INTRODUÇÃO
A situação epidemiológica da hanseníase no Brasil, ao longo dos anos, tem mostrado diversos desafios aos setores de saúde pública para a eliminação da doença. Aproximadamente 40% dos casos de hanseníase registrados no Brasil, em 2016, encontravam-se em regiões onde havia cerca de 15% da população1. Enquanto as Regiões Norte e Centro-Oeste registraram, no mesmo ano, uma taxa de detecção de 28,70 e 30,02 casos por 100.000 habitantes, respectivamente, a Região Sul obteve um número 10 vezes menor1, demostrando que o país possui áreas que estão longe de alcançar a meta de eliminação. Nesse cenário, os municípios localizados na Amazônia brasileira são considerados locais de alta endemicidade para a doença2 e de baixa infraestrutura social.
A distribuição desigual da hanseníase também pode ser observada quando se aumenta ou diminui a escala de análise, como setores ou bairros dos municípios3. Desse modo, o componente espaço torna-se de suma importância para a compreensão epidemiológica da hanseníase. Assim, parte-se do espaço como categoria de análise que não se limita às concepções físicas e geométricas, mas se compreende a partir de uma ótica relacional e indissociável de uma perspectiva social4,5. Quando se observa uma localidade, sabe-se que a organização da população em um território não ocorre de forma arbitrária, de modo que, como afirmam Mencaroni et al.5, a discussão sobre a distribuição espacial da hanseníase na área urbana implica em também discutir o processo de urbanização, a pobreza urbana existente e a maneira como a população se distribui pelo espaço frente a um conjunto de necessidades não satisfeitas5.
Nesse sentido, conforme as pessoas se apropriam de determinadas áreas e, em contrapartida, são privadas de outras, se delimitam os diferentes acessos aos serviços de infraestrutura urbana e aos riscos de adoecer. Portanto, o espaço torna-se um determinante no processo saúde-doença5,6, sobretudo quanto à hanseníase, na qual a baixa qualidade de vida foi apontada como fator importante na sua endemicidade por diversos autores3,5,7.
Frente a essa interlocução entre a geografia e a vigilância em saúde, na década de 1990, emergiram novas técnicas de geoprocessamento que visavam à criação de mapas para a compreensão dos espaços e sua relação com doenças6. Por possibilitar uma melhor visualização da distribuição espacial dos casos de hanseníase e dos indicadores epidemiológicos, além da cobertura para tratamento da doença, esse recurso tecnológico tornou-se uma recomendação da Organização Mundial da Saúde8. Assim, o uso dessa tecnologia passou a ser incentivada, em especial, para as áreas de alta endemicidade, com amplas diferenças regionais e com necessidade de alocação de investimentos adicionais7,9.
Mesmo diante da compreensão da importância do espaço para a incidência da hanseníase, é fundamental reconhecer o que essas áreas possuem em comum e o que as torna um potencial fator na aquisição da doença. Diversos fatores socioeconômicos têm se mostrado importantes, como condições precárias de habitação, baixa escolaridade, baixa renda e movimentos migratórios2,7. Em suma, há diversas associações que indicam maior prevalência de hanseníase entre camadas sociais menos favorecidas. Reconhecer precisamente as correlações possíveis entre a hanseníase e as conjunturas socioeconômicas, que possibilitam que a doença se torne endêmica em uma localidade, colaboram para o desenvolvimento de estratégias de combate mais eficazes, como a implantação de medidas de busca ativa e vigilância em saúde no território.
Diante dessa enfermidade, que possui um componente socioespacial tão importante, a faixa etária de crianças e jovens merece atenção especial. Nesse sentido, a presença de hanseníase em menores de 15 anos de idade normalmente está vinculada à transmissão intradomiciliar, pois a doença tem um período de incubação prolongado, de forma que os contatos intradomiciliares são um importante meio para a manutenção da endemia. Portanto, a incidência de hanseníase nessa faixa etária é um indicador epidemiológico de transmissão ativa da doença, ao revelar precocidade na transmissão e persistência de pessoas bacilíferas não tratadas. Além disso, esse indicador aponta alta endemicidade e ações insuficientes de vigilância, controle e educação em saúde no que tange à doença, tornando-se um importante demarcador. Com base nessa perspectiva, a redução de casos em menores de 15 anos de idade tornou-se prioridade do Programa Nacional de Controle da Hanseníase da Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde10, fato que deve ser priorizado em localidades hiperendêmicas, tal como o estado do Pará, que registrou uma taxa de 17,54 casos/100.000 habitantes em menores de 15 anos de idade, em 201411.
O objetivo deste estudo foi identificar a distribuição espacial, a partir de georreferenciamento, dos casos de hanseníase em menores de 15 anos de idade no município de Belém, Pará, Brasil, entre 2005 e 2014, e correlacioná-la a indicadores socioeconômicos. Com isso, é possível ampliar os conhecimentos sobre o processo endêmico da hanseníase, contribuir com o sistema de informação em saúde do município e, sobretudo, subsidiar informações para medidas de busca ativa e controle da enfermidade.
MATERIAIS E MÉTODOS
Este é um estudo epidemiológico de caráter ecológico, exploratório, do tipo analítico, realizado em 2016. O local de estudo foi o município de Belém, capital do estado do Pará, localizado na Região Norte do Brasil. O município possui 71 bairros, dos quais 23 encontram-se nas ilhas de Mosqueiro (no extremo norte) e de Outeiro, além de compreender áreas não urbanas. No presente estudo, foram utilizados os bairros do município como unidade de análise. A população residente, no ano de 2010, era de 1.393.399, com densidade populacional de 1.315,26 habitantes/km², onde 321.092 tinham menos de 15 anos de idade12,13.
Para a análise dos casos de hanseníase em menores de 15 anos de idade, em Belém, entre 2005 e 2014, foram utilizados dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN), disponibilizados pela Secretaria de Estado de Saúde do Pará (SESPA). Esses dados foram lançados em bancos dos softwares Microsoft Excel e Epi Info™ v7.2, para que fossem selecionados e processados segundo critérios clínico-epidemiológicos e de georreferenciamento. Quanto aos critérios clínico-epidemiológicos, foram analisadas as variáveis: sexo, faixa etária (0-4 anos, 5-9 anos e 10-14 anos), classificação operacional (multibacilar e paucibacilar), forma clínica (indeterminada, tuberculoide, dimorfa e virchowiana), grau de incapacidade física no diagnóstico (0,1 e 2) e modo de detecção (encaminhamento, demanda espontânea, exame de coletividade, exame de contato e outros modos), sendo essa última variável dividida em busca ativa (exame de contato e exame de coletividade) e busca passiva (encaminhamento e demanda espontânea). Também foram gerados os indicadores de monitoramento da hanseníase14: o coeficiente de detecção em menores de 15 anos de idade (por 100.000 habitantes) de Belém, no ano de 2010, e a proporção de casos de hanseníase com grau 2 de incapacidade física no momento do diagnóstico. Para o georreferenciamento, foram utilizados os dados de município, bairro, logradouro, número da casa, complemento do endereço, ponto de referência e ano de notificação.
O georreferenciamento foi realizado primeiramente a partir da geocodificação, por meio do software Google Earth Pro. Os dados de latitude e longitude gerados foram inseridos no software Epi Info™ v7.2 para a produção dos mapas temáticos no modelo de choropleth. Na concepção dos mapas, foi utilizada a malha digital de delimitação dos bairros de Belém da Companhia de Desenvolvimento e Administração da Área Metropolitana de Belém, disponibilizados pelo Laboratório de Georreferenciamento do Instituto Evandro Chagas.
O método para a geocodificação partiu dos endereços registrados no SINAN, os quais foram inseridos no Google Earth Pro para uma busca automática, priorizando a rua e, quando possível, o número da residência. Nos casos de dubiedade quanto ao posicionamento da residência em relação ao bairro, foi utilizado o recurso de StreetView do mesmo software. Quando houve falha em localizar o logradouro ou quando o registro encontrava-se incompleto, apenas o bairro registrado no momento da notificação foi utilizado. No intuito de comparar a distribuição espacial ao longo dos anos, foram produzidos dois mapas temáticos para a análise da distribuição espacial da hanseníase em menores de 15 anos de idade, com subperíodos de cinco anos. Desse modo, foi possível observar a progressão da doença no município e possíveis padrões e variações ao longo dos anos.
Ademais, realizou-se uma correlação, por meio de análise estatística de regressão linear multivariada, entre a taxa de incidência de hanseníase em menores de 15 anos de idade e dados socioeconômicos em cada bairro, a fim de verificar possíveis fatores de risco para a maior incidência de hanseníase nessas unidades territoriais. Para tanto, utilizou-se o anuário estatístico do município de Belém, publicado em 201213, para os dados populacionais, e os dados municipais referentes a saneamento foram fornecidos pela Secretaria Municipal de Coordenação Geral do Planejamento e Gestão (SEGEP), ambos com dados do ano de 2010.
Desse material, foram computadas as seguintes variáveis socioeconômicas, por bairro do município: proporção de moradores por domicílio; porcentagem de pessoas de 10 anos ou mais de idade, por classe de rendimento nominal mensal; porcentagem de pessoas analfabetas com idade igual ou superior a 10 anos; porcentagem de domicílios particulares sem abastecimento de água pela rede geral; porcentagem de domicílios particulares não ligados à rede geral de esgoto ou que não possuam fossa séptica; e porcentagem de domicílios particulares sem coleta de lixo.
O presente estudo foi conduzido de acordo com os princípios básicos da bioética, preconizados em normas internacionais e na Resolução nº 466/12 do Conselho Nacional de Saúde, garantindo a privacidade de seus conteúdos e impedindo a utilização das informações para outros fins.
RESULTADOS
Dos 384 casos de hanseníase em menores de 15 anos de idade notificados no período, somente os casos novos foram incluídos, totalizando 356 registros. Conforme descrito na tabela 1, o quadro epidemiológico da hanseníase em menores de 15 anos de idade, no município de Belém, para o período analisado, apresentou predominância entre o sexo masculino (proporção de 1,2 casos) e a faixa etária de 10 a 14 anos de idade, com um valor superior à metade dos casos (64,9%). Houve predomínio dos casos com classificação operacional de paucibacilares (59,6%) e a forma clínica tuberculoide (37,9%), além de dois casos que não foram classificados. No que tange ao grau de incapacidade, 10,1% (36 notificações) dos casos possuíam alguma incapacidade no momento do diagnóstico, sendo 11 (3,1%) com grau 2 de incapacidade e 43 (12,1%) não classificados. O encaminhamento foi o modo de detecção mais recorrente (62,4%), seguido da demanda espontânea (29,2%), enquanto o exame de coletividade ocorreu em quatro (1,1%) casos e o exame de contato em 24 (6,7%) casos. Desse modo, a busca ativa constituiu 7,9% dos casos, enquanto a busca passiva representou 91,6% dos casos.
Variáveis | Casos registrados | |
---|---|---|
N = 356 | % | |
Sexo | ||
Masculino | 194 | 54,5 |
Feminino | 162 | 45,5 |
Faixa etária (anos) | ||
0-4 | 16 | 4,5 |
5-9 | 109 | 30,6 |
10-14 | 231 | 64,9 |
Classificação operacional | ||
Multibacilar | 144 | 40,4 |
Paucibacilar | 212 | 59,6 |
Forma clínica | ||
Indeterminada | 74 | 20,8 |
Tuberculoide | 135 | 37,9 |
Dimorfa | 117 | 32,9 |
Virchowiana | 28 | 7,9 |
Não classificada | 2 | 0,5 |
Grau de incapacidade | ||
0 | 277 | 77,8 |
1 | 25 | 7,0 |
2 | 11 | 3,1 |
Não classificada | 43 | 12,1 |
Modo de detecção | ||
Encaminhamento | 222 | 62,4 |
Demanda espontânea | 104 | 29,2 |
Exame de coletividade | 4 | 1,1 |
Exame de contato | 24 | 6,7 |
Outros modos ou ignorado | 2 | 0,6 |
Fonte: SINAN/SESPA, 2016.
Considerando a população de Belém com menos de 15 anos de idade em 2010, o indicador de taxa de detecção anual de casos novos nessa faixa etária para esse ano foi de 10,28 casos/100.000 habitantes. Além disso, foi possível estabelecer uma aproximação de 11,09 casos/100.000 habitantes, considerando a média do número de casos entre 2005 e 2014 e a população de 2010. Nessa situação, existia um caso de hanseníase em cada 9.017 menores de 15 anos de idade. A proporção de casos de hanseníase com grau 2 de incapacidade física, no momento do diagnóstico, entre os casos novos detectados e avaliados no ano, foi de 3,5%.
O georreferenciamento da hanseníase, realizado a partir dos bairros, excluiu 27 dos 356 casos por falta de dados necessários, totalizando 329 casos mapeados. Foram detectados três casos fora dos limites do munícipio e 10 casos que não se enquadravam nas delimitações de bairro, sendo considerados residentes em áreas rurais do município. Em vista disso, 316 casos estavam dentro dos limites dos bairros de Belém, sendo que, desses, 49 foram georreferenciados somente a partir dos bairros. Da análise do endereço, foram observados 53 casos de discrepância entre o bairro autodeclarado e o encontrado a partir do georreferenciamento do logradouro (rua, número da casa e perímetro).
A figura 1 apresenta a distribuição dos 316 casos de hanseníase em menores de 15 anos de idade nos 71 bairros de Belém. Foram considerados clusters os bairros com mais de 5% dos casos mapeados, representando aglomerados acima de 16 casos. Os bairros enquadrados nessa categoria foram Guamá (41 casos), Jurunas (24 casos), Tapanã (23 casos), Montese (20 casos) e Benguí (18 casos), de modo que esses cinco bairros representaram aproximadamente 35% de todos os casos registrados. Assim, foi possível observar dois agrupamentos de bairros por proximidade física, a região Montese-Guamá-Jurunas e a região Tapanã-Benguí.
Em função da diferença populacional dos bairros, o mapa da figura 2 mostra a taxa de detecção da hanseníase por bairro. As categorias foram organizadas conforme os parâmetros de endemia do indicador de taxa de detecção. Foi observado que 22 dos 71 bairros foram considerados hiperendêmicos. Os bairros Bonfim (119,92 casos/100.000 habitantes) e Praia Grande (105,82 casos/100.000 habitantes), ambos localizados na ilha do Mosqueiro (ilha no extremo norte do mapa), apresentaram os piores cenários epidemiológicos, seguidos pelos bairros Val-de-Cães (82,22 casos/ 100.000 habitantes), Fátima (46,12 casos/100.000 habitantes), Guanabara (23,31 casos/100.000 habitantes) e Carananduba (23,30 casos/100.000 habitantes), esse último também situado na ilha do Mosqueiro.
A figura 3 contém os mapas de georreferenciamento a partir do número de casos divididos em períodos de cinco anos, sendo o primeiro (à esquerda) de 2005 a 2009, e o segundo (à direita) de 2010 a 2014. Houve um decréscimo de 32% no segundo período em relação ao primeiro, passando de 188 casos para 128. O número de bairros com nove ou mais casos passou de seis, nos cinco primeiros anos, para três, na segunda metade da década analisada. Utilizou-se, como extensão dos valores, a metade do número de casos da figura 1, a fim de obter um comparativo proporcional ao período analisado.
À esquerda, o mapa do período de 2005 a 2009, com 188 casos registrados e georreferenciados. À direita, o mapa do período de 2010 a 2014, com 128 casos registrados e georreferenciados.
No que se refere às características socioeconômicas dos bairros do município, a tabela 2 mostra os bairros que apresentaram a maior frequência nas condições dos indicadores analisados. O bairro Sucurijuquara foi registrado em cinco indicadores; Bonfim e Caruara, em três; e Ariramba, Aurá, Natal do Murubira e São Francisco, em dois indicadores cada um. Desses sete bairros, seis pertencem à ilha do Mosqueiro.
Variáveis | Valores |
---|---|
Bairros com proporção moradores/domicílio > 4 | |
Sucurijuquara | 4,18 |
Barreiro | 4,13 |
Fátima | 4,12 |
Condor | 4,10 |
Baía do Sol | 4,10 |
Jurunas | 4,06 |
Telégrafo | 4,06 |
Guamá | 4,04 |
Bairros com mais de 50% de pessoas com 10 anos de idade ou mais sem rendimento | |
Bonfim | 65,57% |
Ariramba | 61,37% |
São Francisco | 57,85% |
Sucurijuquara | 55,09% |
Brasília | 53,34% |
Natal do Murubira | 52,23% |
Paracuri | 51,66% |
Bairros com mais de 10% de analfabetismo | |
São Francisco | 59,61% |
Caruara | 38,77% |
Benguí | 13,51% |
Bairros com mais domicílios sem abastecimento pela rede geral de água | |
Marahú | 100,00% |
Paraíso | 100,00% |
Sucurijuquara | 98,83% |
Bonfim | 98,57% |
Caruara | 98,52% |
Bairros com mais domicílios sem acesso à rede geral de esgoto ou fossa séptica | |
Sucurijuquara | 99,61% |
Natal do Murubira | 97,93% |
Aurá | 96,12% |
Porto Arthur | 87,84% |
Ariramba | 86,90% |
Bairros com mais domicílios sem coleta de lixo | |
Bonfim | 62,38% |
Mangueiras | 62,01% |
Aurá | 34,11% |
Caruara | 33,00% |
Sucurijuquara | 31,52% |
Fonte: SEGEP, 2010.
Por fim, realizou-se a regressão linear entre as variáveis socioeconômicas mencionadas e a taxa de incidência dos bairros (Tabela 3). A análise estatística apresentou um valor significativo de correlação (p < 0,05) para as variáveis renda (0,0327), esgoto (0,0144) e coleta de lixo (0,0369). Quanto ao coeficiente de correlação das variáveis significativas, a variável renda possuiu o maior valor (124,628).
Variável independente | Estimativa (β) | Erro padrão | Teste t | p-valor |
---|---|---|---|---|
Proporção de moradores por domicílio | 5,411 | 12,356 | 0,438 | 0,6629 |
Renda: porcentagem de pessoas com 10 anos de idade ou mais sem rendimento | 124,628 | 57,096 | 2,183 | 0,0327 |
Educação: porcentagem de pessoas analfabetas com 10 anos de idade ou mais | -50,621 | 34,094 | -1,485 | 0,1425 |
Esgoto: porcentagem de domicílios sem acesso à rede geral de esgoto ou fossa séptica | -27,718 | 11,017 | -2,516 | 0,0144 |
Coleta de lixo: porcentagem de domicílios sem coleta de lixo | 54,943 | 25,780 | 2,131 | 0,0369 |
Água: porcentagem de domicílios sem rede geral de água | -7,277 | 10,961 | -0,664 | 0,5092 |
Fonte: SINAN/SESPA, 2016 e SEGEP, 2010.
DISCUSSÃO
A hanseníase em menores de 15 anos de idade foi considerada hiperendêmica no município de Belém no período analisado, segundo os parâmetros para a taxa de detecção do Ministério da Saúde14. Não obstante, a busca ativa representou menos de 1/10 das formas de detecção. Houve baixa proporção de casos de hanseníase com grau 2 de incapacidade física, no momento do diagnóstico, entre os casos novos detectados e avaliados no ano; no entanto, a proporção de casos novos de hanseníase com grau de incapacidade física, avaliado no diagnóstico, foi classificado como regular (avaliados entre ≥ 75 a 89,9%), também segundo os critérios do Ministério da Saúde14.
Diante dos dados analisados, a distribuição da hanseníase não demonstrou homogeneidade ao longo do território do município, o que corrobora trabalhos anteriores em outras cidades e regiões do Brasil15,16,17. A distribuição espacial dos casos de hanseníase em menores de 15 anos de idade na cidade de Belém possuiu áreas de cluster, sendo os bairros de maior relevância Guamá, Jurunas, Montese, Benguí e Tapanã. O mapa da distribuição dos casos demonstrou maior concentração na região sul da cidade, formando um corredor de expansão em direção ao norte, e pouca expressão de casos na região sudoeste. Esse fato coincidiu com a distribuição socioeconômica da cidade, com áreas de maior concentração de renda a sudoeste e conglomerados populacionais de menor recurso financeiro ao sul18. Além disso, uma reorganização do espaço urbano tem sido verificada nas últimas décadas, com expansão histórica de povoamento para a área norte, movimento associado à especulação imobiliária, remanejamentos populacionais e aumento demográfico18.
Ademais, foi registrada a falta de notificação em 27 bairros (38% dos bairros). Dentre esses, há bairros que fazem fronteira com aqueles considerados como clusters, tais como Cidade Velha (fronteira com o bairro Jurunas) e São Clemente (fronteira com os bairros Benguí e Tapanã). Tal dado pode sugerir baixa cobertura ou fragilidade da atenção básica nessas localidades, ressaltando a hanseníase como doença negligenciada e que muitas vezes não é diagnosticada. Nesse sentido, a subnotificação dos casos pode mascarar outras áreas de cluster, sobretudo nas regiões com maior concentração populacional e de menores recursos financeiros.
O mapa da taxa de detecção revelou que muitos bairros (22 de 71 bairros) foram classificados como hiperendêmicos, segundo os parâmetros do Ministério da Saúde14, demonstrando a vulnerabilidade do município para a hanseníase em menores de 15 anos de idade. Além disso, observou-se que há locais relevantes para a hanseníase diferentes das áreas classificadas como clusters, como a ilha do Mosqueiro, localizada ao extremo norte. A ilha contém os bairros onde foi constatada a maior taxa de detecção, os quais existem ao lado de bairros com taxa de detecção baixa ou igual à zero, o que sugere a subnotificação de diversos casos na área e a fragilidade nos serviços de saúde. Quando analisada a taxa de detecção em conjunto com os indicadores socioeconômicos dos bairros do município, revelaram-se as condições precárias dos bairros da ilha de Mosqueiro.
Os clusters encontrados e as regiões com alta taxa de incidência demonstraram a necessidade de maior atenção por parte da rede de saúde e da vigilância epidemiológica. Avançando nessa análise, o grau de incapacidade no momento do diagnóstico e o modo de detecção do caso clínico são ferramentas que revelam a qualidade das ações de saúde pública para a busca precoce dos casos, especialmente em menores de 15 anos de idade. No que tange esses dados, vários casos ainda foram notificados com algum grau de incapacidade, ainda que a proporção de casos de hanseníase com grau 2 de incapacidade física, no momento do diagnóstico, tenha sido classificada como baixa. Além disso, o serviço de saúde apresentou busca ativa de hanseníase excepcionalmente baixa nos menores de 15 anos de idade, fato que pode ocultar o número de casos reais entre a população. Esses dados estão em consonância com a alta taxa de endemia ao longo de todo o município e a fragilidade do mesmo na contenção da doença.
O comparativo entre períodos de cinco anos analisados demonstrou queda no número de casos, mais evidente na região sul, enquanto nos bairros localizados na ilha de Mosqueiro, na região norte, houve intensificação. Contudo, nos últimos cinco anos, essa queda geral analisada pode esconder diminuição nas ações de notificação. Estudos voltados para o grau de incapacidade, ao modo de detecção e à presença da atenção básica, podem clarificar possíveis subnotificações nesse período. Ademais, a manutenção do corredor de casos na direção sul-norte nos dois mapas temporais indica que as cadeias de transmissão continuam presentes.
No que diz respeito à relação das condições socioeconômicas com a incidência de hanseníase em menores de 15 anos de idade, observou-se que nem todas as variáveis socioeconômicas analisadas possuíam influência significativa no município de Belém, no período analisado. Demonstrou-se significância para as variáveis renda, esgoto e coleta de lixo, sendo a variação de renda mais impactante para a incidência da doença nessa faixa etária. Esses dados estão de acordo parcialmente com trabalhos anteriores, que analisaram a hanseníase na população geral em outros municípios com variáveis socioeconômicas iguais ou semelhantes4,17,19,20,21,22. Em um estudo recente, em um município hiperendêmico do estado do Tocantins, os autores concluíram que populações com alto grau de vulnerabilidade, como baixo nível socioeconômico e presença de imigrantes estão associadas a elevadas taxas de detecção de novos casos de hanseníase, e potencialmente ao maior grau de incapacidade21. Apesar da falta de correlação estatística com todas as variáveis, foi observado que a taxa de incidência elevada em alguns bairros na ilha do Mosqueiro corrobora as precárias condições socioeconômicas analisadas.
Além disso, os clusters de hanseníase nos bairros Guamá, Montese, Jurunas, Benguí e Tapanã também são considerados áreas de vulnerabilidade socioeconômica no município. Apesar de não se encontrarem recorrentemente entre os piores índices socioeconômicos (com exceção do indicador moradores/domicílio, no qual aparecem os bairros Guamá e Jurunas, e o analfabetismo, no qual se encontra o bairro Benguí), tais bairros possuem condições de acesso baixo a saneamento básico e educação23,24.
Desse modo, mesmo frente à correlação estatística não encontrada em relação a todas as variáveis socioeconômicas analisadas, não se exclui a combinação de baixa condição de vida e ocorrência de hanseníase em menores de 15 anos de idade como um critério importante ao assinalar uma área de prioridade para intervenção. Ademais, as causas para essa distribuição ainda não se mostraram totalmente claras, tendo em vista que diversos outros fatores, além dos socioeconômicos, podem estar correlacionados ao desenvolvimento da enfermidade, como fatores genéticos e infecções subclínicas16,25, além da ausência ou da baixa qualidade de serviços de saúde.
CONCLUSÃO
Frente a esta análise, observou-se que a distribuição não homogênea da hanseníase em menores de 15 anos de idade demonstra a existência de áreas mais suscetíveis, indicando que as crianças e jovens dessas localidades, como da ilha do Mosqueiro ou os bairros localizados nos clusters, estão mais vulneráveis ao adoecimento por hanseníase. A produção de mapas baseados em georreferenciamento com populações na faixa etária de menos de 15 anos contribui com a vigilância em saúde e possibilita direcionar os recursos para as áreas de maior risco de transmissão. Com isso, sugere-se a capacitação da equipe de saúde para o diagnóstico precoce, sobretudo por meio da busca ativa, e a notificação adequada, visando à redução da transmissão na localidade e das sequelas que a hanseníase não tratada precocemente pode acarretar.