INTRODUÇÃO
Ao passo que o avanço da epidemiologia e do entendimento sobre doenças infecciosas concretizam-se, as relações sociais, a demografia e a mobilidade decorrentes do processo de globalização tornam-se, cada vez mais, protagonistas da disseminação e da transmissibilidade de microrganismos com potencial de infecciosidade em humanos1. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o termo pandemia refere-se a um estado ocasionado pela emergência e pela disseminação de um novo patógeno, com a capacidade de deflagrar uma enfermidade, muitas vezes grave, com significativa facilidade, por sua replicação e transmissibilidade entre seres humanos2,3.
Dentre as pandemias que assolaram a humanidade nos últimos 100 anos, destacam-se as ocasionadas pelos vírus da influenza, pertencentes à família Orthomyxoviridae. Três gêneros de vírus (gêneros A, B e C) envolvidos em quadros respiratórios pertencem a essa família, onde os gêneros A e B causam maior mortalidade; porém, apenas o gênero A possui potencial pandêmico. Os vírus do gênero Alphaorthomyxovirus (gênero A) são classificados segundo o subtipo antigênico de duas estruturas de superfície, a hemaglutinina (H, 19 subtipos) e a neuraminidase (N, 11 subtipos), responsáveis pelos processos de adsorção viral e de clivagem de receptores celulares, respectivamente. No caso específico do vírus A H1N1, o subtipo antigênico 1 da estrutura H e o subtipo antigênico 1 da estrutura N estão presentes. Por possuir reservatórios animais e apresentar alta virulência em seres humanos, esse subtipo e suas mutações, ainda hoje, repercutem as marcas de seu acometimento populacional1,4.
Entre 1918 e 1920, o Influenza A (H1N1), de origem aviária, tornou-se responsável pela chamada gripe espanhola, comumente citada como o "maior holocausto médico da história", com milhões de mortes globalmente5,6. Nos anos posteriores, a constante remodelação e mutabilidade antigênica do vírus ocasionou novos cenários pandêmicos. Em 1957, uma nova cepa de Influenza (H2N2) ocasionou surtos epidêmicos em diversas regiões do globo, ficando conhecida como gripe asiática7; já em 1968, a linhagem H3N2 recriou o mesmo cenário com a gripe de Hong Kong8; e, por fim, em 2009, a cepa A(H1N1)pdm09, de origem suína, teve seus primeiros casos notificados no México, sendo disseminada, logo em seguida, pelo continente europeu e pela Oceania9. As amostras de pandemias anteriores, como da gripe espanhola, da gripe inglesa e da gripe de Hong Kong, assim como a amostra do vírus Influenza A(H1N1)pdm09, se originaram de mutações do tipo shift que ocorrem por recombinação de segmentos do genoma viral originados de amostras virais de diferentes origens animais10.
Em uma análise de gravidade da última pandemia instaurada pela variante Influenza A(H1N1)pdm09, de acordo com o levantamento feito pela OMS, cerca de 150.000 óbitos foram registrados no planeta até o dia 1º de abril de 2010. No Brasil, houve em torno de 40.000 casos de síndrome respiratória aguda grave (SRAG) e, aproximadamente, 1.700 mortes no período de oito meses, desde a Declaração de Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional (ESPII) pela OMS em abril de 200911. A gravidade da pandemia, ainda que com recursos médicos e científicos superiores aos cenários anteriores, revelou a necessidade e a urgência de uma nova abordagem de vigilância epidemiológica, e, como requisito básico, uma maior eficiência na detecção e monitoramento de novos casos12.
Após cinco declarações de ESPII (H1N1 em 2009, poliomielite em 2014, ebola em 2014 e 2018 e zika em 2016), um surto, no final de 2019, relacionado à emergência de quadros de SRAG em Wuhan, capital da província de Hubei, China, registrou o aparecimento de um agente etiológico que, em pouco tempo, tornou-se alvo da sexta emergência declarada pela OMS, mostrando seu potencial como ameaça à saúde mundial: o chamado novo coronavírus (SARS-CoV-2)13,14.
O mundo já havia enfrentado uma pandemia e uma epidemia devido à infecção pelos coronavírus SARS-CoV e MERS-CoV, ambos de origem em reservatórios animais, do gênero Betacoronavirus e subgênero Sarbecovirus. A primeira, ocorrida entre 2002 e 2003, foi ocasionada pelo SARS-CoV, assim identificado por ter causado a SRAG (severe acute respiratory syndrome - SARS) em indivíduos infectados; a segunda, ocasionada pelo MERS-CoV, responsável pela síndrome respiratória do Oriente Médio (Middle East respiratory syndrome - MERS) no ano de 2011. Por fim, surgindo, no final de 2019, uma pandemia ocasionada por outro coronavírus, também relacionada a doenças respiratórias, com alta patogenicidade13.
A partir de similaridades e contrastes entre as pandemias supracitadas, o presente estudo almeja analisar, comparativamente, a manifestação epidemiológica da infecção por Influenza A(H1N1)pdm09 e pelo SARS-CoV-2 no estado do Pará, Brasil, de modo a permitir que a fomentação da literatura científica possa orientar a tomada de decisões de gestores de saúde em futuras situações semelhantes.
MATERIAIS E MÉTODOS
Trata-se de um estudo epidemiológico descritivo, no qual foi realizada uma comparação entre a análise epidemiológica da gripe pelo vírus Influenza A(H1N1)pdm09, a partir de dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN), tabulados pelo Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde do Brasil (DATASUS), referentes ao período de junho de 2009 a maio de 2010, e da pandemia de COVID-19, ocasionada pelo SARS-CoV-2, cujos dados foram extraídos dos Boletins Epidemiológicos da Secretaria de Saúde do Estado do Pará (SESPA), referentes ao período de março a julho de 2020. Para ambas as plataformas utilizadas, a última data da coleta dos dados ocorreu em 10 de julho de 2020, às 18h01.
O estudo epidemiológico ocorre com a delimitação de variáveis associadas à ocorrência de doenças em uma determinada amostra populacional e de período específico para verificar a associação entre as variáveis, característico de uma abordagem observacional na qual o pesquisador utiliza dados já disponíveis e não interfere, diretamente, na pesquisa. Para a categorização das informações obtidas na análise dos dados coletados, foram selecionadas as seguintes variáveis: idade, sexo, sintomas, número de casos e de óbitos, taxa de mortalidade, internações por SRAG, classificação final e microrregiões de notificação.
Os dados obtidos foram tabulados e analisados no programa Microsoft Excel, e gráficos, mapas e tabela foram gerados. Os mapas foram elaborados e projetados mediante a utilização do programa Qgis, onde a representação da incidência de casos reflete diretamente na tonalidade da cor escolhida. A confecção da tabela, a análise estatística das taxas de incidência e letalidade, assim como os cálculos voltados a estabelecer intervalos de confiança e análises percentuais foram realizados na ferramenta SigmaPlot v12.0.
Por fim, o critério de inclusão estabelecido foi a presença de diagnóstico positivo para uma das duas patologias. Tendo em vista que esta pesquisa fez uso de dados públicos secundários, não foi requerido o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, pois não há identificação individual.
RESULTADOS
Considerando o começo das notificações dos casos de COVID-19 no início de março de 2020, foram realizados, até a data da coleta, 136.184 testes no Pará, dos quais 124.934 tiveram confirmação diagnóstica, 10.900 foram descartados e 350 ainda se encontravam em análise - números que fizeram o Pará alcançar a 5ª posição entre os estados brasileiros com o maior número de casos. Do total de infectados, 109.699 se recuperaram, 9.961 encontravam-se com a doença em curso (hospitalizados ou em quarentena voluntária) e 5.274 evoluíram a óbito, gerando uma letalidade de 4,22%.
Quanto à influenza A(H1N1)pdm09, o Brasil alcançou 54.171 casos confirmados no intervalo entre 2009 e 2010, sendo o Pará o 6º no ranking nacional de infectados. Ao todo, foram realizados 2.184 testes no estado, com 783 confirmados, 1.265 descartados e 136 em investigação. Entre os casos confirmados, 690 foram curados e 41 evoluíram a óbito, com letalidade de 5,23%, e 52 foram óbitos ocorridos não diretamente por influenza, mas por outras causas, conforme o DATASUS. Em uma análise temporal da incidência de casos das duas pandemias sobre o estado, pode-se observar, no gráfico 1, o perceptível pico, comum às pandemias, no terceiro mês após a notificação do primeiro caso, com 61.300 novos casos de COVID-19 e 147 casos de influenza A(H1N1)pdm09. Destaca-se ainda que, em relação às notificações de influenza A(H1N1)pdm09, foi registrada uma segunda onda de notificações no segundo semestre.
Fonte: SESPA (COVID-19) e SINAN-DATASUS (influenza A(H1N1)pdm09), julho/2020.
* O mês inicial de análise corresponde ao mês no qual foi notificado o primeiro caso confirmado das patologias analisadas no estado, sendo o mês de junho de 2009 para a influenza A(H1N1)pdm09 e março de 2020 para a COVID-19. A informação referente ao mês de julho de 2020 corresponde ao dado disponível até a coleta do estudo (10 de julho de 2020).
Quanto à mortalidade, observou-se, além da substancial diferença no número de óbitos absolutos, uma queda menos abrupta de mortes por influenza A(H1N1)pdm09 do que a observada a partir do quarto mês da pandemia de COVID-19, associada a uma segunda onda por influenza A(H1N1)pdm09, maior e mais duradoura, chegando, no oitavo mês, ao pico de novos óbitos, como observado no gráfico 2.
Fonte: SESPA (COVID-19) e SINAN-DATASUS (influenza A(H1N1)pdm09), julho/2020.
* O mês inicial de análise corresponde ao mês no qual foi notificado o primeiro caso confirmado das patologias analisadas no estado, sendo o mês de junho de 2009 para a influenza A(H1N1)pdm09 e março de 2020 para a COVID-19. A informação referente ao mês de julho de 2020 corresponde ao dado disponível até a coleta do estudo (10 de julho de 2020).
Enquanto a infecção pelo SARS-CoV-2 acometeu mais adultos na faixa etária de 30 a 39 anos, o vírus Influenza A(H1N1)pdm09 atingiu mais crianças e jovens, estando os indivíduos de 10 a 19 anos entre os mais infectados. Em relação à incidência por sexo dos afetados pela COVID-19, houve uma equivalência de infecção pelo vírus no estado, com 60.525 (48,45%) homens e 64.409 (51,55%) mulheres. Com relação à influenza A(H1N1)pdm09, o número de mulheres infectadas foi maior, totalizando 477 (60,92%), e o de homens foi 306 (39,08%) (Tabela 1).
Casos confirmados | ||||||
---|---|---|---|---|---|---|
Variáveis | COVID-19 | Influenza A(H1N1)pdm09 | ||||
N | % | IC 95% | N | % | IC 95% | |
Faixa etária (anos) | ||||||
0 a 9 | 3.675 | 2,94 | 0,91-4,96 | 187 | 23,88 | 22,34-25,41 |
10 a 19 | 6.265 | 5,01 | 0,36-9,65 | 246 | 31,42 | 29,38-33,43 |
20 a 29 | 19.502 | 15,61 | 13,24-17,97 | 156 | 19,92 | 17,73-22,10 |
30 a 39 | 31.173 | 24,95 | 24,09-25,80 | 80 | 10,22 | 8,78-11,63 |
40 a 49 | 25.831 | 20,68 | 19,15-22,20 | 44 | 5,62 | 5,27-5,94 |
50 a 59 | 17.113 | 13,70 | 12,77-14,62 | 38 | 4,85 | 4,47-5,22 |
≥ 60 | 21.375 | 17,11 | 16,29-17,92 | 32 | 4,09 | 3,70-4,45 |
Sexo | ||||||
Masculino | 60.525 | 48,45 | 48,00-48,87 | 306 | 39,08 | 35,65-42,50 |
Feminino | 64.409 | 51,55 | 51,12-51,97 | 477 | 60,92 | 58,14-63,67 |
Óbitos confirmados | ||||||
Variáveis | COVID-19 | Influenza A(H1N1)pdm09 | ||||
N | % | IC 95% | N | % | IC 95% | |
Faixa etária (anos) | ||||||
0 a 9 | 29 | 0,55 | 0,45-0,68 | 5 | 12,20 | 10,13-14,26 |
10 a 19 | 23 | 0,44 | 0,33-0,56 | 8 | 19,51 | 17,86-21,15 |
20 a 29 | 61 | 1,16 | 0,55-1,84 | 11 | 26,83 | 23,54-30,11 |
30 a 39 | 190 | 3,60 | 1,39-6,08 | 4 | 9,75 | 8,96-10,55 |
40 a 49 | 430 | 8,15 | 7,09-8,66 | 5 | 12,20 | 11,50-12,89 |
50 a 59 | 638 | 12,10 | 9,34-10,67 | 5 | 12,20 | 11,50-12,89 |
≥ 60 | 3.903 | 74,00 | 68,69-83,53 | 3 | 7,31 | 5,51-9,12 |
Sexo | ||||||
Masculino | 3.365 | 63,80 | 60,39-67,20 | 10 | 24,39 | 14,14-34,63 |
Feminino | 1.909 | 36,20 | 31,68-40,69 | 31 | 75,61 | 69,80-81,39 |
Fonte: SESPA (COVID-19) e SINAN-DATASUS (influenza A(H1N1)pdm09), julho/2020.
N: Número total; IC: Intervalo de confiança a 95%.
Além disso, a taxa de óbitos por COVID-19 foi predominante entre homens, com 63,80% (3.365), enquanto entre mulheres foi de 36,20% (1.909). Para a influenza A(H1N1)pdm09, o número de óbitos notificados foi de 31 (75,61%) na população feminina e 10 (24,39%) na masculina. Enquanto a infecção pelo vírus Influenza A(H1N1)pdm09 promoveu uma maior mortalidade entre indivíduos com menos de 30 anos de idade, o SARS-CoV-2 atingiu os mais idosos.
De acordo com os sintomas apresentados, foram identificadas síndromes da influenza A(H1N1)pdm09 em 2009: síndrome gripal, caracterizada por pelo menos dois dos sinais e sintomas (febre, calafrios, dor de garganta, cefaleia, tosse, coriza, distúrbios olfativos ou distúrbios gustativos), presente em 3,07% dos casos; SRAG, apresentando os mesmos sintomas da síndrome gripal acrescidos de dispneia ou desconforto respiratório, saturação de oxigênio menor que 95% em ar ambiente e cianose, presente em 60% dos casos; e SRAG com hospitalização, em 79,43% dos casos relatados. No caso da pandemia de COVID-19, os sintomas preponderantes foram, em ordem decrescente: febre, tosse, dor de garganta, cefaleia, mialgia e artralgia.
Quanto à distribuição espacial das respectivas pandemias pelas microrregiões do território paraense, foi evidenciado um perfil de acometimento mais homogêneo da COVID-19, com maior distribuição de casos no estado, em comparação à influenza A(H1N1)pdm09, atingindo diversas microrregiões, como as localizadas nos arredores da cidade de Belém, capital paraense, Guamá (5.630) e Cametá (9.695); vários centros do sudoeste paraense, como Itaituba (5.361) e Altamira (5.839); e o Baixo Amazonas, atingindo as microrregiões Parauapebas (14.815), Óbidos (2.997) e Santarém (5.967).
Ambas as pandemias apresentaram um número elevado de casos no nordeste paraense, especialmente na microrregião Belém, com 86,72% (679) do total de casos para influenza A(H1N1)pdm09 e 24,86% (31.056) para COVID-19, enquanto as microrregiões Conceição do Araguaia (influenza A(H1N1)pdm09 = 2; COVID-19 = 616) e Almeirim (influenza A(H1N1)pdm09 = 0; COVID-19 = 698) permaneceram significativamente menos afetadas em ambas as pandemias, como visualizado nas figuras 1 e 2, que apresentam as microrregiões de acordo com o grau de incidência de casos.
DISCUSSÃO
O vírus SARS-CoV-2 foi oficialmente detectado em território brasileiro no dia 26 de fevereiro de 2020, quando o primeiro caso foi notificado, um homem idoso residente na cidade de São Paulo, estado de São Paulo15. Os primeiros registros notificados do vírus Influenza A(H1N1)pdm09 no Brasil datam de 7 de maio de 2009, com seis casos confirmados16. Avaliando os índices de transmissibilidade (R0) para uma melhor comparação entre as patologias, o SARS-CoV-2 apresentou estimativas iniciais que variaram de 1,6 a 4,1, refletindo em uma taxa de mortalidade de cerca de 3,9/100.000 habitantes no país, enquanto o vírus Influenza A(H1N1)pdm09 apresentou R0 entre 1,3 e 1,8, representando uma mortalidade de cerca de 0,85/100.000 habitantes17,18,19,20,21,22.
A partir da análise dos dados coletados no Pará, pôde-se observar, primeiramente, uma substancial diferença no impacto ocasionado entre as duas pandemias ocorridas nos últimos anos, ainda que seus meios de contaminação e transmissibilidade sejam similares. O número de casos confirmados de COVID-19 no estado, de março a julho de 2020, ultrapassou em mais de duas vezes o total de casos de influenza A(H1N1)pdm09, no período de junho de 2009 a maio de 2010, em todo o território brasileiro, tornando-se o 5º estado mais atingido pela pandemia de COVID-19, mas, também, significativamente afetado pela pandemia de 2009, na qual também se enquadrou em posição de destaque, como o 6º em número de casos. O objetivo da comparação da série temporal realizada pelo presente estudo relaciona-se à possibilidade de antever cenários do perfil distribuição do SARS-CoV-2 com base em experiências epidemiológicas com características semelhantes por seu mecanismo de contaminação, infectividade e disseminação, como no caso da pandemia ocasionada pelo vírus Influenza A(H1N1)pdm09. Portanto, a análise permite realizar uma comparação a respeito das diferenças e semelhanças que partem em torno do perfil de acometimento populacional e distribuição territorial dos casos no estado do Pará entre os pacientes índices, sendo levado em consideração o mesmo ponto de partida (presentes nos respectivos gráficos 1 e 2) na análise das curvas de infecção e mortalidade, fundamentais para a compreensão e discussão na literatura a respeito da análise multifatorial relativa ao impacto nos serviços de saúde ocasionados em cada período analisado, além de possibilitar a construção de bases científicas voltadas ao direcionamento das medidas de vigilância sanitária e monitoramento epidemiológico na região. A ausência de uma vacina anti-SARS-CoV-2 até dezembro de 2020 e, portanto, de campanha de vacinação em massa, como ocorre há anos para H1N1, pode justificar os elevados números de casos do novo coronavírus na população em questão, como resultado da ausência de imunidade coletiva (herd immunity) pré-existente. Esse aspecto imunológico certamente impactou nos números dessas infecções por SARS-CoV-2 e Influenza A(H1N1)pdm09.
A discrepância evidenciada em valores brutos entre as patologias, destacando a maior difusão da COVID-19 no estado, pode ser elucidada por diferenças marcantes relativas à sua transmissibilidade. De acordo com o relatório do Centers for Disease Control and Prevention, 81% dos casos de COVID-19 apresentaram sintomas leves e 1,2% eram assintomáticos, o que facilitou a disseminação do SARS-CoV-2, em razão da maior dificuldade de rastreio do vírus, diferentemente das patologias que possuem altos índices de hospitalização, como a MERS, e que, consequentemente, limitam a circulação do patógeno aos estabelecimentos de saúde23. Outra hipótese favorável ao seu alto grau de propagação está relacionada ao seu diferente tropismo viral para o trato respiratório, resultando em uma doença mais leve, mas altamente transmissível quando o vírus se replica no trato respiratório superior; e um acometimento com maior severidade, mas com menor potencial de propagação, quando o tropismo viral é maior para o trato respiratório inferior - hipótese que deriva do exemplo dos vírus Influenza A(H1N1)pdm09, como a influenza sazonal pelos vírus Influenza A (H1N1) e Influenza (H3N2)24,25.
Em relação a outros achados nacionais sobre a COVID-19, os dados relativos ao estado do Pará mostram-se superiores, por exemplo, ao levantamento epidemiológico conduzido no estado do Maranhão26, durante os meses de março a abril de 2020, o qual indicou 2.105 casos confirmados da doença, número cerca de 12 vezes menor que o apresentado no Pará, no mesmo período, demonstrando que, apesar da proximidade territorial, cada unidade da federação é atingida de forma diferente, frente ao número de casos da doença. Ao analisarmos os dados relativos à pandemia de influenza A(H1N1)pdm09, os resultados são inferiores aos achados do estudo observacional com 4.740 casos confirmados no estado do Paraná27, evidenciando que, tal qual a COVID-19, a pandemia por vírus Influenza A(H1N1)pdm09 atingiu de forma distinta as regiões brasileiras. A variabilidade de incidência pela pandemia de influenza A(H1N1)pdm09 pode ser explicada pelo complexo grau de heterogeneidade imunológica das populações locais às cepas de influenza circulantes, tendo como fatores de transmissão as condições geográficas e sociais, o grau de infecciosidade viral e a sazonalidade.
A partir da análise temporal de incidência entre as pandemias, picos de contaminação e de óbitos semelhantes foram evidenciados após três meses do primeiro caso notificado das duas patologias, tendo, no caso da influenza A(H1N1)pdm09, o retorno de uma curva ainda mais ascendente entre o sétimo e o nono mês de pandemia, período esse ainda desconhecido em relação à pandemia de COVID-19, à época da coleta de dado para o estudo. Entre os fatores elencados para uma nova onda de infecção pelo vírus Influenza A(H1N1)pdm09, está a característica sazonal do vírus28. Dada a imunidade ingênua da população ao SARS-CoV-2 e ao seu potencial de contágio mais elevado que a gripe sazonal, a hipótese do surgimento de uma segunda onda de casos, em um cenário de inexistência de tratamentos efetivos da doença ou de indisponibilidade de vacinas, tem sido cada vez mais levantada em estudos recentes29.
Quanto ao comparativo da incidência das pandemias sobre a faixa etária, no caso da COVID-19, os dados mostraram uma diferença significativa em relação aos achados da infecção por vírus Influenza A(H1N1)pdm09, sendo os indivíduos de 30 a 39 anos os mais acometidos pelo SARS-CoV-2. Tais resultados são semelhantes a outros achados, como o estudo epidemiológico com a população de Teresina, estado do Piauí, que demonstrou que a faixa etária supracitada também foi a mais atingida, representando 32,06% dos casos confirmados naquele estado30. Uma hipótese favorável à prevalência nesse grupo seria o fato dessa faixa etária ser economicamente ativa, com maior exposição fora do ambiente domiciliar, mesmo que existam estudos pioneiros estabelecendo possíveis graus de proteção cruzada às pessoas que entraram em contato com outros coronavírus, além da associação entre a gravidade da doença e a tipagem sanguínea31,32.
A respeito da incidência relativa à infecção por vírus Influenza A(H1N1)pdm09, observou-se uma maior predominância de casos confirmados entre 0 e 19 anos de idade, com 31,71% do total de casos notificados. Esse achado corrobora os achados de um estudo transversal32 e de um levantamento epidemiológico14, em que a mesma faixa etária foi a mais acometida pela influenza A(H1N1)pdm09. Uma possível explicação para esse fenômeno deve-se ao fato de que, na pandemia de 2009, os idosos estavam relativamente mais protegidos, em decorrência de uma memória imunológica dos epítopos da variante viral após terem sido expostos a uma cepa semelhante no início da vida, como àquela responsável pela pandemia de 1918 e suas variantes nos anos posteriores33. Logo, tal exposição ao longo dos anos pode ter proporcionado diferentes graus de imunidade para indivíduos com idade igual ou superior a 45 anos, limitando assim o acometimento em idades mais avançadas e evitando uma sintomatologia mais severa nesses pacientes34,35.
Ainda que a COVID-19 tenha apresentado maior incidência entre adultos no Pará, o número de casos da doença não divergiu com relação ao gênero do paciente, uma vez que houve uma equivalência entre o número de homens (48,45%) e de mulheres (51,55%) infectados. Entretanto, quando o foco da análise é a taxa de óbitos, observou-se uma maior letalidade entre homens (63,80%), sendo a faixa etária mais atingida a de 60 anos ou mais. Tal achado, apesar de relativamente inferior ao descrito no estudo de Orellana et al.36, realizado em Manaus, estado do Amazonas, com homens acima de 60 anos de idade representando 69,1% do total de mortes, encontra-se bastante próximo aos descritos na literatura internacional37,38. Apesar de não estarem associados de forma intrínseca a tal desfecho nessa parcela, os fatores relacionados a essa realidade dividem-se em biológicos - como a existência de diferenças imunológicas - e comportamentais, como o maior índice de tabagismo ou negligenciamento durante a quarentena39.
Quanto à pandemia de influenza A(H1N1)pdm09, houve maior incidência de casos (60,92%) e óbitos (75,61%) no sexo feminino. Tais dados confrontam a relativa equivalência do acometimento de mulheres pelo vírus em outros estudos40,41, estando, possivelmente, relacionados a incongruências nos dados oficiais ou, até mesmo, à subnotificação de casos entre homens, visto que, historicamente, tal grupo costuma buscar menos as unidades de saúde para atendimentos42.
Foi possível observar uma semelhança no quadro sintomatológico apresentado entre as duas patologias, com destaque para a presença de febre, associada a problemas respiratórios como a tosse. Em 2011, Khandaker et al.43 corroboraram esse fato ao destacar, em sua revisão sistemática, que 84% dos casos confirmados tinham a tosse e a febre como os sintomas mais prevalentes nos infectados pelo vírus Influenza A(H1N1)pdm09, sendo enquadrados como marcadores importantes para o rastreio de doenças respiratórias semelhantes. Ademais a semelhança dos achados clínicos estende-se, de acordo com os dados coletados, para sintomas como a mialgia e a artralgia, notificadas em um número significativo de casos de COVID-19 no estado, fator também relatado em outro estudo44, que acrescentou fadiga, sintomas gastrointestinais e tosse produtiva como fatores preponderantes para pacientes com SARS-CoV-2, quadro também registrado em pessoas infectadas pelo vírus Influenza A(H1N1)pdm09.
Quanto à evolução dos sintomas e a gravidade relacionada à necessidade de hospitalização, evidenciou-se um índice elevado de casos de SRAG com hospitalização (79,43%) provocada pelo vírus Influenza A(H1N1)pdm09 em 2009, quase o dobro do achado em um estudo de Lenzi et al.45, realizado com 4.740 pacientes com confirmação laboratorial, no estado do Paraná, dos quais 40,3% foram internados. Entre os fatores associados ao fato, destaca-se que, a partir de 2009, foram notificados apenas os casos de hospitalizações por SRAG nas bases de dados do SINAN (SINAN Influenza Web)46.
Entre os fatores associados ao controle do número de novos casos e óbitos pela COVID-19, estão a interrupção das atividades não essenciais durante o período de lockdown (07/05/2020 a 24/05/2020) e a adoção do uso de máscaras como medida obrigatória, sob pena de multa47,48, em vista da publicação de novos estudos associando altas exposições ao inóculo do SARS-CoV-2 a uma maior penetração no trato respiratório inferior, o que estaria relacionado ao agravamento da doença, enquanto exposições mais baixas aos inóculos, devido à barreira física das máscaras, permitem um contato com uma menor carga viral, aumentando o tempo para a resposta imunológica e resultando em uma infecção mais branda49,50.
A partir do comparativo da incidência espacial entre as duas pandemias, pôde-se observar a concentração percentual de casos na microrregião Belém, tendo, respectivamente, 86,72% e 24,86% do total de notificações de casos de influenza A(H1N1)pdm09 e de COVID-19. Entre os fatores associados à maior homogeneidade da incidência de casos de COVID-19 entre as microrregiões do estado, está a questão do maior período de incubação do SARS-CoV-2 (de um a 14 dias), em comparação ao vírus Influenza A(H1N1)pdm09 (de um a sete dias), favorecendo o contágio, visto que pessoas assintomáticas são fontes potenciais de contaminação51,52. Outro ponto a ser considerado diz respeito à substancial diferença no número de testes realizados nas duas pandemias. Na pandemia de COVID-19, esse número ultrapassou cerca de 60 vezes a testagem ocorrida em 2009, estando, portanto, o maior potencial de rastreio associado à menor subnotificação de casos. Além disso, é importante ressaltar, como fator de indução de imunidade e de menor circulação dos vírus pandêmicos, que o vírus Influenza A(H1N1)pdm09 tem cepas circulantes sazonalmente e, também, fazendo parte da vacina anual, cepas que sofrem mutações pontuais frequentes em seu RNA (drifts)53.
É importante analisar que o Pará possui microrregiões com taxas populacionais significativas, permitindo uma maior chance de disseminação do SARS-CoV-2, segundo estudos realizados pela OMS54. Uma possível hipótese para a interiorização, de acordo com Ribeiro et al.55, é devido à conexão entre as cidades brasileiras de diferentes tamanhos e complexidades por meio de malhas aéreas, rodoviárias e fluviais, o que permite o contato de pessoas das mais diversas localidades, sendo um fato que ocorre na região metropolitana paraense, especialmente na microrregião onde se encontra a capital, um dos principais polos econômicos da Região Amazônica, favorecendo a interiorização da COVID-19.
Diante da utilização de base de dados secundários, o presente estudo reconhece as limitações relacionadas ao detalhamento dos casos notificados, reiterando, além do seu foco na participação da complementação aos panoramas epidemiológicos já desenvolvidos a respeito das pandemias mencionadas, a necessidade da constante atualização de pesquisas voltadas à temática, em vista da gravidade relacionada ao cenário epidemiológico atual.
CONCLUSÃO
Os resultados encontrados neste estudo demonstraram a discrepância do impacto de ambas as patologias no estado do Pará, com a COVID-19 apresentando um quantitativo de infectados superior em aproximadamente 60 vezes em relação à influenza A(H1N1)pdm09. A superioridade nos valores encontrados também é refletida em outros fatores como, por exemplo, a taxa de mortalidade e a distribuição espacial no estado. É válido destacar as diferenças na incidência e na mortalidade quanto à faixa etária, sendo mais preponderante o acometimento pelo vírus Influenza A(H1N1)pdm09 em crianças e jovens entre 10 e 19 anos e uma maior mortalidade entre 20 e 29 anos, enquanto para o SARS-CoV-2 foi observado em indivíduos adultos, entre 30 e 39 anos, com uma mortalidade significativa na faixa etária acima de 60 anos. A comparação epidemiológica das séries temporais do presente estudo permite antever diversos cenários do impacto de cada patologia, como a distribuição territorial e acometimento populacional de cada patologia a partir da análise de cada um de seus primeiros casos pareados. Assim, tais achados destacam que a experiência documentada sobre a pandemia de influenza A(H1N1)pdm09 no Pará reflete a necessidade de modificação no planejamento estratégico que deve ser implementado frente à pandemia de COVID-19, em vista do acometimento em públicos distintos e suas diferenças fisiopatológicas, ampliando a necessidade de maior apoio de políticas públicas voltadas ao aumento da capacidade de atendimento à população e da vigilância epidemiológica na Região Amazônica.