INTRODUÇÃO
O século XX vivenciou inovações e transformações industriais em larga escala e eventos em nível global, incluindo duas guerras mundiais, os quais geraram grandes fontes de poluição de origem antrópica que, somadas aos eventos naturais, produziram impactos ambientais e catástrofes que atingiram grandes áreas e vitimaram populações. As consequências desses processos são duradouras e se somam aos eventos recorrentes e aos riscos ambientais emergentes. Além disso, os riscos associados à utilização de produtos gerados pela indústria tornaram-se cada vez mais crescentes, como os pesticidas, destinados a beneficiar a agricultura, mas que podem ameaçar a saúde de trabalhadores e consumidores, como observado em estudos de diversos países1,2,3. No caso dos pesticidas, tornou-se emblemática a obra de Rachel Carson, em seu livro intitulado "Primavera silenciosa"4, de 1962, sobre a vulnerabilidade da vida silvestre e humana para os danos consequentes ao uso de pesticidas como o dicloro-difenil-tricloroetano (DDT) e outros organoclorados e fosforados na agricultura e no domicílio5.
As conferências internacionais, promovidas pela Organização das Nações Unidas na segunda metade do século XX, contribuíram para o início da construção de uma consciência global sobre a finitude dos recursos do planeta Terra e para a necessidade de sua conservação e uso sustentável, destacando-se a Conferência sobre o Meio Ambiente Humano, realizada em Estocolmo, Suécia, em 1972, e a Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada na Cidade do Rio de Janeiro, em 1992 (ECO-92), que foi sucedida pelas Conferências Rio+10 e Rio+20. Entre a Conferência de Estocolmo e a ECO-92, desenvolveu-se o trabalho da Comissão Mundial de Meio Ambiente e Desenvolvimento, que publicou seu relatório em 1987 (denominado "Nosso futuro comum" ou "Relatório Brundtland"), a qual elaborou a concepção de desenvolvimento sustentável, que seria largamente debatida na ECO-92 e expresso nas premissas da Agenda 21 (assinada por 179 países)6 e outros documentos gerados por essas conferências. Tais documentos têm subsidiado a construção de uma política ambiental transversal nos países participantes dos acordos mundiais, visando compromissos de redução de fontes de emissão de poluentes, como a recente Convenção de Minamata7, em processo de ratificação pelos países signatários, para redução da utilização do mercúrio (Hg) no mundo. Foi nesse cenário mundial e nacional do despertar ambientalista que ocorreu a criação da Seção de Meio Ambiente (SAMAM) do Instituto Evandro Chagas (IEC), em 1992, sobre a qual este artigo aborda aspectos históricos e principais contribuições para a área de saúde ambiental na Amazônia brasileira, em seu legado de 25 anos de existência.
BREVE HISTÓRICO DA CRIAÇÃO DA SAMAM
A emergência dos problemas ambientais e suas repercussões na saúde pública, especialmente em populações da Amazônia, levaram a pesquisadora da área de Virologia do IEC, Elisabeth Conceição de Oliveira Santos, a procurar o apoio da direção para que o Instituto estendesse sua atuação ao campo da interface da saúde com o ambiente, criando um setor que se ocupasse dessa nova área da saúde pública, em vista do compromisso do IEC com a saúde das populações da Amazônia e seu papel na pesquisa científica nacional e internacional. Assim, com o apoio da direção institucional (sendo, à época, o gestor dr. Jorge Fernando Soares Travassos da Rosa), Elisabeth Santos coordenou um pequeno grupo de pesquisadores (Edvaldo Carlos Brito Loureiro, Iracina Maura de Jesus, Maria de Fátima Lima de Assis e Edilson da Silva Brabo - este último in memoriam) e técnicos (Raimundo Pio Girard Martins, Airton de Jesus das Graças Teixeira, Raimundo Otávio da Paixão e Maria América Guimarães - os dois últimos in memoriam) na criação, em fevereiro de 1992, do Laboratório de Ecologia Humana e Meio Ambiente (LEHMA, de 1992 a 1994), que posteriormente foi denominado Serviço de Ecologia e Meio Ambiente (SEMA, de 1995 a 1996), Coordenação de Ecologia Humana e Meio Ambiente (COEHMA, de 1996 a 2000) e, finalmente em novembro de 2000, constituindo-se na atual SAMAM.
Desde o início, o grupo também contou com parcerias interinstitucionais e de pesquisadores que colaboraram em projetos que possibilitaram a agregação de conhecimento multidisciplinar essenciais para o avanço das pesquisas. Algumas dessas parcerias permanecem até os dias atuais, como é o caso do Instituto de Estudos de Saúde Coletiva (IESC) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), por meio do dr. Volney de Magalhães Câmara, parceiro em muitos projetos da SAMAM, tanto na área de pesquisas em populações expostas ao Hg, quanto na área de capacitação de recursos humanos em saúde ambiental. A criação da SAMAM, além de fruto da atenção e dos ideais da dra. Elisabeth Santos pelas questões ambientais e suas repercussões na saúde e qualidade de vida na Amazônia, representou, sobretudo, um novo universo de atuação para o IEC em pesquisa e investigação de campo na área ambiental. Além disso, proporcionou a ampliação da capacidade de resposta à demanda de vigilância em saúde nessa nova área denominada Saúde Ambiental, que ainda estava sendo delineada de forma incipiente no Brasil durante a década de 1990, com base nos debates e definições internacionais e nacionais que estavam em curso sobre o tema.
Previamente à criação da SAMAM, destacaram-se dois acontecimentos que proporcionaram subsídios para essa decisão institucional. No ano de 1991 (30 de setembro a 4 de outubro), foi realizado, pela Secretaria de Estado de Indústria, Comércio e Mineração (SEICOM), o treinamento para integração e nivelamento da equipe executora dos estudos dos impactos ambientais decorrentes do extrativismo mineral no Tapajós, Canga-Tapajós, do qual participaram os representantes do IEC e da Fundação Nacional de Saúde (FNS, atual Funasa), Elisabeth Santos, Edvaldo Loureiro e Iracina de Jesus. Esse treinamento reuniu pesquisadores e técnicos de instituições governamentais para a colaboração no referido projeto. Tal evento foi de grande importância para a aproximação dos pesquisadores com a temática da garimpagem de ouro e atores científicos e governamentais envolvidos com a mineração na bacia do rio Tapajós, região que viria a ser um dos principais alvos de estudo da SAMAM nas próximas décadas, em relação à exposição ao Hg.
O programa Canga-Tapajós, elaborado em 1989 pelo Governo do Estado do Pará, por meio da SEICOM, visou conhecer, em profundidade e magnitude, a garimpagem de ouro na bacia do rio Tapajós e planejar ações integradas para melhoria da produtividade, porém com redução de danos às populações e ao ambiente. O programa se ocupou do diagnóstico econômico e social de áreas de garimpo, melhorias tecnológicas na extração de ouro e na recuperação do Hg, além de alternativas econômicas passíveis de associação à mineração e ao levantamento de informações para a promoção da consciência ambiental da população8. Integrado ao programa, foi desenvolvido, a partir de 1991, o projeto "Estudos dos impactos ambientais decorrentes do extrativismo mineral", o qual teve, como primeira atividade, o treinamento de integração e nivelamento dos participantes das instituições envolvidas, conforme citado anteriormente.
Nesse projeto, a SAMAM contribuiu na avaliação da contaminação de peixes por Hg na área do estudo na região do Tapajós, fazendo parte da equipe de coleta de campo, em colaboração com a SEICOM e com o Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) do Ministério de Minas e Energia (MME), sendo que a disponibilidade de dados sobre a concentração de Hg em peixes dessa região era considerada muito limitada no início da década de 1990. As análises de Hg foram realizadas no laboratório do Departamento de Química da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, pois, até então, o IEC não possuía laboratório de Hg.
Ainda no segundo semestre de 1991, a equipe do IEC e FNS que participou do treinamento, acompanhada pela geóloga da SEICOM, Rita Rodrigues, realizou viagem de campo à Cidade de Itaituba, Estado do Pará, e a dois garimpos da região, Cuiu-Cuiu e Creporizão, a fim de conhecer a realidade local e levantar informações para o desenvolvimento de futuros projetos em área de garimpo. Os impactos na paisagem, as insalubres condições de trabalho, o processo de queima do amálgama ouro-mercúrio, os vilarejos ou corrutelas em torno dos garimpos com a presença inclusive de crianças e idosos, moradias precárias, falta de saneamento, consumo de água de poço ou cisterna sem tratamento, relatos de violência, ocorrência de malária, hepatite e outras endemias, ausência de serviços de saúde, exceto o de controle de malária, vendas de medicamentos, ouro como moeda local, desconhecimento dos riscos do mercúrio, foram algumas das observações de campo que chamaram a atenção da equipe. Essa experiência inicial foi de grande importância para o planejamento da primeira expedição com coleta de campo, que ocorreria no ano seguinte em outra área garimpeira do Município de Itaituba, também com condições logísticas difíceis e acesso apenas aéreo.
PROJETOS DE IMPORTÂNCIA HISTÓRICA PARA A SAMAM
Com a criação do LEHMA, o primeiro programa de trabalho estabelecido para ser desenvolvido em um período de 10 anos objetivou investigar diferentes populações e ambientes epidemiológicos submetidos à poluição ambiental por Hg. Esse programa originou o grupo de pesquisa mais antigo da SAMAM, denominado "Mercúrio em populações e no ambiente amazônico". No primeiro semestre de 1992, a convite do dr. Alexandre Pessoa da Silva, coordenador técnico do "Projeto Itaituba: programa de desenvolvimento de tecnologia ambiental", desenvolvido pelo Centro de Tecnologia Mineral (CETEM) do então Ministério da Ciência e Tecnologia, hoje Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC)9, o LEHMA desenvolveu uma proposta de estudo de saúde humana para a área do garimpo do Rato, a qual foi executada em setembro de 1992, constituindo-se na primeira expedição de campo com a realização de inquérito epidemiológico, avaliação clínica e coleta de material biológico na área de saúde ambiental do IEC (Figura 1). Esse estudo também incluiu a avaliação da qualidade da água para consumo humano e água superficial no garimpo do Rato10. A equipe de pesquisa do LEHMA/IEC já contava com a presença de um geólogo, Edilson Brabo, que havia se agregado à equipe em junho de 1992, além de outros pesquisadores envolvidos nesse projeto, como Izabel Rodrigues (Seção de Parasitologia do IEC) e os médicos Fernando Branches (cardiologista de Santarém) e Rita Uchôa da Silva (FNS/IEC) e do também geólogo Artur Fernando Silva Mascarenhas (SEICOM). Nesse estudo, as determinações de Hg total já foram realizadas no Laboratório de Toxicologia do IEC e também no Laboratório de Radioisótopos do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho da UFRJ.
A partir dessa exitosa experiência de estudos de campo, sucederam outras que ampliaram a diversidade populacional pesquisada. Para citar aquelas de maior impacto na história da SAMAM, destaca-se o desenvolvimento dos estudos do Projeto Mercúrio, coordenado pelo dr. David Cleary, do Centre of Latin American Studies, University of Cambridge, Reino Unido, no período 1994 a 1997, financiado pela União Europeia11. O projeto objetivou a avaliação dos impactos do Hg no ambiente, na biota12 e na saúde de populações expostas de forma ocupacional e ambiental13 na bacia do Tapajós, com proposição de alternativas tecnológicas para diminuição dos impactos negativos da mineração. No Projeto Mercúrio, o LEHMA/IEC coordenou os estudos de saúde14,15 e, em diversas oportunidades, a equipe de pesquisa interagiu com outros grupos multidisciplinares do projeto em trabalhos de campo. Foram pesquisadas quatro comunidades ribeirinhas (três na bacia do Tapajós e uma no rio Amazonas) e dois grupos de trabalhadores das lojas de comercialização de ouro nas Cidades de Santarém e Itaituba16.
Na segunda metade da década de 1990, foram desenvolvidos estudos em outras comunidades ribeirinhas dos rios Tapajós e Amazonas em projetos financiados por agências de fomentos estaduais e nacionais. No final dessa década, foi desenvolvido ainda um projeto de grande importância para o campo da saúde ambiental na Região Amazônica, referente à pesquisa da ocorrência do Hg no ambiente17 e exposição populacional no Estado do Acre18 (bacia do rio Acre e Cidade de Rio Branco). Tendo em vista que esse Estado não possuía fonte antrópica de Hg conhecida e havendo relatos de indivíduos expostos ao Hg, originou-se, por parte de órgãos municipais, estaduais e federais, incluindo o Ministério Público e o Ministério da Saúde (MS), essa demanda de pesquisa atendida pelo IEC.
No começo da década de 2000, a SAMAM desenvolveu um grande projeto para a avaliação da exposição ao arsênio na população da Comunidade Elesbão, Município de Santana, Estado do Amapá. Nesse local, havia grandes quantidades de resíduos do processo de pelotização do manganês, extraído da mina de Serra do Navio, com liberação de arsênio para o ambiente, que poderia representar risco à saúde da população. Por esse motivo, o MS demandou ao IEC a pesquisa em materiais ambientais, bem como o estudo populacional em 2.048 indivíduos residentes na área19. Ainda em 2000, a SAMAM iniciou o projeto denominado "Mercúrio em recém-nascidos e mães da Cidade de Itaituba, Estado do Pará", que visou avaliar os níveis de exposição ao Hg no nascimento e durante os primeiros anos de vida. O projeto se estendeu até 2010 e acompanhou mães e suas crianças nascidas em hospitais de Itaituba, com seguimento periódico das crianças residentes no Município e localidades próximas20,21.
Ainda nessa década, a SAMAM voltou a desenvolver pesquisas em populações garimpeiras, coordenando o estudo de saúde nos garimpos de São Chico e Creporizinho, na bacia do Tapajós, como parte do projeto internacional "Mercúrio global - remoção de barreiras para a introdução de tecnologias limpas de mineração artesanal e extração de ouro"22, coordenado no Brasil pelo dr. Roberto Villas-Bôas (CETEM/MCTIC) e financiado pela Organização das Nações Unidas para o Desenvolvimento Industrial (UNIDO). Também nessa década, prosseguiram os estudos de saúde humana e ambiental em municípios do Acre.
Na segunda metade da década de 2000, a SAMAM iniciou o programa de monitoramento e controle em saúde e meio ambiente em áreas industriais e portuárias dos Municípios de Abaetetuba e Barcarena, Estado do Pará. O programa incluiu projetos que objetivaram a avaliação da saúde humana, exposição a metais e danos aos ecossistemas aquáticos, a partir do lançamento de poluentes nos corpos hídricos da região, e foi financiado com recursos de um Termo de Ajuste de Conduta (TAC) IRCC/MPE-PA/FIDESA/IEC. Já na década de 2010, a SAMAM passou a desenvolver o monitoramento da qualidade da água (consumo, superficial e subterrânea) e avaliação de biomarcadores em ecossistemas aquáticos de áreas portuárias da região metropolitana de Belém e Município de Barcarena. Esses estudos ambientais têm capacitado o IEC para respostas rápidas na avaliação de impactos no ecossistema em casos de acidentes com resíduos industriais e de mineração, bem como de outra natureza, como o naufrágio de carga viva de grandes proporções23 que atingiu o Rio Pará em 2015.
CONTRIBUIÇÕES DOS ESTUDOS DE SAÚDE HUMANA EM RELAÇÃO AO MERCÚRIO
O programa de pesquisa inicial da SAMAM, dedicado ao estudo de populações expostas ao Hg na Amazônia, reuniu um vasto conteúdo de informações quanto às características epidemiológicas, clínicas e laboratoriais de diversos grupos populacionais, incluindo ribeirinhos, populações urbana e rural e indígenas. Desde os primeiros estudos, a metodologia empregada envolvia uma abordagem integradora da epidemiologia, clínica e laboratório, a fim de contextualizar a avaliação das condições de vida e saúde dos participantes. Outro fato importante é que, mesmo antes do estabelecimento das resoluções brasileiras sobre pesquisas com seres humanos, a SAMAM já utilizava termo de consentimento para os participantes dos estudos, atendendo a princípios éticos internacionais. Em relação ao tipo de exposição ao Hg, foram pesquisados grupos expostos ao vapor de Hg ou Hg metálico (exposição ocupacional de trabalhadores e de pessoas residentes próximas a fontes de emissão de vapor de Hg) e grupos expostos ambientalmente pelo consumo de peixes contendo a substância. Os trabalhadores de garimpo apresentaram Hg em urina com teores variáveis, sendo, em alguns casos, bastante elevados. No entanto, os estudos em trabalhadores de estabelecimentos de compra de ouro16, na década de 1990, mostraram níveis de Hg na urina com média variando de 9,5 a 81,1 µg.L-¹, indicando situações de maior exposição em relação aos garimpos na mesma década10 (que apresentaram média de 6,4 µg.L-¹) e na década seguinte22 (média de Hg em urina de 13,75 e 17,37 µg.L-¹ em dois garimpos de Itaituba).
Os estudos indicaram a ocorrência de elevada exposição ao Hg em algumas comunidades da bacia do rio Tapajós (média variando de 11,75 a 19,91 µg.g-¹ em cabelo)14, com persistência da exposição. Esses teores mostraram-se maiores nesses locais quando comparados com áreas mais afastadas, no rio Amazonas15,24 (média de Hg de 4,3 µg.g-¹), e em sub-bacias do Estado do Acre, com média de Hg em cabelo de 2,41 µg.g-¹ em Rio Branco18, na bacia do rio Acre, e média de 3,99 µg.g-¹ no agrupamento de três cidades da bacia do rio Juruá25. Em algumas cidades do Acre, incluindo Rio Branco, uma pequena parte da população apresentava níveis moderados ou elevados de exposição, segundo referências internacionais26. Em áreas de conservação ambiental, como florestas nacionais, também se verificou um nível de exposição intermediário entre o que foi observado na bacia do Tapajós e nas áreas mais afastadas tidas como áreas não diretamente impactadas pelo Hg15. Os recém-nascidos pesquisados em Itaituba apresentaram teores de Hg superiores aos níveis apresentados por suas mães (média de 16,68 µg.L-¹ em sangue de cordão umbilical e de 11,53 µg.L-¹ em sangue materno), sugerindo exposição fetal e transferência de carga de Hg por via placentária20, havendo diminuição do teor de Hg nos primeiros quatro anos de vida e tendência ao aumento nos anos seguintes21. Os resultados dos estudos evidenciaram a necessidade de intensificação de vigilância em saúde das populações expostas ao Hg, devido aos níveis de exposição encontrados14,27 e às condições de vida e morbidade prevalente, que podem favorecer os riscos de efeitos adversos28,29. A avaliação dos níveis de Hg em pescado nas localidades pesquisadas, sobretudo em peixes carnívoros, tem demonstrado consonância com a exposição verificada nas populações15. Os estudos prosseguem com o monitoramento de grupos populacionais com exposição elevada ou de maior vulnerabilidade e com a utilização de novos biomarcadores para avaliação de impactos precoces em sistemas orgânicos.
CONTRIBUIÇÕES DOS ESTUDOS AMBIENTAIS E BIOLÓGICOS E AÇÕES DE VIGILÂNCIA
CONTAMINANTES ORGÂNICOS NA AMAZÔNIA
A contaminação do ambiente amazônico por agrotóxicos ou pesticidas pode ser descrita em duas etapas. A primeira relaciona-se ao uso indiscriminado de pesticidas no combate a endemias, como a malária, e à abertura de novas fronteiras na região, como a construção da Rodovia Transamazônica. Essas ações resultaram em um lançamento de grandes quantidades desses produtos na região, com possíveis danos ao equilíbrio ecológico, como é o caso do DDT, um produto altamente tóxico, persistente no ambiente e que tem a capacidade de bioacumulação na cadeia alimentar. O DDT foi utilizado em toda a Região Amazônica e contaminou praticamente todos os compartimentos ambientais, como também a biota aquática30,31. Os indivíduos diretamente expostos, como os agentes de saúde que aplicavam o produto no intra e extradomicílio, podem ter sido contaminados devido à exposição continuada durante ações de combate à malária32.
A segunda etapa de contaminação é recente e relaciona-se com a fronteira agrícola naquela região. O cultivo de monoculturas, como a soja e o dendê33, a produção de arroz na ilha do Marajó e de laranja na região nordeste do Estado do Pará, que utilizam grandes quantidades de agrotóxicos, como o glifosato, estão degradando grandes áreas da floresta e colocando em risco as populações tradicionais e suas comunidades, como os quilombolas e os indígenas.
O IEC, por meio da SAMAM, foi inicialmente designado pelo MS para investigar e analisar a exposição humana a pesticidas, com a determinação de DDT em soro sanguíneo dos agentes de saúde da Funasa. Atualmente, a SAMAM tem recebido demandas dessa natureza de diversos Estados da Amazônia. Além disso, tem realizado a determinação de colinesterase sérica e eritrocitária em agentes de saúde que atuam no controle de endemias. Na última década, em função dos graves problemas ambientais que os agrotóxicos têm gerado em várias regiões do País, a Seção tornou-se referência para o Sistema Nacional de Vigilância em Saúde Ambiental (SINVSA), atuando no Programa Nacional de Monitoramento de Agrotóxicos em Água para Consumo Humano (VIGIAGUA), gerido pela Coordenação Geral de Vigilância em Saúde Ambiental (CGVAM) da Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS) do MS, bem como na avaliação de solos contaminados, no âmbito do Programa de Vigilância de Populações Expostas a Agentes Químicos (VIGIPEQ/CGVAM/SVS/MS).
BACTÉRIAS E VÍRUS NO AMBIENTE
A área de pesquisa em Microbiologia Ambiental foi inicialmente implantada, na atual SAMAM, para o desenvolvimento de estudos voltados à avaliação bacteriológica da qualidade da água, sobretudo aquela utilizada para consumo humano e sua relação com as doenças de veiculação hídrica, ainda em 1992. Com o passar dos anos, esses estudos evoluíram do isolamento, identificação e quantificação de enterobactérias utilizando métodos de cultivo em meios de enriquecimento e aqueles seletivos e indicadores, para pesquisa em nível molecular de diferentes espécies e gêneros de bactérias, inclusive pesquisa de genes de virulência e resistência aos antimicrobianos e metais.
Uma importante coleção de isolados bacterianos das famílias Enterobacteriaceae, Vibrionaceae e Aeromonadaceae foi constituída no Laboratório de Microbiologia Ambiental (LMA), de modo que permitiu também a realização de estudos de genética populacional de bactérias, com a identificação de importante marcador molecular entre cepas patogênicas que circularam na Amazônia em epidemia causada por bactéria34. Isso possibilitou a elucidação, a nível molecular, dos mecanismos de fermentação da sacarose em cepas amazônidas de Vibrio cholerae O1 da sétima pandemia, que são sacarose negativas, diferindo do padrão de cepas epidêmicas que são sacarose positivas35. Houve, ainda, o sequenciamento completo do primeiro genoma bacteriano pelo IEC, um isolado paraense de Vibrio cholerae O1 da sétima pandemia de cólera, o que permitiu a elucidação de suas principais características genéticas36, além de outro isolado de Vibrio cholerae NAG ambiental isolado pelo LMA37.
Outra linha de estudos e investigações mais recente inclui a detecção e caracterização de vírus entéricos em diferentes ecossistemas aquáticos38. Nesse contexto, o vírus da hepatite A tem sido amplamente detectado na região metropolitana de Belém, incluindo águas destinadas ao consumo humano, tratadas e não tratadas, águas de diferentes praias, igarapés e rios, além de corpos hídricos receptores de efluentes de esgotos sanitário, doméstico e industrial não tratados, o que apresenta forte relação com os achados epidemiológicos para hepatite A na região. Tem sido observado, tanto no âmbito das pesquisas quanto na vigilância, que predomina regionalmente o genótipo I do vírus da hepatite A 1, com a cocirculação dos subgenótipos IA e IB. No contexto da vigilância, no período de 2012 até o presente momento, o IEC tem colaborado na investigação de 41 surtos de hepatite A ocorridos em diferentes Estados do Brasil, dentre os quais, 13 tiveram suas fontes de contaminação identificadas.
A participação efetiva na rede de vigilância em saúde ambiental, mais especificamente na área de virologia ambiental, ocorre na perspectiva da recomendação da detecção de vírus em matrizes aquáticas, como base laboratorial para a vigilância epidemiológica das doenças virais de veiculação hídrica; entretanto, não há, atualmente, em nível mundial, uma metodologia padronizada para os diferentes tipos e complexidade de águas existentes, o que representa importante desafio no âmbito do SINVSA. Esforços têm sido realizados no sentido do desenvolvimento de métodos simples, rápidos, reprodutíveis, com baixo custo e recuperação de uma grande variedade de tipos virais para aplicação em monitoramento da qualidade da água em nível nacional. Entretanto, a pesquisa de vírus entéricos em amostras ambientais encontra-se, atualmente, restrita aos grandes laboratórios de pesquisa do País, entre eles o LMA/SAMAM/IEC.
PLÂNCTON E CIANOBACTÉRIAS
A área voltada ao estudo das comunidades planctônicas foi desenvolvida inicialmente no âmbito do LMA/SAMAM/IEC e organizou-se como Laboratório de Biologia Ambiental em janeiro de 2013. Os estudos iniciais estavam relacionados ao papel dos copépodes da comunidade planctônica como hospedeiros de Vibrio cholerae. A partir de 2000, por meio de parcerias interinstitucionais, foram realizadas investigações sobre florações de cianobactérias e detecção de cianotoxinas em ecossistemas amazônicos, que fomentaram a aprovação do projeto intitulado "Estudos sobre o processo de eutrofização do rio Iriri" junto ao Fundo Estadual de Ciência e Tecnologia da Secretaria Executiva de Ciência, Tecnologia e Meio Ambiente do Governo do Estado do Pará (Edital 2003), o qual se propôs realizar um estudo piloto sobre o processo de eutrofização do rio Iriri, avaliando, entre outros fatores, a composição de cianobactérias e os teores de cianotoxinas naquele ecossistema.
Nos anos de 2006 e 2007, foi realizada a investigação da ocorrência de um bloom de cianobactérias tóxicas na margem direita do rio Tapajós, no Município de Santarém, Estado do Pará, sendo os resultados publicados na Revista Pan-Amazônica de Saúde39. A partir de 2008, foram desenvolvidos projetos sobre a utilização de plâncton e cianobactérias como biomarcadores ambientais na avaliação de áreas monitoradas40, no âmbito do Programa Barcarena e em outras áreas, tendo sido firmadas parcerias com outros grupos de pesquisa, estendendo-se também as atividades para a área de macroinvertebrados bentônicos.
A SAMAM desenvolve investigações relacionadas a cianobactérias e cianotoxinas no âmbito do SINVSA desde o ano de 2012, por meio do envio de profissionais para coleta e análises de amostras em laboratório. Essas demandas são provenientes de diversas regiões do Brasil, como ocorrido na avaliação dos microorganismos fotossintetizantes e da presença de cianotoxinas no Ribeirão Taquaruçu Grande em Palmas, Estado de Tocantins; e na avaliação de cianobactérias e cianotoxinas em amostras dos lagos João Godofredo e da Viúva, no Estado de Mato Grosso. Essa área da SAMAM está consolidando o seu papel no SINVSA, no sentido de se tornar referência para as análises de cianobactérias e cianotoxinas e para a capacitação de profissionais de outros órgãos de vigilância no Brasil, por treinamentos de coletas e/ou análises desses agentes em ambientes aquáticos. Além disso, tem realizado a investigação de surtos, danos e/ou impactos ambientais em diversos municípios da Região Amazônica, em atenção à vigilância e às demandas do Ministério Público.
BIOINDICADORES E BIOMARCADORES
A SAMAM, em seus estudos acerca de possíveis rotas de exposição ambiental a contaminantes na Amazônia, tem, historicamente, utilizado bioindicadores de exposição como peixes15,24 e, mais recentemente, camarões, caranguejos, botos e tartarugas da Amazônia, a partir dos quais são dosados metais (biomarcadores) em diversos tecidos, como músculo, fígado, entre outros. A partir desses, evoluiu o interesse pela quantificação de biomarcadores bioquímicos usados para avaliar, por exemplo, o efeito sobre os organismos aquáticos da contaminação dos corpos hídricos, como vem sendo desenvolvido pelo Laboratório de Toxicologia no projeto de saúde e meio ambiente na bacia hidrográfica do rio Aurá, Estado do Pará, local onde são lançados continuamente o chorume do Lixão do Aurá. Contudo, outros biomarcadores bioquímicos, endócrinos e imunológicos têm sido utilizados em projetos em desenvolvimento no Laboratório de Biologia Humana, para avaliar os efeitos subclínicos da exposição humana a poluentes e como auxílio no diagnóstico diferencial em avaliações clínicas de indivíduos expostos.
PARCERIA COM A JICA
O histórico de cooperação do IEC com a Agência de Cooperação Internacional do Japão (JICA) já ultrapassa duas décadas de parceria. Na primeira metade da década de 1990, o IEC participou, junto com o DNPM/MME e com o CETEM/MCTIC, da primeira cooperação, por meio da qual o IEC e os demais parceiros brasileiros receberam doações de equipamentos de análise de Hg e metilmercúrio. Esse foi o início da transferência de conhecimento e tecnologia que permitiu, ao IEC, dispor de uma equipe treinada em uma metodologia de alta qualidade para a análise laboratorial das formas de Hg, agente químico de importância para a vigilância da saúde das populações da Amazônia, devido à ocorrência da exposição ambiental e ocupacional. A Instituição japonesa envolvida na cooperação foi o Instituto Nacional para a Doença de Minamata (NIMD), sendo a equipe liderada pelo dr. Hirokatsu Akagi, o qual realizou treinamento de pesquisadores da SAMAM no Japão e no próprio IEC.
Entre os anos de 2007 a 2011, houve uma nova cooperação entre o IEC, a Universidade Federal do Pará (UFPA) e a JICA, NIMD e o Laboratório Internacional de Mercúrio (instituições japonesas). Por meio dessa cooperação, foram realizados novos treinamentos em metodologias analíticas, treinamentos laboratoriais e epidemiológicos em Minamata, Japão, e treinamento em investigação epidemiológica e clínica em estudos na bacia do rio Tapajós, Estado do Pará. Houve ainda a doação de novos equipamentos de análise de Hg para as instituições brasileiras, atualizando as metodologias analíticas. Ao final dessa cooperação, o IEC realizou o I Simpósio sobre Impactos do Mercúrio no Ambiente e na Saúde Humana, realizado no IEC, em Ananindeua, em julho de 2010.
Motivada pela proposta de retomada dos estudos de Hg no Estado do Acre (iniciativa da dra. Elisabeth Santos, na época, diretora do IEC), uma nova cooperação do IEC foi efetivada, no período de 2012 a 2014, com a JICA, NIMD, Laboratório Internacional de Mercúrio e Prefeitura da Cidade de Minamata, para o fortalecimento da vigilância da exposição ao Hg no Acre. No âmbito dessa cooperação, houve a capacitação de técnicos do IEC e daquele Estado em Minamata. O IEC realizou ainda estudos sobre a exposição ao Hg nas Cidades de Manoel Urbano e Sena Madureira, áreas com indícios de exposição ao Hg em estudos preliminares da década anterior. Nesse período, foi realizado, no Acre, o I Ciclo de Palestras de Saúde Ambiental: Prevenindo os Riscos do Mercúrio, com o desenvolvimento de oficinas pedagógicas em escolas locais sobre educação ambiental com ênfase na prevenção da exposição ao Hg. Os resultados foram apresentados durante o II Simpósio sobre Impactos do Mercúrio no Ambiente e na Saúde Humana, realizado em Belém, em março de 2014, com a participação de autoridades e técnicos das instituições de saúde e ambiente do Acre, além de convidados nacionais e das instituições do Japão.
Devido à consolidação da capacidade técnico-científica e tecnológica na SAMAM, em relação às pesquisas e ações sobre o Hg na Amazônia, foi assinada, para o período 2012-2015, uma nova cooperação entre IEC, JICA e Agência Brasileira de Cooperação/Ministério das Relações Exteriores. Dessa vez, objetivou-se a capacitação de técnicos dos países da Pan-Amazônia em análises de Hg total e metilmercúrio e em epidemiologia e saúde ambiental, com ênfase na vigilância de populações expostas ao Hg nesses países. Essa cooperação ocorreu na modalidade denominada Programa de Treinamento para Terceiros Países, no qual o Brasil e o Japão proporcionaram capacitação para outros países. Por meio desse evento sediado no IEC, foram capacitados 39 técnicos de sete países (Bolívia, Colômbia, Equador, Guatemala, Peru, Suriname e Venezuela). Foram realizadas três edições anuais dos cursos internacionais, sendo três módulos de Análise de Mercúrio Total e Metilmercúrio e dois módulos de Epidemiologia e Saúde Ambiental. O objetivo principal da cooperação foi promover o estabelecimento de uma rede pan-amazônica de monitoramento da exposição ao Hg, contribuindo para a vigilância da saúde das populações. Em outubro de 2015, foi realizada a I Reunião Internacional para Fortalecimento da Rede de Vigilância Ambiental do Mercúrio na América Latina, incluindo o workshop sobre Proposta de Formação da Rede de Vigilância Ambiental do Mercúrio na América Latina e o III Simpósio Internacional sobre os Impactos do Mercúrio no Ambiente e na Saúde Humana, com a participação dos países integrantes da cooperação; e, durante os eventos, foi debatido a formação dessa rede de monitoramento do Hg na região.
Embora o IEC disponha, atualmente, de um parque analítico com equipamentos diversificados para a execução de análises de Hg em diversas matrizes, as principais metodologias analíticas, adotadas até o presente, para a análise e especiação de Hg, são os métodos estabelecidos e atualizados ao longo das diversas cooperações entre o IEC e a JICA. No sentido de ampliar a capacidade analítica institucional e de treinamento, o Instituto também tem adquirido outros equipamentos dedicados às mesmas metodologias (espectrometria de absorção atômica por vapor frio para Hg total; e cromatografia gasosa, com detector de captura de elétron, para metilmercúrio, respectivamente), segundo o método Akagi41. O compartilhamento de experiências dos estudos epidemiológicos nos cursos, treinamentos e projetos em cooperação, possibilitou, à equipe da SAMAM, avanços técnicos e científicos significativos no desenvolvimento de pesquisas e apoio à vigilância em saúde em populações expostas ao Hg na Amazônia.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A SAMAM/IEC apresenta uma grande estrutura, com cinco laboratórios (Toxicologia; Microbiologia Ambiental; Biologia Humana; Biologia Ambiental; e Citogenética e Cultura de Tecidos) e cinco setores, com diversas atividades que não foram contempladas o suficiente neste artigo, o qual se propôs a destacar apenas os principais aspectos de atuação em saúde ambiental, dessa não tão longa, porém intensa, história de importante contribuição para a pesquisa e vigilância em saúde ambiental na Região Amazônica e no Brasil. A SAMAM tem, a sua frente, o grande desafio de continuar inovando nas pesquisas e desenvolvendo novas metodologias analíticas ao mesmo tempo em que fortalece o seu papel regional, nacional e internacional nos campos em que já possui excelência. Sua atuação no SINVSA é reconhecida em áreas como qualidade da água, metais e agrotóxicos, estando em expansão em outras, como cianobactérias e virologia ambiental. A SAMAM também desenvolve estudos em áreas sob impactos ambientais de contaminantes químicos, como metais e compostos orgânicos, analisando matrizes ambientais e biológicas por diversas metodologias analíticas, incluindo técnicas multielementares. Também tem contribuído, desde a sua origem, para a formação e capacitação de pessoas por meio de cursos, treinamentos, estágios e apoio ao desenvolvimento de trabalhos de conclusão de curso, mestrado e doutorado, no sentido de contribuir para o aumento de massa crítica para a Amazônia e o País.
Devido ao seu campo transversal de atuação, que promove a interação da diversidade de disciplinas e a utilização de ferramentas metodológicas múltiplas para abordagem de um mesmo problema, a SAMAM possui uma metodologia de trabalho integradora que oferece resistência a práticas fragmentadas e, certamente, isso tem contribuído para uma melhor compreensão dos cenários indicados pelos resultados dos estudos. Essa interação constitui uma alavanca na promoção do desenvolvimento da SAMAM e na superação de obstáculos nos próximos 25 anos de conquistas.