INTRODUÇÃO
Hantaviroses são antropozoonoses causadas por vírus pertencentes ao gênero Hantavirus, família Bunyaviridae, possuindo manifestações clínicas de uma doença febril aguda inespecífica que podem evoluir para duas síndromes graves, a febre hemorrágica com síndrome renal (FHSR), endêmica na Europa e na Ásia e com letalidade de no máximo 10%, e a síndrome pulmonar por hantavírus (SPH), específica do Novo Mundo e com letalidade de 50%, doença considerada emergente, de grande impacto em saúde pública. Na América do Sul, observou-se uma diferenciação da síndrome pulmonar, possuidora de sintomatologia cardíaca, que passou a se chamar síndrome cardiopulmonar por hantavírus (SCPH)1.
O vírus Hantaan (HTNV), protótipo do gênero, foi isolado a partir de tecido pulmonar de roedores silvestres (Apodemus agrarius coreae) capturados às margens do rio Han, na zona rural do Sul da Coreia - daí a origem de seu nome. Juntamente com os vírus Seoul (SEOV), Dobrava (DOBV) e Puumala (PUUV), distribui-se amplamente pelo território euro-asiático, ocasionando a FHSR, que foi relatada pela primeira vez em 1951 em soldados norte-americanos que combatiam na Guerra da Coreia, recebendo a denominação de febre hemorrágica da Coreia. Entretanto, anteriormente, foi também descrita como nefrose-nefrite hemorrágica na Rússia e, nefropatia epidêmica na Escandinávia2,3,4.
A família Bunyaviridae foi estabelecida em 1975 e está dividida em cinco gêneros - Orthobunyavirus, Nairovirus, Phlebovirus, Tospovirus e Hantavirus - sendo o Hantavirus o único gênero que não é um arbovírus. Contém mais de 350 vírus com distribuição mundial, incluindo vários patógenos de humanos, vegetais, animais e artrópodes. Atualmente, 23 hantavírus, com distribuição mundial, são reconhecidos pelo International Committee on Taxonomy of Viruses (ICTV)5.
Os membros do gênero Hantavirus são envelopados de forma esférica, possuindo um diâmetro de 80-120 nm; o genoma é composto por três segmentos de fita simples de RNA de polaridade negativa. O segmento L (large) é responsável pela codificação da polimerase viral; o segmento M (medium) codifica as glicoproteínas de envelope Gn e Gc; e o segmento S (short) codifica a proteína N do nucleocapsídeo6. Os hantavírus possuem replicação viral igual a dos outros bunyavírus, com todo o processo ocorrendo no citoplasma celular.
A transmissão das hantaviroses nos humanos ocorre, predominantemente, pelas vias aéreas superiores, através da inalação de aerossóis produzidos pelas excretas de roedores contaminados, principalmente em ambientes fechados. Entretanto, pode ocorrer em ambientes abertos também7.
Existem relatos raros de outros tipos de transmissão do agravo para os humanos, que incluem a mordedura de roedores, a ingestão de alimentos contaminados; também se pode adquirir a doença quando se leva a mão à boca ou ao nariz após o toque em um fômite ou local contaminado8,9,10.
A transmissão interpessoal foi relatada após um surto na Argentina causado pelo vírus Andes (ANDV) em profissionais da saúde que trataram pacientes acometidos pelo agravo internados em enfermarias, e foi também registrada em um grupo familiar em 1997, no Chile. Existe o relato da transmissão vertical em humanos na Coreia, infecção relacionada ao HTNV, em duas gestantes, resultando em aborto e morte fetal11,12,13.
Existem quatro fases clínicas evolutivas na SCPH, a saber, prodrômica, cardiopulmonar, diurética e de convalescença, não se apresentando até o momento alteração de sintomatologia em crianças e gestantes.
A finalidade da vigilância epidemiológica das hantaviroses é identificar, de forma mais célere possível, os casos, tomando-se decisões imediatas de prevenção e controle, para que não ocorra aumento no números de casos e surtos da doença. A vigilância epidemiológica possui cinco objetivos: 1) detectar precocemente casos e/ou surtos; 2) conhecer a história natural da SCPH no Brasil; 3) identificar fatores de risco associados à doença; 4) recomendar medidas de prevenção e controle; e 5) estudar a tendência da doença1.
A investigação deve ser iniciada o mais breve possível, para que o local provável de infecção (LPI) seja logo detectado, bem como qualquer fator que tenha um possível envolvimento no caso1. Estudos e investigações ecoepidemiológicas de hantavírus têm sido realizados no Brasil, desde 1995, por diferentes instituições situadas em várias regiões do País, com o objetivo de determinar as espécies de roedores reservatórios desses vírus e de identificar as respectivas variantes virais nos diversos biomas brasileiros14.
Os roedores da ordem Rodentia, famílias Muridae e Cricetidae, são os hospedeiros e reservatórios naturais dos hantavírus15. A maior quantidade de casos de hantavirose relatada no mundo é de FHSR, nos continentes europeu e asiático, causados por roedores pertencentes à família Muridae, subfamília Murinae, tendo o HTNV como protótipo de pesquisa e maior responsável pelos casos16. Em relação à distribuição geográfica, os muríneos são endêmicos na Eurásia, com exceção das espécies Rattus norvegicus, R. rattus e Mus musculus, que foram introduzidas no Novo Mundo pelos colonizadores europeus15.
Os roedores da família Cricetidae são os transmissores no Novo Mundo da SCPH, sendo esses pertencentes às subfamílias Sigmodontinae e Neotominae, destacando-se os vírus Sin Nombre (SNV) na América do Norte e ANDV na América Latina. Entretanto, recentemente, foi incluída a família Cricetidae, subfamília Arvicolinae, sendo essa albergante de vírus causadores de FHSR, como o PUUV17.
O diagnóstico das hantaviroses, no Brasil, é realizado somente pelos laboratórios de referência nacional (Instituto Adolfo Lutz - IAL/SP), regionais (Instituto Evandro Chagas - IEC/PA e Fundação Oswaldo Cruz - FIOCRUZ/RJ) e pelos Laboratórios Centrais (LACEN) de Minas Gerais, Mato Grosso, Paraná e Goiás. A técnica laboratorial mais realizada é a de ELISA-IgM, devido à detecção dessa imunoglobulina logo no início dos sintomas da doença e a seu custo mais baixo em relação a outros métodos1.
Assim como para outras viroses, nas hantaviroses não existe tratamento específico, apenas sintomático. Sua prevenção e controle consistem, basicamente, em medidas que evitem o contato do ser humano com o roedor silvestre reservatório e suas excretas. Essas medidas são necessárias, principalmente, para trabalhadores rurais17.
Na Ásia, a maior concentração de casos de hantaviroses está na China, Rússia e Coreia, havendo várias cepas patogênicas. Na China, entre 1950 e 2007, foram notificados 1.557.622 casos, com 46.427 mortes18. A Rússia, devido à sua extensão territorial, apresenta 97% dos seus casos registrados no continente europeu e 3% no continente asiático, com uma média de 6.000 a 8.000 casos anuais19,20. A Coreia do Sul apresenta anualmente de 300 a 900 casos21.
Na Europa, existem fatores históricos relacionados à circulação dos hantavírus antes da sua descoberta em 1976, pois, durante a Primeira Guerra Mundial, ocorreu um agravo chamado "nefrite trincheira", com sintomatologia igual à já comprovada da FHSR; em 1934, ocorreram casos na Suécia e, a partir de 1945, esse agravo passou a se chamar de nefropatia epidêmica, com casos descritos nos países nórdicos22,23.
A África teve seu primeiro registro de circulação viral em 2006, e, a partir de então, outras cepas virais foram encontradas em mamíferos, porém sem registro de casos humanos comprovados até o momento24.
Nas Américas, a SPH foi detectada pela primeira vez em maio de 1993, no sudoeste dos Estados Unidos, a partir de um surto em uma população indígena, na região de Four Corners25, tendo sido registrados, entre os anos de 1993 e 2009, 510 casos de SPH. O Panamá apresentou um surto de 12 casos, dos quais três evoluíram a óbito, entre 1999 e 200026, destacando-se na América Central. Sobressaem, na América do Sul, a Argentina e o Chile como os países com mais registros de casos de hantaviroses4.
No Brasil, os primeiros casos foram detectados em 1993 no Estado de São Paulo, no Município de Juquitiba, num surto familiar que causou dois óbitos27. A partir de então, a hantavirose passou a ser endêmica no País. Atualmente, encontra-se distribuída em 15 Unidades Federadas, nas cinco regiões do País28.
O Estado do Pará teve seu primeiro caso de SCPH notificado em 1995, no Município de Altamira29, apresentando casos anuais restritos até o momento à região oeste estadual, que, segundo estudos, podem estar relacionados à influência da rodovia BR-163 (Cuiabá-Santarém), devido à intensa prática agrícola e ao desmatamento na região30. Até o ano de 2013, foram registrados 91 casos e 42 óbitos, perfazendo uma taxa de letalidade de 46,15%28.
Devido à situação epidemiológica apresentada no Pará, este estudo tem como objetivo descrever o perfil epidemiológico da hantavirose no Estado, pela análise dos casos comprovados de SCPH no período de 1995 a 2012.
MATERIAIS E MÉTODOS
Foi realizado um estudo descritivo do tipo ecológico transversal, analisando os dados secundários de todos os casos notificados e confirmados do Sistema Nacional de Agravos de Notificação (SINAN) do Pará entre 1995 e 2012, obtidos na Secretaria Estadual de Saúde do Pará (SESPA). A população utilizada no estudo foi constituída de casos suspeitos positivos com SCPH, notificados no SINAN, procedentes desse Estado.
Para a análise dos dados secundários, assim como tabulação, organização e cálculo das medidas de tendência central, foram utilizados os programas Microsoft Office Excel 2007 e Tabwin v3.2. Foram avaliadas as variáveis demográficas (sexo, idade, escolaridade, manisfestações clínicas e alterações laboratoriais e radiológicas), geográficas (residência, local provável de infecção) e temporais (data de início de sintomas, data de notificação, data de investigação); e situações e exposições de risco. Foram realizados os cálculos dos indicadores epidemiológicos de taxa de letalidade, mortalidade e prevalência.
Com base no modelo de avaliação de vigilância em saúde pública proposto pelo Centers for Disease Control and Prevention (CDC) - Updated Guidelines for Evaluating Public Health Surveillance Systems - foram avaliados os atributos quantitativos de oportunidade e sensibilidade e o atributo qualitativo de qualidade de dados31. Foram utilizados os softwares Epi Info v3.5.2 e Microsoft Office Excel 2007.
O atributo de oportunidade avalia a capacidade do sistema de vigilância de cumprir os prazos estabelecidos na conduta do agravo. O atributo de sensibilidade avalia a proporção de casos verdadeiros detectados pelo sistema de vigilância, quando comparados com os casos notificados do agravo, e a capacidade da vigilância de detectar surtos do agravo. O atributo qualidade de dados avalia a completude e a validade de dados obrigatórios e essencias dos casos suspeitos positivos no banco de dados, sendo considerados como incompletude os campos deixados em "branco" ou marcados como "ignorado" (número 9), assim como outro número que não esteja referenciado na ficha de investigação epidemiológica (FIE)31.
As váriaveis selecionadas para análise de completude foram as alusivas a pessoa, lugar, tempo e situações e exposição de risco descritas na metodologia. Para se realizar a categorização das variáveis, foram utilizados os parâmetros descritos por Pereira32.
Ao longo do desenvolvimento do trabalho, foram utilizados dados secundários do banco de dados epidemiológicos dos casos de hantavirose, no Estado do Pará, entre 1995 e 2012, do SINAN-PA, obtidos da SESPA. Foi avaliada a variavél de LPI dos casos confirmados, utilizando-se o software tabulador de banco de dados TabWin v3.6 e, posteriormente, foi desenvolvido um banco de dados geográficos relacionados aos casos, o que possibilitou que análises de distribuição espacial fossem desenvolvidas pelo software ArcGis v9.3. Devido à ausência de informações da localização precisa de onde ocorreram os casos de hantavirose, que constituiriam a informação primordial do LPI, foi convencionado, para efeito de análise de distribuição espacial, que esses ocorreram nas sedes dos municípios, sendo nessas indexados.
O Banco de Dados Geográficos foi desenvolvido a partir da utilização de planos de informações temáticas, relacionadas aos tipos de desmatamentos, no Estado do Pará, disponibilizados no Programa de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais.
Para este estudo, foram processadas as classes ou planos de informação, que foram agrupadas em quatro macroclasses, em arquivos no formato shapefile (.shp), a saber, vegetação, desmatamento, hidrografia e outros, para que fosse possível evidenciar o desmatamento no Pará e sua relação com a distribuição espacial dos casos de hantavirose.
Para a análise da correlação visual entre o desmatamento e a distribuição espacial dos casos de hantavírus no período estudado, objeto deste estudo, procedeu-se a uma divisão em três mapas, cujos períodos foram de 1995 a 2000, de 2001 a 2006, e de 2007 a 2012. Esses mapas foram inter-relacionados aos mapas de desmatamentos dos anos de 2000, 2006 e 2012, respectivamente.
RESULTADOS
Por meio da análise do banco de dados da SESPA, foi encontrada uma grande variação de casos no período do estudo. O Estado possui alguns anos sem casos registrados, contudo, a partir de 2003, os casos passaram a ser anuais.
O Pará teve 235 casos notificados, sendo 77 deles positivos para hantavirose. Desses, 33 evoluíram a óbito, perfazendo uma taxa de letalidade de 42,8%. Durante todo o período do estudo, a letalidade manteve-se alta, possuindo uma média de 42,2%.
Durante dois períodos do estudo, não houve notificação de casos: 1996-1999 e 2001-2002. Pode-se inferir que esse achado se deve a possíveis subnotificações de casos nesses períodos, pois as características ambientais, assim como as possíveis situações/exposições de risco para infecção com hantavírus, como o desmatamento, mantiveram-se presentes no Estado.
A partir da análise da variável sexo, concluiu-se que o sexo masculino foi o mais afetado pelos hantavírus, chegando a 60 casos (77,9%), e maior quantitativo de óbitos, 25 (75,7%); porém a taxa de letalidade foi maior no sexo feminino, devido à proporção casos/óbitos. Quanto à variável escolaridade, constatou-se que a maior parte dos casos, 42 (54,5%), não concluiu o ensino fundamental; 34 casos (44,2%) foram declarados pardos (Tabela 1).
Para a análise da faixa etária, foi realizada uma divisão por décadas, tendo a faixa etária de 21 a 30 anos o maior quantitativo de casos, 26 (33,7%); entretanto, a faixa etária de 11 a 20 anos apresentou maior taxa de letalidade (70%). Considerando-se a população economicamente ativa (PEA), referenciada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) através da Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílios de 2013, a qual relata que indivíduos a partir dos 15 anos de idade são considerados PEA, apenas dois casos confirmados do Pará não estão compreendidos nesse critério, estando abaixo dos 15 anos. Foram suprimidas as faixas etárias abaixo de 11 anos e acima de 60 anos, por não terem casos confirmados.
As manifestações clínicas mais apresentadas pelos pacientes com hantavirose foram inespecíficas, como ocorre em outras viroses, a exemplo da gripe e da dengue. A febre foi o sinal clínico mais apresentado (88,3%), comum em infecções virais; e a cefaleia, o sintoma mais apresentado (80,5%). Na hantavirose, os sintomas respiratórios são os diferenciais da doença, tendo a dispneia sido relatada por 58 (75,3%) e a insuficiência respiratória aguda (IRA) em 24 (31,2%) casos, sendo esse segundo sintoma grave, necessitando de importante atenção das equipes de saúde.
As alterações laboratoriais e radiológicas na hantavirose são importantes, para se fechar o diagnóstico de forma mais célere, estabelecer diferenciação com outras viroses e para a tomada de condutas ágeis, necessárias à manutenção do quadro clínico do paciente, devido à rápida evolução do quadro pulmonar. O hematócrito > 45% foi o achado laboratorial mais apresentado pelos pacientes (35; 47,2%); por sua vez, o achado radiológico mais relatado foi o infiltrado pulmonar difuso (35; 45,4%). Não foram considerados, no total de casos, aqueles assinalados com o número 3 ("não realizado") na ficha de investigação epidemiológica.
As situações e exposições de risco têm relação direta com a contaminação dos pacientes, principalmente se eles estiverem em ambientes fechados; porém, em ambientes abertos, também ocorrem infecções pela partícula viral. As situações e/ou exposições de risco mais referidas pelos pacientes foram trabalhos agrícolas, como desmatamento, aragem, plantio, colheita, entre outros, e exposição e/ou limpeza de casa, dispensa, galpões, depósitos e outros, apresentando uma taxa de 44,1% (34) dos casos.
As variáveis sexo, idade, município de residência e início dos sintomas tiveram 100% de preenchimento de seus campos, sendo consideradas como excelentes; já a variável alterações radiológicas foi considerada ruim, perfazendo 67,5% de completude de seus dados.
A sensibilidade da vigilância estadual da hantavirose obteve variações na detecção de casos durante o estudo, apresentando detecção média de 32,8% (77) ao longo do período; portanto, é considerada baixa, com base na proporção de casos notificados versus confirmados. O achado mais relevante na avaliação do critério de oportunidade, foi que, em média, 90% das notificações foram realizadas fora do período preconizado, sendo, portanto, consideradas inoportunas. Por seu turno, os resultados dos estudos das oportunidades de investigação e de encerramento demonstraram, em média, 80% e 82%, respectivamente, tendo sua realização ocorrido dentro dos períodos preconizados, sendo assim reputados como oportunos.
O município com maior número de pacientes residindo foi Novo Progresso, com 41 (52,2%), seguido de Altamira, com 26 (33,7%). Três casos registrados no SINAN oriundos do Estado do Pará, moravam no Estado do Mato Grosso. Novo Progresso e Altamira foram os municípios mais relatados como LPI, tendo o primeiro 39 (50,6%) e o segundo 26 (33,7%) casos, respectivamente; cinco não tiveram seu campo preenchido, sendo considerados como "em branco".
Analisando-se os óbitos por LPI, foi possivel calcular as taxas de letalidade, mortalidade e prevalência demonstradas na tabela 2. Na análise das datas de início dos sintomas, notificação e investigação dos casos, observou-se que esses foram amplamente distribuídos durante todo o ano, tendo sido registrados casos em todos os meses (Figura 1).
* População de acordo com o Censo Demográfico do IBGE de 2010.
Sinal convencional utilizado: - Dado numérico igual a zero não resultante de arredondamento.
Durante o primeiro período analisado (1995-2000) na relação casos de hantavirose versus desmatamento, houve casos notificados somente em Altamira (Figura 2). Na análise dos dois últimos períodos da relação casos de hantavirose versus desmatamento, salienta-se que os municípios notificadores de hantavirose estão, em sua maioria, localizados ao longo da BR-163, com destaque para o Município de Novo Progresso, que possui um quantitativo alto de casos notificados (Figuras 3 e 4).
DISCUSSÃO
Neste estudo, pioneiro para o Estado do Pará, obtiveram-se informações importantes referentes ao perfil epidemiológico dos casos de hantaviroses, pela análise do banco de dados do SINAN-PA, que poderão servir como base para a tomada de condutas da vigilância epidemiológica estadual.
Considerando-se o gênero, o maior índice de infecção do sexo masculino pode estar relacionado aos trabalhos agrícolas - os quais exigem condicionamento e esforço físico maiores e são predominantemente realizados por homens - resultado corroborado por Poutanen et al33, que encontraram achados semelhantes ao pesquisarem pacientes com IRA de causa desconhecida, sendo 60% dos seus pacientes homens; Katz et al34 encontraram 80% dos casos de SCPH pertencentes ao sexo masculino em sua análise entre os anos de 1993 e 1998, no Estado de São Paulo.
A escolaridade baixa demonstrada pode ter relação com os trabalhos manuais, dado que pessoas com menor escolaridade tendem a realizar a maioria dos serviços braçais, como a colheita agrícola e o corte de lenha, podendo haver assim contato com roedores e/ou suas excretas. Nunes et al35 encontraram, em seu estudo no Cerrado brasileiro, o nível de escolaridade dos casos maior que o apresentado no Pará - em que 23,7% dos casos possuíam entre a 5ª série do ensino fundamental e o ensino médio completo - divergindo também em relação à raça/cor, pois, enquanto no Cerrado a maioria dos casos foram em pessoas brancas, no Pará observou-se um índice maior entre indivíduos pardos.
As décadas enquadradas na PEA, com maior quantitativo de casos, indicam uma possível relação direta da infecção por hantavírus com o trabalho da população suscetível, resultados também demonstrados por Lavocat et al36, em que os casos tinham idades entre 21 e 49 anos, com mediana de 34 anos. Figueiredo et al37 relataram que o aumento da infecção por hantavírus tem uma relação direta com o trabalho executado pelo homem na degradação ambiental, afetando a ecologia dos roedores silvestres e facilitando, assim, o surgimento de casos de SCPH. Contudo, a alta taxa de letalidade de pacientes abaixo de 20 anos de idade demonstra a necessidade de estudos aprofundados que referenciem uma patogenicidade nessa faixa etária, pois não foram encontrados trabalhos científicos que retratassem relação entre essa faixa etária e maior patogenicidade do hantavírus.
A sintomatologia apresentada pelos pacientes foi comun a viroses inespecíficas, sendo a febre a principal sintomatologia apresentada, resultado semelhante ao de Limongi et al38, que encontraram febre em 100% dos casos estudados. Porém, quando associada aos achados radiológicos e laboratoriais, como o infiltrado pulmonar e a hemoconcentração, e levando-se em consideração a situação epidemiológica do paciente, poderia ser feito o diagnóstico diferencial rápido da hantavirose e serem tomadas as condutas médicas relevantes para a manutenção clínica do paciente, sendo preconizado o uso de procedimentos de UTI. Em locais onde o reconhecimento de pacientes suspeitos clinicamente de hantavirose foi feito de forma célere e iniciadas as condutas terapêuticas adequadas, a taxa de sobrevida aumentou, alcançando percentuais de 70 a 80%10. Ponderando-se a alta letalidade apresentada no período do estudo, que pode se relacionar à virulência da variante viral Castelo dos Sonhos (CASV), reforça-se a hipótese de Figueiredo et al37, que relataram que a letalidade dos pacientes pode ser diretamente associada com a variante viral circulante.
As principais situações e exposições de risco apresentadas no Pará assemelham-se com as já registradas em outros lugares do Brasil, onde os serviços agrícolas e a limpeza de locais que servem de reservatórios para os alimentos produzidos ficam fechados. Tal situação já foi relatada por Elkhoury7, que estudou fatores epidemiológicos da SCPH no Brasil, expondo que mais de 50% das infecções ocorreram em indivíduos ligados às atividades agropecuárias, o que é preponderante para a ocorrência da infecção pelo hantavírus, através da inalação dos aerossóis acumulados nesses ambientes.
O atributo de qualidade dos dados dos casos confirmados foi considerado como excelente, tendo uma média de 91,9% de preenchimento; porém o campo "alterações radiológicas" teve um preenchimento considerado ruim, demonstrando que essa ferramenta, a qual é de vital importância para fechamento do diagnóstico das hantaviroses de forma célere, possivelmente não está sendo utilizada pelos profissionais de saúde ou, nas unidades de saúde de urgência e emergência, não está sendo disponibilizado esse serviço.
Analisando-se os casos notificados suspeitos de hantavirose no período do estudo, observou-se uma baixa sensibilidade da vigilância em detectar casos positivos e a não detecção de surtos no período, o que pode estar relacionado ao desconhecimento clínico-epidemiológico das hantaviroses pelos profissionais de saúde que atenderam os pacientes. Pela análise das oportunidades da vigilância de hantavirose do Pará, a vigilância não é considerada oportuna, sendo importante salientar o alto índice de notificações fora do prazo preconizado, indício de que os profissionais que fizeram o primeiro atendimento ao paciente não suspeitaram de hantavirose ou desconheciam a epidemiologia da doença.
Os resultados encontrados dos atributos da vigilância estadual da hantavirose foram semelhantes aos encontrados por Santos e Garrett39, divergindo somente na qualidade dos dados, pois, no estudo citado, a qualidade dos dados foi considerada baixa.
Segundo Medronho et al40, um surto é a ocorrência de eventos relacionados à saúde que claramente excedam a expectativa normal, que estejam relacionados entre si e em área delimitada ou não. Com base nesse conceito, não foi detectado nenhum surto durante o estudo.
Tanto os locais de residência quanto os LPIs apresentados pelos casos, majoritariamente, situaram-se no oeste do Estado do Pará e norte do Estado de Mato Grosso, podendo corroborar, dessa forma, a hipótese formulada por Medeiros et al30 de que a BR-163 exerce uma influência direta na situação epidemiológica de acúmulo de casos na região, devido ao aumento da fronteira agrícola e ao desmatamento ao longo dessa estrada.
Mills41 relatou que a perda da biodiversidade de uma região contribui para o aparecimento de doenças infecciosas, o que pode ser o caso da hantavirose. Segundo Calisher et al42, a redução da biodiversidade já aumenta a prevalência de infecção por hantavírus em roedores, de maneira que a alteração profunda de um habitat causada por mineração extrativista e expansão habitacional é um motivo de grande preocupação para o aumento de infecção nos seres humanos.
Durante todo o ano, algumas variáveis podem influenciar no quantitativo de casos de hantavirose. O clima é uma das principais, pois influencia no plantio, aragem e colheita, por exemplo, assim como pode alterar a disponilidade de alimentação dos roedores silvestres, devido à germinação dos vegetais.
As variáveis relacionadas ao tempo demonstraram que a hantavirose no Pará não apresenta um período do ano específico. Contudo, no início do ano, o quantitativo de casos foi maior, podendo ter relação com o período mais chuvoso da Região Amazônica, que se inicia no fim do ano anterior, aumentando a germinação dos vegetais que servem de alimentação dos roedores e, consequentemente, havendo crescimento dessa população.
Esses resultados divergem dos encontrados no estudo de Donalisio et al43, que evidenciou uma tendência na relação de período do ano e pluviosidade com o risco de transmissão de hantavírus, tendo o período com menos chuvas apresentado mais casos no Estado de São Paulo. Segundo Imholt et al44, as alterações nas condições climáticas podem ter uma infinidade de efeitos sobre as populações de roedores através de vias indiretas, muitas vezes difíceis de distinguir.
GEOPROCESSAMENTO DOS CASOS DE SÍNDROME CARDIOPULMONAR POR HANTAVÍRUS
O georreferenciamento dos casos de hantavirose no período do estudo confirmou o acúmulo desses na região oeste do Estado do Pará, corroborando a hipótese de Medeiros et al30 sobre a influência da BR-163 na ocorrência de casos de hantavirose. Essa alusão demonstra a necessidade de permanentes atualizações, oficinas e cursos de manejo clínico e epidemiológico dos pacientes suspeitos e confirmados da virose na região.
A concentração de notificações demonstrada na região oeste estadual, nas análises geográficas, salienta a necessidade de avaliações posteriores em municípios vizinhos aos notificadores, pois percebeu-se que alguns municípios estão cercados por outros endêmicos e não apresentaram casos.
Foi observado que, em regiões em que aumentou a área desmatada, casos passaram a ser notificados. Entretanto, na região Sudeste, que apresentou aumento da área desmatada durante todo o período de estudo, não se registrou nenhum caso, indicando-se uma possível subnotificação.
A ausência da informação de localidade de infecção nos LPIs demonstra a necessidade de maior orientação das vigilâncias municipais no preenchimento desse campo, pois é essencial o conhecimento do ambiente real onde, possivelmente, ocorreu a infecção, para se determinar a maior quantidade dos fatores relacionados a esse contágio. Tais fatores envolvem as situações/exposições de risco, reservatórios e ecótopo do local, principalmente em situações como a do Município de Altamira, que possui uma grande extensão territorial, havendo diferença de biótopo entre a sede do município e seus distritos administrativos.
A falta dos dados reais da localidade e dos possíveis LPIs gerou um viés na análise espacial de geoprocessamento, pois as sedes dos municípios notificadores não refletem a realidade dos ambientes reais em que ocorreram as infecções, uma vez que, nesse mesmo estudo, já foi demonstrado que as principais exposições/situações de risco têm relação direta com trabalhos agrícolas, os quais não são realizados dentro das sedes administrativas. As atividades ligadas ao extrativismo vegetal e mineral que ocorrem distantes dos centros urbanos antropizados, que modificam totalmente o ecótopo dos roedores silvestres, também representam situação de exposição e risco para hantavirose.
Apesar dos resultados apresentados, a vigilância epidemiológica estadual não pode direcionar todas as suas atenções a essa região, pois já se tem o conhecimento do aumento da fronteira agrícola, principalmente plantações de soja, nas regiões nordeste e sudeste do Estado. Assim, são necessárias investigações epidemiológicas e ecoepidemiológicas para se averiguar a circulação de cepas de hantavírus nessas regiões silenciosas.
CONCLUSÃO
O estudo demonstrou que o Estado do Pará possui um perfil epidemiológico semelhante ao referenciado no Brasil, em que a maioria dos infectados são homens, trabalhadores rurais, na faixa etária de adultos jovens compreendidos na PEA. A exposição a situações de risco está relacionada a trabalhos agrícolas e à limpeza de locais fechados, com armazenamento inadequado de alimentos; e os pacientes apresentaram sintomatologia inespecífica e achados laboratoriais e radiológicos específicos característicos de hantavirose, com LPIs relacionados à expansão agrícola.
Os casos de hantavirose não apresentaram nenhuma relação com períodos específicos do ano, porém com maior ocorrência na região oeste do Pará. A pesquisa demonstrou a necessidade de ações efetivas da vigilância epidemiológica na investigação dos casos e de realização de investigações ecoepidemiológicas, com o apoio de laboratórios de referência e do Ministério da Saúde, nos LPIs já conhecidos e em áreas silenciosas do Estado.
Há necessidade de treinamento e atualização dos profissionais de saúde que atendem nas urgências e emergências hospitalares, visto que o agravo possui uma evolução clínica rápida e alta taxa de letalidade, sensibilizando esses profissionais a terem um olhar clínico apurado para a detecção de possíveis casos suspeitos e o início das condutas adequadas à manutenção da vida dos pacientes.