INTRODUÇÃO
A leptospirose é uma zoonose de distribuição mundial1,2, doença multissistêmica, de causa infecciosa, causada por leptospiras patogênicas com espectro de manifestações clínicas, variando desde infecção inaparente até doença fulminante3,4,5.
Por ser largamente disseminada e com alto índice de infectividade entre animais domésticos e silvestres, a doença assume considerável importância como problema econômico e de saúde pública. A gravidade da patogenia no cão e o contágio ao homem, potencializado pela proximidade estabelecida no mundo contemporâneo entre ambos, coloca a leptospirose canina como uma preocupação sanitária relevante6,7.
Mais de 200 sorovares (a unidade taxonômica básica é o sorovar-sorotipo) agrupados em 25 sorogrupos de Leptospira interrogans já foram identificados2,8; alguns hospedados em animais de forma endêmica e quando atingidos por sorovares não endêmicos podem desenvolver doença grave e fatal4,9.
Os animais podem ser divididos em hospedeiros crônicos e hospedeiros acidentais (como o ser humano). A doença é mantida nos túbulos renais de hospedeiros crônicos de forma endêmica e transferida entre animais pelo contato direto. Os sinais clínicos da leptospirose canina dependem de fatores como idade, estado imunológico e virulência do sorovar. As formas menos graves evoluem com febre, anorexia, vômito, desidratação e apatia; e a forma crônica não é aparente, levando à insuficiência renal crônica10. O método diagnóstico de referência para a leptospirose canina é o teste de microaglutinação (microscopic agglutination test - MAT), realizado com antígenos vivos, detectando anticorpos antileptospiras em soros de indivíduos com sete a dez dias de sintomas11.
A persistência de focos de leptospirose está relacionada com a sobrevivência das leptospiras no meio ambiente, por até 180 dias, associada a uma ampla variedade de animais suscetíveis que podem hospedar o micro-organismo. O principal reservatório é constituído de roedores sinantrópicos das espécies Rattus norvegicus (ratazana ou rato de esgoto), Rattus rattus (rato de telhado ou preto) e Mus musculus (camundongos). Esses roedores quando infectados não desenvolvem a doença, são portadores, albergando a leptospira nos rins e, posteriormente, eliminando-a no meio ambiente e contaminando água, solo e alimentos. O R. norvegicus é o principal portador do sorovar Icterohaemorrhagiae. Outros reservatórios são: caninos, suínos, bovinos, equinos, ovinos e caprinos. Entre os animais, a urina dos suínos é favorável à sobrevivência do agente, devido a sua alcalinidade12. O período de incubação ocorre de 1-30 dias (com média de 5-14 dias). A letalidade pode chegar a 40% nos casos graves8,13.
A infecção em humanos acontece após contato de forma direta ou indireta com urina de animal infectado, geralmente por meio de pequenos mamíferos4,14. A porta de entrada habitual é a pele íntegra ou não, a mucosa oral, nasal e conjuntival expostas e intactas3,15. Inalação de água ou aerossol também pode resultar em infecção pela mucosa ou trato respiratório. Há raras descrições de infecção após mordida de animal4. O baixo pH da urina humana limita a sobrevivência da leptospira, entretanto há relatos de transmissão sexual durante convalescência4.
O diagnóstico de leptospirose no homem depende da fase da doença. Na fase precoce, as leptospiras podem ser visualizadas no sangue por exame direto, de cultura e de inoculação em animais de laboratório. Na fase tardia, as leptospiras podem ser encontradas na urina, cultivadas e inoculadas. Pela dificuldade na realização dos exames citados, a utilização de métodos, como o teste ELISA-IgM e o MAT, está consagrada para o diagnóstico de leptospirose. Exames de maior complexidade tais como imuno-histoquímicos, técnicas baseadas em PCR e tipagem de isolados clínicos, por exemplo, quando solicitados, são realizados em laboratórios de referência16.
Segundo o Ministério da Saúde do Brasil, a zoonose tem uma média de 4 mil casos registrados todos os anos, mas como provoca, em quase 90% das vezes, sintomas similares aos da dengue e de outras viroses, acredita-se que o número de notificações esteja subestimado. No Brasil, os sorovares Icterohaemorrhagiae e Copenhageni estão relacionados aos casos mais graves16. Aproximadamente 1% dos pacientes costuma desenvolver a forma mais grave, sendo fatal em 1-5% destes casos17.
O crescimento acelerado, desordenado, próprio do processo de urbanização, com deficiências de infraestrutura (saneamento básico) e desigualdades de várias ordens (habitacional, educacional e econômica) contribuem com o crescimento de sinantrópicos prejudiciais à saúde.
DESENVOLVIMENTO DO TRABALHO
A investigação desse trabalho teve início com o recebimento da notificação da suspeita de leptospirose em paciente do sexo feminino, residente na área de atuação da vigilância ambiental Lapa/Pinheiros. No campo "Observação da Ficha de Investigação" do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN) constava: "cachorro com diagnóstico confirmado de leptospirose - paciente teve contato com urina (conjuntiva)". Foi iniciada a investigação com visitas à paciente, ao cão, ao hospital de internação e houve a realização de exames.
RELATO DE CASO DE LEPTOSPIROSE CANINA
Em 31 de agosto de 2013, cadela sem raça definida (SRD), aproximadamente 1 ano de idade, foi hospedada em hotel de animais imediatamente após recolhimento das ruas do Município de São Paulo, pela paciente, que não era a proprietária do animal e sim protetora/cuidadora de cães - pessoa que, segundo a mesma, eventualmente resgata animais das ruas, fornece cuidados gerais e estimula a posse responsável. Os sintomas no animal iniciaram em 15 de setembro de 2013 - 15 dias depois do resgate. Sete dias após o início dos sintomas, observaram-se inapetência, emagrecimento, pele e olhos amarelados. Em 23 de setembro de 2013, houve o contato da urina do cão com a paciente durante contenção do animal para exame veterinário. No momento do acidente, a paciente estava com luva e, segundo a mesma, o cão urinou na mesa de exame e, com as patas, "jogou" essa urina para cima caindo no seu olho. Relatou, ainda, ter lavado o olho com água corrente após o acidente.
A tabela 1 apresenta resultados da análise laboratorial do sangue do animal em dois momentos distintos: em 10 de setembro de 2013, dez dias após resgate das ruas (exames de rotina); e em 23 de setembro de 2013, oito dias após o início dos sintomas.
O animal evoluiu bem, sem sequelas, e não foi vacinado contra leptospirose até a adoção em dezembro de 2013.
A tabela 2 apresenta resultados do MAT, do cão e da paciente, realizados entre 70 e 90 dias, respectivamente após os sintomas.
Sorovares utilizados no MAT: Australis; Autumnalis; Batvie; Canicola; Castellonis; Copenhageni; Cynopteri; Grippotyphosa; Hardjo; Hebdomadis; Icterohaemorrhagiae; Javanica; Panama; Patoc; Pomona; Pyrogenes; Sejroe; Tarassovi; Wolffi.
Fonte: Centro de Controle de Zoonoses, Secretaria Municipal de Saúde, Prefeitura do Município de São Paulo.
RELATO DE CASO DE LEPTOSPIROSE HUMANA
Paciente do sexo feminino, 36 anos de idade, branca, solteira, psicóloga, cuidadora de cães, residente no Município de São Paulo, procurou hospital da rede conveniada de saúde, em 7 de outubro de 2013, com queixa de cefaleia, febre, inapetência, dores articulares desde 3 de outubro de 2013 (dez dias após o acidente com urina do cão). Feita hipótese diagnóstica de dengue, a mesma foi dispensada para residência. Com agravamento do quadro clínico - piora da artralgia (joelhos, tornozelos e punhos), dificuldade para deambular, náuseas intensas e queda do estado geral -, retornou ao hospital em 8 de outubro de 2013, sendo internada diretamente em uma unidade de tratamento intensivo (UTI). Ao exame físico, encontrava-se em estado geral regular, eupneica, anictérica, hidratada, conjuntivas hiperêmicas, afebril (usou antitérmico), com pressão arterial de 147x83 mmHg, frequência cardíaca de 92 bpm, abdome indolor, panturrilhas com edema de 2/4 + nos membros inferiores. Exame neurológico sem alterações.
Foi aberto protocolo de atendimento para sepse, com hipótese diagnóstica de febre de origem desconhecida/Síndrome de Weil. Foi administrada ceftriaxona (1,0 g intravenosa/dia - durante dez dias), suporte hidroeletrolítico, recebeu plaquetas, sendo realizada a primeira sessão de diálise em 9 de outubro de 2013, repetida em 11 de outubro de 2013. Houve acompanhamento de fisioterapia respiratória e motora durante a internação. A partir de 11 de outubro de 2013, a paciente apresentou discreta melhora do quadro clínico com alta da UTI em 15 de outubro de 2013 e alta hospitalar em 22 de outubro de 2013, após evolução satisfatória, sem manifestações clínicas.
Em 4 de novembro de 2013, o caso foi encerrado pela vigilância epidemiológica da região, confirmado como leptospirose, pelo critério clínico-epidemiológico.
A tabela 3 apresenta os resultados da análise laboratorial da paciente, realizada na admissão hospitalar, que ilustra a complexidade do caso.
DISCUSSÃO
Na fase aguda da doença (23 de setembro de 2013), o MAT no cão já se mostrava positivo (maior que 1/800) para os sorovares infectantes11, mesmo considerando a limitação técnica da realização do exame nessa fase da doença11. O animal apresentou comprometimento da função hepática: elevação da fosfatase alcalina e da transaminase glutâmico pirúvica, elevação da ureia, além de leucocitose importante (Tabela 1).
Os títulos encontrados no MAT para os sorovares Icterohaemorrhagiae e Copenhageni no cão, em 11 de dezembro de 2013, ambos de 6.400 (Tabela 2), ratificam o diagnóstico para leptospirose, mesmo considerando a possibilidade de títulos elevados pós-vacinação13 e/ou reação cruzada17,18,19.
O MAT é o método mais amplamente usado para determinar os títulos de anticorpos antileptospira em cães1,2,18, no entanto aspectos deste teste são necessários para a interpretação de um diagnóstico apurado, pois este processo não distingue as classes de imunoglobulinas: IgG e IgM, que podem causar aglutinação nos exames3. Além disso, a reatividade cruzada contra sorovares múltiplos frequentemente resulta no título aumentado contra vários outros e tem utilização limitada nos quadros agudos da doença, pois o método detecta anticorpos11. O sorovar com título mais elevado é normalmente considerado o agente infectante18 (Tabelas 1 e 2). A ausência de títulos no sangue para os sorovares Canicola, Grippotyphosa, Pomona e Hardjo sugere que o cão não fora vacinado contra a leptospirose antes do resgate20. As vacinas contra leptospirose disponíveis no mercado brasileiro estimulam a produção de anticorpos contra antígenos dos sorovares presentes: a V8 (Icterohaemorrhagiae e Canicola); eaV10 (Icterohaemorrhagiae, Canicola, Pomona e Gryppotyphosa).
A imunidade (adquirida natural ou artificialmente) à leptospirose canina é humoral e relativamente sorovar específica. A vacina protege contra os sorovares homólogos ou antigenicamente semelhantes2. A vacinação em animais domésticos evita que adoeçam, mas não impede que se infectem. Os animais podem apresentar leptospirúria, tornando-se fontes de infecção, ainda que em grau mais leve e por um período menor do que ocorre com a infecção em animais não vacinados16.
Os cães são hospedeiros preferenciais do sorovar Canicola19,21 e, em populações não vacinadas, a incidência de infecção por este sorovar pode ocorrer de 50 a 75%5,18. Os ratos são os hospedeiros mais habituais do sorovares Icterohaemorrhagiae e Copenhageni21, sendo os cães hospedeiros acidentais deste agente7,22, o que provavelmente ocorreu com este cão no período que ficou nas ruas. Animais SRD (geralmente errantes ou comunitários), com mais acesso à rua, têm maior risco de exposição às leptospiras23 na procura por alimento no lixo e/ou ingerindo água empoçada24. O elevado título para o sorovar Icterohaemorrhagiae encontrado no cão pode representar uma reação cruzada com o sorovar Copenhageni, ou decorrer de uma infecção mista, devido à diversidade de reservatórios e ambientes aos quais os animais se expõem25.
Os cães são boas sentinelas para detectar a presença de leptospiras em ambiente com grande adensamento populacional. Fatores chave para o entendimento dessa zoonose são: a cronicidade assintomática com leptospirúria; a ampla facilidade de deslocamentos; e os reservatórios de manutenção do agente no ambiente9,26. Outra característica nesse segmento animal é a existência de variações na incidência de sorovares nos diferentes Estados da Federação, o que remete a necessidade de aprofundamento da epidemiologia da doença de forma regionalizada2,18.
Muitos casos no Brasil têm diagnóstico confirmado de leptospirose canina apenas com a realização de exame anatomopatológico (necrópsia). Como nem sempre esse procedimento é realizado, um grande número de casos suspeitos fica sem confirmação1. Devido a sua relevância como animal de estimação, é fundamental o diagnóstico e tratamento dessa enfermidade o mais prontamente possível11.
Entre os animais domésticos, as principais fontes de infecção da leptospirose canina em ambiente urbano são os ratos e outros cães infectados2,26. Em zonas rurais, a população bovina é citada como importante fonte de infecção para cães6.
Em relação à paciente, esta apresentou comprometimento hepatorenal, confirmando a hipótese diagnóstica inicial de Síndrome de Weil: alterações nas funções hepática e renal, hipopotassemia, aumento da creatinina fosfoquinase, distúrbio do equilíbrio ácido-base, acrescido de leucocitose com linfopenia e anemia. A pesquisa de anticorpos IgM antileptospira pelo método IFI na entrada ao hospital, mostrou-se reagente (Tabela 3). Apesar de alguns autores considerarem a pesquisa de anticorpos IgM antileptospira pelo método da IFI mais sensível que o método de aglutinação27 na fase inicial da doença, o algoritmo do Ministério da Saúde para encerramento do caso de leptospirose humana, pelo critério clínico laboratorial, considera apenas os resultados de ELISA-IgM e MAT16.
A realização do MAT após 90 dias para a paciente não teve objetivo diagnóstico, mas identificou a presença de anticorpos antileptospira para um ou mais sorovares. O resultado mostrou-se reagente para o sorovar Copenhageni, coincidindo com o MAT do cão para um dos sorovares predominantes (Tabela 2), fortalecendo a possibilidade da infecção leptospirótica do cão e da paciente estarem relacionadas.
O encerramento do caso de leptospirose para a paciente foi pelo critério clínico-epidemiológico. No entanto, as evidências de que a infecção tenha sido causada pelo cão não foram consistentemente comprovadas pelos testes laboratoriais realizados: IFI na fase aguda (Tabela 3) e MAT após 90 dias dos sintomas (Tabela 2). Testes de biologia molecular, se realizados em tempo oportuno, com amostras do cão e da paciente, seriam relevantes para o vínculo causal entre ambos. Os dados sugerem para uma transmissão cão-homem, presumidamente por via conjuntival.
Importante a constante vigilância da leptospirose ao longo de todo o ano, considerando que os casos ocorreram na primavera no Município de São Paulo, ignorando a influência sazonal de maior incidência da patologia em animais2 e em humanos16, que é no verão e outono.
A prevalência do sorovar Copenhageni no Estado de São Paulo nos animais de companhia9,28, diferentemente do predomínio de Icterohaemorrhagiae29, reforça a predominância da população de roedores na cadeia de transmissão da doença e a necessidade da manutenção de programas de controle integrado de roedores6.
A domesticação de cães teve início há cerca de 10.000 anos, com intensificação a partir do século XVI, e tem como objetivos principais a companhia e a guarda30. No Estado de São Paulo, o dimensionamento realizado em 2005 encontrou razão de quatro humanos para cada cão. Estudos mostram que varia entre 36 a 40,4% o número de domicílios na capital do Estado com a presença de cães30. Com a grande população canina na cidade e as relações peculiares estabelecidas entre os proprietários e seus animais, é consequente pensar em:
- outras formas de transmissão da leptospirose não habituais e locais de transmissão (por exemplo, consultório veterinário), particularmente no cuidado aos animais domésticos, comunitários e errantes;
- o comportamento de cuidadores/protetores (cachorreiros) de animais nos municípios;
- medidas de proteção individual dos seguradores/proprietários31 na contenção dos seus animais no ato do exame clínico por veterinário (geralmente protegido);
- um programa de controle da leptospirose animal, abrangendo o monitoramento da transmissão da doença pelo cão nos municípios, incluindo ações de vigilância ambiental prioritariamente em áreas com elevada população de cães "comunitários" e maior risco para a doença24, com intensificação da desratização e antirratização nos locais prováveis de infecção;
- discussão de programa de vacinação contra leptospirose canina em cães errantes/comunitários, em territórios circunscritos, com adequação da vacina aos sorovares prevalentes, particularmente quando programas de manejo integrado de antirratização em comunidades de difícil acesso, por questões sociais, geográficas ou relacionais, são pouco exitosas.
CONCLUSÃO
Considerando que o cão representa um membro de um grande número de famílias no Brasil e no mundo, é fundamental o fomento de ações de educação em saúde para toda população e, particularmente, aos cuidadores/protetores de cães. Há também a necessidade de serviços e profissionais estarem atentos a esta enfermidade, considerando o risco epidemiológico atual.
Recomenda-se a continuidade de estudos com caracterização das sorovariedades nas regiões geográficas do país, de forma que as futuras vacinas para leptospirose canina contenham os sorovares circulantes, tornando-as mais efetivas e proporcionando imunidade mais duradoura.
Mitigar a magnitude da leptospirose canina e reduzir/eliminar o estado de portador é, portanto, um cenário desejável.
AGRADECIMENTOS
Ao Laboratório do Centro de Controle de Zoonoses da Secretaria Municipal da Saúde de São Paulo, aos agentes de zoonoses da Vigilância Ambiental da Supervisão Técnica da Saúde Lapa/Pinheiros e à paciente que sempre se mostrou colaborativa na realização de exames e no fornecimento de informações sobre o ocorrido.