INTRODUÇÃO
A esquistossomose mansoni é uma doença altamente prevalente no Estado de Pernambuco, Brasil, estando relacionada às más condições de vida e à ausência de saneamento básico. A infecção é causada por um verme trematódeo, da espécie Schistosoma mansoni, estimando-se 38,3 milhões de pessoas em risco de infecção na área rural endêmica do Estado, onde ainda existem localidades com taxas de positividade de 23,9% a 70,3%. A migração de trabalhadores rurais em busca das ofertas de trabalho nas áreas urbanas e litorâneas vem acarretando uma ocupação intensa e desordenada desses espaços, com consequentes distúrbios ambientais que propiciam condições ecoepidemiológicas perfeitas para a instalação e manutenção de doenças de transmissão vetorial, como a esquistossomose1.
Porto de Galinhas, situada no Município de Ipojuca, litoral sul de Pernambuco, foi considerada pela Revista Viagem e Turismo a melhor praia do Brasil, por apresentar belezas naturais de flora e fauna, boa infraestrutura hoteleira e culinária2. O expressivo valor paisagístico e cultural de Porto de Galinhas projetou-a nos cenários nacional e internacional do turismo, dinamizando a economia de Pernambuco. Em função do turismo, a orla costeira do balneário foi reconfigurada, impondo-se uma nova forma de organização social, na qual a faixa litorânea, valorizada pelos atributos naturais, foi ocupada por hotéis e pousadas para turistas e veranistas. Por outro lado, os espaços periféricos passaram a concentrar pessoas desempregadas ou subempregadas, uma vez que estão assentadas em áreas de invasão, sem infraestrutura urbana, água potável e rede de saneamento básico, ocasionando um elevado risco para a saúde. O crescimento urbano desordenado promoveu a descaracterização de Porto de Galinhas, que hoje exibe intensos impactos ambientais, visíveis no lançamento de resíduos no estuário do rio Ipojuca e na devastação e aterros em áreas de mangue, com o intuito de aglutinar os grupos sociais menos abastados3.
Esses conglomerados pauperizados, de intenso povoamento e com esgotos a céu aberto, propiciaram o estabelecimento de inúmeros focos de caramujos vetores da esquistossomose. Na estação chuvosa, as águas pluviais, represadas por falta de escoamento, transbordam conduzindo os caramujos infectados às ruas e quintais, promovendo grande número de casos de esquistossomose entre pessoas que transitam naquele ambiente insalubre1,4,5. No ano de 2000, um surto de esquistossomose acometeu o balneário de Porto de Galinhas, ocasião em que foram diagnosticados 662 casos humanos da forma clínica aguda da doença. As fortes chuvas que caíram na localidade causaram enchentes que conduziram os caramujos infectados pelo S. mansoni para as ruas e residências, propiciando ampla exposição e infecção humanas1. Em 2011, um novo inquérito realizado na localidade diagnosticou 425 casos da doença e inúmeros focos de vetores, com significativas taxas de infecção natural pelo S. mansoní6,7.
O turista que chega a Porto de Galinhas não recebe nenhuma informação sobre os riscos, situações e condições ambientais locais que possam afetar sua saúde. A esquistossomose mansoni está citada no Guia de Vacinação do Viajante Brasileiro8 como doença de risco para o viajante, mas apesar disto as localidades turísticas brasileiras, com casos desta doença, omitem informações de prevenção ao turista e pouco têm feito para minimizar as más condições ambientais ou de saneamento, no sentido de diminuir o impacto de transmissão desta endemia. Existem inúmeros registros de viajantes que adquiriram esquistossomose em locais turísticos por simples falta de conhecimento e esclarecimentos sobre as condições sanitárias da área9,10,11,12,13,14.
Doenças como a esquistossomose mansoni, que possuem fortes componentes ambientais, podem ser mapeadas e monitoradas por meio do uso de técnicas de geoprocessamento. O Sistema de Informação Geográfica (SIG) permite uma análise complexa de um grande número de informações, apresentando os resultados das análises no formato de mapas gráficos. Os dados gerados pelo SIG têm um papel importante no estudo da esquistossomose, especialmente no que diz respeito à interação da doença com as condições do meio ambiente15. O uso do SIG tem sido útil em pesquisas sobre a esquistossomose no Brasil, mapeando a ocorrência de casos humanos, de vetores e mostrando distúrbios ambientais em vários Estados: Bahia15,16,17; Minas Gerais18,19,20,21,22,23 e Pernambuco6,7,24,25,26,27.
Diante do cenário acima exposto, esta pesquisa pretendeu estimar o risco à exposição e infecção pelo S. mansoni ao qual estariam expostos os turistas que visitam Porto de Galinhas e se hospedam nos hotéis e pousadas na localidade Merepe III no período da transmissão sazonal. Teve como objetivos específicos: (1) realizar mapeamento georreferenciado dos hotéis e pousadas existentes na localidade, destacando no mapa os criadouros e focos de caramujos vetores da esquistossomose; (2) construir mapas de Kernel para verificar a distância e influência dos criadouros e focos em relação aos locais de hospedagem; e (3) definir o risco espacial para exposição ou contaminação dos turistas.
MATERIAIS E MÉTODOS
A localidade litorânea de Porto de Galinhas dista a 60 km da Cidade do Recife e conta, atualmente, com cerca de 6.600 habitantes, número subestimado, considerando que, nos períodos de alta temporada, essa população chega a quadruplicar. Para este estudo, foi eleito o bairro Merepe III, que concentra o maior número de pousadas, onde há 12 anos registram-se criadouros e focos de caramujos vetores da esquistossomose, habitados pela espécie transmissora Biomphalaria glabrata, reconhecido como maior vetor da doença. Neste bairro tem sido historicamente registrado elevado número de casos de esquistossomose1,4,5,7.
O mapeamento georreferenciado da localidade, com seus hotéis e pousadas, foi realizado entre agosto e outubro de 2012 pelo uso de um receptor Global Positioning System (GPS) Garmin. Os criadouros/focos de Biomphalaria foram identificados por inquérito malacológico realizado em 2011 e fazem parte do banco de dados malacológicos do Laboratório de Esquistossomose do Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães, Fundação Oswaldo Cruz (CPqAM/Fiocruz), sendo agregados à análise como dados secundários. A partir do levantamento desses dados foram georreferenciados os criadouros/focos de caramujos da espécie B. glabrata, utilizando como unibase o croqui computadorizado da localidade de Porto de Galinhas. Os dados do GPS foram transferidos para o software TrackMaker® Pro para ajuste dos polígonos de quarteirões e pontos da distribuição dos hotéis e pousadas e, ao final, incluídos em um SIG.
A ferramenta buffer do software ArcGIS28 foi utilizada para criar um mapa de distância para cada ponto representante dos criadouros e focos de Biomphalaria em relação às estruturas de hospedagem.
Utilizou-se o estimador de intensidade Kernel, configurado pelo método Quantil para estratificação dos dados e largura de banda definida com raio adaptativo (200 m) por ser a mais adequada para análise de estudos locais29,30. Deste modo, foi utilizado para a construção dos mapas de risco, objetivando mostrar a distância dos criadouros/focos de caramujos vetores em relação aos locais de hospedagem.
Para a construção do mapa de risco espacial, mostrando a expansão dos criadouros e focos de caramujos vetores em direção aos locais de hospedagem, calculou-se a estimativa de extensão da lâmina d'água (inundação da área de estudo) pelos relatos dos moradores e marcas dos históricos das chuvas e enchentes ocorridos no local31. Esta estratégia permitiu delimitar as áreas atingidas pelas inundações periódicas que ocorrem na localidade e observar a sobreposição das águas com as ruas onde se localizam as pousadas.
RESULTADOS
A análise de consistência da base no SIG permitiu identificar polígonos abertos, linhas sobrepostas e foram retirados eventuais pontos demarcados que não faziam parte do estudo.
A figura 1 mostra o mapa de Porto de Galinhas com destaque para o bairro de Merepe III, onde foram identificados e georrefereciados 37 pousadas, sete criadouros e um foco de B. glabrata.
A figura 2 mostra o mapa de distância, com raio de 100 até o limite de 500 m, para cada ponto representante do foco (Figura 2A) e criadouro (Figura 2B) de caramujos B. glabrata em relação às estruturas de hospedagem (hotéis e pousadas) identificadas em Merepe III. O mapa temático representado pela figura 2A mostra que 24,32%, 45,95%, 70,27%, 83,78% e 94,59% dos locais de hospedagem ficam, respectivamente, dentro de um raio de 100 m, 200 m, 300 m, 400 m e 500 m do foco de transmissão dos caramujos vetores da esquistossomose. Na figura 2B, 48,65%, 78,38%, 94,59% e 100% situam-se num raio, também, de 100 m, 200 m, 300 m, 400 m em relação aos demais criadouros de Biomphalaria.
A figura 3 mostra o mapa de intensidade Kernel aplicado nos dados de foco (Figura 3A) e criadouros (Figura 3B) para uma distância de 200 m. Esses mapas temáticos mostram os valores de 13,51%, 21,62%, 27,03% e 35,14% (foco) e 24,32%, 29,73%, 37,84% e 62,16% (criadouro), respectivamente, para os intervalos de intensidade de Kernel de 1,00-0,81; 0,80-0,61; 0,60-0,41 e 0,40-0,21; das estruturas de hospedagem que estão sujeitas a riscos de contato com os caramujos B. glabrata. Nessa figura, os valores próximos de 1 indicam a presença de um criadouro e foco, e 0, a ausência.
A figura 4 mostra a expansão da lâmina d'água por ocasião da estação das chuvas, indicando uma possível expansão dos criadouros e foco dos caramujos vetores (Figura 4A) chegando até as ruas das pousadas e hotéis (Figura 4B) situados em Merepe III. A expansão da lâmina d'água atinge 75% (Figura 4A) dos criadouros/focos e 75,68% (Figura 4B) das estruturas de hospedagem.
DISCUSSÃO
As ferramentas de geoprocessamento foram úteis para determinar as áreas de risco. Para uma distância de 200 m, o mapa de distância (Figura 2A) e o mapa de intensidade Kernel (Figura 3A) mostraram os valores de 45,95% e 35,14% de alcance do foco de B. glabrata para atingir as ruas onde se situam hotéis e pousadas. Quando estimados esses valores baseados na posição geográfica dos criadouros, o mapa de distância (Figura 2B) e o mapa de intensidade Kernel (Figura 3B) atingem, respectivamente, 78,38% e 62,16% das ruas onde se situam hotéis e pousadas. Na figura 4B, em que foi utilizada a ferramenta de edição vetorial, observa-se o valor de risco local de 75,68%, definido pela capacidade de extensão e alcance da lâmina d'água com caramujos vetores B. glabrata em direção às ruas onde se situam hotéis e pousadas.
Os resultados desta pesquisa mostram o raio de influência do foco e dos criadouros de B. glabrata em relação às ruas onde se situam as 37 pousadas e hotéis de Merepe III, em Porto de Galinhas, apontando o risco a que estão expostos turistas e residentes locais à exposição com águas infestadas por cercárias dos caramujos vetores da esquistossomose, por ocasião das enchentes sazonais que ali ocorrem. Este é o bairro de Porto de Galinhas que hospeda a maioria dos turistas que visita o balneário e, por estar situado abaixo do nível da rodovia que dá acesso à cidade, fica sujeito a inundações pluviais periódicas, quando as águas dos criadouros se expandem, levando consigo os caramujos infectados. Essas enchentes também propiciam a troca de caramujos entre os criadouros, levando os Biomphalaria infectados a outros habitats e favorecendo o surgimento de novos focos de transmissão. A constante mudança de cenário epidemiológico dificulta o monitoramento das situações de risco; portanto, o controle dos vetores deveria ser realizado no período de estiagem, quando os caramujos ficam restritos às poças de água nos terrenos baldios e fundos de quintais, o que facilita o manejo e o controle ambiental dos criadouros.
No litoral pernambucano, a estação chuvosa ocorre de junho a agosto, coincidindo com o período de férias, época em que Porto de Galinhas recebe grande número de turistas brasileiros e estrangeiros, que ficam sujeitos à infecção pelo S. mansoni ao se exporem à paisagem de risco delineada em Merepe III.
A esquistossomose mansoni não está inserida na categoria de doenças de notificação compulsória32 que exigem intervenção em 24 h após o início dos sintomas. Porto de Galinhas está dentro de um município endêmico para esta doença e, sendo assim, os sistemas oficiais de informação não registram os casos agudos que ali ocorrem. Apesar disto, o Regulamento Sanitário Internacional33 considera emergência em saúde pública as doenças que atendem aos critérios: 1) gravidade no impacto da saúde pública; 2) evento incomum ou inesperado; e 3) risco de propagação internacional. Um surto epidêmico de esquistossomose, semelhante ao descrito por Barbosa et AL1 no ano de 2001 se enquadraria em ao menos dois destes critérios.
CONCLUSÃO
A situação de Porto de Galinhas clama por ações imediatas e articuladas entre os diversos setores públicos, municipais e estaduais da saúde, turismo e meio ambiente, no sentindo de aliar competências para transformar aquele espaço em um ambiente saudável, promovendo um turismo sem riscos aliado à melhoria da qualidade de vida da população local.
Enquanto as necessárias mudanças ambientais e sanitárias não acontecem, é competência dos gestores municipais alertarem sobre as doenças locais, informando ao turista sobre os possíveis riscos ambientais e biológicos, a fim de orientá-lo para práticas e atitudes preventivas, evitando exposições e riscos de infecção pelo S. mansoni. O tema "saúde do viajante" vem sendo discutido por setores do governo, agências de viagem e empresas aéreas e marítimas, como a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária, Associação Brasileira de Agências de Viagens e Agência Nacional de Aviação Civil, mas suas recomendações ficam limitadas a páginas da Internet.
Diante da ausência de legislação sanitária, um eventual surto não poderia ser detectado emergencialmente e uma intervenção tardia e desordenada poderia acarretar sérias repercussões, não só do ponto de vista do atendimento clínico às vítimas, mas também pela possível disseminação da doença para os locais de procedência dos turistas eventualmente infectados.