INTRODUÇÃO
A leishmaniose tegumentar americana (LTA) é uma das cinco doenças infectoparasitárias endêmicas de maior relevância para a saúde pública no mundo1. É classificada como doença infecciosa negligenciada, já que ocorre em países pobres e atinge indivíduos vulneráveis e sem acesso aos bens sociais em saúde. Apresenta ampla distribuição global, e a maioria dos casos ocorrem na África, Ásia e Américas2,3, estando presente em mais de 80 países. Quase 90% dos casos das Américas acontecem no Brasil, Bolívia e Peru1,2.
Em 2017, dos 49.959 casos de LTA reportados à Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), o Brasil ocupou o primeiro lugar entre 17 países, por ser responsável por aproximadamente 35% desses, o que demonstra sua importância como agravo e a necessidade de estudos sobre o mesmo2.
No Brasil, a LTA é doença de notificação compulsória, classificada como zoonose de transmissão vetorial, apresentando ampla distribuição territorial e com casos de autoctonia confirmados em todas as unidades federativas, especialmente na Região Norte, onde há maior número de casos e coeficientes médios mais elevados2,4. Ademais, a LTA é uma das infecções dermatológicas que merece destaque pelo potencial risco de deformidades cutâneas e reflexos psicológicos, que envolvem diretamente o âmbito social e econômico dos acometidos5,6.
Devido à heterogeneidade social e ambiental das macrorregiões do Brasil, ações de combate ao vetor e controle da LTA não têm alcançado plena efetividade7. Diferentes espécies de vetor, reservatórios e agentes etiológicos, característicos de cada região e associados à ação do homem no meio ambiente, contribuem para a manutenção do ciclo de transmissão desse agravo8.
Diante disso, estratégias para o devido controle devem ser elaboradas para cada microrregião considerando a especificidade e a necessidade de cada uma, o que, portanto, mostra a importância de se estudar a epidemiologia e o comportamento da transmissão dessa doença localmente.
Dentre os estudos consagrados relacionados à LTA, destaca-se o trabalho da equipe liderada pelo Instituto Evandro Chagas no êxito em descrever conceitos sobre a ecoepidemiologia das leishmanioses, sobretudo no estado do Pará, estado com a maior diversidade de espécies no Brasil2,3.
Nesse sentido, este estudo teve como objetivo descrever o perfil epidemiológico dos casos de LTA no Pará, entre 2008 e 2017.
MATERIAIS E MÉTODOS
Estudo quantitativo e retrospectivo, realizado a partir de dados secundários sobre casos notificados de LTA, por município de residência, e registrados no Sistema de Informações de Agravos de Notificação (SINAN). Esses dados foram disponibilizados pela Secretaria de Estado de Saúde Pública do Pará (SESPA), em planilha eletrônica, destacando os eventos ocorridos entre janeiro de 2008 e dezembro de 2017.
As seguintes variáveis foram agrupadas: idade, sexo, raça/cor e município de residência. A análise foi realizada por meio dos testes estatísticos não paramétricos qui-quadrado, para expressar associação entre as variáveis. Utilizou-se o programa BioEstat v5.3, adotando p-valor < 0,05 e 95% de intervalo de confiança.
Foi construída uma imagem para ilustrar a distribuição dos casos, tendo os municípios que compõem o estado do Pará como unidade de análise, utilizando o programa TabWin v4.15, disponibilizado pelo Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde9. O coeficiente de incidência foi obtido pela divisão do número absoluto de casos pela população residente de um mesmo município e multiplicando por 100.0001,2,9. A distribuição foi feita por frequências iguais.
RESULTADOS
Foram notificados 34.609 casos de LTA no estado do Pará entre 2008 e 2017, com média de 3.461 casos ao ano (Tabela 1). A incidência média no período estudado foi de 43,89 casos para cada 100.000 habitantes, variando de 55,30 em 2014 a 21,87 em 2016, sendo o maior e o menor valor, respectivamente.
Ano | Número de casos | % | População | Incidência* |
---|---|---|---|---|
2008 | 3.845 | 11,11 | 7.321.493 | 52,52 |
2009 | 3.484 | 10,07 | 7.457.119 | 46,72 |
2010 | 2.570 | 7,42 | 7.588.078 | 33,87 |
2011 | 3.879 | 11,21 | 7.688.593 | 50,45 |
2012 | 4.278 | 12,36 | 7.822.205 | 54,69 |
2013 | 3.211 | 9,28 | 7.999.729 | 40,14 |
2014 | 4.482 | 12,95 | 8.104.880 | 55,30 |
2015 | 3.785 | 10,94 | 8.206.923 | 46,12 |
2016 | 1.816 | 5,25 | 8.305.359 | 21,87 |
2017 | 3.259 | 9,41 | 8.366.628 | 38,95 |
Total | 34.609 | 100,00 | 78.861.007 | 43,89 |
Fonte: SINAN, 2019.
Incidência: número de casos sobre população residente multiplicado por 100.000; * p < 0,001 (x² 331831,564).
Segundo a distribuição espacial dos casos, a maior incidência ocorreu em áreas distantes da região metropolitana (Figura 1).
As características da população acometida estão descritas na tabela 2. Observou-se prevalência do sexo masculino (79,88%; 27.646). Quanto à escolaridade, 23,94% (8.287) dos indivíduos possuíam entre a 1ª e a 4ª série incompleta do Ensino Fundamental e 20,45% (7.076) informou ter cursado da 5ª a 8ª série incompleta do Ensino Fundamental. A faixa etária mais acometida foi a de 20 a 39 anos (48,82%;16.897), seguida por 40 a 59 anos (19,88%; 6.881) e 10 a 19 anos (19,45%; 6.732). Na variável raça/cor, foi observada predominância em pardos (71,77%; 24.838), seguida da cor branca (13,74%; 4.755). O grupo de etnia indígena constituiu 1,81% (625) do universo amostral.
Variáveis | N = 34.609 | % |
---|---|---|
Sexo* | ||
Masculino | 27.646 | 79,88 |
Feminino | 6.956 | 20,10 |
Ignorado | 7 | 0,02 |
Escolaridade† | ||
Analfabeto | 1.396 | 4,03 |
1ª a 4ª série incompleta do Ensino Fundamental | 8.287 | 23,94 |
4ª série completa do Ensino Fundamental | 4.133 | 11,94 |
5ª a 8ª série incompleta do Ensino Fundamental | 7.076 | 20,45 |
Ensino Fundamental completo | 1.765 | 5,10 |
Ensino Médio incompleto | 1.571 | 4,54 |
Ensino Médio completo | 1.733 | 5,01 |
Ensino Superior incompleto | 138 | 0,40 |
Ensino Superior completo | 231 | 0,67 |
Não se aplica | 1.590 | 4,59 |
Ignorado | 6.689 | 19,33 |
Faixa etária‡ | ||
< 10 | 2.352 | 6,80 |
10 a 19 | 6.732 | 19,45 |
20 a 39 | 16.897 | 48,82 |
40 a 59 | 6.881 | 19,88 |
60 a 79 | 1.585 | 4,58 |
≥ 80 | 156 | 0,45 |
Ignorado | 6 | 0,02 |
Raça/Cor§ | ||
Branca | 4.755 | 13,74 |
Preta | 3.134 | 9,05 |
Parda | 24.838 | 71,77 |
Amarela | 485 | 1,40 |
Indígena | 625 | 1,81 |
Ignorado | 772 | 2,23 |
Fonte: SINAN, 2019.
* p < 0,001 (x² 12371.427); † p < 0,001 (x² 26957.319); ‡ p < 0,001 (x² 43512.751); § p < 0,001 (x² 78179.013).
Em relação ao tipo de entrada, 32.719 (94,54%) casos foram classificados como casos novos e 4,45% (1.541), recidivas. Quanto ao critério de confirmação, 92,19% (31.907) foi de cunho clínico-laboratorial. A forma clínica predominante foi a cutânea (33.705). De todos os casos registrados, 72,19% (24.983) evoluíram para cura; 739 indivíduos abandonaram o tratamento (Tabela 3).
Variáveis | N = 34.609 | % |
---|---|---|
Tipo de entrada* | ||
Caso novo | 32.719 | 94,54 |
Recidiva | 1.541 | 4,45 |
Ignorado | 349 | 1,01 |
Critério de confirmação† | ||
Clínico-laboratorial | 31.907 | 92,19 |
Clínico-epidemiológico | 2.702 | 7,81 |
Forma clínica‡ | ||
Cutâneo | 33.705 | 97,39 |
Mucosa | 896 | 2,59 |
Ignorado | 8 | 0,02 |
Evolução§ | ||
Cura | 24.983 | 72,19 |
Abandono | 739 | 2,13 |
Óbito por LTA | 5 | 0,01 |
Óbito por outra causa | 62 | 0,18 |
Transferência | 222 | 0,64 |
Mudança de diagnóstico | 89 | 0,26 |
Ignorado | 8.509 | 24,59 |
Fonte: SINAN, 2019.
* p < 0,001 (x² 58404.041); † p < 0,001 (x² 24644.804); ‡ p < 0,001 (x² 64768.936); § p < 0,001 (x² 146363.822).
DISCUSSÃO
Observa-se que a LTA é um problema de saúde pública no Brasil1,2,3, sobretudo no estado do Pará que, neste estudo, apresentou incidência média de 43 casos/100.000 habitantes, sendo então classificado como área de ocorrência de alta intensidade, conforme critérios da OPAS1. É importante frisar que esse indicador vem diminuindo de forma não linear, o que não é devido à diminuição progressiva do número de casos, mas sim ao aumento da população8,9.
A distribuição de casos de LTA não foi homogênea no território paraense, sendo menos concentrada em áreas urbanas situadas próximas à capital (Belém), ao norte do estado (Figura 1), semelhante ao encontrado em outros estados10,11,12,13. Destaca-se a importância de novos estudos sobre a distribuição espacial desse agravo, delimitando as diferenças entre zonas urbanas e rurais.
Foi encontrada maior taxa de acometimento no sexo masculino em relação ao feminino (proporção de 4:1) e na faixa etária de 20 a 39 anos. Isso sugere um perfil de exposição que se relaciona às atividades laborais. Nas áreas rurais, homens se expõem mais aos vetores responsáveis pela transmissão extradomiciliar12,13,14. A ocorrência em mulheres, crianças menores de 10 anos de idade e idosos indica a ocorrência de transmissão peridomiciliar e intradomiciliar13. Deve-se destacar o crescente número de mulheres no mercado de trabalho na área rural, possibilitando com que a desproporção entre homens e mulheres acometidos por LTA diminua no decorrer dos anos. No interior do estado, casas de madeira com frestas são comuns, o que propicia a inserção dos flebotomíneos no domicílio durante o dia e facilita a transmissão da Leishmania a animais domésticos, colocando todos em risco, independentemente de idade, atividade profissional e sexo11,12,13,14.
O fato da maioria dos casos de LTA ocorrer em indivíduos pardos, deve-se, principalmente, à predominância dessa raça/cor na população do Pará (65%)15.
Apenas 72,19% (24.983) dos casos evoluíram para cura, o que pode ser explicado pela condução inadequada dos registros dos pacientes durante o tratamento, visto que 24,59% (8.509) não continham a informação sobre o desfecho final do tratamento.
Este estudo apresenta como limitação o uso de dados secundários, tendo em vista a subnotificação e o preenchimento inadequado das fichas de notificação16, fato constatado pelo número considerável de variáveis ignoradas (escolaridade, 19,33%; e evolução da doença, 24,59%), demonstrando a necessidade de melhorar seu preenchimento por parte dos profissionais.
CONCLUSÃO
A LTA apresentou alta incidência no Pará no período analisado, acometendo, principalmente, o sexo masculino, pardos e a faixa etária de 20 a 39 anos, estando, dessa forma, intrinsecamente relacionada às atividades laborais dessa população. Sugere-se a existência de transmissão peri e intradomiciliar relacionada ao acometimento de crianças e idosos. A distribuição espacial dos casos não foi homogênea, possuindo maior concentração em áreas distantes da capital do estado.