INTRODUÇÃO
O uso de plantas medicinais é uma prática antiga da humanidade1 e, ainda hoje, para muitos grupos étnicos e comunidades, simboliza a única forma de tratamento e cura de doenças2.
O uso de vegetais medicinais é disseminado predominantemente de maneira informal por meio da medicina popular, que é fundamentada em um corpo de conhecimento transmitido pelas famílias e vizinhos de maneira prática, oral e gestual, não se comunicando com a instituição médica, e em que os mais novos aprendem com os mais velhos uma função que, no futuro, será um de seus afazeres e uma das suas necessidades3.
Junto aos estudos etnobotânicos, técnicas quantitativas têm sido utilizadas para dar suporte ao pesquisador quanto à escolha de espécies botânicas com potencial de atividade farmacológica. Estas técnicas também se justificam pela conservação do conhecimento popular e das espécies avaliadas, sendo que quanto maior o uso da planta e/ou famílias, maior será a sua importância para a população dos informantes4.
Dentro deste contexto, o presente estudo teve como objetivos caracterizar o perfil dos comerciantes de plantas medicinais quanto às partes utilizadas, formas de preparo e modos de obtenção das plantas, bem como conhecer as etnoespécies com maiores concordâncias de citações de uso nos principais pontos de venda de plantas medicinais no Município de São Luís, Estado do Maranhão, Brasil.
MATERIAIS E MÉTODOS
CARACTERIZAÇÃO DA ÁREA DE ESTUDO
O trabalho de campo foi realizado no ano de 2007, no Município de São Luís, Estado do Maranhão, sendo os locais de estudo o Mercado Central, as feiras da Praia Grande, Cohab-Anil, de São Cristóvão e a feira do João Paulo.
PROCEDIMENTOS DE COLETA DE DADOS
Foram aplicados questionários do tipo semiestruturado5 em 21 feirantes que comercializam plantas medicinais nos cinco pontos de estudo.
Na primeira parte do questionário buscou-se a caracterização do perfil dos feirantes quanto à naturalidade, idade, gênero, escolaridade, aquisição do conhecimento e o grau de importância da comercialização na composição da renda.
A segunda parte consistiu na coleta de dados sobre o conhecimento e utilização das plantas medicinais, quanto às partes utilizadas, formas de preparo e modos de obtenção das plantas.
IDENTIFICAÇÃO BOTÂNICA DAS ESPÉCIES
Para identificação das plantas foram feitas consultas à literatura especializada, e os nomes científicos foram corroborados utilizando-se livros sobre plantas medicinais, periódicos, trabalhos monográficos e outros.
Os nomes dos autores das nominatas das espécies foram abreviados conforme obra de referência específica6.
VALOR DE CONSENSO DE USO DAS ESPÉCIES
A determinação da importância relativa das espécies comercializadas pelos feirantes e a concordância dos usos (CUP)5 foram obtidas de acordo com a fórmula 1:
O resultado encontrado é multiplicado por um fator de correção (FC) correspondente ao número de informantes que mencionaram cada espécie, dividido pelo número de informantes que citaram a espécie mais apontada, como observado na fórmula 2:
A CUP corrigida (CUPs) é calculada da seguinte forma: CUP x FC.
Para efeito deste estudo, somente foram consideradas as plantas citadas por no mínimo quatro informantes (19,04%) e que apresentaram as maiores CUPs.
RESULTADOS
PERFIL DOS FEIRANTES
Quanto à naturalidade dos 21 feirantes (Tabela 1), a maioria (85,6%) é nativa do Estado do Maranhão, e de acordo com a classificação das regiões fisiográficas do Estado, descrita em 1991 pela Secretaria de Estado do Meio Ambiente e Turismo (SEMATUR), por meio da publicação intitulada, "Diagnóstico dos principais problemas ambientais do Estado do Maranhão", ficou distribuído o quantitativo dos feirantes do seguinte modo: 43% nasceram na região do Litoral do Estado, predominantemente no Município de São Luís (23,8%); seguida pelas regiões da Baixada (19,2%); dos Cerrados (18,6%); e dos Cocais (4,8%). A minoria dos entrevistados é proveniente de outros estados, sendo eles o Pará (9,6%) e o Ceará (4,8%).
Observou-se, quanto à distribuição dos feirantes por faixa etária (Tabela 2), que 75% têm idades variando entre 30 e 69 anos; a maioria é constituída por homens (67%), com idades entre 23 e 82 anos. O percentual de mulheres entrevistadas foi de 33%, com idades variando entre 31 e 69 anos.
Quanto à escolaridade, constatou-se que a maioria não concluiu o ensino fundamental (33%) e 14% são analfabetos (Tabela 3).
Em relação à importância dada à venda de plantas medicinais na composição da renda familiar, quase metade (48%) dos feirantes vê na atividade a fonte de renda mais importante (Figura 1A).
Quanto às formas de aquisição de conhecimentos sobre plantas medicinais (Tabela 3), observou-se que o conhecimento sobre as plantas foi adquirido predominantemente dos feirantes mais experientes.
PARTES USADAS, FORMAS DE PREPARO E MODOS DE OBTENÇÃO DAS PLANTAS
Levando em conta as partes vegetais usadas pelos feirantes (Figura 1B), a folha é a parte do vegetal mais utilizada (37%), seguindo-se da casca, com 23% das citações de uso.
Para as formas de preparo (Figura 2A), observa-se que o principal modo foi o chá (58%), seguido de banho (12%).
Quanto às formas de obtenção das plantas medicinais (Figura 2B), observou-se que a maioria dos feirantes adquiriu plantas de terceiros (76%) e apenas 24% informaram cultivar ou coletar as plantas comercializadas.
VALOR DE CONSENSO DE USO DAS ESPÉCIES
Acerca do consenso entre os feirantes sobre a utilização e formas de preparo das plantas medicinais (Tabela 4), foram levantadas 138 etnoespécies em 400 citações. Mas observou-se que apenas duas das 33 etnoespécies mais citadas apresentaram porcentagem de concordância quanto aos usos principais - CUPs acima de 50%.
ICUE: número de informantes que citaram o uso da espécie; ICUP: número de informantes que citaram os usos principais; CUP: porcentagem de concordância quanto aos usos principais; FC: fator de correção; CUPs: CUP corrigida.
A utilização das plantas ocorreu da seguinte forma: como anti-inflamatório, com 21,2%; para gastrite e como calmante, com 9,1% cada; para diabetes, como antigripal, estimulante sexual, expectorante e para dores musculares, com 6,0% cada; para ferimentos, contra mau-olhado, para o tratamento de doenças hepáticas, como depurativo, vermífugo e laxante, para reumatismo, derrame, anemia e infecção intestinal, com 3% cada.
As plantas mais citadas foram: aroeira (Myracrodruon urundeuva Fr. All. - Anacardiaceae) citada por 17 feirantes e a copaíba (Copaifera langsdorffii Desf. - Fabaceae) citada por 13 feirantes. Entretanto, as plantas com maior número de usos terapêuticos relacionados foram alcachofra (Cynara scolymus L. - Asteraceae) e a canela (Cinnamomum zeylanicum Blume - Lauraceae).
O valor de CUPs é, geralmente, mais baixo que o valor de CUP, pois se refere à planta com maior quantidade de citações pelos feirantes. Notou-se que a aroeira foi a etnoespécie que apresentou a CUPs mais alta, com 64,7% de concordância quanto ao seu uso principal para inflamação, seguida da copaíba, com CUP igual a 58,4%, como anti-inflamatório. As demais etnoespécies apresentam o valor de CUPs bem abaixo de 40%, exceto a sucupira preta (Bowdichia virgilioides Kunth. - Fabaceae) com 46,5%, a janaúba (Himatanthus spp. - Apocynaceae) com 40,7% e a ameixa silvestre (Ximenia americanaL. - Olacaceae) com CUPs igual a 40,8%.
Notou-se, ainda, que algumas etnoespécies como a santa-quitéria (Bryophyllum calycinum Salisb. - Crassulaceae) e o ipê-roxo (Tabebuia sp. - Bignoniaceae) apresentaram CUP igual a 100% porém poucos feirantes citaram seus usos principais, que são para tratamento de gastrite e como anti-inflamatório, respectivamente, não obstante, todos os feirantes concordaram com os mesmos usos terapêuticos, nas formas de sumo das folhas e de chá, respectivamente. Porém estes valores diminuíram para menos de 30% na CUPs quando o fator de correção as comparou com a planta mais citada, neste caso, a aroeira, citada por 17 entrevistados.
Das 33 espécies que apresentaram pelo menos quatro feirantes citando-as, apenas 15,1% apresentaram a CUP inferior a 50%. A aroeira, etnoespécie mais citada, teve como uso principal o tratamento para a inflamação, possuindo uma CUP de 64,7%, demonstrando a porcentagem de entrevistados que concordaram com seu uso terapêutico. A copaíba, a segunda espécie mais citada, apresentou também uma CUP alta. De todos os informantes que a citaram, 76,9% concordaram com seu uso terapêutico anti-inflamatório. Essa espécie permanece com alto valor de CUPs (58,4%).
O jucá (Caesalpinia ferrea Mart - Fabaceae) foi indicado como estimulante sexual, sendo este seu uso principal e foi citado por uma porcentagem significativa de entrevistados; entretanto, apresentou uma CUP baixa (30%), o que significou um alto índice de discordância para esse fim terapêutico.
A CUP para a alcachofra, espécie que apresentou uma das maiores CUP (71,4%), diminuiu para apenas 29,2%, da mesma forma ocorreu com a santa-quitéria e o ipê roxo , que apresentaram os maiores valores de CUP (100%), porém com uma CUPs de apenas 23% e 29%, respectivamente.
DISCUSSÃO
Nos dias atuais, a utilização de plantas medicinais no Brasil está relacionada principalmente às dificuldades encontradas, sobretudo nas comunidades rurais, em acessar os serviços básicos de saúde e, por conseguinte, os medicamentos industrializados7. Esta situação aplica-se, portanto, ao resultado do atual estudo, em que a naturalidade dos entrevistados (Tabela 1) pode indicar que o conhecimento tradicional manteve-se em razão das respectivas regiões de origem serem pobres, onde o uso de plantas medicinais muitas vezes é a principal forma para o tratamento de doenças. Partindo desta perspectiva, de regiões compostas predominantemente por comunidades de baixa renda, aponta-se para a importância da existência dos raizeiros nestes locais8.
Em relação à faixa etária dos feirantes e sua relação com o conhecimento tradicional local, observou-se que a maioria deles (90%) (Tabela 2) encontrava-se distribuída entre 30 e 89 anos de idade.
A detenção do conhecimento tradicional por pessoas mais velhas se explicaria: (i) pelo fato do maior número de oportunidades que os mesmos tiveram para aprender sobre plantas medicinais e o seu uso terapêutico; (ii) por sua maior experiência e contato com estes recursos; e (iii) sua maior suscetibilidade às doenças, em comparação com as pessoas mais jovens, o que contribui para o contato com plantas medicinais nas regiões onde vivem9.
Como enfatizado anteriormente, o conhecimento a respeito de plantas medicinais é o resultado da relação das comunidades humanas com o seu ecossistema e o seu ambiente cultural em função do tempo. Nesse sentido, foi feito um estudo sobre a mudança cultural e a perda de conhecimento etnoecológico entre os zapotecas, no México10, o qual demonstrou que o desenvolvimento cultural e educacional têm transformado a relação do homem com a natureza, e que os programas formais de educação tendem a marginalizar o conhecimento botânico, provocando mudanças em atitudes culturais, estimulando, por exemplo, o estilo de vida urbano e o afastamento do indivíduo da natureza, gerando o seu desinteresse pelo ambiente natural e, também, reduzindo as oportunidades de conhecimento de sua flora local. Como consequência, muitas vezes o conhecimento etnobotânico acaba sendo preservado por pessoas de nível de formação educacional baixo, como foi o observado no atual estudo, onde a maioria dos feirantes (33%), detentores do conhecimento sobre plantas medicinais, não concluiu o ensino fundamental (Tabela 3). A afirmação deste estudo também corrobora pesquisa realizada com raizeiros nas feiras livres e mercados da cidade de Campina Grande, Estado da Paraíba11, na qual se constatou que o maior percentual dos conhecedores sobre plantas medicinais (55,8%), era constituído por analfabetos.
Em relação à importância econômica que a venda de plantas medicinais tem na composição da renda familiar dos feirantes, averiguou-se que a atividade proporciona melhora nas suas condições socioeconômicas (Figura 1A). Essa realidade também pode ser observada em outros países em desenvolvimento, como o Brasil. Estudos realizados em comunidades rurais do Paquistão12),(13 constataram que a maioria dos entrevistados comercializavam plantas medicinais como fonte de renda.
Quanto ao modo de aquisição de conhecimento sobre plantas, observou-se que nos pontos de venda de plantas medicinais estudados, o processo de transmissão de conhecimento utilizado pelos feirantes mais experientes (Tabela 3) seja baseado, principalmente, na confiança ou no conhecimento prévio do aprendiz. Isto pode estar relacionado à importância do processo sucessório neste tipo de comércio, uma vez que os feirantes mais maduros prezam pela manutenção da qualidade do seu conhecimento e a sua transmissão ao próximo. Os dados obtidos no presente estudo coincidem com o estudo sobre o perfil dos raizeiros no Município de Campina Grande, Paraíba11, onde 44,2% dos entrevistados disseram ter aprendido sobre plantas com feirantes mais experientes.
Pesquisas realizadas em feiras no Município de Arapiraca (Alagoas), no nordeste brasileiro, relacionaram um total de 107 plantas medicinais comercializadas. Não obstante, os autores da pesquisa atribuem os resultados obtidos à localização da região, com ocorrência de espécies de caatinga e mata atlântica, e a grande diversidade cultural é justificada pelas fortes influências africana e indígena14.
Embora, no Estado do Maranhão, circunscrito em região de grande tensão ecológica, entre os principais biomas brasileiros (Amazônia, cerrado, caatinga e região litorânea), e possuidor de grande diversidade cultural, foram levantados 138 espécies medicinais comercializadas nas feiras e mercados de São Luís.
A parte das plantas mais citadas pelos feirantes no preparo de remédios, a folha foi a parte destacada pelos entrevistados (Figura 1B). Outros estudos, realizados em seis estados brasileiros (Santa Catarina, Mato Grosso do Sul, Paraná, Mato Grosso, Rondônia e Rio de Janeiro)15),(16),(17),(18),(19),(20, também apontam a folha como a parte vegetal mais utilizada, e a ingestão dos preparados na forma de chá faz parte do cotidiano da maioria dos feirantes, sendo o modo predominante de uso, corroborando com o atual estudo (Figura 2A). Não obstante, esse resultado não coincide com estudos realizados com raizeiros no Município de Caruaru, Estado de Pernambuco21, onde foi citada a casca do caule como a parte mais utilizada (35%), seguida da folha (27%). Resultados também discordantes foram obtidos em citações de raizeiros em Barra do Piraí, no Estado do Rio de Janeiro, onde a planta inteira representou 54%, e a folha (34%)22.
O predomínio no uso da folha ou da casca das plantas muitas vezes está relacionado ao ambiente de ocorrência. Ambientes como a caatinga, por exemplo, onde o clima é quente e com prolongados períodos de seca, apresentam, na maior parte do ano, uma vegetação sem folhas, do tipo caducifólia. Desta forma, o uso da casca torna-se comum entre as comunidades locais. Já em ambientes como o da Mata Atlântica ou de cerrado, o uso da folha é comum, por ser a vegetação, nesses ambientes, do tipo perenifólia, permitindo acessos regulares às folhas, ficando somente os frutos e flores sujeitos à sazonalidade, em ambas as tipologias vegetacionais. Portanto, é a maior disponibilidade das partes da planta ao longo do ano que define a preferência pelas comunidades locais.
Em relação às formas de obtenção das plantas medicinais comercializadas em mercados e feiras livres no Estado da Paraíba11, indica que a compra apareceu como a principal forma de obtenção das plantas para 90,7% dos entrevistados, contra apenas 7% dos que coletam as plantas. Situação oposta foi verificada no Estado do Rio de Janeiro, onde o cultivo representou 52,8% das formas de obtenção das plantas medicinais23. Todavia, para se inferir sobre as formas de obtenção das plantas medicinais comercializadas em feiras e mercados no país, precisaria haver um levantamento sistêmico que levasse em conta, além das questões regionais, questões fundiárias, culturais, e por último, questões referentes à origem e disponibilidade das plantas nativas ou exóticas.
CONCLUSÃO
Os entrevistados foram, em sua maioria, do sexo masculino, nativos da região do Litoral de São Luís, Estado do Maranhão, com idades variando entre 30 e 89 anos. A maioria dos feirantes declarou que a principal forma de conhecimento adquirido acerca das plantas medicinais ocorre por meio de feirantes mais experientes, e que compram plantas de terceiros (76%). Além disso, quase metade (48%) dos entrevistados vê na atividade de venda de plantas medicinais a fonte de renda mais importante na composição da renda familiar. A folha é a parte da planta mais utilizada (37%), seguida pela casca (23%). Das 33 etnoespécies citadas por pelo menos quatro feirantes, apenas 15,1% apresentam concordância inferior a 50%. As principais citações de usos das etnoespécies foram: como anti-inflamatória, para gastrite e como calmante. Os modos de preparo mais comuns das plantas foram sob as formas de chá (58%) e banho (12%). As etnoespécies com maiores concordâncias de usos foram a M. urundeuva Fr. All., C. langsdorffii Desf., (B. virgilioides Kunth.), Himatanthus spp. e Ximenia americana L.