INTRODUÇÃO
Mostrando um grande espectro de manifestações clínicas, as infecções respiratórias são conhecidas por causar altas taxas de morbidade, gerando o aumento da demanda ambulatorial e em casos mais graves, internações hospitalares1,2.
A infecção respiratória aguda (IRA) é conhecida como a manifestação mais frequente entre as doenças do trato respiratório e é causada expressivamente por agentes virais, principalmente pelo vírus influenza e o vírus respiratório sincicial humano (VRSH)3. Assim, o VRSH é responsável por aproximadamente 15 a 40% dos casos pediátricos de pneumonia/bronquiolite relatados4.
O VRSH é um vírus pleomórfico, envelopado, com genoma não segmentado de RNA de cadeia simples, de polaridade negativa, com aproximadamente 15.200 nucleotídeos que codificam 11 proteínas5. Esse vírus pertence à ordem Mononegavirales, família Pneumoviridae, gênero Orthopneumovirus. Considerando a região hipervariável 2 da glicoproteína G6, o VRSH é classificado em dois subgrupos (VRSH-A e VRSH-B). Até o presente momento, foram descritos 14 genótipos de VRSH-A, incluindo GA1-GA77, SAA18, NA1-NA29, ON110, CB-A11, NA3 e NA412, e 25 genótipos para VRSH-B, classificados em GB1-GB513,14, SAB1-SAB48,15, URU1 URU216, BA1-BA1217,18, CB1 e BA-C19.
A variabilidade genética e antigênica entre os subgrupos, bem como entre as cepas do mesmo subgrupo, é mais enfatizada na glicoproteína G20,21, com divergência na sequência aminoacídica que pode atingir 47% entre os subgrupos19. A evolução antigênica da glicoproteína G causa reinfecções pelo VRSH e cria interesse substancial em diferentes estudos18,22,23.
A presente investigação objetivou avaliar os aspectos epidemiológicos e moleculares relacionados à circulação de cepas do VRSH associadas a casos de IRA em cinco Estados da Amazônia brasileira, no período de janeiro a dezembro de 2015.
MATERIAIS E MÉTODOS
AMOSTRAS CLÍNICAS
Este estudo foi realizado com 1.082 espécimes clínicos pertencentes a indivíduos de ambos os gêneros, de diferentes idades e diagnosticados clinicamente com IRA. Dessas amostras, 424 (39,2%) pertenciam a crianças de 0 a 4 anos de idade, 156 (14,4%) a crianças de 5 a 14 anos, 90 (8,3%) a jovens de 15 a 24 anos, 278 (25,7%) a adultos de 25 a 59 anos e 134 (12,4%) a idosos com idade igual ou superior a 60 anos.
Todos os pacientes foram atendidos ambulatoriamente em unidades de saúde localizadas nos Estados da Amazônia brasileira (Acre, Amapá, Amazonas, Pará e Roraima), de janeiro a dezembro de 2015. Nesse cenário, 370 (34,2%) amostras foram oriundas do Acre, 170 (15,7%) do Amazonas, 496 (45,9%) do Pará, 36 (3,3%) de Roraima e 10 (0,9%) do Amapá.
A coleta do espécime clínico foi realizada em pacientes com diagnóstico clínico de IRA, mediante aspirado de nasofaringe, utilizando bomba a vácuo acoplada a um tubo coletor contendo meio de transporte (Hanks e gelatina a 0,5%) ou swab combinado narina e garganta. Posteriormente as amostras foram encaminhadas para o Laboratório de Vírus Respiratórios do Instituto Evandro Chagas, sob refrigeração (4 ºC).
EXTRAÇÃO DO RNA VIRAL (RNAV)
O RNAv foi extraído das amostras de secreção respiratória dos pacientes investigados utilizando o kit comercial QIAamp® Viral RNA Mini Kit (QIAGEN, Renânia do Norte-Vestfália, Alemanha), seguindo as instruções do fabricante. O RNA eluído foi armazenado a -70 °C ou imediatamente usado para reação da transcriptase reversa, seguida da reação em cadeia de polimerase em tempo real (qRT-PCR).
DETECÇÃO DO GENOMA VIRAL
A detecção do genoma viral foi realizada por qRT-PCR usando o kit comercial SuperScript IIITM One-stepqRT-PCR with Platinum Taq (Invitrogen Life Technologies, Califórnia, EUA) para um volume final de 25 μL, com 5 μL de RNAv, Master Mix PCR 2X, SuperScript™ III RT/Platinum® TaqMix, iniciadores, a 40 nM (VRSH senso: 5' GCT CTT AGC AAA GTC AAG TTR AAT GAT ACA 3'; VRSH antissenso: 5' GTT TTT GCA CAT CAT AAT TRG GAG T) e sonda a 10 nM (5' CTG TCA TCY AGC AAA TAC ACT AT 3') marcado com corante reporter de 6-carboxi-fluoresceína (FAM) e corante de quimioterapia com 6-carboxi-tetrametil-rodamina (TAMRA). A reação de amplificação foi realizada primeiro por uma transcrição reversa a 48 °C em 30 min, seguindo a ativação da Taq polimerase a 95 ºC em 10 min e a amplificação pela PCR composta por 45 ciclos de 95 ºC por 15 s e 60 ºC por 1 min, sendo o protocolo fornecido pelo Centers for Diasease Control and Prevention24.
PROPAGAÇÃO VIRAL EM CULTURA CELULAR
As amostras clínicas positivas para VRSH por qRT-PCR foram submetidas ao cultivo viral na linhagem de células HEp-2 (carcinoma epidermoide da laringe humana) durante um período de observação de 12 dias. Nas amostras que apresentaram efeitos citopáticos, a coleta do sobrenadante foi realizada para a realização da caracterização molecular.
AMPLIFICAÇÃO DO GENE G
Para a caracterização genética do VRSH, uma amplificação do gene responsável para codificar a glicoproteína G foi feita a partir do RNA viral extraído do sobrenadante da cultura celular infectada, utilizando a técnica RT-PCR em um único tubo com o kit comercial SuperScriptTMIII One-Step RT-PCR Platinum Taq HiFi (Invitrogen Thermo Scientific, Califórnia, EUA) e iniciadores específicos para o gene G do VRSH-A (VRSH-A senso: 5'GCA AAC ATG TCC AAA AAC AAG 3'; VRSH-A antissenso: 5'GTT ATG ACA CTG GTA TAC CAA CC 3') para a amplificação de 1131 pb e VRSH-B (VRSH-B senso: 5'GCA ACC ATG TCC AAA CAC AAG 3'; VRSH-B antissenso: 5'GTT ATG ACA CTG GTA TAC CAA CC 3') para a amplificação de 1116 pb, obedecendo às seguintes condições de ciclagem térmica: 94 ºC por 5 min, seguido de 40 ciclos compostos por 94 ºC em 40 s, 49 ºC por 2 min, 72 ºC durante 1 min e uma extensão final a 72 ºC por 7 min. Os produtos amplificados foram visualizados em gel de agarose25.
SEQUENCIAMENTO DO GENE G
Para as amostras que exibiram amplificação para o gene G, a purificação do produto RT-PCR foi realizada com o kit comercial QIAquick PCR Purification (QIAGEN, Maryland, EUA) seguindo as instruções do fabricante. O produto purificado foi quantificado para determinar a concentração de DNA e depois utilizado na reação de sequenciamento com o kit Big Dye® terminator Cycle Sequencing v3.1 (Applied Biosystem, Life Technologies, Califórnia, EUA). Posteriormente, as amostras foram submetidas à precipitação com isopropanol e etanol para remover o excesso de bases marcadas não incorporadas na reação. Após a precipitação, os espécimes foram novamente suspensos em formamida altamente deionizada e submetidos à eletroforese por sequenciamento automatizado ABIPrism 3130xl (Applied Biosystem, Foster City, EUA).
ANÁLISE DA SEQUÊNCIA DE NUCLEOTÍDIOS E INFERÊNCIAS FILOGENÉTICAS
As sequências obtidas do gene G foram montadas usando o software CAP326, alinhadas com MAFFT v7.22127 e editado com o Geneious v8.1.7 Bioinformatics Suite28 e comparado com sequências de outros vírus isolados e disponíveis no banco de genes GenBank, do programa BLAST29.
A análise filogenética foi realizada em três etapas. Primeiramente, foi usado o programa IQ-TREE v1.3.230 para escolher o modelo evolutivo mais apropriado para a realização da análise mais semelhante. Posteriormente, a reconstrução filogenética foi feita no mesmo software IQ-TREE30. Também foi realizado o teste de confiabilidade não paramétrico com 100 cópias pelo método bootstrap e, por fim, o software Fig Tree v1.4.231 foi usado para a edição da árvore filogenética gerada.
NÚMEROS DE ADESÃO DE SEQUÊNCIA NUCLEOTÍDICA
Os números de acesso GenBank das sequências de nucleotídeos obtidas no presente estudo são MF384372 à MF384416 para o gene G.
ANÁLISE ESTATÍSTICA
A análise de resíduos, pelo teste qui-quadrado, foi realizada para avaliar a diferença entre as frequências das infecções por VRSH e a faixa etária, utilizando o software BioEstat v5.0. O resultado p < 0,05 foi considerado estatisticamente significante.
APROVAÇÃO NO COMITÊ DE ÉTICA
A presente investigação seguiu todas as orientações contidas na Resolução CNS nº 466/2012 do Conselho Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) e foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos do Instituto Evandro Chagas, em 4 de abril de 2016, sob o parecer número 1.476.113.
RESULTADOS
Foram analisados 1.082 espécimes clínicos de pacientes com diagnóstico clínico de IRA. Desse total, 57 (5,3%) foram positivos para VRSH pelo qRT-PCR, dos quais 45 (78,9%) apresentaram efeito citopático.
Considerando a distribuição das amostras positivas por faixa etária, a frequência de infecção por VRSH foi mais expressiva em crianças menores de 4 anos de idade, 38 (66,7%) amostras, resultado estatisticamente significativo (p < 0,01), e nas faixas etárias de 5 a 14 anos de idade com cinco (8,8%) amostras e de 15 a 24 anos com três (5,2%) não foi encontrada significância estatística (p > 0,05). Enquanto que nas faixas etárias de 25 a 59 anos de idade, com nove (15,8%) amostras e idades iguais ou maiores de 60 anos, com duas (3,5%), a frequência foi estatisticamente significativa (p < 0,05) (Tabela 1).
Faixa etária (anos) | Positivas | Negativas | p* | ||
N | % | N | % | ||
0-4 | 38 | 66,7 | 386 | 37,7 | p < 0,01 |
5-14 | 5 | 8,8 | 151 | 14,7 | p > 0,05 |
15-24 | 3 | 5,2 | 87 | 8,5 | p > 0,05 |
25-59 | 9 | 15,8 | 269 | 26,2 | p < 0,05 |
≥ 60 | 2 | 3,5 | 132 | 12,9 | p < 0,05 |
Total | 57 | 100,0 | 1.025 | 100,0 |
* Valor de p na análise de resíduos por teste de qui-quadrado.
Na distribuição entre os Estados, no que se refere à faixa etária, é possível observar uma maior frequência de IRA diagnosticada clinicamente em crianças de 0 a 4 anos de idade (424/1.082), sendo o Pará com 152 (30,6%) amostras, o Acre com 152 (41,1%) e o Amazonas com 100 (58,8%); um grande contraste quando comparado com 17 (47,2%) amostras de Roraima e 3 (30,0%) do Amapá (Tabela 2).
Faixa etária (anos) | Estados | Total | ||||||||||
Acre | Amapá | Amazonas | Pará | Roraima | ||||||||
N | % | N | % | N | % | N | % | N | % | N | % | |
0-4 | 152 | 41,1 | 3 | 30,0 | 100 | 58,8 | 152 | 30,6 | 17 | 47,2 | 424 | 39,2 |
5-14 | 54 | 14,6 | 4 | 40,0 | 19 | 11,2 | 76 | 15,3 | 3 | 8,3 | 156 | 14,4 |
15-24 | 31 | 8,4 | - | - | 11 | 6,5 | 46 | 9,3 | 2 | 5,6 | 90 | 8,3 |
25-59 | 83 | 22,4 | - | - | 18 | 10,6 | 166 | 33,5 | 11 | 30,6 | 278 | 25,7 |
≥ 60 | 50 | 13,5 | 3 | 30,0 | 22 | 12,9 | 56 | 11,3 | 3 | 8,3 | 134 | 12,4 |
Total | 370 | 100,0 | 10 | 100,0 | 170 | 100,0 | 496 | 100,0 | 36 | 100,0 | 1.082 | 100,0 |
Faixa etária (anos) | Estados | Total | ||||||||||
Acre | Amapá | Amazonas | Pará | Roraima | ||||||||
N | % | N | % | N | % | N | % | N | % | N | % | |
0-4 | 152 | 41,1 | 3 | 30,0 | 100 | 58,8 | 152 | 30,6 | 17 | 47,2 | 424 | 39,2 |
5-14 | 54 | 14,6 | 4 | 40,0 | 19 | 11,2 | 76 | 15,3 | 3 | 8,3 | 156 | 14,4 |
15-24 | 31 | 8,4 | - | - | 11 | 6,5 | 46 | 9,3 | 2 | 5,6 | 90 | 8,3 |
25-59 | 83 | 22,4 | - | - | 18 | 10,6 | 166 | 33,5 | 11 | 30,6 | 278 | 25,7 |
≥ 60 | 50 | 13,5 | 3 | 30,0 | 22 | 12,9 | 56 | 11,3 | 3 | 8,3 | 134 | 12,4 |
Total | 370 | 100,0 | 10 | 100,0 | 170 | 100,0 | 496 | 100,0 | 36 | 100,0 | 1.082 | 100,0 |
Sinal convencional utilizado: - Dado numérico igual a zero, não resultante de arredondamento.
Entre as 57 amostras positivas para VRSH, foi possível determinar os subgrupos virais em 45 (78,9%) amostras, sendo que em 12 (21,1%) amostras não houve a amplificação do material genético, ou seja, não foi evidenciado banda de interesse. Dessas 45, cinco (11,1%) pertenciam ao subgrupo VRSH-A e 40 (88,9%) ao subgrupo VRSH-B.
A caracterização do subgrupo viral mostrou que todas as amostras do subgrupo B pertenciam ao genótipo de Buenos Aires (BA), sendo 37 (92,5%) da linhagem BA9 e três (7,5%) da linhagem BA10. As cinco (100,0%) amostras do subgrupo A pertenciam ao genótipo de Ontário (ON1) (Figura 1).
As frequências dos genótipos virais identificados foram predominantemente observadas no Amazonas, Acre e Pará. No que se refere à distribuição das amostras positivas (57/1.082) para o VRSH, observou-se que 15 (26,3%) eram do Acre, 23 (40,4%) do Amazonas e 19 (33,3%) do Pará, não havendo casos positivos em Roraima e Amapá (Tabela 3).
Estados | Subgrupos / Genótipos | Não genotipadas | Total | |||||||
VRSH-B/BA9 | VRSH-B/BA10 | VRSH-A/ON1 | ||||||||
N | % | N | % | N | % | N | % | N | % | |
Pará | 7 | 19,0 | - | - | 5 | 100,0 | 7 | 58,3 | 19 | 33,3 |
Amazonas | 16 | 43,2 | 3 | 100,0 | - | - | 4 | 33,3 | 23 | 40,4 |
Acre | 14 | 37,8 | - | - | - | - | 1 | 8,4 | 15 | 26,3 |
Total | 37 | 100,0 | 3 | 100,0 | 5 | 100,0 | 12 | 100,0 | 57 | 100,0 |
Sinal convencional utilizado: - Dado numérico igual a zero, não resultante de arredondamento.
Quanto ao perfil de circulação do VRSH, no período de janeiro a dezembro de 2015, a maior frequência de todos os casos ocorreu entre os meses de março a julho (Tabela 4).
DISCUSSÃO
Na presente pesquisa, predominou a infecção por casos de VRSH em crianças de 0 a 4 anos de idade (p < 0,01), fato comumente relatado e que se deve, entre outros fatores, à suscetibilidade imunológica encontrada em crianças pequenas15,22,32.
Durante a investigação, o VRSH não foi detectado no Amapá e em Roraima. Uma justificativa para esse resultado é que, nesses Estados, o tamanho amostral de espécimes clínicos de crianças de 0 a 4 anos de idade foi expressivamente reduzido quando comparado aos demais, sendo que essa faixa etária é a mais afetada pelas infecções por VRSH. Em contraste, as amostras clínicas obtidas no Amazonas, Pará e Acre, que, além de terem sido obtidas em maior quantidade, eram predominantemente de indivíduos de zero a quatro anos de idade.
A maior circulação viral ocorreu do 3º ao 7º mês do ano de 2015, período de transição climática na região. Outros estudos mostram que, durante esse período, há um maior índice de infecções pelo VRSH, como os realizados no Brasil33,34 e em outros países de clima tropical, como a Colômbia35.
Desde o surgimento do genótipo de BA, em 1999, com circulação expressiva global, característica que persiste até hoje, essa cepa é predominante em relação aos outros genótipos do subgrupo B. Acredita-se que isso ocorra devido à duplicação de 60 nucleotídeos na porção C-terminal, o que acumula mutações, fato que pode favorecer a infectividade do VRSH e explicar a circulação expressiva desse genótipo no mundo36,37,38.
Este estudo é o primeiro a detectar a circulação do genótipo ON1 no estado do Pará. Esse genótipo viral tem como característica principal a duplicação de 72 nucleotídeos na região C-terminal da glicoproteína G, o que pode estar associada a alterações genéticas e assim explicar a expansão global do ON110,39.
CONCLUSÃO
No presente estudo, o subgrupo VRSH-B e o genótipo BA foram os mais frequentes em três Estados da Amazônia brasileira no ano de 2015. O perfil de circulação do VRSH demonstrou um maior pico de infecções durante o período de mudanças naturais de clima, com maior atividade nos meses de março a julho de 2015. O vírus foi predominantemente detectado em crianças com idade de 0 a 4 anos. Pela primeira vez foi relatada a circulação de genótipos ON1 no estado do Pará.