INTRODUÇÃO
A Chlamydia trachomatis é responsável pela infecção sexualmente transmissível (IST) bacteriana mais prevalente no mundo, além de ser a causa mais comum de infertilidade evitável e frequentemente identificada nos grandes centros urbanos1,2,3,4. Possui 19 genótipos, que estão relacionados a três formas clinicamente distintas dessa infecção: o tracoma, causado pelos genótipos A, B, Ba e C, considerado a principal causa de cegueira evitável no mundo5; o linfogranuloma venéreo, causado pelos genótipos L1, L2, L2a e L3, uma IST que se estabelece predominantemente com caráter invasivo; e manifestações clínicas bem específicas, como a linfadenopatia inguinal6. Os genótipos D, Da, E, F, G, Ga, H, I, Ia, J e K estão associados a infecções urogenitais não invasivas, que são assintomáticas em até 80,0% das mulheres e podem determinar sequelas severas no aparelho reprodutivo feminino, como doença inflamatória pélvica, gravidez ectópica e aborto espontâneo7,8,9.
No Brasil, a prevalência de infecções por C. trachomatis varia entre 4,3% e 31,0%, conforme estudos de base populacional/comunitária de grandes centros urbanos e estudos de base clínica, realizados com participantes frequentadoras de ambulatórios e clínicas ginecológicas10,11,12,13,14,15,16,17,18,19. Nas comunidades amazônicas, há escassez de conhecimento sobre a epidemiologia da infecção endocervical por C. trachomatis, o que impossibilita a criação de diretrizes que estabeleçam o rastreio e controle dessa infecção.
Os testes de amplificação de ácidos nucleicos (NAAT) são recomendados para o screening dessa infecção, apresentam alto padrão de sensibilidade e especificidade e têm como alvo principal as sequências do gene ompA, que codifica a proteína principal de membrana externa (MOMP)1.
A pesquisa da infecção endocervical por C. trachomatis em estudantes universitárias se faz necessária, pois, apesar de se tratar de uma população de mulheres conhecedoras das medidas de prevenção das IST desde a educação básica, apresenta maior exposição aos fatores de risco comportamentais20,21,22,23. Os objetivos deste estudo foram demonstrar a prevalência da infecção endocervical por C. trachomatis em estudantes de uma universidade da capital e de três de seus campi do interior do estado do Pará, Amazônia, Brasil, e investigar a sua associação com características sociodemográficas,comportamentais e de queixa ginecológica dessa população.
MATERIAIS E MÉTODOS
Foi realizado um estudo transversal de base populacional/comunitária em demanda espontânea de estudantes de quatro campi de uma universidade pública no estado do Pará, no período de setembro de 2010 a outubro de 2014: campus de Belém (Capital), Bragança (Interior 1), Castanhal (Interior 2) e Altamira (Interior 3).
O estudo investigou estudantes universitárias dos quatro campi que já tinham vida sexual, que possuíam idade igual ou superior a 18 anos e desejavam realizar o exame preventivo do câncer do colo do útero (PCCU). Não foram investigadas as estudantes grávidas, menstruadas ou que haviam realizado o exame de PCCU há menos de um ano.
As estudantes incluídas no estudo concordaram em participar da pesquisa mediante a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), e, após essa assinatura, as universitárias preencheram o protocolo de pesquisa que abordou as variáveis investigadas, tais como: idade, estado civil, tabagismo, idade do início da vida sexual, uso de preservativo masculino, média de parceiros na vida sexual e presença de alguma queixa ginecológica - corrimento vaginal, odor, prurido, dismenorreia, colporragia e disúria.
Este estudo é parte de um projeto de extensão universitária denominado "Ações de prevenção de doenças infecciosas integradas à saúde estudantil" e teve aprovação dos Comitês de Ética em Pesquisa em Seres Humanos do Instituto de Ciências da Saúde e do Núcleo de Medicina Tropical (NMT), ambos da Universidade Federal do Pará (UFPA), por meio dos projetos de pesquisa "Avaliação da citologia na prevenção e detecção precoce do câncer" e "Detecção e genotipagem de Chlamydia trachomatis em estudantes universitárias atendidas no Laboratório de Citopatologia da UFPA: análise citológica e molecular", sob os pareceres nº 173/08, de 4 de novembro de 2008, e nº 103.571/2012, de 21 de setembro de 2012, respectivamente.
As amostras de secreção endocervical foram obtidas com o auxílio de escova endocervical, durante o exame de PCCU, pela equipe de profissionais do Laboratório de Citopatologia do Instituto de Ciências Biológicas da UFPA. Após a confecção do esfregaço do PCCU, a escova endocervical foi lavada em 600 μL de solução fisiológica 0,9% em microtubo de 1,5 mL.
As técnicas moleculares foram realizadas no Laboratório de Biologia Molecular e Celular (LBMC) do NMT/UFPA. A extração de DNA foi realizada utilizando-se o protocolo modificado de Isola et al.24. O DNA genômico foi extraído pelo método do fenol/clorofórmio-álcool isoamílico, utilizando-se 300 μL da amostra.
A amplificação do fragmento de 270 pb do gene da β-globina humana foi utilizada para o controle de qualidade da extração do DNA, pela reação em cadeia mediada pela polimerase (PCR). Foram utilizados 3,5 μL de GoTaq® Green Master Mix (Promega, Madison, Wisconsin, EUA), 2,0 μL de água, 0,5 μL do DNA, 0,5 μL (pmol) de cada oligonucleotídeo G73 (5'-GAAGAGCCAAGGACAGGTAC-3') e G74 (5'-CAACTTCATCCACGTTCACC-3')25, com volume final de 7 μL.
Uma Seminested PCR foi utilizada para a amplificação parcial (224 pb) do gene ompA [(AF304857 / National Center for Biotechnological Information (www.ncbi.nlm.nih.gov)] de C. trachomatis, empregando-se a metodologia modificada de Jalal et al.26. Na primeira PCR, foram utilizados 6,0 μL de GoTaq® Green Master Mix (Promega, Madison, Wisconsin, EUA), 3,0 μL de água estéril, 1,0 μL (10 pmol) de cada oligonucleotídeo P3 (5'-AAACWGATGTGAATAAAGARTT-3') e P4 (5'-TCCCASARAGCTGCDCGAGC-3') e 1,0 μL de DNA genômico. Na segunda etapa, foram utilizados 6,0 μL de GoTaq® Green Master Mix (Promega, Madison, Wisconsin, EUA), 3,5 μL de água estéril, 1,0 μL (10 pmol) de cada oligonucleotídeo CT P6 (5'-TGGGATCGYTTTGATGTATTYTGT-3') e P4 e 0,5 μL do produto da primeira amplificação. As duas reações tiveram um volume final de 12,0 μL. As PCRs foram realizadas no termociclador Biocycler MJ96G (Applied Biosystems, Foster City, Califórnia, EUA), seguindo 35 ciclos, nos quais a temperatura inicial foi de 94 °C por 4 min, seguida da desnaturação a 94 °C por 40 s, da hibridização a 54 °C durante 30 s, temperatura de ativação da Taq DNA polimerase e extensão a 72 °C por 1 min, seguida de temperatura de extensão final de 72 °C por 10 min e, por fim, resfriamento a 10 °C por 3 min.
Os produtos das amplificações parciais do gene da β-globina humana e do gene ompA foram submetidos à eletroforese (50 V, 100 A, 60 min) em gel de agarose a 2%, corado com brometo de etídio (0,5 mg/mL) e submerso em TAE 1X (Tris-HCl 10 mM, pH = 8; EDTA 1 mM; acetato). Após a eletroforese, os produtos de amplificação foram visualizados sobre luz ultravioleta em transiluminador (Vilber Lourmat, Alemanha) e comparados ao marcador de peso molecular de 100 pb PlusDNA Ladder (Invitrogen, Carlsbad, Califórnia, EUA) (Figuras 1 e 2).
Fonte: LBMC/NMT/UFPA.
Colunas 1-11: Amostras positivas; Coluna 12: Amostra negativa; CP: Controle positivo; CN: Controle negativo; L: Marcador de peso molecular de 100 pb Plus DNA Ladder (Invitrogen, Carlsbad, Califórnia, EUA) obtido em transiluminador (Vilber Lourmat, Alemanha).
Fonte: LBMC/NMT/UFPA.
Colunas 1-4: Amostras negativas; Colunas 5-6: Amostras positivas; CN: Controle negativo; CP: Controle positivo; L: Marcador de peso molecular de 100 pb Plus DNA Ladder (Invitrogen, Carlsbad, Califórnia, EUA) obtido em transiluminador (Vilber Lourmat, Alemanha).
Os dados coletados foram armazenados em planilha do programa Microsoft Excel 2007. O programa BioEstat v5.0 foi utilizado para análise e testes estatísticos. Foi utilizado o teste de Lillefors, para verificar o padrão de normalidade, e o teste de Mann-Whitney, para comparar as medianas das idades das estudantes. Foi utilizada a estimação de parâmetros, para analisar as prevalências, e o teste de odds ratio (OR) foi utilizado para verificar a associação de variáveis sociodemográficas, comportamentais e de queixa ginecológica com a positividade para C. trachomatis. O p ≤ 0,05 foi considerado estatisticamente significativo para um intervalo de confiança (IC) de 95%.
RESULTADOS
Entre as 454 universitárias investigadas, 11,9% [54/454 (IC 95% 8,9-14,9)] foram identificadas com a infecção endocervical por C. trachomatis. A infecção se mostrou em 10,4% [36/345 (IC 95% 7,2-13,7)] das estudantes do campus Capital e em 16,5% [18/109 (IC 95% 10,3-24,6)] das universitárias dos campi do interior. Não houve diferenças significativas entre as prevalências da capital e do interior [p = 0,12 (IC 95% 0,32-1,13)] (Tabela 1). Nos campi do interior, foram observadas as frequências de 7,1% (2/28) para o campus Interior 1, 22,2% (6/27) para o campus Interior 2 e 18,5% (10/54) para o campus Interior 3.
CT (-) | CT (+) | OR | IC 95% | p | ||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
N | % | N | % | IC 95% | ||||
Geral (N = 454) | 400 | 88,1 | 54 | 11,9 | 8,9-14,9 | |||
Capital (N = 345) | 309 | 89,6 | 36 | 10,4 | 7,2-13,7 | 1,69 | 9,20-3,13 | 0,12 |
Interior (N = 109) | 91 | 83,5 | 18 | 16,5 | 10,3-24,6 |
OR: Teste de odds ratio; IC 95%: Intervalo de confiança; CT (-): Negativo para a infecção por C. trachomatis; CT (+): Positivo para a infecção por C. trachomatis.
A idade das universitárias variou de 18 a 67 anos, com média de 25,19 anos (IC 95%, DP ± 6,05), predominantemente do campus Capital (76,0%), solteiras (86,1%), com início da vida sexual aos 15 anos de idade ou mais (93,6%), que usavam preservativo masculino nas relações sexuais (65,2%), que tiveram mais de um parceiro sexual (75,1%) e que apresentavam alguma queixa ginecológica (76,9%) (Tabela 2).
Características | Total | Positivo | p | IC 95% | ||
---|---|---|---|---|---|---|
N | % | N | % | |||
Idade | ||||||
< 25 anos | 162 | 35,7 | 18 | 11,1 | 0,81 | 0,49-1,62 |
≥ 25 anos | 292 | 64,3 | 36 | 12,3 | ||
Campus | ||||||
Capital | 345 | 76,0 | 36 | 10,4 | 0,12 | 0,32-1,09 |
Interior | 109 | 24,0 | 18 | 16,5 | ||
Estado civil | ||||||
Solteira | 391 | 86,1 | 47 | 12,0 | 0,99 | 0,47-2,54 |
Casada | 63 | 13,9 | 7 | 11,1 | ||
Início da vida sexual | ||||||
< 15 anos | 29 | 6,4 | 4 | 13,8 | 0,90 | 0,37-3,28 |
≥ 15 anos | 425 | 93,6 | 50 | 11,8 | ||
Uso de preservativo | ||||||
Sim | 296 | 65,2 | 32 | 10,8 | 0,41 | 0,42-1,34 |
Não | 158 | 34,8 | 22 | 13,9 | ||
Parceiros sexuais na vida | ||||||
1 | 113 | 24,9 | 15 | 13,3 | 0,72 | 0,63-2,24 |
> 1 | 341 | 75,1 | 39 | 11,4 | ||
Queixas ginecológicas | ||||||
Sim | 349 | 76,9 | 36 | 10,3 | 0,73 | 0,44-1,62 |
Não | 105 | 23,1 | 18 | 17,1 |
Na variável idade, os dados foram apresentados como média ± DP (desvio padrão). Os dados foram apresentados como N e % utilizando-se o teste odds ratio. IC 95%: Intervalo de confiança.
A idade média das universitárias que apresentavam a infecção foi de 24,87 anos (IC 95%, DP ± 6,13) e essa infecção foi observada em 12,0% das solteiras, em 13,8% daquelas que iniciaram a vida sexual com menos de 15 anos de idade, em 13,9% das que não usavam preservativo masculino nas relações sexuais, em 13,3% das que tiveram somente um parceiro sexual e em 17,1% das que não apresentavam queixas ginecológicas (Tabela 2).
DISCUSSÃO
A epidemiologia da infecção endocervical por C. trachomatis ainda é pouco esclarecida, principalmente na Região Norte do Brasil, devido a ainda não ser de notificação compulsória e pela ausência de exames sensíveis e de baixo custo na rede pública. O que se sabe sobre essa prevalência está baseado em estudos de populações específicas, como este realizado em uma população de estudantes universitárias. A falta desses dados inviabiliza a formulação de esquemas de controle e prevenção da infecção por parte do sistema público de saúde do país. Não há registros de investigação da infecção endocervical por C. trachomatis exclusivamente com estudantes universitários brasileiros.
Estudos envolvendo universitários de outros países, como Coreia do Sul (3,1%)27, Argentina (5,9%)28 e Inglaterra (3,4%)29, demonstraram prevalências menores que a do presente estudo (11,9%). No entanto, prevalência semelhante (9,7%) da infecção foi encontrada em universitários do Alabama, Mississipi e Geórgia, nos EUA, tendo sido associada a estudantes mais jovens21.
O presente estudo se preocupou em investigar a infecção endocervical por C. trachomatis não somente em estudantes universitárias da capital do estado do Pará, mas também naquelas dos campi do interior, esperando encontrar uma proporção menor no interior. No entanto, as prevalências da capital e do interior não demonstraram diferença significativa, mas se faz necessário aumentar o tamanho amostral para confirmação da aparente maior proporção dessa infecção no interior.
A prevalência da infecção não difere significativamente das encontradas em outros estudos do Brasil, os quais foram realizados em populações femininas urbanas, com variados graus de instrução, como nos estados do Rio Grande do Norte (10,9%)13, Goiás (9,6%)14, Paraná (12,7%)17 e Rio Grande do Sul (11,0%)15. Apenas nos estados da Bahia (31,0%)18 e de Pernambuco (23,8%)16 foram registradas prevalências maiores, porém com tamanho amostral inferior ao utilizado neste estudo.
O presente estudo utilizou a metodologia baseada na amplificação de ácidos nucleicos, que é recomendada para a triagem dessa infecção1; porém estudos anteriores, baseados em técnicas sorológicas de C. trachomatis, mostraram altas frequências algumas comunidades da Amazônia30,31. As prevalências encontradas na capital Manaus (4,3%)11 e na zona rural (6,4%)12 do estado do Amazonas foram inferiores às das estudantes universitárias do presente estudo. Por outro lado, um estudo de base clínica que recrutou mulheres atendidas em uma maternidade de referência, em Belém, registrou prevalência semelhante (11,0%)19.
Na Nigéria, C. trachomatis atingiu uma alta prevalência (30,2%) em infecções sexuais nos universitários e, embora tenha sido utilizada a técnica de detecção sorológica, foi a única prevalência que se mostrou superior a deste estudo1,32. O pequeno tamanho amostral de alguns campi do interior do estado do Pará, juntamente com o possível viés de resposta de preenchimento do questionário, pode ter influenciado a falta de associação das variáveis analisadas com a infecção. As universitárias podem ter respondido ao questionário de acordo com medidas socialmente aceitáveis, com chances de mascarar informações quanto ao respectivo comportamento sexual.
A presença de algum tipo de queixa ginecológica foi uma característica amplamente relatada pelas universitárias de todos os campi estudados; porém, os sintomas da infecção por C. trachomatis são inespecíficos, e outras etiologias podem ser causadoras dos sinais e sintomas ginecológicos relatados33.
Esperava-se encontrar baixas frequências dessa infecção entre universitárias, uma vez que elas apresentam um maior grau de instrução e vivenciam as medidas profiláticas desde o ensino médio, em que são trabalhados temas extracurriculares, como a prevenção das IST34. Porém, a prevalência da infecção encontrada no presente estudo pode ser consequência da falta das medidas preventivas rotineiras dessas infecções35.
CONCLUSÃO
A prevalência da infecção endocervical por C. trachomatis em universitárias do estado do Pará se assemelhou à média encontrada na população brasileira. Não foi encontrada diferença significativa na prevalência da infecção entre estudantes da capital e do interior do Estado. A infecção não se mostrou associada às condições sociodemográficas e comportamentais das universitárias investigadas. Torna-se necessário ampliar o estudo para confirmar a prevalência da infecção nos campi do interior do Estado e sua ausência de correlação com os fatores investigados.