INTRODUÇÃO
O rinovírus humano (HRV) é o mais comum entre os agentes virais associados a infecções no trato respiratório superior, sendo reconhecido como o principal patógeno causador de resfriado comum. Essas infecções estão entre as principais causas de morbidade em crianças menores de 5 anos de idade e apresentam considerável impacto econômico, em virtude do elevado número de consultas médicas e absenteísmo laboral atrelados a elas1,2.
Integrante da família Picornaviridae, gênero Enterovirus, o HRV está dividido em três espécies, HRV-A, HRV-B e HRV-C. Com base nas características antigênicas e genéticas, hoje já são descritos mais de 100 sorotipos de HRV. A análise das sequências de nucleotídeos, principalmente das regiões codificadoras das proteínas VP1 e VP2/VP4, permitiu agrupar os sorotipos entre as três espécies, sendo que atualmente 80 sorotipos compõem a espécie HRV-A, 32 pertencem à espécie HRV-B e 55 à espécie HRV-C. A partícula viral mede de 25 a 30 nm de diâmetro e apresenta simetria icosaédrica. O capsídeo é formado por 60 cópias de cada uma das quatro proteínas estruturais (VP1, VP2, VP3 e VP4) e envolve o material genético, que é composto por uma fita simples de RNA de polaridade positiva não segmentado (+ssRNA), com aproximadamente 7.200 pb, e possui uma única região de leitura aberta (open reading frame)3.
O desenvolvimento de métodos moleculares proporcionou a realização de estudos sobre a diversidade do HRV e, com isso, a caracterização das diferentes cepas que circulam no mundo. Tais investigações vêm ampliando o conhecimento sobre esse vírus, possibilitando a descrição de novas espécies e sorotipos, bem como a associação das diferentes espécies aos distintos quadros de infecção respiratória desencadeados por HRV4,5,6,7,8.
Este estudo objetivou realizar a epidemiologia molecular e a caracterização genética do HRV em amostras de pacientes hospitalizados com síndrome respiratória aguda grave (SRAG) na Cidade de Belém, Estado do Pará, Brasil.
MATERIAIS E MÉTODOS
POPULAÇÃO DO ESTUDO
A população do estudo compreendeu 224 indivíduos, dos quais 130 (58%) eram do sexo feminino e 94 (42%) do masculino, em diferentes faixas etárias, com queixas sugestivas de infecção respiratória aguda, hospitalizados em unidades de saúde de Belém, no período de janeiro de 2013 a janeiro de 2014, triados pela Rede de Vigilância da Gripe, cujo diagnóstico para o vírus influenza mostrou-se negativo.
AMOSTRAS
A coleta do espécime clínico foi realizada em pacientes que apresentavam sinais e sintomas de infecção respiratória com até cinco dias de evolução. Tal coleta foi realizada mediante aspirado de nasofaringe, utilizando-se bomba a vácuo acoplada a um tubo coletor contendo meio de transporte (Hanks e gelatina a 0,5%) ou por swab combinado (narina/garganta), que foram colocados em tubos contendo meio de transporte e encaminhados sob refrigeração (4° C) ao Laboratório de Vírus Respiratórios do Instituto Evandro Chagas, devidamente rotulados com nome do paciente e data de coleta.
PROCESSAMENTO DAS AMOSTRAS
Extração do RNA viral
O RNA viral (RNAv) foi extraído a partir do espécime clínico, utilizando-se o PureLinkTM Viral RNA/DNA Mini Kit (Invitrogen, Life Technologies, Carlsbad, EUA), seguindo-se as orientações do fabricante, e posteriormente estocado a -70° C, quando não submetido de imediato à etapa de detecção.
Detecção de HRV por rRT-PCR
A detecção do genoma viral foi realizada através da reação em cadeia mediada pela polimerase precedida de transcrição reversa em tempo real (rRT-PCR); foram empregados o kit comercial AgPath-IDTM One Step RT-PCR Kit (Ambion, Life Technologies, Austin, EUA), sondas e oligonucleotídeos iniciadores específicos para HRV (Quadro 1), de acordo com o protocolo desenvolvido pelo Centers for Disease Control and Prevention (CDC)9.
Amplificação dos genes VP4/VP2 e região 5' NCR por RT-PCR
A reação em cadeia da polimerase precedida de transcrição reversa (RT-PCR), em um único tubo, foi realizada utilizando-se AgPath-IDTM One Step RT-PCR Kit (Ambion, Life Technologies, Austin, EUA) e oligonucleotídeos iniciadores específicos (Quadro 2), que produzem um fragmento de 549 pb, que compreende os genes VP4 e VP2 e a parte hipervariável da região 5' NCR, como descrito por Savolainen et al4. Cada conjunto de amostras submetido à amplificação foi acompanhado de um controle negativo (água livre de DNAse e RNAse) e um positivo (RNA de HRV clonado em plasmídeo), os quais foram produzidos e cedidos pelo CDC4.
Para amplificação, a mistura de reação foi inicialmente incubada a 45° C por 30 min e 94° C por 5 min, seguindo-se 40 ciclos de 94° C por 45 s, 61° C por 45 s e extensão a 72° C por 1 min. A etapa de extensão final foi feita a 72° C por 10 min. As etapas de RT-PCR foram realizadas em termociclador automático MasterCycler EP Gradient S (Eppendorf, Birkmann Instrument, Hamburgo, Alemanha).
Eletroforese em gel de agarose
Ao término da amplificação, os produtos da RT-PCR foram analisados por meio de eletroforese horizontal em gel de agarose 1,5% corado por GelRed(tm) Nucleic Acid Gel Stain (Biotium, Hayward, CA5, EUA). Os produtos foram submetidos à migração no gel, junto com o marcador de peso molecular 200 lines SmartLadder (EUROGENTEC, San Diego, EUA), inicialmente por 5 min a 80 V, seguindo-se de 25 min a 110 V. A visualização dos amplicons, impregnados pelo corante, foi feita em transiluminador com luz UV e fotografado com o auxílio do sistema Vilber Loumart.
Purificação e quantificação do produto da RT-PCR
Nas amostras em que foi observada a banda no tamanho esperado (549 pb), procedeu-se à purificação do produto amplificado. Para tal procedimento, foi utilizado o kit comercial QIAquick PCR Purification (QIAGEN, Maryland, EUA), sendo seguidas as instruções do fabricante. Ao final do processo, o produto eluído foi quantificado, seguindo-se instruções do fabricante do marcador de peso molecular Low Mass Ladder (Invitrogen, Carlsbad, EUA). Assim, a concentração de cada amostra foi determinada comparando-se a intensidade das bandas do marcador com a banda das amostras, sendo o resultado expresso em nanogramas.
Reação de sequenciamento
Para a reação de sequenciamento, foi utilizado o kit Big Dye(r) Terminator v3.1 Cycle Sequencing (Applied Biosystem, Life Technologies, Carlsbad, EUA). Foram preparadas misturas de reação com volume final de 10 µL, composta por 2 µL de Big Dye(r), 1 µL de tampão 5X Running Buffer, 5 µL de DNA (50 ng) e 0,5 µM de oligonucleotídeos específicos (Quadro 2). Essa mistura foi processada em termociclador automático (MasterCycler EP Gradient S, Eppendorf, Birkmann Instrument, Hamburgo, Alemanha), tendo sido executado um ciclo a 94° C por 2 min, seguido de 25 ciclos, cada um composto por 94° C por 45 s, 50° C por 30 s e 60° C por 4 min.
Precipitação e eletroforese do produto da reação de sequenciamento
Após a reação de sequenciamento, as amostras foram submetidas à precipitação com isopropanol e etanol, com a finalidade de se retirar o excesso de nucleotídeos marcados não incorporados na reação de sequenciamento. Foram adicionados 40 µL de isopropanol 65% ao produto da reação; incubou-se por 15 min à temperatura ambiente. Em seguida, foi realizada centrifugação a 4.500 rpm durante 45 min. O sobrenadante foi desprezado e o sedimento lavado com 200 µL de etanol 70%; seguiu-se centrifugação a 4.500 rpm por 20 min. O sobrenadante foi desprezado. Após o descarte do sobrenadante, o sedimento foi secado em termobloco a 60° C por 5 min e ressuspenso em 15 µL de formamida deionizada (Formamida Hi Di, Applied Biosystems, Life Technologies, Foster City, EUA). Após ressuspensas em formamida, as amostras foram submetidas à desnaturação por 95° C durante 5 min e, em seguida, colocadas em banho de gelo por 2 min. Posteriormente, foi realizada a eletroforese em sequenciador automático ABIPrism 3130 xl (Applied Biosystem, Foster City, EUA), baseada no método de terminação de cadeia por didesoxirribonucleotídeos marcados com substâncias fluorescentes que, ao contato com raios laser, emitem fluorescência de diferentes comprimentos de ondas correspondentes a cada um dos quatro nucleotídeos que compõem basicamente a molécula de DNA (A, C, T, G) localizados na extremidade 3'10.
Análise da sequência de nucleotídeos e inferências filogenéticas
As suítes de bioinformática Geneious v8.1.4 e UGENE v1.16 foram utilizadas para visualização, edição e alinhamento das sequências obtidas. Para o estudo filogenético, as sequências foram comparadas com as de outros rinovírus isolados e disponíveis no banco de dados do Genbank (http://www.ncbi.nlm.nih.gov). A construção das árvores filogenéticas foi realizada através do método de agrupamento de vizinhos (neighbor-joining)11, usando o programa SeaView12. A análise de bootstrap com 1.000 réplicas foi usada para dar confiabilidade aos grupamentos filogenéticos13.
RESULTADOS
O presente estudo analisou 224 amostras por rRT-PCR, das quais 59 (26,3%) foram positivas para o HRV.
A distribuição por faixa etária evidencia que os adultos foram os mais acometidos pelo HRV, expressando 45,7% (n = 27) dos casos positivos. Nota-se ainda a grande concentração de casos positivos para o vírus no grupo de 0-4 anos durante o período estudado (n = 23, 39%) (Figura 1).
Quanto à distribuição mensal dos casos positivos de HRV, os meses de maio e junho mostraram um maior pico de infecções no ano de 2013, com 20 e 25 casos positivos, respectivamente, seguido pelo mês de setembro, no qual foram observados seis casos (Figura 2).
Todas as 59 amostras positivas foram submetidas à RT-PCR e 34 (57,62%) mostraram bandas de interesse, tendo sido, em seguida, purificadas e quantificadas para realização da reação de sequenciamento para posterior análise.
Entre as 34 amostras submetidas ao sequenciamento, em 22 foi possível realizar a identificação das espécies de HRV, sendo 13 (59%) classificadas como HRV-A, oito (36,3%) como HRV-C e uma como enterovírus humano D68 (EV-D68). Nenhuma amostra de HRV-B foi detectada. Entre as espécies de HRV-A e HRV-C, diferentes genótipos puderam ser identificados (Figura 3).
DISCUSSÃO
O presente estudo avaliou a presença de HRV em amostras de pacientes hospitalizados com SRAG em Belém no período de 12 meses. Os resultados obtidos expressaram uma taxa de infecção por HRV relevante, fato já descrito em outros estudos realizados em Teresópolis14 (Estado do Rio de Janeiro), Uberlândia15 (Estado do Minas Gerais) e Buenos Aires16 (Argentina), por exemplo, que apresentaram taxas de infecções por HRV de 33%, 41,7% e 34,4%, respectivamente, o que mostra que esse vírus é um agente importante no que diz respeito às infecções respiratórias.
Desde sua descoberta, o HRV foi intimamente associado aos quadros de infecções respiratórias moderadas, tais como o resfriado comum. Atualmente, de acordo com as diversas investigações conduzidas em todo o mundo, o HRV tem aparecido como um dos principais agentes associados a casos graves de infecções respiratórias, como asma e infecções do trato respiratório inferior6,17,18,19,20.
Os resultados do presente estudo demonstraram que os principais grupos etários acometidos foram os de crianças de 0-4 anos e adultos de 26-59 anos. Da mesma forma, a investigação conduzida por Costa15 verificou uma alta taxa de crianças menores de 5 anos de idade com infecção respiratória aguda causada por HRV, e o estudo realizado por Seo et al21, no ano de 2014, detectou a presença do vírus em adultos hospitalizados com infecção respiratória aguda (IRA).
Quanto à distribuição mensal do HRV em Belém, durante o período estudado, foi verificada a maior circulação desses agentes nos meses de maio e junho, assim como visto para outros vírus respiratórios, como influenza, metapneumovírus e vírus respiratório sincicial; a circulação do HRV ocorreu predominantemente no primeiro semestre do ano, o qual costuma estar associado ao período de maior pluviosidade na região22. Em investigações realizadas ao redor do mundo, o HRV, assim como os demais agentes virais causadores de IRA, tem seu pico de atividade associado principalmente aos meses mais frios do ano7,22,23,24.
Estudos com base na variabilidade genética do HRV permitiram identificar as três espécies desse agente que hoje circulam no mundo, bem como os distintos sorotipos presentes em cada espécie4,22,25,26,27.
A caracterização genética realizada neste estudo, ainda que em um número reduzido de amostras, evidenciou a circulação das espécies A e C de HRV em Belém no período analisado, com distintos sorotipos em cada espécie. Esses achados corroboram os de outros autores, os quais demonstraram uma maior ocorrência das espécies HRV-A e HRV-C, principalmente em pacientes com quadros mais graves de infecção respiratória7,21,22.
Investigações realizadas nos anos de 2008 e 2009 no Japão7 e, entre os anos de 2009 a 2012, na China21, demonstraram dados semelhantes aos do presente estudo, evidenciando também a maior ocorrência das espécies HRV-A e HRV-C; assim como, neste trabalho, também não foi demonstrada a circulação de HRV-B.
No Brasil, estudo conduzido em distintas populações, no Estado de São Paulo, demonstrou a circulação das três diferentes espécies de HRV, sendo a espécie HRV-A a mais prevalente, analogamente ao encontrado nesta investigação28.
Quanto à detecção de EV-D68 em uma das amostras analisadas, tal fato já havia sido descrito por outros autores que utilizaram a mesma metodologia de detecção abordada16,20. O EV-D68 é um vírus detectado esporadicamente em casos de infecção respiratória, sendo que a maioria deles se apresenta de forma grave, principalmente em crianças menores de 5 anos de idade29,30. Esse agente foi detectado recentemente em surtos de doença respiratória nos Estados Unidos31.
CONCLUSÃO
O HRV apresentou-se como um importante agente de doença respiratória na população investigada (n = 59, 26%). A faixa etária de 19 a 59 anos concentrou a maioria de casos de infecção respiratória associada ao HRV (45,7%), seguida pelo grupo de 0-4 anos (39%). O pico de atividade do HRV na em Belém ocorreu principalmente nos primeiros seis meses, os quais costumam ser meses com altos índices pluviométricos na região. Houve cocirculação das espécies de HRV, com leve predominância da espécie HRV-A. Distintos sorotipos de HRV foram detectados em Belém. Um caso de SRAG associado ao EV-D68 foi detectado. Este é o primeiro estudo sobre a ocorrência de HRV na Região Amazônica.