INTRODUÇÃO
O protagonismo feminino nas Ciências adquire cada vez mais visibilidade. Menos conhecida é a história das desbravadoras que iluminaram o caminho percorrido pelas mulheres que hoje se destacam nas diferentes áreas do conhecimento. A nossa personagem, Maria von Paumgartten Deane, tropicalista e parasitologista, é um dos ícones do pioneirismo feminino nas ciências médicas e biológicas. Neste artigo, apresentamos um esboço biográfico da cientista e destacamos as suas contribuições mais significativas à Medicina Tropical e Parasitologia. O marido, Leônidas de Mello Deane (1914-1993), colaborou em muitas dessas contribuições. Não é incomum a colaboração entre cônjuges quando ambos são cientistas e compartilham a área de interesse. Em 1947, por exemplo, Gerty Theresa Cori (1896-1957), a primeira mulher laureada com o prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia, compartilhou-o com o marido, Carl Ferdinand Cori (1896-1982). O casal Cori desvendou vias metabólicas relevantes para a fisiopatologia da diabetes. No caso dos Deane, ao contrário do que ocorreu com os Cori, o reconhecimento foi assimétrico, desfavorecendo o cônjuge feminino.
A Medicina Tropical volta-se para o diagnóstico, tratamento e prevenção das doenças infecciosas, incluindo as parasitárias, que ocorrem unicamente ou tipicamente nas regiões tropicais e subtropicais. A Parasitologia é o ramo da Biologia que estuda os parasitos, os seus hospedeiros e as relações entre eles. Até meados do século XX, poucas mulheres dedicavam-se a essas áreas de conhecimento médico e biológico1,2. A Ata da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical (SBMT), lavrada em 17 de novembro de 1962, por exemplo, registra apenas uma mulher - Léa Ferreira Camilo Coura (1932-2023) - entre os 73 sócios fundadores3,4. Essa disparidade decorre da menor presença feminina na Medicina e na investigação científica naquela época, mas, também, do preconceito que inferioriza a contribuição das mulheres em comparação à dos homens quando ambas são equivalentes. Ao contrário de Leônidas e Victor Nussenzweig (1928, com mais de 97 anos), Maria José von Paumgartten Deane e Ruth Sonntag Nussenzweig (1928-2018) não aparecem entre os fundadores da SBMT, embora as suas contribuições à Medicina Tropical nada deixassem a dever às dos respectivos maridos.
O "mito da superioridade masculina", eufemismo usado por Maria ao se referir ao preconceito de gênero, tende a enviesar as avaliações individuais dos cônjuges na produção dos casais de cientistas5. Ruth foi mais bem sucedida do que a amiga na superação do preconceito. Maria foi, frequentemente, considerada protagonista secundária, a "esposa do Deane", na apreciação da produção conjunta do casal.
Leônidas recebeu os prêmios máximos concedidos a cientistas brasileiros: o Prêmio Moinho Santista, edição 1986; e o Prêmio Almirante Álvaro Alberto para Ciência e Tecnologia do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), área de "Medicina e Saúde Pública", em 19916,7. Agradecendo-lhes, nos palácios dos Bandeirantes e Planalto, respectivamente, ele ressaltou a injusta omissão e o papel decisivo da esposa na produção conjunta do casal. Em 1991, assim se expressou8:
[...] Finalmente, ao receber este prêmio tenho que reparti-lo com Maria, Maria Paumgartten Deane, minha namorada dos bancos escolares, companheira de trabalho por sessenta anos e esposa há cinquenta e dois. Em muitos artigos publicados, nossos nomes estão lado a lado; porém, mesmo naqueles em que o dela não figura, sua participação foi grande. Nunca fiz um projeto de pesquisa sem discuti-lo com ela, que muitas vezes me deu as sugestões que levaram à solução dos problemas propostos. Por isto, recebo este prêmio como se tivesse sido conferido não a mim, mas a nós: é tanto dela quanto meu.
ESBOÇO BIOGRÁFICO: RAÍZES, EDUCAÇÃO E FORMAÇÃO MÉDICA
Maria nasceu em Belém, estado do Pará, Brasil, em 24 de julho de 1916. Foi a primogênita de Segismundo von Paumgartten (1886-1941) e Adelaide Augusta de Andrade Rodrigues von Paumgartten (1887-1950), ambos naturais de Belém. Os von Paumgartten tiveram mais quatro filhos: Belmira, que morreu de difteria com menos de 2 anos de idade, Luiza, Amália e Francisco, o caçula, oito anos mais novo do que a irmã mais velha. O avô, Sigmund Franz Marie Freiherr von Paumgartten (1851-circa 1904) era um aristocrata austríaco5. Conhecido como "barão von Paumgartten", Sigmund, oficial do exército da Áustria, abandonou a carreira militar e emigrou para Belém por volta de 1873. O barão, germanista, poliglota e detentor de sólida cultura humanística, dedicou-se a promover a educação na próspera Belém do final do século XIX. No Ginásio Paes de Carvalho, foi professor interino das cadeiras de Geografia, Francês e Grego e catedrático de História Universal. Fundou e dirigiu escolas, a última das quais, o Collegio Paumgartten, sobreviveu-lhe9,10. O pai de Maria é o primogênito do segundo casamento do barão, em 1884, com a professora portuguesa Eugênia Carolina Neves Vianna (1859-1942). Apesar das origens, o barão vivia do que ganhava como professor em Belém. Quando o pai morreu, em 1904, Segismundo, com 17 anos, abandonou os estudos para ajudar a sustentar a mãe e as irmãs.
A mãe de Maria, Adelaide, descendia de abastada família portuguesa, cujo patriarca, Francisco Rodrigues, por força dos negócios, transitava amiúde entre Belém e a Europa. Adelaide cresceu e foi educada em Paris, na França, onde cursou o primário, o ginásio e formou-se professora na École Normale, mas não exerceu a profissão no Brasil5.
Os von Paumgartten casaram-se em abril de 1915 e, após o nascimento de Maria, residiram alguns anos no Rio de Janeiro, onde nasceram as filhas Luiza e Amália, mas retornaram a Belém antes da primogênita completar 6 anos de idade. Maria aprendeu as primeiras letras com as tias Amália Lídia (1881-1953)*, Seraphina (1885-1974) e Eugênia (1895-1973) no Collegio Paumgartten (1921-1925) e cursou o secundário no Ginásio Paes de Carvalho (1926-1931). Em 1932, foi aprovada no vestibular e ingressou na Faculdade de Medicina e Cirurgia do Pará (FMCP), colando grau, com destaque, em 1937. Em 1987, Maria afirmou que escolhera a Medicina para ter uma profissão com que se sustentar e por falta de outras opções "aceitáveis" de curso superior em Belém. Na faculdade, porém, encantou-se com a Clínica Médica5.
Eu tinha um grande encantamento com a clínica e, desde o segundo ano de Medicina, eu fui para as enfermarias [...]. Assim que me foi permitido - acho que estava no quarto ano - fiz concurso para o internato [...], [e] comecei a fazer internato [...] na Santa Casa.
A caloura conheceu o terceiranista Leônidas, cuja inteligência e erudição causaram-lhe forte impressão5,11. O veterano apresentou-lhe a obra de Darwin, o que lhe acendeu a paixão pela Teoria da Evolução e estimulou suas reflexões sobre a natureza e evolução das relações dos parasitos com seus hospedeiros.
PRIMEIROS ESTUDOS NA FLORESTA AMAZÔNICA
Em novembro de 1936, Maria estagiava na clínica de doenças infecciosas da Santa Casa de Misericórdia do Pará, quando a criação do Instituto de Patologia Experimental do Norte (IPEN) lhe ofereceu a oportunidade de participar de uma investigação científica na Floresta Amazônica. Ela aderiu, voluntariamente, à equipe escolhida por Evandro Chagas (1905-1940) para buscar casos do calazar neotropical, que denominara "leishmaniose visceral americana" (LVA)11. Maria foi contratada pelo IPEN mais tarde, após se formar na FMCP (Figura 1).

Fonte: Arquivo pessoal dos autores.
Figura 1 - O grupo de Evandro Chagas caminhando na selva em Piratuba, Abaeté (Abaetetuba), Pará, em 1937. Da esquerda para a direita: Nery Guimarães, Maria von Paumgartten, Leônidas Deane (arregaçando as pernas do macacão), Gladstone Deane e dois auxiliares não identificados
Maria foi a mais nova integrante e a única mulher do grupo que, em 1937, excursionou por Abaeté† e municípios vizinhos11,12 (Figura 2). Encontraram seis casos autóctones de LVA: quatro na localidade de Piratuba e os demais em Cupuaçu e Guajará do Beja. Dois outros casos foram descobertos no município vizinho de Moju. Sete pacientes foram internados em Belém para estudo e tratamento12,‡.

Fonte: Arquivo pessoal dos autores.
Figura 2 - Maria von Paumgartten em caricatura desenhada por Leônidas Deane em 1938. Maria foi retratada pelo namorado tal como a via nas excursões a Abaeté (Abaetetuba), Pará, em 1937
A minuciosa descrição da evolução clínica do calazar neotropical constituiu a primeira seção (Estudos clínicos - Therapeutica) do segundo relatório dos estudos da LVA publicado na íntegra pelas Memórias do Instituto Oswaldo Cruz12. Maria, Leônidas e Gladstone Deane e Benedito Sá§ são coautores do artigo, o primeiro assinado por uma mulher na revista.
O grupo foi além da busca ativa de casos autóctones. Eles descobriram os primeiros casos de calazar canino no Novo Mundo; mas, embora suspeitassem, não conseguiram provar que o Phlebotomus longipalpis - hoje Lutzomyia longipalpis - fosse o transmissor da LVA. As buscas pelo vetor e pelo "depositário" silvestre da LVA, que supunham existir, foram frustrantes, mas permitiram que, ao examinar o sangue e as vísceras dos animais caçados e dissecar insetos hematófagos, Maria e Leônidas descobrissem novos parasitos, hospedeiros e ciclos enzoóticos. Alguns achados, como um novo hematocitozoário do morcego Glossophaga soricina, suscitaram questões evolucionárias que obcecaram Maria ao longo da vida. Anos mais tarde, o protozoologista Percy Garnham (1901-1994) homenageou o casal, dando o nome Polychromophilus deanei ao parasito de quirópteros amazônicos13,14.
O HOSPITAL DE MANGUINHOS E A EXPEDIÇÃO AO PANTANAL
Em 1938, Maria completou o treinamento adicional acordado com o governo do Pará para os egressos da FMCP contratados para o IPEN. Hospedada durante 12 meses em um quarto para residentes do Hospital Oswaldo Cruz do Instituto de Manguinhos (Figura 3), aperfeiçoou-se em clínica das doenças infeciosas e parasitárias e nos testes para diagnosticá-las. Foi orientada por Walter Oswaldo Cruz (1910-1967), hematologista, conheceu Henrique Aragão (1879-1956) e Júlio Muniz (1898-1975), protozoologistas, e Arthur Neiva (1880-1943) e Ângelo Costa Lima (1887-1964), entomologistas5.

Fonte: Arquivo pessoal dos autores.
Figura 3 - Maria von Paumgartten, vestida de branco, na varanda do Hospital Oswaldo Cruz, renomeado, posteriormente, Hospital Evandro Chagas, em Manguinhos, onde estagiava. Rio de Janeiro, 29 de junho de 1938
Como parte do estágio, participou, entre 12 de outubro e 6 de novembro, da Primeira Excursão Científica do Instituto Oswaldo Cruz (IOC) à região da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil,
incluindo o Pantanal mato-grossense, liderada pelos helmintologistas Lauro Travassos (1890-1970) e João Teixeira de Freitas (1912-1970). Mais uma vez, foi a única mulher entre os excursionistas. Nas suas "Observações Médicas", no relatório da excursão, destaca-se a descrição e documentação fotográfica de um aglomerado de nove casos de pênfigo foliáceo ("fogo selvagem"), grave e rara doença dermatológica, cuja epidemiologia e etiologia autoimune eram desconhecidas na época15.
A CAMPANHA DE ERRADICAÇÃO DO ANOPHELES GAMBIAE
Em 9 de fevereiro de 1939, Maria e Leônidas viajaram para Russas, no estado do Ceará. Evandro decidira enviar os dois assistentes ao posto-laboratório instalado pelo Serviço de Estudo das Grandes Endemias em Timbaúba, onde se encontravam Gladstone Deane e Ruy Pondé. A missão era estudar a malária que devastava o vale do Jaguaribe e, eventualmente, outras endemias. Em fevereiro, na localidade de Água Fria, encontraram um menino com LVA, o primeiro caso diagnosticado, em vida, no Ceará11 (Figura 4).

Fonte: Arquivo pessoal dos autores.
Figura 4 - Maria von Paumgartten sentada, fazendo anotações, no interior de um casebre na localidade de Água Fria, Quixeré, próximo a Russas, em fevereiro de 1939. Na sua frente, um menino, o primeiro paciente de calazar neotropical diagnosticado em vida no Ceará. Na época, Maria e Leônidas estavam a caminho do posto de Timbaúba, onde trabalhariam até junho, quando foram contratados pelo Serviço de Malária do Nordeste
Em março, isolado no posto, em decorrência de uma grande cheia do Jaguaribe, Leônidas apresentou sintomas da malária falciparum, a terçã maligna, que, rapidamente, evoluíram para um quadro grave que o deixou três dias inconsciente. Dispondo apenas de comprimidos do antimalárico quinacrina (Atebrina®), que não podia administrar por via oral ao paciente inconsciente, Maria esmagou os comprimidos, improvisando uma preparação que, prontamente, injetou, salvando a vida do namorado. Quando os sintomas arrefeceram, Leônidas foi transportado, de barco, a um ponto do rio onde a estrada permanecia transitável, seguindo de carro até Fortaleza11.
Em junho de 1939, Maria e Leônidas foram contratados pelo Serviço de Malária do Nordeste (SMNE), cuja missão era combater a epidemia e, se possível, erradicar o transmissor, o Anopheles gambiae11,16,17. O SMNE, fruto de convênio de cooperação do Brasil com a Fundação Rockefeller, foi organizado e liderado pelo sanitarista estadunidense Fred Lowe Soper (1893-1977). Até o final de agosto, eles foram assistentes de Marshall Barber (1868-1953), malariologista convidado por Soper para ser consultor do SMNE11,17. Com a partida de Barber, Maria foi para o Laboratório Central do SMNE em Aracati, enquanto um grupo liderado por Leônidas delimitava a área invadida pelo An. gambiae e aplicava o larvicida "Verde Paris" nos criadouros encontrados. Em Aracati, Maria estabeleceu uma colônia do An. gambiae para investigar, em condições controladas, a biologia, os hábitos e o comportamento da variedade do anofelino que chegara ao Brasil. Obteve informações que subsidiaram o combate ao An. gambiae, tais como os fatores que influenciavam a dispersão e renovação das populações dentro dos domicílios e a susceptibilidade do mosquito aos diferentes parasitos da malária. Em agosto de 1940, a colônia, único foco do An. gambiae no país, foi eliminada. Além dos experimentos, Maria dissecava anofelinos para verificar se estavam infectados, treinava guardas do SMNE a identificar adultos e larvas do An. gambiae, e supervisionava os exames de rotina. Em 24 de outubro de 1940, com o An. gambiae praticamente varrido do país, Maria e Leônidas casaram-se em Fortaleza, tendo como padrinhos Paulo Cesar de Azevedo Antunes (1901-1974), diretor-assistente do SMNE, e Manoel Isnard de Souza Teixeira (1912-1998)11,16. Quando o SMNE se voltou para a vigilância pós-erradicação, os Deane reuniram-se em Aracati e, com a colaboração de Ottis Causey (1905-1988), entomologista da Fundação Rockefeller, concentraram-se no estudo dos anofelinos nativos do Nordeste.
DESVENDANDO A FAUNA ANOFELINA DO NORDESTE E DA AMAZÔNIA
Com a extinção do SMNE, em 30 de junho de 1942, os Deane foram contratados como médicos assistentes do Serviço Especial de Saúde Pública (SESP), o que lhes possibilitou inserir a Amazônia no estudo dos anofelinos neotropicais. A abrangente investigação constitui a contribuição mais importante do casal para o combate à malária no Brasil. Uma das inovações dos Deane é o conceito de vetores primários e secundários, hoje amplamente aceito e usado sem que se dê crédito às fontes. Na Amazônia, os Deane encontraram evidências robustas do que se suspeitava, mas não se demonstrara: os vetores primários da malária eram o Anopheles aquasalis, nas áreas costeiras, e o Anopheles darlingi, de distribuição ampla por toda a região.
Entre 1942 e 1944, Maria teve repetidos acessos - reinfecções e recidivas - da terçã-benigna. Uma das infecções, em setembro de 1943, foi insólita. Trabalhava no convés da lancha-laboratório "Pará" do SESP, fundeada no meio do rio Ararí, na ilha de Marajó, quando foi picada por um An. darlingi. Maria conseguiu capturá-lo e dissecou-o, encontrando muitos esporozoítos nas glândulas salivares. Não se tratou com Atebrina ® , que lhe causava terrível insônia, e aguardou11. Quatorze dias depois, os sintomas da malária afloraram. O "experimento natural" confirmou, elegantemente, ser o An. darlingi o transmissor do paludismo na área. Maria documentou toda a sequência da transmissão: identificou o mosquito transmissor, fez lâminas das glândulas salivares do mosquito repletas de esporozoítos e do seu sangue com numerosos eritrócitos parasitados pelo Plasmodium vivax11.
Em 1943, nas vizinhanças da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, os Deane suspeitaram que uma variedade local de Anopheles albitarsis pudesse constituir uma nova espécie - um vetor secundário do paludismo na área. A suspeita confirmou-se em 1989, quando trabalhavam no IOC. O novo integrante do complexo An. albitarsis s.l. recebeu o nome de Anopheles deanorum em homenagem ao casal18.
No Nordeste, constataram que, próximo à costa, o An. aquasalis era o único anofelino nativo de importância na transmissão da malária, e que o An. darlingi não infestava regiões mais secas. A descrição das características, hábitos, distribuição e papel dos anofelinos na transmissão da malária, elaborada por Leônidas, Maria e Causey, foi publicada pela Revista do SESP em 194819. O exame dos espécimens coletados resultou em quatro monografias com chaves ilustradas para identificação de ovos, genitália masculina, fêmeas adultas e larvas de 30 a 35 anofelinos neotropicais, uma expressiva contribuição do casal à Malariologia e à Entomologia Médica20,21,22,23. No estudo, depararam-se com três novas espécies de anofelinos descritas em artigos separados: o Anopheles sawyeri24, o Anopheles galvaoi25 e a Chagasia rozeboomi26. Além das novas espécies, descreveram os estágios de desenvolvimento (ovos, larvas e pupas) do Anopheles gilesi27.
As pesquisas durante o combate ao An. gambiae resultaram em artigos que, em 1943, os Deane e Causey publicaram no American Journal of Tropical Medicine and Hygiene28,29.
A JOHNS HOPKINS E A ESTAÇÃO BIOLÓGICA DA UNIVERSIDADE DE MICHIGAN
Em setembro de 1944, Maria e Leônidas receberam bolsas do Instituto de Assuntos Interamericanos, agência do governo americano, para cursar o Mestrado em Saúde Pública na Escola de Higiene e Saúde Pública Johns Hopkins. Após passar o outono e o inverno em Baltimore, foram para a estação biológica da Universidade de Michigan, em Cheboyan, cercada pela floresta temperada, às margens do lago Douglas, onde fizeram cursos de verão. Alojados em uma das rústicas cabanas de madeira da estação, o casal desfrutou, em Cheboyan, o que caracterizou como o período mais agradável da estadia nos Estados Unidos11. O ponto alto foi o curso teórico-prático de Entomologia Geral, ministrado por Hebert Barker Hungerford (1885-1963), que lhes forneceu sólida base na disciplina. Até então, dominavam apenas a Entomologia Médica, com ênfase nos vetores das doenças que estudavam. Após retornar a Belém, em setembro de 1945, Maria tornou-se chefe da Seção de Parasitologia do Instituto Evandro Chagas, então vinculado ao SESP.
FILARIOSE, MANSONELOSE, LEPTOSPIROSE E TRIPANOSSOMATÍDEOS DA AMAZÔNIA
Uma das contribuições dos Deane de maior impacto sanitário foi o estudo da filariose bancroftiana ("elefantíase"), doença parasitária de alta prevalência na Belém dos anos 1940. As pesquisas iniciadas pelo casal e por Causey, em 1942, estenderam-se por quase uma década, sendo relatadas em vários artigos. Ao pioneiro inquérito da prevalência da filariose em Belém, soma-se o estudo da transmissão pelo Culex fatigans (Culex quinquefasciatus)30,31. Em 1948, Maria estudou um novo medicamento piperazínico, a dietilcarbamazina (Hetrazan ® ), com atividade microfilaricida32. Como sanitarista, Maria visava o benefício coletivo, procurava estratégias farmacológicas para bloquear a transmissão e erradicar a parasitose32:
[...] estabelecer quais as doses mínimas de hetrazan capazes de reduzir a microfilariemia e mantê-la nos níveis desejados por período de tempo não inferior ao da duração de maior incidência do Culex fatigans em Belém [...]
O ensaio demonstrou que o tratamento em larga escala com 50 mg diários de Hetrazan ® reduzia a microfilariemia a níveis baixos na população infectada, o que interromperia a transmissão da filariose em Belém.
Ao investigar a filariose em Manaus, estado do Amazonas, em 1948, Maria diagnosticou, pela primeira vez, infecções pela Mansonella ozzardi, nematódeo da família Onchocercidae, no Brasil33. Vários autores, incluindo Leônidas e René Rachou (1917-1963), evidenciaram, posteriormente, que a mansonelose é endêmica em populações indígenas que vivem a oeste de Manaus, às margens do Solimões e seus tributários.
A circulação da Leptospira icterohaemorrhagiae em roedores no Brasil foi descoberta por Henrique Aragão em 1917. Trinta anos depois, em 1947, eram poucos os estudos assinalando a presença da espiroqueta em roedores e outros mamíferos no país. Não havia registro do patógeno na Região Norte. Maria assinalou, de forma inédita, a circulação da L. icterohaemorrhagiae nos roedores de Belém. Isolou-a e cultivou-a para estudar a evolução da infecção34. Especulando sobre o significado do achado, Maria considerava que, dada a alta prevalência da infecção e a abundância de roedores nas cidades da Região Norte, a leptospirose humana devia estar sendo subdiagnosticada. Era, provavelmente, confundida com outras condições febris, tais como febre hemoglobinúrica na malária falciparum, icterícia (hepatite) infecciosa e febre amarela34.
Maria encontrou o Trypanosoma conorrhini em ratos capturados em Belém, isolou-o e cultivou-o com sucesso no meio NNN (Novy-MacNeal-Nicolle) acrescido do sangue fresco desfibrinado de coelho. O T. conorrhini assemelha-se, morfologicamente, ao Trypanosoma cruzi, mas não apresenta estágio intracelular em vertebrados, não sendo patogênico para o homem35. Na década de 1960, na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), Maria usou-o como modelo para desvendar a biologia dos tripanossomatídeos (Figura 5). Tentativas anteriores de cultivar o T. conorrhini haviam fracassado. Maria e Eleanor M. Johnson, na mesma época e independentemente, foram as primeiras a conseguir cultivá-lo35,36.

Fonte: Arquivo pessoal dos autores
Figura 5 - Maria von Paumgartten Deane examinando lâminas ao microscópio no seu laboratório, por volta dos anos 1960
Outra observação relatada por Maria, em 1949, foi a captura, no alto das árvores da mata de Utinga, em Belém, de um triatomíneo raro, o Panstrogylus lignarius, infectado com o T. cruzi37. O inédito achado alinhava-se com a noção de que a tripanossomíase americana era enzoótica na Amazônia.
ESCLARECENDO A EPIDEMIOLOGIA DO CALAZAR NEOTROPICAL
Em 1948, grávida, Maria afastou-se do laboratório e mudou-se, com a mãe e as irmãs, para o Rio de Janeiro, onde a filha, Luisa ("Isá"), nasceu, em 17 de agosto de 1948. No ano seguinte, Leônidas foi transferido para a capital federal, juntando-se à esposa e à filha. Quando Isá tinha 2 anos de idade, Adelaide morreu, privando Maria da ajuda com que contava para cuidar da filha quando se ausentasse. Em 1953, Samuel Barnsley Pessoa (1898-1976) convidou o casal para fazer parte do Departamento de Parasitologia da FMUSP. Leônidas aceitou, mas Maria, inicialmente, declinou o convite: queria estar perto da filha durante a primeira infância. Em setembro, ela começou a frequentar, em tempo parcial, a FMUSP. A pausa nas pesquisas durara cinco anos.
Após ingressarem na FMUSP, souberam que o Dr. Thomaz Correa Aragão (1910-1998), médico de Sobral, no Ceará, afirmara ter atendido, nos quatro anos anteriores, 46 casos de calazar. O relato era surpreendente porque, até então, apenas 33 casos de calazar haviam sido diagnosticados em vida no país. Em 1987, os Deane relembraram como foram escolhidos para estudar o surto11:
O Samuel Pessoa foi até Sobral, confirmou o fato e voltou entusiasmadíssimo para São Paulo. "Isso é um caso para vocês", disse.
Em dezembro, o casal mudou-se para Sobral, levando Luiza, irmã de Maria, para a ajudar a cuidar de Isá. Na antevéspera do Natal, ao necropsiar uma raposa (Lycalopex vetulus) da região, visualizaram leishmanias indistinguíveis morfologicamente da Leishmania donovani no fígado e, na pele, "um lençol de leishmanias"38. Não havia dúvida: haviam encontrado o primeiro hospedeiro silvestre do calazar das Américas e o segundo do mundo39,40. Estudaram o surto até agosto de 195438. Em janeiro e fevereiro de 1955, revisitaram a região e, antes de voltar a São Paulo, estiveram em Jacobina, estado da Bahia, onde ocorriam casos de LVA. No estudo do surto, além de encontrar mais raposas infectadas, os Deane confirmaram a importância dos cães na epidemiologia do calazar neotropical e obtiveram sólidas evidências que incriminavam o P. longipalpis como o único vetor da LVA na região40,41. Com armadilhas, capturaram flebótomos eclodidos em áreas delimitadas do terreno e, examinando amostras de solo no laboratório, encontraram criadouros de flebotomíneos, incluindo o do P. longipalpis, mas não reuniram dados suficientes para caracterizar quais seriam os seus criadouros preferenciais39. Investigaram também se a dedetização domiciliar e peridomiciliar reduziria a população de P. longipalpis e a transmissão da LVA39,40. Em 1955, com a monografia "Contribuição ao Conhecimento da Epidemiologia da Leishmaniose Visceral no Brasil"39, Maria e Leônidas receberam o prêmio Oswaldo Cruz, o mais importante concedido pela Academia de Medicina de São Paulo. Em 1956, uma tese, baseada nesse estudo, foi aprovada com louvor, contribuindo para conferir a Leônidas o título de livre-docente (Parasitologia) da FMUSP.
INSTITUTO DE MEDICINA TROPICAL DE SÃO PAULO
A partir de agosto de 1958, cedida pela FMUSP, Maria implantou o Laboratório Central da Campanha de Erradicação da Malária no Rio de Janeiro. Retornando a São Paulo, em agosto de 1959, transferiu-se para o Instituto de Medicina Tropical de São Paulo (IMTSP), criado pela FMUSP e dirigido por Carlos da Silva Lacaz (1915-2002). No IMTSP, nos anos 1960 e 1970, Maria estudou, sobretudo, a biologia e imunologia de tripanossomatídeos com Judith Kardos Kloetzel, de quem se tornou amiga42,43. Com Regina Vugman Milder, orientanda de doutorado (1968-1971), investigou a ultraestrutura dos tripanossomas.
Movida pela necessidade de aumentar a renda para manter a filha que se encontrava em exílio, Maria licenciou-se em 1971 e, com o marido, aposentado da FMUSP, tornou-se professora visitante do Departamento de Zoologia e Parasitologia do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Minas Gerais de 1971 a 1973. Com o término da licença, voltou a São Paulo e retomou as pesquisas no IMTSP. Em novembro de 1974, a filha Luisa Deane (1948-2003), exilada desde 1969, foi presa na Argentina, o que a abalou profundamente. Interrompeu as pesquisas e viajou com o marido para Buenos Aires, onde o casal tentou, durante cinco meses, libertar a filha. Graças a um habeas corpus, concedido enquanto o Estado de Direito desmoronava na Argentina, Luisa foi solta e seguiu para Portugal como refugiada política. Para não se afastar da filha traumatizada, os Deane viajaram para Portugal, onde, em 1975, trabalharam no Instituto de Higiene e Medicina Tropical de Lisboa - Maria com bolsa da Fundação Gulbenkian e Leônidas, gratuitamente11. Sem documentos e sem perspectivas em Portugal, Luisa sentia-se aprisionada no refúgio. Intimada a reassumir o emprego na FMUSP, Maria pediu demissão, renunciando à aposentadoria. No verso de um postal enviado em fevereiro de 1976 à família em Belém, Leônidas desabafou44:
Maria até já pediu demissão da Universidade de São Paulo, perdendo assim a aposentadoria, com quase 30 anos! Achou (achamos) que não podia voltar deixando Isá, que está muito angustiada.
Em 1976, José Witremundo Torrealba Tovar (1935-1981), ex-aluno da FMUSP e decano da Facultad de Ciencias de la Salud da Universidad de Carabobo, em Valencia, Venezuela, convidou o casal para trabalhar no Departamento de Parasitologia, oferecendo-lhes passaporte e documentos venezuelanos para a filha.
Os Deane permaneceram em Valencia até 1979, quando, com a anistia, Luisa retornou ao Brasil. Decididos a morar no Rio de Janeiro, onde tinham um apartamento mobiliado em Laranjeiras, os Deane aceitaram o convite de José Rodrigues Coura (1927-2021), vice-presidente da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), que os contratou para o IOC. Maria foi chefe do Departamento de Protozoologia (1980-1990), chefe do Laboratório de Biologia de Tripanossomas e vice-diretora do Instituto (1986-1988).
DECIFRANDO A RELAÇÃO DOS PARASITOS COM OS SEUS HOSPEDEIROS
Em 1963, Leônidas começou a investigar a malária simiana no Brasil, o seu grande tema de pesquisa nos 30 anos seguintes45. A partir dos anos 1960, Maria dedicou-se a investigar, na bancada, a biologia dos parasitos e as suas relações com os hospedeiros, mas participou também, de forma limitada, do estudo da malária de macacos. Em 1966, com Leônidas e Joaquim Alves Ferreira Neto, relatou o primeiro caso nas Américas (Plasmodium simium), e o segundo no mundo, de transmissão natural - numa plataforma no alto das árvores - da malária simiana para um ser humano, um guarda florestal da mata da Cantareira, em São Paulo46. Maria colaborou em outros estudos sobre o tema, participando de descobertas marcantes, como a caraterização do Anopheles (Kerteszia) cruzi como vetor do P. simium na Mata Atlântica do Sudeste e Sul do país47.
Entre os seus estudos sobre a biologia e a ultraestrutura de tripanossomos, os últimos com Regina Milder, destacam-se a descoberta de comunicação entre o núcleo e o cinetoplasto durante a diferenciação da forma tripomastigota para epimastigota, sugerindo a transferência genômica entre as duas organelas que contêm DNA48,49. Em culturas axênicas do T. conorrhini, Maria e colaboradores descreveram um novo tipo de reprodução - diferente da fissão múltipla - envolvendo a fusão de formas epimastigotas e formação de "cyst-like bodies" que possibilitariam a troca genética entre células desse protozoário assexual50. Outra observação inédita foi a detecção de citofaringe e citóstomo nos estágios epimastigota e amastigota intracelular do T. cruzi, mas não em tripomastigotas51. Especulou que o T. cruzi usaria essas estruturas para ingerir partes da célula hospedeira, o que foi depois comprovado por outros autores49.
O DUPLO CICLO DO TRIPANOSOMA CRUZI NO GAMBÁ
Em 1984, Maria relatou o achado que marcou os seus anos no IOC. No gambá (Didelphis marsupialis), o T. cruzi - parasito digenético - apresentava um duplo ciclo, o do invertebrado e o do vertebrado. No lúmen da glândula anal ("glândula de cheiro"), as formas epimastigotas do T. cruzi mimetizam o ciclo que ocorre no intestino dos vetores triatomíneos52. Injetando um "sumo" da glândula anal de gambás infectados, conseguiu infectar roedores. A descoberta explicaria casos agudos de doença de Chagas fora de áreas endêmicas e sem a presença de espécies domésticas de triatomíneos, mas é interessante, sobretudo, pelas questões biológicas e evolucionárias que suscita. Maria notou que o Trypanosoma freitasi, parasito específico do gambá, também exibia o duplo ciclo53.
Gambás são onívoros: comem insetos e, possivelmente, constituem os hospedeiros vertebrados mais antigos do T. cruzi. Percebendo que tripanossomatídeos monogenéticos de insetos colonizavam a glândula anal, mas não outros tecidos de vertebrados, os Deane especularam que a glândula protegeria o tripanossoma do ataque do sistema de defesa inata do hospedeiro vertebrado. Ela teria sido o abrigo primordial que possibilitou o aparecimento das formas metacíclicas resistentes ao ataque imunológico. A glândula anal do gambá foi, possivelmente, o sítio onde o T. cruzi, descendente de um parasito monogenético de insetos, evoluiu para digenético com ciclos complementares em hospedeiros triatomíneos e mamíferos.
Maria fez outras contribuições significativas à Parasitologia e à Medicina Tropical, mas as apontadas neste artigo foram as mais relevantes.
PIONEIRISMO
Pela abrangência, relevância e cronologia das suas contribuições à Medicina Tropical e à Parasitologia, Maria pode ser considerada pioneira nessas áreas na América Latina e uma das pioneiras no mundo.
Em 1991, ela tornou-se a primeira mulher agraciada com o prêmio de Ciências Médicas da Third World Academy of Sciences (TWAS), que compartilhou com o marido. Ao agradecerem o prêmio, os Deane sintetizaram o legado científico do casal49,**:
Nós nunca fizemos grandes descobertas, mas nós estamos satisfeitos que o nosso trabalho "na mata e na bancada" tenha contribuído para o entendimento da epidemiologia de algumas doenças parasitárias endêmicas, especialmente a malária, a leishmaniose e a Tripanossomíase Americana, por meio de um melhor conhecimento dos próprios parasitos, seus hospedeiros reservatórios, e vetores.
A Fiocruz, instituição à qual os Deane pertenciam quando morreram, denominou a sua unidade em Manaus de Instituto Leônidas e Maria Deane/Amazônia. No Rio de Janeiro, o IOC homenageou a pesquisadora, batizando de Maria Deane o auditório do prédio que recebeu o nome do marido, Leônidas Deane. Em 1979, a Universidade de Carabobo inverteu a posição dos nomes dos cônjuges na homenagem ao casal, criando o Laboratorio de Investigación Drs. Maria y Leônidas Deane (Figura 6).

Fonte: Arquivo pessoal dos autores.
Figura 6 - Maria Deane, ao centro, falando na inauguração do Laboratorio de Investigación Drs. Maria y Leônidas Deane da Facultad de las Ciencias de la Salud, Universidade de Carabobo, Valencia, Venezuela, 1979. O casal preparava-se para deixar o país e voltar ao Brasil











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