Contribuições do estudo
Principais resultados
Identificou-se aumento da prevalência do consumo abusivo de bebidas alcoólicas na população brasileira, de 13,1%, em 2013, para 17,1%, em 2019, além de diferenças segundo características sociodemográficas.
Introdução
O álcool é uma substância psicoativa, de uso lícito, tratado com grande aceitação no meio social, porém seu consumo contribui para danos entre indivíduos, na comunidade e para o sistema de saúde.1 Seu uso é um importante fator de risco para o desenvolvimento de doenças e mortalidade em todo o mundo.1,2
A Organização Mundial da Saúde (OMS) calculou que mais de 40% da população com 15 anos ou mais de idade, em todo o mundo, era consumidora de bebidas alcoólicas em 2016, o que correspondia a mais de 2 bilhões de pessoas.1 O volume e os padrões de ingestão de bebidas alcoólicas, que variam segundo sexo, faixa etária, status socioeconômico e efetividade das políticas públicas, impactam no consumo das populações e nas consequências para a saúde.1-3
Avançar no conhecimento sobre o impacto prejudicial do uso do álcool para a saúde dos indivíduos e populações torna-se imperativo, haja vista as evidências de associação da substância com a mortalidade e a ocorrência de uma ampla variedade de doenças crônicas (cânceres, doenças cardiovasculares, doenças do fígado), algumas doenças transmissíveis (HIV, tuberculose e pneumonia), assim como acidentes e violências.1-3 O consumo de álcool foi relacionado como causa associada a mais de 200 doenças e agravos e causa necessária de 40, conforme a Classificação Internacional de Doenças.1
Os conceitos de consumo abusivo de álcool (binge drinking) e uso pesado episódico de álcool (heavy episodic drinking) foram criados a partir de evidências de que, acima de determinada quantidade, o indivíduo tem maior risco de apresentar adversidades relacionadas a sua ingestão.1 Contudo, a definição de consumo excessivo, a delimitação de porção de uma bebida padrão e o teor alcoólico variam amplamente entre os países e mesmo dentro deles.
De 2013 a 2019, somente no Brasil, o álcool se manteve como o sétimo fator de risco mais relevante para mortalidade, e o sexto mais importante para os anos de vida perdidos ajustados por incapacidade (Disability Adjusted Life Years - DALY), sendo responsável por 5,5% (77 mil) de todas as mortes e 5,7% do total de DALYs (3,16 milhões).4 Considerando os danos atribuídos ao uso abusivo do álcool, o Brasil lançou, em 2011, o Plano de Ações Estratégicas para o Enfrentamento das Doenças Crônicas Não Transmissíveis no Brasil (2011-2022).5 Entre outras metas, esse Plano preconiza a redução da ingestão abusiva de bebidas alcoólicas em 10% até 2022,5 assim definida como sendo o consumo igual ou maior do que cinco doses em uma única ocasião para homens, e igual ou maior do que quatro para mulheres.
O consumo de bebida alcoólica também envolve um gasto considerável, não apenas para os consumidores, mas para toda a sociedade.6 De acordo com uma revisão sistemática, a carga econômica do álcool para a sociedade é substancial, contabilizando de 0,45% a 5,44% do produto interno bruto.6 Para reduzir a carga causada pelo uso prejudicial do álcool e oferecer vantagens para a redução dos riscos de populações vulneráveis, a OMS identificou ações que incluem: aumentar impostos sobre as bebidas alcoólicas; impor restrições à sua exposição, publicidade e disponibilidade física nos ambientes; além de medidas de fiscalização sobre beber e dirigir.1 Nessa perspectiva, a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) lançou em 2019, no Brasil, a iniciativa Safer, que tem por objetivo impulsionar ações em âmbitos nacional e local para refrear o consumo de álcool, centradas em intervenções distribuídas em cinco áreas estratégicas, apoiadas sobre o seu custo-benefício e, consequentemente, no seu impacto na saúde pública.7
As evidências disponíveis são suficientes para colocar o tema como pauta prioritária de políticas públicas que visem à elaboração de intervenções regulatórias para diminuir a ingestão deste produto. Dessa forma, o monitoramento do consumo de álcool, especialmente por inquéritos e pesquisas populacionais, pode indicar a magnitude do problema e contribuir para a adoção de medidas que colaborem no enfrentamento. Assim, o objetivo deste estudo foi descrever a prevalência do consumo abusivo de bebidas alcoólicas na população adulta brasileira, segundo características sociodemográficas, em 2013 e 2019.
Métodos
Trata-se de estudo transversal descritivo baseado nos dados obtidos através da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) conduzida em 2013 e 2019. A PNS é um inquérito de saúde de base populacional, que coleta dados representativos da população domiciliar brasileira, objetivando fornecer informações sobre os fatores condicionantes, determinantes e de necessidades em saúde, sendo fundamental para o direcionamento de ações e para a elaboração de estratégias e políticas públicas para a saúde.8
A amostragem da pesquisa foi realizada em três estágios por conglomerados. Inicialmente foi realizada a estratificação das unidades primárias (setores censitários ou conjuntos de setores), seguida de amostragem aleatória simples de domicílios presentes no Cadastro Nacional de Endereços para Fins Estatísticos. Finalmente, para a realização da entrevista selecionou-se, de forma aleatória, um morador de ≥ 18 anos de idade (2013) e com 15 ou mais anos (2019). 8 A coleta das entrevistas foi realizada entre agosto de 2013 e fevereiro de 2014 (PNS 2013), e entre agosto de 2019 e março de 2020 (PNS 2019), utilizando dispositivos móveis de coleta. Maior detalhamento sobre as informações da PNS pode ser encontrado em publicação específica.8
Para o presente estudo, com o propósito de manter a comparabilidade dos dados, foram incluídos apenas os indivíduos com idade de ≥ 18 anos. Foram utilizados dados públicos disponibilizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) (https://bit.ly/3ySZ9cG, acessado em novembro de 2020), sem identificação dos participantes.
Para a amostra de 2013, a prevalência de consumo abusivo de bebidas alcoólicas foi calculada considerando-se como numerador o número de participantes do sexo masculino, que referiram a ingestão, em uma única ocasião, nos últimos 30 dias anteriores a data da entrevista, de cinco ou mais doses de bebida alcoólica e, do sexo feminino, de quatro ou mais doses. O conteúdo de uma dose de bebida alcoólica equivalia a cerca de 12g de álcool puro, ou seja, cerca de 60g para homens e de 48g para mulheres. De forma diferente, para 2019, considerou-se como consumo abusivo a ingestão de cinco ou mais doses de bebida alcoólica para homens e mulheres, em consonância com as recomendações da OMS que caracteriza o consumo abusivo de álcool, em ambos os sexos, pelo consumo de cerca de 60g de álcool em uma única ocasião no período de 30 dias.1 Para tanto, utilizou-se a questão: Nos últimos 30 dias, o(a) Sr.(a) chegou a consumir cinco ou mais doses de bebidas alcoólicas em uma única ocasião? Definiu-se uma dose de bebida como o equivalente a uma dose de cachaça, uma taça de vinho, uma lata de cerveja, uma dose de uísque ou qualquer outra bebida alcoólica destilada. Dessa forma, validou-se como consumo abusivo de álcool cada caso em que os indivíduos responderam positivamente a esta questão, independentemente do número de vezes da ocorrência. Para as estimativas das prevalências, utilizou-se como denominador o total de indivíduos com idade ≥ 18 anos entrevistados em cada ano.
As prevalências e seus intervalos de confiança de 95% (IC95%) foram estimados para a população adulta brasileira, em 2013 e 2019, estratificados segundo: sexo (masculino; feminino), faixa etária (18 a 24 anos, 25 a 39 anos, 40 a 59 anos; ≥ 60 anos), nível de escolaridade (sem instrução e fundamental incompleto; fundamental completo e médio incompleto; médio completo e superior incompleto; superior completo), raça/cor da pele (branca; preta; parda; amarela; indígena), região (Norte; Nordeste; Sudeste; Sul; Centro-Oeste) e situação do domicílio (urbana, rural). Para as Unidades da Federação (UFs), prevalências e IC95% foram calculados segundo sexo e faixa etária.
As variáveis selecionadas estão descritas de acordo com as prevalências e IC95%, considerando-se a diferença na comparação das categorias a não sobreposição dos intervalos. Todas as análises foram conduzidas utilizando-se o software Stata, versão 14.2, nas funções do módulo survey, para gerar estimativas ponderadas para a população adulta do país.
Cabe informar que a PNS foi aprovada pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa do Conselho Nacional de Saúde, de acordo com o Parecer nº 3.529.376, emitido em 23 de agosto de 2019. O termo de consentimento livre e esclarecido foi obtido no momento da entrevista e assinado diretamente no dispositivo de coleta.
Resultados
A PNS de 2013, coletou entrevistas de 60.202 pessoas com idade ≥ 18 anos, correspondendo a 48,3% do sexo masculino e 51,7% do feminino. Na PNS de 2019, foram 88.531 pessoas entrevistadas da mesma idade, sendo 46,8% do sexo masculino e 53,2% do feminino.
A prevalência do consumo abusivo de álcool nos 30 dias anteriores à entrevista, em 2019, foi 17,1% (IC95% 16,6;17,5), apresentando-se superior aos resultados obtidos em 2013, de 13,7% (IC95% 13,1;14,2).
Comparando-se os dados de 2013 e 2019, as prevalências foram superiores em todas as categorias das variáveis sociodemográficas estudadas em 2019. Maiores proporções foram verificadas entre o sexo masculino, sendo em 2013 de 21,6% (IC95% 20,7;22,5), e de 26% (IC95% 25,2;26,8) em 2019. Entre o sexo feminino, passou de 6,6% (IC95% 6,1;7,1) em 2013 para 9,2% (IC95% 8,7;9,7) em 2019. Na análise das faixas etárias, as maiores prevalências foram verificadas entre os adultos de 18 a 24 anos (17,2%; IC95% 15,7;18,8 em 2013, e 22,9%; IC95% 21,3;24,5 em 2019), e de 25 a 39 anos (18,9%; IC95% 17,9;19,8 em 2013, e 23,7%; IC95% 22,7;24,7 em 2019), conforme consta da Tabela 1.
Variáveis | % (IC95%a) | |
---|---|---|
PNS 2013 | PNS 2019 | |
Total | 13,7 (13,1;14,2) | 17,1 (16,6;17,5) |
Sexo | ||
Masculino | 21,6 (20,7;22,5) | 26,0 (25,2;26,8) |
Feminino | 6,6 (6,1;7,1) | 9,2 (8,7;9,7) |
Faixa etária (anos) | ||
18 a 24 | 17,2 (15,7;18,8) | 22,9 (21,3;24,5) |
25 a 39 | 18,9 (17,9;19,8) | 23,7 (22,7;24,7) |
40 a 59 | 12,1 (11,4;12,8) | 16,2 (15,4;17,0) |
≥ 60 | 4,2 (3,6;4,8) | 5,8 (5,3;6,2) |
Escolaridade | ||
Sem instrução e fundamental incompleto | 11,1 (10,5;11,8) | 12,7 (12,0;13,4) |
Fundamental completo e médio incompleto | 15,8 (14,4;17,2) | 20,6 (19,2;21,9) |
Médio completo e superior incompleto | 15,4 (14,4;16,3) | 19,2 (18,4;20,1) |
Superior completo | 14,3 (12,8;15,8) | 18,7 (17,5;19,9) |
Raça/cor da pele | ||
Branca | 12,4 (11,7;13,2) | 16,0 (15,3;16,8) |
Preta | 16,6 (14,9;18,4) | 19,6 (18,3;20,8) |
Parda | 11,2 (7,6;14,8) | 17,5 (16,8;18,2) |
Amarela | 14,4 (13,7;15,1) | 12,7 (9,4;17,1) |
Indígena | 12,6 (7,7;17,5) | 15,5 (11,4;20,7) |
Região | ||
Norte | 14,2 (12,9;15,4) | 16,7 (15,8;17,7) |
Nordeste | 15,6 (14,8;16,4) | 17,3 (16,6;18,0) |
Sudeste | 12,8 (11,9;13,7) | 17,4 (16,5;18,2) |
Sul | 11,1 (10,0;12,2) | 14,7 (13,8;15,6) |
Centro-Oeste | 16,2 (15,0;17,3) | 19,6 (18,4;20,7) |
Situação do domicílio | ||
Urbana | 14,2 (13,6;14,8) | 17,6 (17,1;18,1) |
Rural | 10,3 (9,2;11,3) | 13,6 (12,7;14,5) |
a) IC95%: Intervalo de confiança de 95%.
Em relação à escolaridade, observaram-se menores prevalências entre pessoas sem instrução ou com ensino fundamental incompleto: de 11,1% (IC95% 10,5;11,8) em 2013, e 12,7% (IC95% 12,0;13,4) em 2019. Quanto à raça/cor da pele, maiores prevalências de consumo abusivo foram encontradas entre pessoas que referiram raça/cor da pele preta (16,6%; IC95% 14,9;18,4 em 2013, e 19,6%; IC95% 18,3;20,8 para 2019) em comparação àqueles que referiram raça/cor da pele branca (12,4%; IC95% 11,7;13,2 em 2013, e 16,0%; IC95% 15,3;16,8 em 2019) (Tabela 1).
Em 2019, as regiões Centro-Oeste (19,6%; IC95% 18,4;20,7) e Sudeste (17,4%; IC95% 16,5;18,2) apresentaram as maiores prevalências, ao passo que a região Sul (14,7%; IC95% 13,8;15,6) aparece com a menor, mantendo-se o mesmo ordenamento em 2013. Adultos residentes em áreas urbanas referiram maior consumo abusivo de álcool (14,2%; IC95% 13,6;14,8 em 2013, e 17,6%; IC95% 17,1;18,1 em 2019), em comparação aos residentes em áreas rurais (Tabela 1).
O aumento nas prevalências de consumo abusivo de álcool também foi verificado na maioria das UFs (Figura 1). Destacamos aquelas com maiores prevalências em 2013: Bahia (18,9%; IC95% 16,8;20,9), Mato Grosso do Sul (18,4%; IC95% 16,1;20,6) e Amapá (17,6%; IC95% 14,6;20,6). Em 2019, as UFs com maiores prevalências foram: Sergipe (23,7%; IC95% 21,6;25,8), Mato Grosso do Sul (21,7%; IC95% 19,7;23,6) e Mato Grosso (21,5%; IC95% 19,0;24,0).
Em 2013, as maiores prevalências entre o sexo masculino foram observadas na Bahia (29,4%; IC95% 25,6;33,2), no Rio Grande do Norte (28,7%; IC95% 24,7;32,7) e no Piauí (28,5%; IC95% 24,5;32,5); enquanto em 2019, estados como Sergipe (35,8%; IC95% 32,3;39,3), Rio Grande do Norte (32,8%; IC95% 28,9;36,7) e Mato Grosso do Sul (32,7%; IC95% 28,6;36,8) apresentaram indicadores superiores a 30%. Quanto ao sexo feminino, em 2013, as maiores prevalências ocorreram em Goiás (10,9%; IC95% 8,6;13,1), no Amapá (10,2%; IC95% 6,8;13,5) e em Mato Grosso do Sul (9,9%; IC95% 7,7;12,1); em 2019, na Bahia (13,0%; IC95% 11,0;15,0), em Sergipe (13,0%; IC95% 10,8;15,1) e em Mato Grosso do Sul (12,2%; IC95% 10,0;14,4), conforme a Figura 2.
Quando estratificadas por UFs e faixa etária, em 2019, as maiores prevalências foram observadas na faixa entre 18 e 24 anos, principalmente na Bahia (32,7%; IC95% 25,0;40,4), em Tocantins (30,3%; IC95% 21,7;38,9) e no Rio Grande do Sul (28,6%; IC95% 22,3;35,0). Para aqueles entre 25 e 39 anos, Sergipe (32,9%; IC95% 29,3;36,6), Mato Grosso (31,1%; IC95% 26,4;35,9) e Mato Grosso do Sul (29,3%; IC95% 26,0;32,7); entre 40 e 59 anos, Sergipe (22,0%; IC95% 19,0;25,0), Mato Grosso do Sul (20,5%; IC95% 17,9;23,1) e Tocantins (19,3%; IC95% 15,5;23,1); com ≥ 60 anos, Amapá (9,0%; IC95% 4,1;14,0), Rio Grande do Norte (8,8%; IC95% 6,3;11,3) e Mato Grosso do Sul (8,5%; IC95% 6,0;10,9) (Figura 3A; Figura 3B).
Discussão
Em 2019, a prevalência de consumo abusivo de bebidas alcoólicas na população adulta brasileira foi superior à de 2013, para todo o país e na maioria das UFs. O aumento da prevalência foi verificado também nas categorias das características sociodemográficas estudadas. Nos dois anos de pesquisa, verificaram-se maiores prevalências entre o sexo masculino, adultos jovens, pessoas que residiam em áreas urbanas e nas regiões Centro-Oeste e Sudeste e de raça/cor da pele preta. Indivíduos sem instrução ou com ensino fundamental incompleto apresentaram prevalências mais baixas em comparação aos outros grupos de escolaridade.
O presente estudo revelou achados consistentes com publicações prévias que mostraram que indivíduos do sexo masculino apresentam maior consumo abusivo de bebida alcoólica do que do feminino.9,10 Contudo, apesar do sexo masculino ter se mantido em 2019 com maior prevalência, observou-se maior aumento no período entre o sexo feminino, cerca de 39%. Vale ressaltar que, em 2013, foi considerado como consumo abusivo para o sexo feminino a ingestão de 4 ou mais doses de bebidas alcoólicas e em 2019 esse valor passou para 5 ou mais doses. Sendo assim, mesmo com a necessidade de maior consumo para a classificação como abusivo, houve aumento na prevalência no período para o sexo feminino.
Análises da evolução temporal do consumo abusivo de bebidas alcoólicas entre adultos residentes nas capitais brasileiras indicaram, de 2006 a 2013, tendência estacionária de consumo para toda a população e para ambos os sexos.11 Entretanto, entre 2006 e 2019, observou-se um aumento tanto para a população total quanto para o sexo feminino, sem que esse movimento ocorresse para o masculino.12
Estudo qualitativo conduzido por Rodríguez, Moreno e Gómez (2019),13 relacionando gênero e consumo de bebida alcoólica, sugeriu que a inclusão do consumo de bebidas alcoólicas à rotina das mulheres, nas últimas décadas, esteve ligado à incorporação delas em espaços de lazer e práticas tradicionalmente consideradas masculinas. Além disso, nos últimos anos, as mulheres têm experimentado maior exposição ao marketing do álcool, com ampla divulgação de produtos como bebidas mais doces, efervescentes e voltadas especificamente para o público feminino.14
Aferir a existência de uma maior prevalência de ingestão abusiva de bebida alcoólica, entre grupos etários mais jovens, também é coerente com outros estudos nacionais e internacionais.9,12,15 De acordo com os dados do National Epidemiologic Survey on Alcohol and Related Conditions, realizada na população adulta americana em 2001-2002, mais de três quartos dos jovens adultos com idades entre 21 e 24 anos eram consumidores de álcool, assim como quase dois terços daqueles com idades entre 18 e 20 anos.15 Pesquisas de natureza qualitativa têm tentado entender o significado do abuso de álcool entre jovens, e diversas delas sugerem que o comportamento está conectado à ideia de que o consumo abusivo é característica e normativa deste estágio de vida, intimamente relacionada à aquisição de maturidade.16,17 Ademais, soma-se a isso a existência de intensas estratégias de marketing voltadas para esse público, destacando-se a livre propaganda de cerveja e o acesso facilitado ao álcool em bares, festas e comércio, justificada pela alta aceitação social no Brasil.18
Por outra parte, o crescimento expressivo desse consumo entre indivíduos com idade mais avançada também está em consonância com estudos nacionais9,12 e internacionais.14 Entre as razões para esse achado, aponta-se o uso de álcool relacionado ao baixo envolvimento social, adoecimento, luto, mudanças de rotinas e problemas de ordem econômica.19
Tanto em 2013 quanto em 2019, o consumo abusivo de bebidas alcoólicas foi maior nas faixas de menor escolaridade. Foi observado aumento da prevalência em todas as categorias analisadas, ainda que desigual entre elas: o maior incremento ocorreu na população que referiu ensino superior completo, com um aumento de 30,8%; já a menor prevalência foi observada entre aqueles sem instrução ou com ensino fundamental incompleto. Tal constatação pode ser explicada pelo menor acesso à bebida alcoólica decorrente do menor poder aquisitivo dessa faixa de escolaridade.20
Para as demais faixas, foi verificado que o consumo abusivo de bebida alcoólica guardou relação inversamente proporcional à escolaridade, ou seja, quanto mais anos de estudo, menor a prevalência de consumo abusivo. Os dados da PNS 2019 apresentaram, ainda, que a prevalência de consumo de bebida alcoólica, uma ou mais vezes por semana, é diretamente proporcional à escolaridade, isto é, quanto mais anos de estudo, maior o consumo.21 Embora possa parecer paradoxal, tais constatações se explicam pelo risco aumentado de abuso e/ou dependência de álcool entre populações de menor nível socioeconômico.22,23
Assim, embora o consumo de bebida alcoólica seja menos frequente entre as populações de menor nível socioeconômico, estas são mais propensas a serem afetadas negativamente pelo álcool, levando a desfechos como o consumo abusivo, a dependência, a ocorrência de doenças causadas pelo álcool e a morte.22 Neste sentido, o aumento da prevalência, tanto do consumo habitual quanto do consumo abusivo, entre 2013 e 2019, e a observação de que o maior crescimento ocorreu entre a população com ensino médio completo ou superior incompleto, podem ser explicados pelo efeito da crise econômica mundial, que afetou a população brasileira, mas de forma desigual entre os diferentes níveis socioeconômicos.24
Um estudo que analisou os dados da PNS 2013 identificou que indivíduos que referiram raça/cor de pele preta e parda estiveram associados ao maior comportamento de uso pesado episódico de álcool em ambos os sexos.9 Estudos sobre populações específicas - idosos, trabalhadores rurais e trabalhadores urbanos - apresentam resultados diversificados nesse aspecto, com maiores frequências de uso episódico excessivo entre brancos e pardos.25-27 A inconsistência desses resultados pode ser atribuída a diferenças nos métodos e medidas para avaliação do uso nocivo de álcool, mas também às dificuldades de empregar raça/cor da pele autorreferida como descrição étnico-racial no Brasil, dado seu impacto sobre as condições de saúde, em especial, sobre o uso de álcool e outras drogas.26,27
O padrão observado em 2019, com maior consumo abusivo de álcool nas regiões Centro-Oeste e Sudeste, difere dos resultados encontrados pela Vigitel 2019, que apontou Salvador, Distrito Federal e Palmas como as capitais com maior prevalência.5 Já o estudo de Marques et al. (2019)28 identificou “bolsões” de altas taxas de mortalidade por causas atribuíveis ao consumo de álcool em certos municípios das regiões Nordeste, Sudeste e Centro-Oeste. Outro estudo verificou que, entre 2010 e 2012, as maiores taxas de mortalidade por causas plenamente atribuídas ao uso de álcool ocorreram nas regiões Nordeste e Centro-Oeste.29
Uma vez que o consumo em cada localidade pode ser influenciado por condicionantes regionais e culturais,1,3,29 padrões consistentes podem não ser observados. Ainda assim, o aumento verificado para a maioria das UFs, para ambos os sexos e categorias de idade estudadas, reforça a relevância do problema do consumo abusivo de álcool na população brasileira. Estudos analisando a evolução desse consumo destacaram a tendência desigual por localidade e estratos populacionais, principalmente pelo aumento do consumo em grupos que antes apresentavam menores prevalências. 12
Quanto às limitações do estudo, destaca-se que a determinação do consumo abusivo de álcool baseada na condição referida pelo entrevistado, sem aferição da quantidade de álcool ingerida, além das variações quanto ao teor alcoólico de cada bebida, pode gerar imprecisões nas estimativas. Entretanto, essas informações autorreferidas são amplamente utilizadas em inquéritos de saúde, mostrando-se como indicador útil, de abordagem confiável e válida, para o monitoramento desse fator de risco na população. A mudança nos valores para mensuração do indicador entre o sexo feminino - passando de quatro ou mais doses em 2013, para cinco ou mais doses em 2019 - também constitui uma importante limitação do estudo, por dificultar a comparabilidade entre as informações obtidas. Ademais, ainda que essa diferença, possivelmente, tenha reduzido aquelas classificadas para o desfecho, verificou-se que esse comportamento se mostrou crescente para o grupo.
A despeito dessas limitações, destaca-se que a precisão das estimativas apresentadas no estudo considera a amostragem realizada pela PNS, que bem representa a população total adulta do país, das grandes regiões, das UFs, das capitais brasileiras e do Distrito Federal.
A elevada e crescente prevalência do consumo abusivo de bebidas alcoólicas no Brasil, confirmada no presente estudo, evidencia a necessidade de incentivo a políticas públicas e ações de enfrentamento a esse importante fator de risco para a carga de doenças e mortalidade, com cenário alarmante no contexto nacional. No âmbito do setor saúde, é importante o fortalecimento da perspectiva de saúde integral, com o fortalecimento de ações que vão desde a promoção da saúde ao aprimoramento da rede de atenção, tanto por meio da qualificação do rastreio e diagnóstico do consumo abusivo, como da oferta adequada à reabilitação psicossocial. Além disso, os indicativos na ampla literatura sobre a temática corroboram que ações intersetoriais, envolvendo órgãos de saúde e de regulação, podem produzir resultados eficazes. Dessa forma, consideramos que a iniciativa Safer poderá auxiliar os tomadores de decisão na adoção de estratégias, protegendo a saúde pública frente a interesses externos.
Neste sentido, e à luz dos resultados do presente estudo, recomenda-se, principalmente, reforço às estratégias que visem à redução da disponibilidade de bebidas alcoólicas por meio de restrições em locais e horários de vendas, a regulação da propaganda nos meios de comunicação social e a adoção de políticas regulatórias fiscais, evidentemente aliadas ao reforço às demais estratégias vigentes.