INTRODUÇÃO
O envenenamento ofídico tem importância médica em virtude de sua frequência e gravidade, representando um sério problema de saúde pública nos países tropicais, sendo considerado pela Organização Mundial da Saúde uma doença negligenciada1.
No Brasil, segundo dados do Ministério da Saúde, no ano de 2016, ocorreram 26.465 envenenamentos ofídicos, sendo 8.715 na Região Norte. Nessa região, o estado do Pará registrou 4.828 acidentes, sendo a serpente Crotalus responsável por 1,4% desse total, sem registro de óbitos2.
A distribuição da cascavel nas Américas é descontínua, do Canadá à Argentina, sendo seu habitat preferencial regiões áridas, como cerrado, lavrados e savanas. A espécie Crotalus durissus é restrita à América do Sul3. No Brasil, é representada por três subespécies: Crotalus durissus marajoensis Hoge, 1966, Crotalus durissus ruruima Hoge, 1966 e Crotalus durissus terrificus (Laurenti, 1768)4, conhecidas popularmente por cascavel, cascavel-de-quatro-ventas, boicininga, maracamboia e maracá, podendo ser reconhecidas facilmente pela presença da fosseta loreal, além do chocalho ou guizo em sua cauda. Na Amazônia brasileira, a C. durissus é encontrada nos estados de Rondônia, Amazonas, Roraima, Amapá (na Serra do Navio) e Pará5, sendo neste último estado encontrada a subespécie C. d. marajoensis, na Ilha de Marajó, além de C. durissus em Santarém e na Serra do Cachimbo3,6.
A peçonha das serpentes da espécie C. durissus presentes na América do Sul é uma mistura complexa de proteínas e polipeptídeos responsáveis por ações neurotóxica, miotóxica e coagulante7,8,9, que clinicamente se manifestam por discretos sinais e sintomas no local da picada, como dor, edema, parestesia e eritema10,11,12,13, além de manifestações sistêmicas, como fácies neurotóxica, prostração, sonolência, mialgia, colúria, insuficiência renal aguda, coagulopatia, que podem evoluir para o óbito8,9,10,14,15. O envenenamento por cascavel é raramente relatado na Amazônia brasileira12,13.
O objetivo deste trabalho é descrever a ocorrência de envenenamento por C. d. marajoensis, na Ilha de Marajó, Pará.
DESCRIÇÃO DO CASO
Pescador, 48 anos de idade, referiu que estava caminhando na área rural do município de Muaná, situado na costa ocidental da Ilha de Marajó, no Pará, Brasil (Latitude: 1°31'42''S, Longitude: 49°13'3''W), quando foi picado no tornozelo direito por cascavel - identificada pelo paciente pela presença do chocalho na cauda, mas que não foi levada ao Serviço de Saúde - às 19 h do dia 10 de agosto de 2017.
Imediatamente, o paciente se dirigiu à sede de Muaná, em canoa motorizada. Durante o trajeto apresentou parestesia no local da picada, sem dor. Aproximadamente 30 min após o acidente, sentiu sensação de peso na cabeça e dificuldade para abrir as pálpebras. Em seguida, relatou dificuldade para falar, visão turva e diplopia. Deu entrada no Hospital Municipal de Muaná, 9 h depois, com as manifestações anteriores, acrescidas de náuseas, tontura, dificuldade para deambular e mialgia nas regiões torácica e nos membros superiores e inferiores.
Foram realizadas medidas de suporte clínico; porém, pela ausência de antiveneno específico para o tratamento, a vítima foi transferida, de helicóptero, para o Hospital de Pronto Socorro Municipal Humberto Maradei Pereira (HPSM do Guamá) em Belém, capital do estado do Pará, onde foi admitido 18 h após o envenenamento. No momento da admissão, o paciente apresentava discreto edema no local da picada, fácies neurotóxica, oftalmoplegia, ptose bipalpebral (Figura 1), midríase bilateral (Figura 2), colúria e oligúria. O envenenamento foi classificado como grave, sendo administradas 20 ampolas de antiveneno crotálico, bem como medidas de suporte clínico e exames laboratoriais (Quadro 1). Quatro dias após, o paciente foi transferido para o Hospital Universitário João de Barros Barreto (HUJBB), onde foi admitido com sintomas e sinais clínicos de neurotoxicidade e de insuficiência renal aguda, sendo realizados novos exames laboratoriais (Quadro 1). Após normalização dos resultados desses exames, o paciente obteve alta hospitalar, totalmente curado e aparentemente sem sequelas.
DISCUSSÃO
Relato de envenenamento por cascavel, causado pela C. d. marajoensis, em Muaná, Ilha de Marajó. Essa subespécie é frequentemente encontrada nesse arquipélago4,6, sendo, porém, seu acidente de ocorrência rara. Pardal et al.12,13 relataram os primeiros acidentes crotálicos na Ilha de Marajó e em Santarém, no Pará. Em outros estados da Amazônia brasileira, os acidentes crotálicos são raramente registrados e representam, em relação ao total de notificações por acidentes ofídicos, percentualmente: 0,7% no Amapá16, 13,4% em Roraima17 e 0,5% no Amazonas18.
O envenenamento ocorreu em um indivíduo adulto, do gênero masculino, quando o mesmo caminhava em uma área rural. A literatura da Região Amazônica brasileira relata, até o momento, três adultos e duas crianças picadas por cascavel, sendo apenas um indivíduo do gênero feminino, todos nesse ambiente, trabalhando ou em atividade de lazer12,13. Na Amazônia brasileira, 75% dos habitantes vivem na zona urbana e 25% na zona rural, sendo o gênero masculino o mais acometido por picadas de ofídios18.
O atendimento médico-hospitalar com tratamento específico ocorreu tardiamente, fato comum na Amazônia, decorrente da disponibilidade do antiveneno apenas nas sedes dos municípios, em geral, distantes do local de ocorrência dos envenenamentos, aumentando assim a probabilidade de evolução com complicações. Pardal et al.12 relataram insuficiência renal aguda em paciente acidentado por cascavel em Cachoeira do Arari, Ilha de Marajó, onde a vítima foi socorrida 24 h após o evento.
As manifestações locais costumam ser discretas nos acidentes crotálicos, sendo mais frequente a parestesia, resultado da ausência de atividade inflamatória local no veneno da cascavel sul-americana19,20. Bucaretchi et al.11 citaram edema discreto, enquanto Jorge e Ribeiro21 registraram dor, edema, eritema e parestesia. Porém, Ferreira22 relatou acidente que evoluiu com intensa reação inflamatória no local da picada, manifestação raramente descrita em acidentes causados por cascavéis sul-americanas.
Manifestações clínicas sistêmicas, como disartria, ptose palpebral, oftalmoplegia, midríase bilateral, mialgias e colúria estiveram presentes neste relato. Segundo Gutiérrez19 e Azevedo-Marques et al.20, essas manifestações se devem às atividades neurotóxica e miotóxica, sendo descritas, na literatura nacional, nos envenenamentos por C. durissus11,12,13,23, ocasionados principalmente pela crotoxina24. Essa crotoxina atua ao nível pré-sináptico, afetando a liberação do neurotransmissor, a acetilcolina, na sinapse da junção neuromuscular, ocasionando paralisias que caracterizam a neurotoxicidade24. A crotoxina é uma molécula dimérica, formada pela crotapotina e pela fosfolipase A2 e também responsável pela miotoxicidade25.
Os exames laboratoriais foram realizados tardiamente; o hemograma e o coagulograma, um dia após a picada. O hemograma evidenciou leucocitose e alterações da coagulação sanguínea. No quinto dia após o acidente, ainda foram observadas alterações nos seguintes exames: (i) coagulograma, (ii) enzimas musculares elevadas, (iii) aminotransferases elevadas e (iv) ureia e creatinina elevadas, evidenciando comprometimento da função renal. Essas alterações laboratoriais sugerem a ocorrência de rabdomiólise com liberação de moléculas de mioglobina, decorrentes da ação miotóxica da peçonha da cascavel, resultando em aumento da liberação de enzimas encontradas nas células musculares, como alanina aminotransferase (ALT), aspartato aminotransferase (AST) e, particularmente, creatinofosfoquinase (CK), além do aumento da ureia e da creatinina sérica, devido à insuficiência renal aguda (IRA)8,9,11,23. Pinho et al.26 afirmam que a IRA tem alta incidência nessa evolução, e Ribeiro et al.27 referem ser essa a causa mais frequente de morte.
A alteração da coagulação sanguínea observada neste relato constitui uma das principais características dos envenenamentos por serpentes da família Viperidae, sendo que, em acidentes causados por C. d. terrificus, observam-se hipofibrinogenemia e incoagulabilidade sanguínea, pela presença da atividade semelhante à trombina presente no veneno dessa subespécie28. Bucaretchi et al.29 publicaram um relato de acidente por C. d. terrificus jovem em que a principal manifestação sistêmica foi a coagulopatia.
A gravidade dos envenenamentos ofídicos depende da quantidade de peçonha inoculada. No Brasil, os acidentes crotálicos são classificados como leves, moderados e graves. Os graves são os que apresentam, além de fácies neurotóxica e mialgia, a presença de colúria, devido à rabdomiólise intensa7,8,9. O presente caso foi classificado como grave, tendo recebido 20 ampolas de antiveneno crotálico. O antiveneno crotálico produzido no Brasil, obtido de cavalos imunizados com veneno de C. d. terrificus, é capaz de reconhecer e neutralizar não só as suas toxinas, mas também as presentes nos venenos de outras cascavéis brasileiras, inclusive a C. d. marajoensis30. Amaral et al.31 demonstraram que, 1 h após a aplicação endovenosa do antiveneno crotálico, os níveis de veneno e de crotoxina no plasma não são mais detectados, sugerindo que são neutralizados. Apesar de o tratamento específico ter sido realizado tardiamente, houve boa evolução clínica, tendo o paciente recebido alta hospitalar após a cura e com os exames laboratoriais próximos da normalidade.
A administração tardia da soroterapia específica é um fato comum na Região Amazônica, uma vez que a maioria dos acidentes ocorre na zona rural, geralmente distantes de serviços de saúde que possuem soros antiofídicos e pela ausência de energia elétrica nas comunidades, impedindo o estoque dos antivenenos. O antiveneno brasileiro só é produzido na forma líquida e requer baixa temperatura (2 a 8 °C) para sua conservação7; portanto, existe necessidade urgente da produção de antiveneno liofilizado para atender essas regiões rurais, evitando o atraso na administração da soroterapia, como ocorreu no presente relato. O soro liofilizado não necessita de cadeia de frio. Na Índia, são disponibilizadas as duas apresentações de antiveneno, sendo que a liofilizada permite que o tratamento seja realizado nas zonas mais distantes do país, onde não há cadeia de frio32. O retardo no tratamento soroterápico pode aumentar os riscos de complicações, particularmente de insuficiência renal aguda, agravando o quadro clínico e piorando seu prognóstico, podendo evoluir com sequelas e a óbito27.
CONCLUSÃO
O presente trabalho relata um envenenamento causado por C. d. marajoensis, no arquipélago do Marajó, classificado como grave, que, embora tenha recebido o tratamento soroterápico tardiamente, apresentou evolução para cura. Os autores ressaltam a importância da soroterapia precoce na abordagem dos acidentes crotálicos.