INTRODUÇÃO
A partir das décadas de 70 e 80 do século XX, o paradigma da epidemiologia social ou crítica foi fortemente adotado na América Latina1. No Brasil, com o recrudescimento da discussão a respeito de equidade social, percebeu-se a necessidade de incluir essa temática nas análises epidemiológicas.
Ainda é presente, nos discursos dos epidemiologistas, o argumento de que a construção de um conceito de epidemiologia social é inócua, já que consideram os atos, fatos e fenômenos investigados pela epidemiologia pertencentes à dimensão social e que, portanto, não seria possível pensar qualquer processo biológico apartado do contexto social2.
Entretanto, os estudiosos que assumem essa nova conceituação, muitos deles referenciados neste texto, insistem na ideia de que nem toda epidemiologia é social e que a distinção é marcada no plano teórico, tendo em vista que a epidemiologia social se preocupa em explicitar o processo saúde-doença pelos seus determinantes sociais.
Quando a pesquisa clínica em doenças infecciosas é considerada em seu conceito ampliado, como uma prática científica que "corresponde a toda pesquisa em saúde que pode ser desenvolvida a partir da relação multiprofissional com o homem e/ou animal e envolver o contexto do adoecimento"3, busca-se alcançar a articulação paciente-pessoa nos campos orgânico, comportamental, familiar, ambiental e social. Desse modo, supera-se a investigação clínico-laboratorial-epidemiológica, visto que há diferentes modos pelos quais a doença se manifesta e variadas formas de relação com o diagnóstico, o tratamento e a cura, de natureza orgânica, emocional e social3.
Partindo dessa compreensão, o presente artigo realiza uma discussão que pretende indicar as contribuições que a abordagem da epidemiologia social pode trazer para os estudos realizados pela pesquisa clínica em doenças infecciosas, de modo a desenvolver um olhar mais amplo sobre o paciente em conjunto com o seu sistema de relações e de produção do adoecimento e da recuperação da saúde.
OS MOVIMENTOS EVOLUTIVOS DA EPIDEMIOLOGIA
Epidemiologia pode ser conceituada como o estudo da distribuição e dos determinantes da frequência das doenças em seres humanos4. Esse conceito é orientado pelo princípio de que o fenômeno "doença" apresenta-se com uma partição desigual ou variável, e, por isso, a epidemiologia tem como tarefa descrever esses diferenciais de acometimento e explicar as causas dessas desigualdades5.
A explicação das desigualdades na manifestação de doenças já foi dada por Hipócrates6, que procurou analisar as relações entre condições ambientais e a tendência a ocorrerem certos quadros de doenças.
A literatura aponta que, desde o século XVI, embora a epidemiologia apresentasse tão somente análises descritivas das epidemias que ocorriam na Europa, vários estudiosos já tratavam das desigualdades sociais no acometimento das doenças7,8,9. Porém, é apenas no início do século XIX que a epidemiologia assume o status de disciplina científica, tanto no campo das ciências naturais como no âmbito das ciências sociais recém-constituídas2.
A sistematização dos estudos que relacionavam o processo saúde-doença às desigualdades sociais foi iniciada pelo trabalho do francês Villermé, de 1826, no qual foi relacionado às taxas de mortalidade o nível de renda, indicador do grau de riqueza ou pobreza da população dos bairros parisienses10. Em outro trabalho sobre os operários das indústrias têxteis, no ano de 1840, Villermé11 constatou que "para encontrar 100 hombres aptos para el servicio militar, es necesario contratar a 193 de la clase adinerada, y hasta a 343 de los pobres".
Na Inglaterra, em 1839, Farr implantou o primeiro registro de morbimortalidade e, a partir de 1860, realizou diversas investigações que explicavam as distinções nos óbitos ocorridos entre mineiros e não mineiros, concluindo que, nos grupos etários superiores a 35 anos, a mortalidade era significativamente maior entre mineiros12.
Com esses estudos, Louis-René Villermé e William Farr passaram a ser conhecidos como os antecessores das atuais aplicações da epidemiologia na identificação de grupos populacionais sob maior risco de adoecimento e morte, que têm a finalidade de orientar a tomada de decisões no planejamento de políticas de saúde.
Na obra "A situação da classe trabalhadora na Inglaterra", de 1884, Engels13,14,15 descreveu as distinções presentes no risco de morte prematura associadas à condição social e alertou para o elevado número de mortos entre pessoas da classe operária inglesa, localizadas na linha de pobreza, devido a esses indivíduos viverem sob condições precárias, destacando as influências danosas que as carências sofridas na infância têm sobre a saúde na idade adulta. Por seus estudos nesse âmbito, é considerado por muitos o fundador da epidemiologia social.
Em meados do século XIX, dois estudiosos se destacaram, Snow e Virchow, que relacionaram condições de vida a processos de adoecimento e defenderam a ideia de que uma intervenção eficaz necessita do conhecimento dos movimentos distributivos dos casos, das características dos indivíduos doentes, bem como do espaço e do tempo de ocorrência desses casos16.
Virchow, por exemplo, considerava que os indivíduos são iguais. No caso de doenças, apresentam manifestações diferentes dos saudáveis, e determinadas condições de vida tidas como anormais são de responsabilidade das nações. Assim, as terapêuticas devem ter também caráter coletivo. Os estudos desse autor foram muito importantes na chamada transição dialética da concepção ambiental social para a unicasualidade microbiana, o que fez com que Virchow tenha sido considerado o pai da medicina social, que deu base para os fundamentos da epidemiologia social16.
A associação entre os estudos epidemiológicos e os fatores sociais, econômicos, culturais e demográficos, delineada em toda a segunda metade do século XIX e início do século XX, que buscava explicar os padrões populacionais de distribuição das doenças, entrou em declínio, permitindo a hegemonia das teorias de unicausalidade.
Os resultados dos estudos de Snow, que apontaram a relação entre o aumento da ocorrência de cólera em trabalhadores e a pequena dimensão das moradias dos bairros proletários, que os obrigava a se alimentarem no mesmo espaço onde havia pessoas doentes, aliados às descobertas de Pasteur e Koch no período de 1860 a 1890, fornecedoras das provas microbiológicas, consolidaram modelos explicativos do processo saúde-doença por uma relação biológica e monocausal, influenciando diretamente a epidemiologia.
A unicausalidade assentava-se na busca de novos agentes causadores na descoberta das formas de transmissão de doenças, a base da terapêutica e da prevenção por vacinas. No Brasil, essa teoria foi predominante no início do século XX e exerceu forte influência tanto nas pesquisas como nas políticas públicas de saúde.
Duas lógicas foram adotadas no unicausalismo brasileiro: o campanhismo e o higienismo. No campanhismo - capitaneado, predominantemente, pelas descobertas e ações da escola de Oswaldo Cruz - o foco era conhecer e combater o agente etiológico via campanhas sanitárias. Nos anos de 1920 a 1930, consolidou-se o higienismo, originado pela dimensão positivista, objetivando curar o Brasil doente do interior; esse movimento contou com a participação de Monteiro Lobato e de sanitaristas como Arthur Neiva e Belisário Penna16.
Barata2 afirma que,
ao contrário do que se costuma pensar, a teoria do germe, longe de resultar [em] um unicausalismo, favorece a substituição de concepções totalizantes, baseadas na ideia de constituição epidêmica e estrutura epidemiológica, por modelos mais ou menos simplificados de multicausalidade.
A epidemiologia assume a multicausalidade de influência positivista para a explicação das doenças, incluindo, além dos micróbios, a "carência física, alimentar e educacional"; saliente-se que, muitas vezes, incorporou elementos eugênicos pela discriminação racial17.
A teoria da multicausalidade incluía ainda aspectos relativos à organização da sociedade e à cultura sem, entretanto, esses se constituírem em fatores determinantes na produção de doenças. A tríade ecológica de Leavel e Clark, por exemplo, é um modelo de explicação da causalidade que considera a relação entre epidemiologia e ciências sociais apenas no plano instrumental na chamada epidemiologia dos fatores de risco, sem uma articulação coerente entre esses fatores e os eventos sociais18.
A expansão econômica iniciada no último quarto do século XIX, que se prolongou até a segunda década do século XX, especialmente no Hemisfério Norte, promoveu reformas sociais que resultaram na melhoria geral das classes trabalhadoras e, consequentemente, da expectativa de vida. O envelhecimento das populações modificou o perfil de adoecimento e morte, e as doenças infecciosas e parasitárias foram substituídas pelas doenças crônico-degenerativas. Esses movimentos também provocaram significativas transformações nos modelos de estudo da causalidade das doenças, de modo a se abarcar a complexidade dos processos que passaram a ser constituídos.
É possível perceber a organização de novos modelos explicativos em trabalhos como o de Goldberger19, na segunda década do século XX, que analisou as relações entre a pobreza urbana e rural e a diferença na alimentação dos pobres desses espaços ao estabelecer as causas da etiologia.
Outro estudo que também considerou a dimensão social nesse período foi o publicado por Stevenson, em 1920, no qual o autor apresentou o primeiro sistema de classificação social, demonstrando que os índices de mortalidade eram maiores entre os estratos mais pobres dos grupos ocupacionais da Inglaterra20.
Em 1930, Mayor Greenwood desenvolveu importantes técnicas estatísticas para estudos epidemiológicos, buscando relacionar câncer e estratificação social, e constatou uma mortalidade maior entre as classes mais baixas21.
A partir dos anos de 1940, em nível mundial, manifesta-se a tendência de superação dialética do modelo multicausal para o modelo preventista etapista, que manteve os elementos fundamentais do positivismo. Apenas no ano de 1948, quando a Organização Mundial da Saúde definiu a saúde como "o estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doenças"22, é que se deu uma retomada da dimensão social da saúde.
A EPIDEMIOLOGIA SOCIAL OU CRÍTICA NO CONTEXTO DOS PROCESSOS DE SAÚDE-DOENÇA
Até os anos de 1960, foram escassas as publicações de estudos etiológicos orientados pelas desigualdades sociais, e, apenas em 1967, há o registro da pesquisa de Antonovsky que tratava das relações entre classe social, mortalidade e expectativa de vida. Nesse período, foram realizados estudos que usaram os fatores socioeconômicos como mais uma característica individual dos sujeitos de pesquisa, o que limitava a análise da dimensão social5.
O interesse pelas explicações sociais do processo saúde-doença foi renovado a partir da segunda metade do século XX, motivado, principalmente, pela influência das transformações sociais derivadas da emergência dos movimentos políticos que lutavam pela garantia dos direitos civis, pelo fortalecimento da perspectiva crítica e pela "valorização do contexto sociocultural e político na determinação dos comportamentos humanos"18.
As mudanças ocorridas no plano teórico das investigações epidemiológicas começaram a ser consolidadas a partir da década de 1970, especificamente na América Latina, na busca da construção de um modelo de causalidade centrado na determinação social da doença, como uma tentativa de superar o referencial teórico-positivista da epidemiologia clássica ou convencional, hegemônico nos países centrais23.
Os estudos que privilegiam temáticas da saúde pública, em geral, estão frequentemente interessados em investigar o modo pelo qual as condições sociais influenciam e determinam o processo saúde-doença das populações, o que tem gerado uma forte articulação entre a epidemiologia e as ciências sociais. É assim que se constrói um ramo epidemiológico denominado por alguns estudiosos "epidemiologia social" e, por outros, "epidemiologia crítica"2,24.
A epidemiologia social ou crítica tem como foco principal o estudo do modo pelo qual a sociedade e os diferentes modos de organização social influenciam a saúde e o bem-estar dos indivíduos e dos grupos sociais, possibilitando a incorporação de suas experiências societárias, para a melhor compreensão de como, onde e porque se dão as desigualdades na saúde.
Nancy Krieger25, em seu "A glossary for social epidemiology", afirma que a epidemiologia social assume um diferencial pela insistência em investigar os determinantes sociais da distribuição populacional da saúde, doença e bem-estar, ao invés de tratá-los como meros panos de fundo dos fenômenos da biomedicina.
Krieger25 alerta, porém, que assumir essa dimensão na investigação epidemiológica exige atenção às teorias, conceitos e métodos relacionados às ciências sociais, tais como: expressão biológica da desigualdade social; discriminação; gênero, sexismo e sexo; privação (material e social); curso de vida; exclusão social; entre outros. Tais construtos são consistentemente discutidos em seu glossário.
O reconhecimento da relevância dos aspectos sociais no processo saúde-doença é um consenso. Entretanto, as diferentes correntes que tratam dessa temática apresentam divergências significativas quanto à teoria social fundante, à concepção de causalidade ou determinação adotada, aos conceitos básicos para a fundamentação dos estudos e à abordagem analítica dos fenômenos individuais ou coletivos. Essas diferenças resultam na produção de diferentes modelos explicativos na epidemiologia social2.
Kaplan26 considera que a semelhança desses modelos explicativos assenta-se principalmente na abordagem multinível ou hierárquica da realidade, na valorização de diferentes processos e no reconhecimento de influências recíprocas entre os distintos processos. Por sua vez, Barata2 conclui que, do mesmo modo como nem toda epidemiologia pode ser considerada social, há diferentes epidemiologias sociais: a ecoepidemiologia; a teoria do capital social; a perspectiva do curso de vida; a produção social da doença; e a teoria ecossocial.
A epidemiologia social, orientada pela ecoepidemiologia formulada por Susser27, busca superar os problemas teóricos da multicausalidade, ao articular os componentes do modelo em relações de interação e relações estruturais, atentando para os diferentes níveis hierárquicos de constituição do mundo material, compreendendo o processo saúde-doença pelo nível populacional e não pelo nível individual. Susser fundamenta essa concepção ao afirmar que a abordagem multicausal pergunta: "O que coloca a pessoa em risco de adquirir a infecção? Que características individuais estão associadas com o desenvolvimento e a progressão da aids?". A abordagem ecoepidemiológica pergunta: "O que coloca a população em risco de epidemia? Que características populacionais aumentam a vulnerabilidade a epidemias?"2. A essas perguntas, só é possível responder considerando-se os determinantes sociais.
No modelo ecoepidemiológico, considera-se que não são todos os determinantes que representam atributos individuais. É preciso combinar as variáveis grupais ou ecológicas - desigualdade de renda, capital social, características de vizinhança que podem ser derivadas de valores individuais - com variáveis individuais que não permitem a percepção de quais valores são derivados da contribuição de cada indivíduo daqueles derivados do ambiente.
Embora a ecoepidemiologia se aproprie da noção de totalidade, compreendendo o todo como mais do que a mera soma das partes e se caracterize pela concepção de complexidade, não se preocupa com a historicidade das transformações, assumindo as mudanças processuais como explicadas pelas mudanças do ambiente.
A epidemiologia que adota a teoria do capital social28,29,30 emprega procedimentos para compreender o modo pelo qual as desigualdades de renda determinam as alterações na saúde e influenciam o bem-estar dos indivíduos. Nessa abordagem, as questões assumem a seguinte configuração: de que modo os determinantes sociais interferem na conduta dos sujeitos, trazendo-lhes perigo? Como se dá a associação entre indicadores psicológicos e sociais com o avanço das doenças? De que maneira os elementos do campo social e do comportamento determinam a doença?
A combinação de um conceito econômico de capital com conceitos sociais torna a abordagem epidemiológica da teoria do capital social mais interessante para aqueles que definem políticas sociais que utilizam os fatores sociais como meios para justificar fins econômicos.
As principais críticas apontadas a esse modelo referem-se à despolitização do desenvolvimento social; à centralidade dos estudos sobre comportamentos individuais; e à supervalorização das percepções de desigualdade31,32.
A epidemiologia social, fundamentada na abordagem do curso de vida, parte da alegação de que a condição de saúde de um grupo de indivíduos revela não somente suas atuais situações de vida, mas inclui também as circunstâncias anteriores de sua trajetória pessoal, determinada pelo contexto social, econômico, político e tecnológico das sociedades em que esses indivíduos viveram e pelas condições concretas de vida a que foram submetidos.
Kawachi et al33 defendem o pressuposto de que os efeitos do curso de vida sobre a saúde podem ser: i) efeitos latentes, relacionados aos ambientes material e imaterial onde transcorre a infância; ii) efeitos modeladores, resultantes de vivências prematuras que definem trajetórias de vida individual; e iii) efeitos cumulativos decorrentes da intensidade e da duração de exposições nocivas à saúde durante a vida.
O modelo interpretativo do curso de vida opera em duas vertentes explicativas: a materialista, para a qual a distribuição da doença é determinada pelas condições materiais agregadas à estrutura de classes; e a vertente psicossocial, defensora da ideia de que a produção de doenças resulta de múltiplos estressores e da ausência de habituação, provocados pela interferência das condições materiais e dos aspectos psicossociais, como sucesso, fracasso e frustração, sobre os sistemas adaptativos34.
A situação de miséria ou exclusão social de grande parte das populações é caracterizada pelas exposições psicossociais adversas, que resultam em impactos negativos sobre a saúde mais intensos do que quando não acompanhadas de privação material. Por isso, defendem alguns estudiosos, é preferível que seja adotado um sistema considerado sob vários pontos de vista, combinando elementos materiais e imateriais, variáveis individuais e coletivas, na elucidação do ordenamento das características pessoais34,35,36.
A teoria da produção social da doença, que fundamenta a epidemiologia social ou crítica, está filiada ao materialismo histórico e dialético, tendo como conceito fundante a reprodução social. Adota modelos que explicitam os elementos políticos, econômicos e sociais na classificação da saúde e dos agravos, na identificação dos aspectos que protegem e que prejudicam a saúde presentes na organização social24.
O movimento de conformação, consolidação e transformação das organizações sociais, que é o próprio processo de reprodução social, compõe-se de processos biocomunais, comunais-culturais, societais e políticos, organicamente articulados, que se referem à reprodução cotidiana das condições para sobrevivência, à reprodução da autoconsciência e da conduta humana, aos processos de produção, distribuição e consumo de riqueza, às condições ambientais e às relações de interdependência entre todas essas dimensões1,37.
As principais vertentes da teoria da produção social da doença são: i) estudos pelas estruturas de classe; e ii) estudos pelo conceito de espaço socialmente construído, também chamados de estudos de vizinhança, bastante utilizados nas investigações de desigualdade social em saúde, especialmente na epidemiologia social das doenças infecciosas38, embora com outra orientação teórica.
Os estudos epidemiológicos orientados pela teoria ecossocial de Krieger25 procuram articular os raciocínios social e biológico numa perspectiva histórica e ecológica. Essa teoria incorpora elementos biológicos e sociais, percurso histórico da vida, indicadores do contexto ambiental, produção social e dimensão política. Krieger, em sua teoria ecossocial, realiza uma síntese, em que a ecoepidemiologia se apropria da ideia de sistematização do real em diversas extensões dos sistemas determinantes e mediados entre elas; o curso de vida, toma-se a determinação social na história ou trajetória de vida; e da teoria da produção social, incorporam-se a reprodução social e a dimensão política25.
Assim, articulam-se nos organismos vivos as dimensões biológica e social e se constrói uma abordagem mais sistemática e integrada, capaz de gerar novas hipóteses, ao invés de, tão somente, reinterpretar fatores identificados por aproximações biológicas ou sociais.
CONSIDERAÇÕES EM PROCESSO - A EPIDEMIOLOGIA SOCIAL OU CRÍTICA E A PESQUISA CLÍNICA NAS DOENÇAS INFECCIOSAS
A história das doenças constata o declínio das doenças infecciosas, a exemplo de tuberculose, difteria, tifo, sífilis, varíola, hanseníase, antes dos progressos realizados pela bacteriologia e pela imunologia, que resultaram em medidas terapêuticas como o controle e o saneamento ambientais. Entretanto, a expectativa da erradicação das doenças infecciosas pelo desenvolvimento da penicilina não se realizou. Daí, a tese da "era da doença crônica", que colocaria as doenças crônico-degenerativas na centralidade dos índices de mortalidade, sendo as infecções minimizadas ou controladas39.
A emergência da aids superou as bases dessa transição epidemiológica, que, até meados dos anos 1990, mantém a hegemonia na explicação das tendências nos processos de adoecimento e morte das populações. Entretanto, variados estudos têm evidenciado que muitos micro-organismos apresentam complexas formas de adaptação aos antibióticos. Ao mesmo tempo, a produção de medicamentos e a pesquisa básica não têm sido suficientemente ágeis para enfrentar os processos de propagação e mutação desses micro-organismos. Assim, ocorreu o ressurgimento de doenças já controladas, exigindo a descoberta e a síntese de novas gerações de antibióticos40,41.
Os estudos a respeito da evolução das doenças põem em questão a separação entre doenças infecciosas e doenças crônicas, pela descoberta de que vírus, bactérias e parasitos poderiam estar na origem de muitas doenças cardíacas, do mal de Alzheimer, da esquizofrenia, de muitas formas de câncer e de outras doenças crônicas, inclusive de úlceras gástricas, que são explicadas etiologicamente por infecção bacteriana42.
O Centers for Disease Control and Prevention define doenças infecciosas emergentes como novas infecções que têm aparecido recentemente em determinada população ou que já existiam e vêm aumentando rapidamente, tanto em incidência como no alcance geográfico39,43:
Podem ocorrer pela introdução do agente etiológico em outras espécies ou como variante de uma infecção humana existente em outra população hospedeira ou pelo reconhecimento do caráter não detectável em uma infecção que já estava presente na população e da origem infecciosa de uma doença já estabelecida.
Na determinação da emergência e reemergência das doenças infecciosas está envolvido um elevado número de fatores, que podem ser organizados em sete grupos40: demográficos, sociais e políticos, econômicos, ambientais, desempenho do setor saúde, mudança e adaptação dos micro-organismos e manipulação de micro-organismos para o desenvolvimento de armas biológicas. Dados os limites impostos pela dimensão deste texto e pelo escopo da discussão aqui apresentada, destacam-se, a seguir, quatro desses fatores.
Citem-se inicialmente os fatores demográficos de países pobres, definidos pela aglomeração de população vivendo em espaço reduzido, com saneamento inadequado, em condições precárias de habitação, proliferação de fauna sinantrópica, infraestrutura urbana deficitária e elevada degradação ambiental. Esses indicadores criam condições favoráveis para a multiplicação e propagação de determinados agentes, seus vetores e reservatórios - por exemplo, a emergência da dengue. Por seu turno, o aumento da expectativa de vida da população dos países desenvolvidos submete os idosos a determinados agentes infecciosos, levando inúmeras vezes ao agravamento das doenças, como ocorre no caso das epidemias de influenza.
No campo dos fatores sociais e políticos, constata-se que a eclosão das guerras provoca elevado deslocamento de massas populacionais e a criação de grandes grupos de refugiados que sobrevivem em condições degradantes, criando ambientes favoráveis para a emergência e reemergência de doenças. Há estudos que relacionam a emergência da epidemia do HIV/aids com as guerras. Do mesmo modo, as mudanças comportamentais resultantes da urbanização, a liberalização sexual e a propagação do uso de drogas injetáveis contribuíram fortemente com a reemergência e a disseminação das doenças sexualmente transmissíveis.
A diversidade do desenvolvimento socioeconômico e o comércio internacional têm, historicamente, se revelado importantes fatores de disseminação de doenças infecciosas: o comércio entre a Ásia e a Europa trouxe ratos e peste; o escravismo trouxe dengue, febre amarela e seus vetores para as Américas; o cólera veio da Índia para o mundo em pandemias sucessivas; são alguns exemplos do papel do comércio internacional na emergência e reemergência de doenças infecciosas.
Relativamente à emergência e reemergência de doenças infecciosas associadas aos fatores ambientais que são provocados por grandes projetos de engenharia, como rodovias, represas, ampliação de fronteiras, é possível notar, por exemplo, no Brasil, que a construção da hidrelétrica de Itaipu criou condições para a emergência da malária na Região Sul; e a ocupação de novas áreas tem ampliado a área de transmissão da leishmaniose tegumentar americana. As mudanças no clima parecem ter grande influência na presença de doenças transmitidas por vetores: secas e inundações contribuem fortemente para a emergência e disseminação de doenças como o cólera e a leptospirose.
Diante desse quadro, a pesquisa clínica em doenças infecciosas, quando compreendida na sua dimensão ampliada, para alcançar o contexto paciente-pessoa no nível orgânico, comportamental, familiar, ambiental e social, pode e deve receber contribuições significativas da epidemiologia social ou crítica, de modo a multiplicar a produção do conhecimento e as possibilidades de aplicação resultantes; e ampliar o envolvimento da diversidade profissional, tornando esses estudos cada vez mais qualificados no que diz respeito à atenção e à promoção da saúde.
A pesquisa clínica ampliada busca a análise dos aspectos epidemiológicos, dos diagnósticos e da evolução de diversas doenças infecciosas, entre outras, além de avaliar as intervenções profiláticas e terapêuticas no que diz respeito a esses agravos, considerando o cuidado à saúde, compreendida como "resultante das condições de alimentação, habitação, educação, renda, meio ambiente, trabalho, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse de terra e acesso a serviços de saúde"44.
A epidemiologia, quando considerada nas suas dimensões social e crítica, revela-se como um campo de conhecimento científico essencial para a geração de dados capazes de possibilitar a análise de processos de saúde e de adoecimento nos contextos político, econômico e social de uma determinada sociedade, em determinado momento histórico45.
O reconhecimento dos determinantes sociais no processo saúde-doença pela epidemiologia e pelos epidemiologistas confere-lhe o status de uma teoria social que facilita a compreensão dos sistemas que geram as necessidades dos sujeitos sociais, reorientando os procedimentos para a análise epidemiológica, a indicação dos diagnósticos e a definição das intervenções preventivas e terapêuticas das doenças, o que é uma tarefa da pesquisa clínica46,47.
Ao se colocar a epidemiologia social no contexto do Sistema Único de Saúde, é possível percebê-la como fundamental para a realização do princípio da integralidade, haja vista sua capacidade de articulação das dimensões de singularidade, particularidade e estruturação da realidade objetiva dos sujeitos sociais e das comunidades, necessárias para a compreensão dos fenômenos e para o planejamento e execução de ações que transformem o quadro da saúde no país48,49.
É preciso destacar que a perspectiva ampliada trazida pela epidemiologia social não exclui os recursos da biomedicina; pelo contrário, mantêm-nos na sua integridade. Nessa ampliação, os conhecimentos e os saberes biomédicos configuram-se como elementos importantes na vida do sujeito, deslocando-os do lugar absoluto a que foram alçados, acatando o saber e o papel ativo do usuário em defesa de sua saúde, reconhecendo os limites de qualquer saber estruturado diante das situações concretas e complexas da vida e os limites dos saberes que estão em jogo, identificando os poderes que lhes são associados. Assim, a prática da pesquisa clínica garante sua articulação com os princípios políticos, éticos e estéticos50.
Diante do exposto, é fundamental que a pesquisa clínica em doenças infecciosas se aproprie das culturas interdisciplinares e interculturais dos processos que determinam a produção e a distribuição da saúde e de seus serviços, de modo a contribuir ainda mais efetivamente para os programas de prevenção e promoção da saúde, agora com um olhar mais amplo sobre os sujeitos de sua investigação.