INTRODUÇÃO
A partir do século XX, a Odontologia começou a tentar compreender a origem da cárie dentária, visto que a prevalência era bastante alta nos Estados Unidos da América (EUA) e na maioria dos países desenvolvidos, afetando populações do mundo todo. A cárie dentária, consequentemente, foi considerada um problema de saúde pública1.
Os estudos observacionais realizados constataram uma relação entre flúor e cárie dentária; porém, antes da descoberta dos seus benefícios para o elemento dental, as pesquisas revelaram a sua influência em causar um efeito adverso, que foi denominado fluorose dentária. Os estudos que se sucederam foram essenciais, pois estimaram os valores ótimos de flúor na água capazes de promover o máximo de benefício contra a cárie dentária e o mínimo de risco de fluorose dentária2.
A fluoretação das águas de abastecimento público é a adição controlada de um composto de flúor à água para consumo humano, e constitui uma medida responsável pelo declínio da cárie dentária durante a metade do século XX3. No Brasil, essa medida provocou reduções significativas na experiência de cárie na população das cidades que a adotaram, principalmente entre os anos de 1986 e 2003. No país, a fluoretação recebeu determinação legal há mais de 40 anos e vem sendo efetiva em várias localidades. Além disso, tal medida preventiva é de grande importância em virtude de seu aspecto social na redução de desigualdades em saúde pública, visto que se trata de uma estratégia que atinge a população de forma extensa e regular4.
Com base no exposto, a iniciativa de fluoretar as águas de abastecimento é uma medida promotora de saúde bucal, principalmente no Brasil que possui uma intensa desigualdade social. Além disso, essa estratégia constitui, muitas vezes, o principal mecanismo de se obter flúor por grande parte da população que não tem acesso a outros meios preventivos, como o dentifrício fluoretado4.
Diversos estudos têm mostrado que a fluoretação das águas de abastecimento público é um método eficaz de prevenção da cárie dentária. Assim, o objetivo deste estudo é realizar uma revisão crítica, abordando os aspectos químicos do íon flúor, a legislação da fluoretação no Brasil, o impacto dessa medida na saúde pública e o panorama atual da fluoretação na cidade de Belém, estado do Pará, Brasil.
MÉTODOS DE PESQUISA
Para a obtenção dos dados, foi realizada a análise documental dos laudos de teores de flúor gerados pela Secretaria de Saúde Pública do Pará (SESPA) nos anos de 2005 e 2006, bem como da documentação trocada entre a Faculdade de Odontologia da Universidade Federal do Pará (UFPA) e a Companhia de Saneamento do Pará (COSANPA), responsável pelo tratamento de água da cidade de Belém. Além disso, foi feito um levantamento bibliográfico nas bases de dados PubMed, Scientific Electronic Library Online, Biblioteca Virtual em Saúde (Bireme), Periódicos Capes e Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde, correspondente ao período de 1987 a 2020, utilizando os termos de busca "flúor", "fluoretação", "fluoretação das águas" e "cárie dentária".
O ELEMENTO QUÍMICO FLÚOR
O flúor está presente na água, no ar e no solo, tendo enorme capacidade de reagir com outros elementos e formar compostos orgânicos e inorgânicos5. Dentre os íons carregados negativamente, o flúor é o elemento mais reativo. Na natureza, não é encontrado sozinho, mas sim em compostos denominados fluoretos6.
Quando disponível na sua forma livre, o flúor é altamente corrosivo7. Quando está incorporado ao solo, ar e à água, o flúor apresenta diferentes concentrações, dependendo da sua localização geográfica. Na água do mar, sua concentração é de aproximadamente 1,0 ppm, porém pode variar entre 0,8 e 1,4 ppm5.
Com a comprovação dos efeitos do fluoreto no controle da cárie, os fluoretos foram adicionados às águas de abastecimento, aos produtos de higiene oral (dentifrícios e enxaguatórios bucais), aos alimentos e medicamentos8. Vale ressaltar que os principais meios de se obter o fluoreto são os cremes dentais fluoretados e água fluoretada.
A água tem uma importância inegável para as políticas de saúde pública; porém, possui níveis inadequados de teores de fluoreto que não subsidiam a prevenção da cárie dentária. Para tanto, propõe-se realizar os ajustes dos teores até uma concentração ideal para cada localidade, observando a temperatura9. Tais teores devem respeitar princípios que visem ao estabelecimento dos benefícios da prevenção e redução da cárie com o mínimo de risco de fluorose dentária2.
A cárie dentária, conceituada como uma doença infectocontagiosa e multifatorial, provoca a desmineralização da estrutura dentária, devido à ação dos ácidos derivados do metabolismo de carboidratos da placa bacteriana5,10. Porém, após a correlação entre flúor e cárie dentária, no início do século XX, diversos levantamentos epidemiológicos têm fornecido dados que comprovam a efetividade da adição do fluoreto nas águas de abastecimento para consumo humano no que se concerne à redução do índice da cárie dentária3.
É por meio de um desequilíbrio químico que a cárie dentária é originada, e, a partir disso, inicia-se um processo dinâmico de perdas e ganhos de minerais entre a saliva e a estrutura dentária. Equivocadamente, acreditava-se que a ação do flúor no processo da cárie demonstraria sua menor incidência ao ser incorporada em forma de fluorapatita (FA). Entretanto, a ingestão de flúor durante a formação dos dentes não forma FA, pois apenas uma quantidade de aproximadamente 10% é incorporada, a qual é insuficiente para tornar o esmalte mais resistente ao ataque ácido proveniente do metabolismo bacteriano. No entanto, a presença do flúor no meio (saliva, placa bacteriana) é um fator essencial na dinâmica do processo de desmineralização-remineralização (des-re), ativando a remineralização e reduzindo a desmineralização11.
A estrutura mineral dentária depende do ambiente oral, sendo relacionada com as variações do pH. A queda do pH da placa bacteriana, provocada pela liberação do ácido derivado do metabolismo das bactérias, ocasiona a dissolução da hidroxiapatita (HA), liberando fosfato e cálcio para o meio. Todavia, a presença do flúor no ambiente bucal simultaneamente causará a deposição de certa quantidade de mineral na forma de fluorapatita, dessa forma compensando a perda mineral do elemento e interferindo no desenvolvimento da cárie. Além desse fator, a simples presença do flúor ativa a capacidade de remineralização da saliva quando o pH retorna a sua normalidade, intensificando a capacidade de resposta da saliva em repor os minerais perdidos3.
Assim, é notável que a presença do flúor no meio bucal é essencial para o seu efeito preventivo contra a cárie ao longo da vida do indivíduo. Não obstante, sabe-se que o flúor não atua impedindo a doença isoladamente, havendo a necessidade da manutenção do controle da placa bacteriana e equilíbrio na dieta cariogênica para que o efeito preventivo se manifeste em sua totalidade5.
As primeiras pesquisas sugeriram que a propriedade preventiva do flúor era decorrente da sua ingestão durante o período do desenvolvimento dentário, culminando em uma estrutura dental mais resistente ao ataque da cárie. Contudo, sabe-se, atualmente, que o poder preventivo do flúor é decorrente da sua presença constante no ambiente oral, sendo disponibilizado por meio da ingestão da água fluoretada (sistêmico) ou meios tópicos, como a aplicação tópica de flúor, bochechos e dentifrício fluoretado2. Após a ingestão de água fluoretada ou consumo de alimentos feitos com água fluoretada, observa-se a elevação da biodisponibilidade de flúor no plasma sanguíneo e principalmente na saliva, possibilitando a diminuição da perda de minerais e a reversão do progresso da doença cárie12.
A fluoretação das águas consiste na adição e controle dos teores a um valor predeterminado de fluoreto nas águas de abastecimento público com a finalidade de promover efeitos preventivos à população, como a prevenção e controle da cárie dentária9. No Brasil, é regulamentada a utilização do fluoreto de sódio (NaF), fluoreto de cálcio (CaF2), ácido fluorsilícico (H2SiF6) e do fluorsilicato de sódio (Na2SiF6) para a fluoretação das águas de abastecimento público13. No entanto, o fluorsilicato de sódio e o ácido fluorsilícico são os produtos mais utilizados14. A prática de fluoretar a água de abastecimento consistiu em uma das mais importantes medidas em saúde pública e uma das dez conquistas mais relevantes em saúde pública no século XX3,4.
A efetividade da fluoretação das águas foi demonstrada por meio dos estudos realizados em diversas cidades norte-americanas nos anos 1940. Os resultados obtidos, após 13 anos de observações, descreveram uma redução na ocorrência de cárie de 50 a 70% em crianças residentes naquelas cidades que adotaram a fluoretação das águas1.
No Brasil, os municípios que incluíram a fluoretação no sistema de abastecimento público de água tiveram uma redução significativa na prevalência de cárie dentária. Muito embora houvesse a presença de outros métodos de obtenção do flúor, a fluoretação das águas se tornou o melhor meio coletivo de prevenção da cárie, tendo um grande impacto na comunidade e se destacando pelo seu custo-benefício satisfatório9.
HISTÓRICO DA FLUORETAÇÃO NO MUNDO E NO BRASIL (LEGISLAÇÃO)
O primeiro passo para a fluoretação das águas ocorreu por meio das observações de profissionais da área odontológica, que notaram a presença de esmalte manchado nos dentes permanentes de diversos pacientes5. O cirurgião-dentista Dr. Frederick S. McKay, após anos de investigação, propôs que um agente presente na água de consumo seria a causa do aparecimento de esmalte manchado1. McKay também foi o pioneiro em associar que crianças acometidas com o problema no esmalte possuíam menos susceptibilidade à cárie dentária5.
Após anos de estudo, a hipótese de McKay foi confirmada pelo químico H. V. Churchill, o qual, ao utilizar um novo método de análise, detectou altas concentrações de fluoreto na água de consumo1. Em 1931, o Dr. H. Trendley Dean investigou a associação do flúor com o esmalte manchado3. Dean concluiu que crianças residentes em regiões com flúor presente na água eram menos susceptíveis à cárie dentária e propôs uma concentração de flúor que produzisse máximo efeito preventivo contra cárie e o mínimo de risco para o manchamento do esmalte, o qual ele denominou, posteriormente, de fluorose dentária5.
Em 1945, após anos de estudos, a cidade de Grand Rapids, no estado de Michigan, EUA, tornou-se o primeiro município a fluoretar as suas águas de abastecimento artificialmente. Isso fez parte de um estudo, que teve como cidade controle não fluoretada o município de Muskegon. Também participaram do estudo outras cidades norte-americanas e canadenses15.
Decorridos 13-15 anos de estudo, concluiu-se que houve redução de 50 a 70% de cárie entre as crianças residentes nas cidades com água fluoretada1. Nos EUA, na década de 1950, a fluoretação das águas passou a ser política oficial e, em 2006, cerca de 60% dos seus residentes eram beneficiados por essa medida2. Além disso, a política de fluoretação nos EUA foi progredindo com o passar dos anos, abrangendo 74,4% da população em 2012, totalizando aproximadamente 210 milhões de residentes16.
No Brasil, em 1952, no X Congresso Brasileiro de Higiene realizado em Belo Horizonte, estado de Minas Gerais, houve a primeira menção em se recomendar a fluoretação das águas de abastecimento público, processo esse que teve início em 19535.
Os passos iniciais para a adição do flúor nas águas de abastecimento público ocorreram com a implantação do sistema de fluoretação no município de Baixo Guandu, no estado do Espírito Santo. A Fundação Serviços de Saúde Pública (FSESP), do Ministério da Saúde (MS), implantou o sistema em 31 de outubro de 19533. O teor de fluoreto para a região foi na proporção de 0,8 ppm e o composto utilizado foi o fluorsilicato de sódio3,17,18. Antes da implantação do sistema, foi realizado um levantamento epidemiológico preliminar da prevalência de cárie em escolares de 6 a 14 anos de idade, e, decorridos sete anos, houve outro levantamento epidemiológico, constatando uma redução de 64% no índice de dentes permanentes cariados, perdidos e obturados (CPO-D)13.
Em outubro de 1958, a cidade de Curitiba, estado do Paraná, implantou o sistema, sendo considerada a primeira capital a fluoretar suas águas19. Diversos municípios passaram a adotar a fluoretação das águas no decorrer dos anos de 1950 a 1980. Em 12 de junho de 1957, o estado do Rio Grande do Sul estabeleceu a obrigatoriedade da fluoretação de suas águas5.
A partir de 1974, a fluoretação das águas nas estações de tratamento tornou-se obrigatória no Brasil. A Lei federal nº 6.050, de 24 de maio de 1974, dispõe sobre a fluoretação das águas em sistemas públicos de abastecimento onde houver tratamento de água3. O Decreto federal nº 76.872, estabelecido em 1975, regulamentou a Lei nº 6.050 de 1974 e determinou a obrigatoriedade da fluoretação. Ainda em 1975, estabeleceu-se a Portaria nº 635/BSB, de 26 de dezembro de 1975, que ditou normas e padrões para estipular concentrações adequadas de acordo com a temperatura média do local e compostos recomendados para uma adequada fluoretação2,3.
Apesar da Lei federal ter sido estabelecida em 1974, seus efeitos foram gradualmente se expandindo, e a medida decorreu lentamente e com diversas diferenças regionais, privando desse benefício municípios do interior do país4. O Governo Federal passou a promover recursos financeiros, colocando o Brasil entre os países que investem em fluoretação das águas de abastecimento público como medida de saúde pública20.
Após a Lei de 1974, programas foram estabelecidos para incentivar o fornecimento de água tratada fluoretada a um maior contingente populacional. A primeira medida foi conduzida pela FSESP e executada pelo MS em parceria com o Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição em 1975. Decorrida uma década, o Fundo de Investimento Social (Finsocial), por meio do Banco Nacional de Habitação, liberou recursos para as companhias de tratamento de água adicionarem flúor à água21.
A fluoretação das águas de abastecimento público no Brasil foi defendida por diversas entidades profissionais da área odontológica e recomendada pela I, II e III Conferência Nacional de Saúde Bucal, realizadas, respectivamente, em 1986, 1993 e 199414.
Atualmente, a fluoretação das águas constitui em eixo norteador da Política Nacional de Saúde Bucal, denominada Brasil Sorridente, e vem incentivando a implantação da fluoretação nos municípios com tratamento de água. De 2003 a 2007, foram implantados 206 novos sistemas em oito estados brasileiros, abrangendo 2,4 milhões de pessoas3,22.
Diversas entidades da área da saúde têm preconizado que a fluoretação das águas de abastecimento possui caráter preventivo, eficiente e seguro no controle da cárie e que essa medida, além de ser implantada, deve ser mantida23. Além disso, a interrupção do método acarreta a perda dos benefícios e pode ocasionar o aumento da prevalência da cárie3.
De acordo com os levantamentos epidemiológicos de saúde bucal realizados em 2003 e 2010 pelo Ministério da Saúde, observou-se a diminuição nos valores do índice CPO-D nas capitais que adotavam a fluoretação das águas em comparação com as capitais que não realizavam ou interromperam, culminando em uma elevação do índice em 12,8% na população de 12 anos de idade24.
Segundo o levantamento epidemiológico de saúde bucal de 2010 (SB Brasil 2010), as Regiões Norte (3,16), Centro-Oeste (2,63) e Nordeste (2,63) apresentaram os índices mais elevados de ocorrência de cárie dentária em adolescentes de 12 anos de idade. Em muitos municípios dessas regiões, havia ausência de fluoretação, correlacionando-se com o aumento da experiência de cárie da população25.
A VIGILÂNCIA DOS TEORES DE FLÚOR NAS ÁGUAS DE ABASTECIMENTO
Com o crescimento da fluoretação das águas no mundo e principalmente no Brasil, a vigilância dos teores de flúor na água para consumo torna-se primordial, devido aos seus aspectos sociais de grande interesse para a saúde pública. A inexistência ou a ineficiência de monitoramento do fluoreto na água pode culminar no aumento do risco de fluorose, em casos de teores excessivos, ou o comprometimento dos benefícios do flúor na prevenção da cárie dentária, em função de teores abaixo do ideal26.
Embora tenha havido uma mudança considerável no quadro epidemiológico para a cárie dentária no Brasil, dados confirmam que há melhoria da saúde bucal em locais onde existe a fluoretação da água e onde ela é monitorada regularmente, sendo necessária uma concentração ótima de flúor, que pode variar de 0,7 a 1,0 ppm, dependendo da média de temperatura. Regiões com temperaturas mais baixas devem ter níveis de flúor mais elevados, enquanto regiões com temperaturas mais elevadas devem apresentar níveis mais baixos27.
Desde 1975, com a Portaria nº 635/BSB, a fluoretação da água passou a ser regulamentada por normas e padrões que visavam a determinar a concentração ideal para cada região, preconizando até o composto ideal para a implementação da fluoretação. Entretanto, os padrões foram se modificando ao longo do tempo e, atualmente, está em vigência a Portaria GM/MS nº 2.914, de 12 de dezembro de 2011, que determina os valores de concentração de fluoreto, os quais devem estar de acordo com a Portaria nº 635/1975, que define que a concentração do íon não pode ultrapassar o valor máximo permitido (VMP) de 1,5 mg/L28.
O MS, em 2000, implementou o Programa Nacional de Vigilância em Saúde Ambiental relacionado à qualidade da água para consumo humano (VIGIAGUA), responsável, desde então, pela vigilância da qualidade da água no Brasil. O monitoramento dos teores de flúor nas águas de abastecimento público é parte integrante do Programa, monitorando os teores de flúor para que estejam de acordo com os padrões e normas vigentes. Em razão disso, para assegurar as informações a respeito da qualidade da água, foi criado um Sistema de Informação de Vigilância da Qualidade da Água para Consumo Humano (SISAGUA)27.
O SISAGUA é um sistema de informação que registra dados relativos à qualidade da água. Como parte integrante desse Sistema, estão inseridos campos em que é possível registrar os teores de flúor, a partir das análises das águas de abastecimento público, coletados nos municípios com fluoretação. Assim, tal sistema tem um papel importante na saúde, pois, por meio da análise desses dados, é possível promover ações de controle de agravos para a saúde pública22.
A vigilância dos teores de flúor nas águas de abastecimento é uma estratégia vital que objetiva analisar os casos de ocorrência de concentrações excessivas ou insatisfatórias de flúor, que podem culminar em prejuízos à população que a utiliza. A empresa que operacionaliza a produção, o tratamento e a distribuição da água de abastecimento deve realizar o monitoramento dos teores de flúor por meio das análises de águas coletadas periodicamente. Porém, é relevante a realização do heterocontrole promovido por aqueles que não pertencem à empresa responsável e com isso comparar os dados e verificar a efetividade da fluoretação das águas28.
No estado do Pará, em 1987, foi criado o Grupo Estadual de Controle de Fluoretação do Pará (GECOF) com o propósito de realizar o acompanhamento e a avaliação das normas e padrões estabelecidos para a fluoretação das águas de abastecimento público do estado. O grupo era composto por representantes dos órgãos de classe odontológicos (Associação Brasileira de Odontologia - Seção Pará, Conselho Regional de Odontologia do Pará, Sindicato dos Odontologistas do Pará), UFPA, Centro Universitário do Estado do Pará, Secretaria de Saúde do Estado do Pará (Divisão de Saúde Bucal e Vigilância Sanitária), Secretaria Municipal de Saúde de Belém, Secretaria Municipal de Saúde de Ananindeua, Fundação Nacional de Saúde, Academia Paraense de Odontologia, COSANPA, Serviço de Abastecimento de Água e Esgotamento Sanitário (SAAEB), Exército, Marinha e Aeronáutica. O GECOF exerceu o heterocontrole da fluoretação das águas de abastecimento no Pará de maneira eficaz até 2009, quando deixou de realizar reuniões mensalmente.
FLUORETAÇÃO DAS ÁGUAS EM BELÉM: PANORAMA ATUAL
A fluoretação das águas de abastecimento público é uma medida essencial de promoção de saúde que implica o declínio da prevalência de cárie dentária. No Brasil, tal medida é amparada por lei e normas, sendo obrigatória nas cidades em que existe estação de tratamento de água (ETA).
O município de Belém, capital do estado do Pará, é dividido em 71 bairros distribuídos em oito distritos administrativos. Segundo a Prefeitura Municipal de Belém, os distritos englobam os bairros com características semelhantes e são divididos em Distrito Administrativo de Belém (DABEL), Distrito Administrativo do Guamá (DAGUA), Distrito Administrativo da Sacramenta (DASAC), Distrito Administrativo do Entroncamento (DAENT), Distrito Administrativo do Benguí (DABEN), Distrito Administrativo de Icoaraci (DAICO), Distrito Administrativo de Outeiro (DAOUT) e Distrito Administrativo de Mosqueiro (DAMOS)29. O município concentra uma população de 1.499.641 habitantes e ocupa uma área de aproximadamente 1.059,466 km2 segundo dados estimados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para o ano de 202030.
A COSANPA é a concessionária que gerencia e operacionaliza a produção, o tratamento e a distribuição de água para atender a população. A água distribuída pela rede de abastecimento é captada dos lagos Água Preta e Bolonha, localizados em área de proteção ambiental. Atualmente, em torno de 90% da população residente da Região Metropolitana de Belém é coberta por água proveniente da Concessionária31.
A fluoretação das águas do município de Belém iniciou em 1985, sob responsabilidade da COSANPA. As primeiras estações de tratamento de água (ETA) a iniciarem o processo de fluoretação foram ETA São Braz, ETA 5º Setor e ETA Bolonha. Decorridos 11 anos da implantação, em 1996, o percentual da população coberta por água fluoretada correspondia a 82%13.
Em 2003, foi realizada uma pesquisa que avaliou a concentração de flúor nas águas de abastecimento público com amostras coletadas em dez bairros de Belém escolhidos aleatoriamente: Marambaia, Telégrafo, Nazaré, São Braz, Canudos, Guamá, Benguí, Val-de-Cans, Souza e Pedreira, sendo que o bairro do Benguí foi selecionado como controle, por sabidamente não ser coberto pela fluoretação na ocasião. Após as análises das coletas, executadas no Laboratório de Geoquímica da UFPA, verificou-se que 78% das amostras apresentaram teor médio de flúor inaceitável, tendo como parâmetro de aceitabilidade de 0,6 a 0,8 ppm, sendo a concentração ideal de 0,7 ppm para a região de Belém. Apenas 22% das amostras, totalizando dois bairros (Nazaré e Souza), apresentaram teores de flúor aceitáveis, com concentrações de 0,62 e 0,74 ppm32.
Por meio do GECOF, a SESPA realizou, em 2005 e 2006, análises do teor de flúor na água de abastecimento público em várias localidades de Belém e distrito de Mosqueiro para realizar o heterocontrole da fluoretação das águas. Os locais escolhidos eram preferencialmente públicos (escolas e torneiras comunitárias) para facilitar a coleta. Os dados obtidos após análises (Tabela 1) permitiram identificar que as amostras possuíam concentrações inadequadas de íon fluoreto, segundo a determinação da Portaria GM/MS nº 635/1975, que estabelece faixas de concentração de flúor em função da temperatura objetivando atingir os níveis mínimos aceitáveis para a prevenção da cárie33.
Local de coleta | Ano | Teor de flúor (mg/L) | Avaliação |
---|---|---|---|
Colégio Paes de Carvalho | 2005 | 0,2 | Insatisfatório |
Faculdade Pan Amazônica | 2005 | 0,2 | Insatisfatório |
E.E.E.F.M. Tiradentes II | 2005 | 0,1 | Insatisfatório |
Colégio Ideal JR. | 2005 | 0,2 | Insatisfatório |
E.E.E.F.M. Adalberto Klautau | 2006 | 0,3 | Insatisfatório |
Conj. Residencial Raimundo Jinkings | 2006 | 0,0 | Insatisfatório |
E.E.E. M.M. Antonieta Serra Freire | 2006 | 0,0 | Insatisfatório |
Conj. Residencial Angelim | 2006 | 0,0 | Insatisfatório |
E.E.E.F.M. Honorato Figueiras | 2006 | 0,2 | Insatisfatório |
E.E.E.F.M. Dr. Freitas | 2006 | 0,2 | Insatisfatório |
E.E.E.F. Prof. Waldemar Ribeiro | 2006 | 0,1 | Insatisfatório |
E.E.E.F.M. Vilhena Alves | 2006 | 0,3 | Insatisfatório |
E.M. Benvinda de França Messias | 2006 | 0,2 | Insatisfatório |
E.M.E.F. Prof. João Nelson Ribeiro | 2006 | 0,2 | Insatisfatório |
E.E.E.F.M. Augusto Montenegro | 2006 | 0,2 | Insatisfatório |
E.E.E.F.M. Jarbas Passarinho | 2006 | 0,4 | Insatisfatório |
E.M.E.F. Prof.ª Alzira Pernambuco | 2006 | 0,4 | Insatisfatório |
E.E.E.F.M. Maroja Neto | 2006 | 0,4 | Insatisfatório |
E.E.E.F.M. Justo Chermont | 2006 | 0,3 | Insatisfatório |
E.E.E.F. Graziela Ribeiro | 2006 | 0,4 | Insatisfatório |
E.E.E. Prof.ª Rosalina Alves | 2006 | 0,3 | Insatisfatório |
Fonte: SESPA, 2005-2006.
Em 2014, a Prefeitura Municipal de Belém elaborou o Plano Municipal de Saneamento Básico de Abastecimento de Água e Esgotamento Sanitário de Belém baseado na situação de abastecimento de água e esgotamento sanitário de Belém na ocasião. Segundo o documento, o serviço de abastecimento de água era realizado tanto pela COSANPA, gerenciando o abastecimento de água da maior parte de Belém, Ananindeua e Marituba, quanto pelo SAAEB, que administrava sete regiões em Belém, além dos distritos de Mosqueiro, Outeiro e Icoaraci. Atualmente, a COSANPA passou a operar nas regiões anteriormente atendidas pelo SAAEB34.
De acordo com a pesquisa, a Vigilância da Fluoretação da Água de Abastecimento Público realizada pelo Centro Colaborador em Vigilância da Saúde Bucal do Ministério da Saúde, da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, no período de 2010 a 2015, com o propósito de verificar a cobertura e vigilância da fluoretação das águas de abastecimento público no Brasil, observou que, em Belém, 60% da população era coberta por tratamento de água; no entanto, não foram encontrados teores de flúor na água tratada disponibilizada para a população. No Pará, apenas os municípios de Cametá, Dom Eliseu, Oriximiná e Paragominas registraram algum teor de flúor16.
A fluoretação das águas de abastecimento público em Belém não está sendo realizada desde o ano de 2010, embora essa medida tenha sido implementada na década de 1980 pela COSANPA35. Sabe-se que a interrupção de tal medida pode acarretar a polarização da cárie e que, em locais onde a população não é beneficiada com água fluoretada, o índice CPO-D tende a ser maior do que em locais onde há a presença de sistema de fluoretação24.
Ao analisar o contexto do município de Belém na primeira década do século XXI, mais especificamente entre 2003 e 2010, é possível perceber a falta de monitoramento da concentração de fluoreto na água para consumo humano. Os resultados das análises empreendidas, nesse período, comprovaram que a vigilância dos teores adequados de flúor na água de abastecimento fornecida ao município era inadequada, resultando na maior parte das coletas em teores abaixo do preconizado pelo MS. Outrossim, Narvai e colaboradores24 enfatizaram que houve a elevação no índice CPO-D no período referido.
Um estudo realizado com adolescentes de Belém, no período de 2012 a 2014, concluiu que a prevalência de cárie dentária foi elevada36, estando acima das médias nacional e regional, conforme constatado na última pesquisa nacional de saúde bucal realizada em 2010. Nessa pesquisa, o índice de dentes decíduos cariados, com extração indicada e obturados (ceo-d) aos 5 anos de idade foi de 2,14; e o índice CPO-D foi de 2,45 aos 12 anos, 4,88 para a faixa de 15 a 19 anos, 15,87 para 35 a 44 anos e 27,62 para 65 a 74 anos de idade25. Além disso, os dados encontrados indicaram que o componente cariado foi o mais prevalente dentre os demais componentes do índice ceo-d aos 5 anos de idade (91,6%) e do índice CPO-D aos 12 anos (77,1%) e entre 15 e 19 anos (59,0). Nas faixas etárias correspondentes aos adultos e idosos, o componente predominante do índice foi referente a dentes perdidos, sendo 57,0% nos adultos e 92,2% nos idosos25. Esses dados indicaram a grande necessidade de ações em saúde bucal para a região, como a reativação do sistema de fluoretação da água de abastecimento paralisado e o melhor acesso aos serviços odontológicos25,36.
Em adição, além da falta de monitoramento do teor de flúor na água para consumo e a interrupção da fluoretação no município no ano de 2010, destaca-se o não cumprimento da legislação federal vigente no país, que estabelece a obrigatoriedade da fluoretação onde existe ETA, e da Lei Municipal nº 7.530 de 1991, que regulamenta a avaliação e o controle da água tratada e conservada com flúor. Em função disso, o não cumprimento dessas medidas é alarmante e demonstra um exemplo concreto de omissão do poder público e falta do controle social da população em aspectos importantes que afetam a sua saúde.
O custo para a fluoretação das águas de abastecimento é baixo. Estudos demonstraram que o valor per capta variou de R$ 0,08 em São Paulo14, RS 0,60 em Pernambuco27 e R$ 1,43 em Sorocaba37. É um investimento que diminui consideravelmente os custos com cuidados odontológicos da população, tanto no sistema de saúde público quanto no privado.
No início de 2018, uma reunião realizada entre a diretora nacional da Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental, a COSANPA e membros da Agência Reguladora Municipal de Água e Esgoto de Belém e do Instituto Federal do Pará, tratou sobre a paralisação da fluoretação em Belém e a necessidade de se reativar tal medida. A despeito disso, a diretora argumentou que era primordial a realização de um levantamento epidemiológico da experiência de cárie entre o período em que havia a fluoretação e o atual. Apesar disso, até o mês de dezembro de 2020, Belém continuou sem fluoretação nas águas de abastecimento público38.
CONCLUSÃO
Por meio dos dados explanados neste estudo, constatou-se a ineficiência do controle dos teores adequados de flúor na água por parte da companhia de tratamento de água durante a primeira década do século XXI, com a paralisação da fluoretação em 2010 no município de Belém, permanecendo desativada até os dias atuais. Os índices de experiência de cárie observados nos levantamentos epidemiológicos realizados cresceram durante esse mesmo período, reforçando que a retomada do procedimento da fluoretação no município, com um controle rigoroso sobre os teores de flúor, é um meio importante para alterar positivamente a incidência da cárie dentária e minimizar o risco de fluorose.
Assim, considera-se que a fluoretação da água de abastecimento para consumo humano é uma estratégia essencial para a promoção de saúde da população, visto que a saúde é um direito de todos e a sua instituição beneficia todos os setores da sociedade, principalmente o de menor nível socioeconômico.