;24,3)
30 a 49 34.752 39,2 (38,5;39,8) 39,2 (38,3;40,0) 39,2 (38,3;40,0)
50 a 59 15.657 17,1 (16,7;17,5) 16,8 (16,3;17,4) 17,5 (16,8;18,1)
60 a 69 12.555 12,2 (11,8;12,5) 12,8 (12,3;13,2) 11,5 (11,0;12,0)
≥ 70 10.173 9,4 (9,1;9,8) 10,3 (9,8;10,8) 8,5 (8,0;9,0)
Autorrelato de problemas no sono 16.491 18,6 (18,1;19,2) 23,1 (22,4;23,8) 13,6 (13,0;14,3)
Doenças crônicas não transmissíveis
Hipertensão 23.819 25,4 (24,9;25,9) 29,2 (28,5;30,0) 21,1 (20,4;21,8)
Diabetes 7.358 8,0 (7,7;8,4) 9,0 (6,6;9,5) 6,9 (6,5;7,4)
Doença do coração 4.711 5,3 (5,0;5,6) 5,6 (5,3;6,0) 4,9 (4,6;5,3)
AVCb 1.974 2,0 (1,8;2,1) 2,0 (1,8;2,2) 2,0 (1,7;2,2)
Asma ou bronquite asmática 4.294 5,3 (5,0;5,5) 6,1 (5,7;6,5) 4,4 (4,0;4,8)
Outra doença do pulmão (enfisema pulmonar, bronquite crônica ou DPOCc) 1.258 1,7 (1,5;1,8) 1,7 (1,5;2,0) 1,6 (1,4;1,8)
Artrite ou reumatismo 7.199 7,6 (7,2;7,9) 11,0 (10,4;11,5) 3,7 (3,4;4,1)
Problema de coluna ou dor crônica nas costas 19,029 21,6 (21,0;22,1) 24,5 (23,7;25,2) 18,3 (17,6;19,0)
DORTd 1.710 2,5 (2,3;2,8) 3,2 (2,8;3,6) 1,7 (1,5;2,0)
Depressão 8.242 10,2 (9,9;10,6) 14,7 (14,1;15,4) 5,1 (4,7;5,5)
Outra doença mental (transtorno de ansiedade, síndrome do pânico, esquizofrenia, transtorno bipolar, psicose ou TOCe) 4.792 6,5 (6,1;6,8) 8,6 (8,1;9,1) 4,1 (3,8;4,5)
Câncer 2.314 2,6 (2,4;2,7) 2,9 (2,7;3,2) 2,1 (1,9;2,4)
Insuficiência renal crônica 1.280 1,5 (1,3;1,6) 1,6 (1,4;1,8) 1,4 (1,2;1,6)
Número de doenças crônicas entre as 13 estudadas
0 41.266 47,2 (46,5;47,8) 41,6 (40,8;42,5) 53,4 (52,6;54,3)
1 ou 2 36.794 40,6 (40,0;41,2) 41,8 (41,0;42,7) 39,2 (38,4;40,1)
3 ou mais 10.471 12,2 (11,8;12,7) 16,5 (15,8;17,2) 7,4 (6,9;7,8)

a) DCNTs: Doenças crônicas não transmissíveis; b) AVC: Acidente vascular cerebral; c) DPOC: Doença pulmonar obstrutiva crônica; d) DORT: Distúrbio osteomuscular relacionado ao trabalho; e) TOC: Transtorno obsessivo compulsivo; f) IC95%: Intervalo de confiança de 95%

Na Tabela 1, também se observa que todas as DCNTs estudadas, e o maior número de doenças crônicas autorreferidas, foram mais prevalentes entre o sexo feminino, com exceção de AVC, insuficiência renal crônica e doenças do pulmão. A prevalência do autorrelato dos problemas no sono foi de 12,6%, entre a população com 18 a 29 anos, e de 26,1%, entre aqueles com 70 anos ou mais (Tabela 2). Após ajuste por idade, verificou-se que o relato de problemas no sono foi 67% maior entre o sexo feminino e, após ajuste por sexo, a prevalência aumentou com a idade, chegando a ser 84% (RP = 1,84; IC95% 1,67;2,02) e 100% (RP = 2,0; IC95% 1,81;2,19) maior entre aqueles com 60 a 69 anos e 70 anos e mais, respectivamente, quando comparada com os de 18 a 29 anos (dados não apresentados em tabela).

Tabela 2 Prevalência do autorrelato de problemas no sono segundo sexo, faixa etária e DCNTsa, Pesquisa Nacional de Saúde 2019, Brasil 

Variáveis Prevalência (%) IC95%f
Sexo
Masculino 13,6 13,0;14,3
Feminino 23,1 22,4;23,8
Faixa etária (anos)
18 a 29 12,6 11,6;13,6
30 a 49 17,0 16,3;17,8
50 a 59 22,4 21,2;23,7
60 a 69 23,8 22,5;25,1
≥ 70 26,1 24,6;27,6
Doenças crônicas não transmissíveis
Hipertensão 27,2 26,2;28,4
Diabetes 30,2 28,4;32,2
Doença do coração 36,3 33,9;38,7
AVCb 39,0 35,1;43,1
Asma ou bronquite asmática 29,2 26,8;31,7
Outra doença do pulmão (enfisema pulmonar, bronquite crônica ou DPOCc) 38,7 33,6;44,1
Artrite ou reumatismo 37,6 35,5;39,8
Problema de coluna ou dor crônica nas costas 31,1 29,9;32,4
Distúrbio osteomuscular relacionado ao trabalho (DORTd) 29,3 26,2;32,7
Depressão 48,6 46,7;50,6
Outra doença mental (transtorno de ansiedade, síndrome do pânico, esquizofrenia, transtorno bipolar, psicose ou TOCe) 48,5 46,1;51,0
Câncer 32,6 29,4;36,0
Insuficiência renal crônica 36,2 31,9;40,7
Número de doenças entre as 13 estudadas
0 9,2 8,7;9,8
1 ou 2 21,0 21,2;22,9
3 ou mais 43,8 42,1;45,7

a) DCNTs: Doenças crônicas não transmissíveis; b) AVC: Acidente vascular cerebral; c) DPOC: Doença pulmonar obstrutiva crônica; d) DORT: Distúrbio osteomuscular relacionado ao trabalho; e) TOC: Transtorno obsessivo compulsivo; f) IC95%: Intervalo de confiança de 95%.

A prevalência do autorrelato dos problemas no sono foi superior na presença de todas as doenças estudadas e as associações foram mais fortes com depressão e outras doenças mentais, problemas de coluna e doenças pulmonares. O número de doenças também se associou fortemente com o autorrelato de problemas no sono, chegando a uma prevalência quase cinco vezes (RP = 4,73; IC95% 4,37;5,11) maior na população com três ou mais doenças, em relação aos que não apresentam morbidades (Tabela 3).

Tabela 3 Razão de prevalências e intervalos de confiança de 95% (IC95%), a partir de modelo de regressão de Poisson, do autorrelato de problemas no sono segundo DCNTsa, no total e por sexo, Pesquisa Nacional de Saúde 2019, Brasil 

Variáveis RPf (IC95%g)
Total Feminino Masculino Interação (sexo x DCNTsa,h)
Doenças crônicas não transmissíveis
Hipertensão 1,50 (1,41;1,59) 1,40 (1,30;1,51) 1,48 (1,34;1,63)
Diabetes 1,43 (1,33;1,54) 1,32 (1,21;1,43) 1,59 (1,38;1,83) 1,22 (1,04;1,42)
Doença do coração 1,76 (1,64;1,89) 1,74 (1,60;1,89) 1,76 (1,52;2,02)
AVCb 1,76 (1,57;1,97) 1,69 (1,47;1,95) 1,95 (1,63;2,32)
Asma ou bronquite asmática 1,67 (1,53;1,83) 1,62 (1,47;1,78) 1,56 (1,28;1,90)
Outra doença do pulmão (enfisema pulmonar, bronquite crônica ou DPOCc) 1,96 (1,70;2,26) 1,76 (1,44;2,14) 2,34 (1,93;2,84) 1,34 (1,02;1,76)
Artrite ou reumatismo 1,89 (1,76;2,02) 1,68 (1,57;1,81) 1,81 (1,54;2,12)
Problema de coluna ou dor crônica nas costas 1,89 (1,79;1,99) 1,79 (1,68;1,91) 1,87 (1,70;2,05)
Distúrbio osteomuscular relacionado ao trabalho (DORTd) 1,52 (1,35;1,70) 1,35 (1,17;1,55) 1,64 (1,30;2,07)
Depressão 3,07 (2,91;3,23) 2,61 (2,46;2,76) 3,58 (3,24;3,95) 1,38 (1,23;1,54)
Outra doença mental (transtorno de ansiedade, síndrome do pânico, esquizofrenia, transtorno bipolar, psicose ou TOCe) 3,04 (2,87;3,22) 2,54 (2,37;2,72) 3,79 (3,41;4,22) 1,49 (1,31;1,69)
Câncer 1,48 (1,33;1,64) 1,38 (1,22;1,57) 1,61 (1,33;1,94)
Insuficiência renal crônica 1,77 (1,56;2,00) 1,52 (1,31;1,77) 2,40 (1,81;2,77) 1,49 (1,15;1,93)
Número de doenças crônicas entre as 13 estudadas
0 1,00 1,00 1,00 -
1 ou 2 2,37 (2,22;2,54) 2,18 (2,00;2,38) 2,48 (2,22;2,77)
3 ou mais 4,73 (4,37;5,11) 3,99 (3,62;4,41) 5,07 (4,44;5,77) 1,26 (1,09;1,46)

a) DCNTs: Doenças crônicas não transmissíveis; b) AVC: Acidente vascular cerebral; c) DPOC: Doença pulmonar obstrutiva crônica; d) DORT: Distúrbio osteomuscular relacionado ao trabalho; e) TOC: Transtorno obsessivo compulsivo; f) Razão de prevalências com ajustes por idade; g) IC95%: Intervalo de confiança de 95%; h) Modelo de regressão com termos de interação ajustado por DCNT específica (ou número de comorbidades), faixa de idade e sexo (categoria de referência: sexo feminino).

As análises revelaram interações significativas do sexo com a presença de diabetes, doenças pulmonares, depressão, outras doenças mentais e insuficiência renal crônica, na associação com problemas no sono autorrelatados, sugerindo que há uma interação entre o sexo e essas DCNTs para o aumento da prevalência de problemas no sono autorreferidos (Tabela 3).

Discussão

Os principais resultados deste estudo foram as fortes associações encontradas do autorrelato de problemas no sono com todas as doenças estudadas e com o número de morbidades. A prevalência destes problemas foi cerca de duas vezes mais elevada nos indivíduos que declararam diagnóstico de uma ou duas doenças, e foi aproximadamente quatro vezes superior naqueles com três morbidades ou mais, em relação aos que relataram não apresentar as morbidades estudadas. A prevalência das DCNTs, em geral, foi mais elevada entre o sexo feminino e, embora as associações entre DCNTs e sono tenham ocorrido em ambos os sexos, as razões de prevalência foram mais expressivas entre o masculino.

Os resultados encontrados quanto à associação entre a pior qualidade do sono e DCNTs assemelham-se aos já descritos.2,6 Possíveis explicações biológicas para as associações dos problemas vasculares com a pior qualidade do sono são as alterações nos níveis de leptina e grelina, facilitando a obesidade e a alteração hormonal, como o aumento do cortisol, resultantes de um sono inadequado ou ruim. A restrição do sono também pode aumentar a resposta ao estresse, alterando a pressão arterial e aumentando o risco cardiovascular.3 Segundo uma metanálise, a qualidade do sono deteriorada também se associa com aumento da hemoglobina glicada em pessoas com diabetes do tipo 1.5 O sono de boa qualidade parece se associar de maneira importante com o controle da glicemia em adultos com diabetes tipo 2, como destacado por Zhu et al. (2017).6 As evidências apontam a necessidade de maiores cuidados com o sono de indivíduos que apresentam estas morbidades.

As doenças respiratórias, sobretudo a DPOC, também foram associadas ao autorrelato de alterações do sono neste estudo, o que corrobora estudo prévio que apontou menor eficiência do sono em pessoas com DPOC, com fortes sintomas de insônia.7 Entre os fatores que possivelmente são responsáveis por isso estão a hipoxemia noturna, a presença de tosse e expectoração.8

No presente estudo, destaca-se também a associação do relato de pior qualidade do sono com os problemas de coluna e osteomusculares. Os problemas no sono têm sido associados às dores crônicas,11 particularmente àquelas derivadas das doenças musculoesqueléticas.12 Os processos inflamatórios consequentes da duração insuficiente ou da má qualidade do sono podem ser um fator desencadeante da dor crônica, mas as questões de dor e sono parecem funcionar como um círculo vicioso, no qual a privação do sono pode levar à dor e, da mesma maneira, a própria dor pode ocasionar um sono ruim.12 A diminuição das atividades físicas e funcionais, o incômodo da dor e posição para dormir seriam possíveis justificativas do impacto da dor na qualidade do sono. Ademais, as dores podem prejudicar a saúde emocional, levando à depressão ou ansiedade, as quais, indiretamente, prejudicam o sono.11

A relação das questões emocionais e mentais com os problemas no sono pode ser observada neste estudo e também em outras pesquisas.9,16,20 Uma metanálise conduzida com estudos prospectivos encontrou chance duas vezes maior de depressão na presença de insônia.10 Estudos desenvolvidos no Brasil durante a pandemia de COVID-19 têm reforçado esta expressiva associação.16 Nesta pesquisa, a depressão e outras doenças mentais se apresentaram mais fortemente associadas aos problemas no sono quando comparadas com outras doenças e agravos estudados, o que aponta necessidade de monitoramento do sono da população com depressão e outras doenças mentais.

Embora a relação do câncer com os problemas no sono possa se dar de maneiras diversas, devido à heterogeneidade dos tipos de neoplasias e, desse modo, dificultar o entendimento de causa e efeito, discute-se que os tumores interrompem a homeostase normal, sobrecarregando o organismo, particularmente a estrutura do sono.25 Soma-se isso às consequências da doença na saúde mental, o impacto do tratamento e os prejuízos no estilo de vida, que podem levar aos problemas no sono. Em consonância com a literatura, o presente estudo aponta associação do autorrelato dos problemas no sono com a doença renal crônica.26 Estudo conduzido com dados do National Health and Nutrition Examination Survey, nos Estados Unidos, encontrou maior prevalência de uso de medicamentos para dormir, síndrome das pernas inquietas e noctúria nos indivíduos com disfunções renais, comparando com aqueles que não tinham tal alteração.26

A ocorrência de apenas uma ou duas doenças se associou, com grande magnitude, com os problemas no sono, mas este estudo chama atenção para as multimorbidades, considerando que a presença de três morbidades ou mais aumentou mais de quatro vezes o relato de problemas no sono. No Inquérito de Saúde do Município de Campinas (ISACamp 2014/15), a prevalência do sono ruim foi 94% superior na população que relatou cinco ou mais morbidades.9 Com dados do European Health Examination Survey 2013-2015, em Luxemburgo, autores encontraram chance de duração insuficiente do sono seis vezes maior (OR = 6,79) com o relato de três ou mais doenças crônicas.27 Possíveis justificativas para a forte relação do sono ruim com a soma de morbidades são as alterações fisiológicas que ocorrem devido às morbidades associadas, a polifarmácia e o prejuízo na saúde mental. O estudo de Lima et al. (2021)16 mostrou que a saúde mental é responsável por 45% da associação entre multimorbidades e piora da qualidade do sono.

A prevalência do autorrelato da maior parte das doenças crônicas estudadas, e das multimorbidades, foi maior para o sexo feminino, corroborando evidências anteriores,17,18 assim como o relato dos problemas no sono também foi superior nesse grupo.8,9,16,20 A população feminina tende a ter maior prevalência de doenças, de queixas de saúde, de autoavaliação do estado de saúde ruim e de piores condições emocionais diagnosticadas e autorrelatadas.17,18 Estas diferenças podem ser devidas à maior percepção dos problemas de saúde, à maior procura do serviço de saúde e às experiências com cuidados de familiares por parte da população feminina em comparação à masculina.17 Por outro lado, os homens se sujeitam a piores comportamentos de saúde e são vítimas de maior mortalidade precoce.17 É plausível que uma cultura que aceita e favorece uma imagem de maior fragilidade das mulheres exija dos homens atitudes e comportamentos mais contidos em relação às queixas de dores, incômodos, angústias e saúde, o que os pode levar a subestimar os problemas no sono.

Há uma carência de pesquisas de base populacional sobre a relação entre DCNTs e sono, analisada segundo sexo, no Brasil. O presente estudo revelou interações significativas entre sexo e algumas das DCNTs estudadas. Segundo os resultados apresentados e após a realização de ajustes, embora pessoas do sexo feminino relatem piores condições de saúde e pior qualidade do sono, as associações entre esses fatores apresentaram maior magnitude na população masculina. Estes resultados não estão de acordo com aqueles obtidos por Lao et al. (2018).3 Entretanto, um estudo que utilizou o banco de dados nacional de atenção primária, com 1.275.461 adultos chineses, encontrou que a apneia obstrutiva do sono foi mais prevalente em homens com diabetes dos tipos 1 e 2 do que nas mulheres.19 Entre adolescentes noruegueses, a restrição do sono e a insônia se associaram fortemente à depressão, com maior magnitude entre os meninos. Embora os autores assumam que os mecanismos para estas diferenças sejam ainda desconhecidos, eles fazem uma breve discussão dos resultados à luz do paradoxo de gênero.20

Em relação às doenças respiratórias, dois estudos que avaliaram interações com sexo nos distúrbios do sono apresentaram resultados contraditórios. Estudo caso-controle com idosos mostrou associação entre distúrbios do sono com DPOC em homens, mas nas mulheres as diferenças não foram significativas.21 Na Noruega, uma associação entre as doenças respiratórias e a apneia obstrutiva do sono foi observada apenas nas mulheres.22

Nesta pesquisa, não foi analisada a presença de uma doença crônica isolada; desta forma, é possível que uma doença específica esteja acompanhada de outras morbidades, visto que 12,9% da população analisada referiu ter três morbidades ou mais. No entanto, as doenças tendem a ser acumuladas em padrões28 e os resultados podem, em parte, traduzir os efeitos do padrão relacionado à doença em questão.

Algumas limitações deste estudo devem ser consideradas. Os problemas no sono foram autorrelatados, no entanto, estudo conduzido com amostra de 1.998 indivíduos apontou que a autoavaliação do sono é fortemente associada com queixas de sono.9 Embora haja instrumentos específicos e validados para avaliar a qualidade do sono, outros estudos também têm utilizado questões únicas de autoavaliação.29 As informações sobre as DNCTs foram autorreferidas, embora a pergunta tenha questionado sobre o diagnóstico médico da morbidade. Estes relatos podem introduzir vieses de memória e informação, podendo subestimar as estimativas encontradas. Também vale considerar o corte transversal do estudo, que não permite avaliar causa e efeito; desse modo, é possível que as doenças crônicas estejam impactando o sono da população ou, de maneira reversa, os problemas no sono estejam levando à ocorrência destas doenças.

O presente estudo cobre uma lacuna por avaliar a associação do autorrelato dos problemas no sono com um conjunto de morbidades crônicas e multimorbidades, analisando o papel modificador do sexo nestas associações. A análise foi conduzida com uma amostra ampla, que permitiu avaliar inclusive eventos mais raros, de difícil acesso em base populacional. Por outro lado, é certo que grandes tamanhos de amostra tendem a encontrar diferenças significativas nos testes estatísticos, mesmo quando as associações são fracas. Os resultados aqui apresentados devem, portanto, ser examinados à luz desta limitação.

O sono de pessoas com doenças crônicas, sobretudo daquelas que apresentam multimorbidades, é motivo de atenção. Um importante achado foi a interação entre sexo e DCNTs no aumento da prevalência dos problemas no sono, mostrando que as associações foram significativamente mais expressivas na população masculina. Desse modo, alerta-se para os cuidados de saúde dessa população, bem como para a necessidade de promoção de medidas preventivas focadas na saúde masculina e de manutenção da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem,30 considerando as especificidades da saúde desse grupo.

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Financiamento Este estudo foi financiado pela Secretaria de Vigilância em Saúde, Ministério da Saúde, TED 147/2018.

Recebido: 20 de Abril de 2021; Aceito: 25 de Outubro de 2021

Correspondência Margareth Guimarães Lima. mglima@unicamp.br

Editora associado

Bárbara Reis-Santos

Contribuição das autoras

Lima MG e Barros MBA contribuíram com a concepção e delineamento do estudo, análise e interpretação dos dados, e redigiram a primeira versão do manuscrito. Malta DC, Medina LPB e Szwarcwald CL contribuíram na interpretação dos dados, na redação do trabalho e em sua revisão crítica. Todos os autores aprovaram a versão final do manuscrito.

Conflitos de interesse

As autoras declararam não haver conflitos de interesse.

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