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Revista Paraense de Medicina

Print version ISSN 0101-5907

Rev. Para. Med. vol.20 no.2 Belém June 2006

 

ARTIGO ESPECIAL

 

O que os médicos contam? 1

 

 

Daniel Pinheiro Hernandez

Professor Titular da Fundação Educacional Serra dos Órgãos (FESO). Da Diretoria da Sociedade Brasileira de História da Medicina (Comissão Científica-Região Sudeste). Presidente da Seção Teresópolis da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores- SOBRAMES/RJ. Vice-presidente da SOBRAMES NACIONAL para a Região Sudeste. Membro da Academia Brasileira de Médicos Escritores (ABRAMES), cadeira número oito.

Este trabalho baseia-se no conto como forma de narrativa e, em especial, nos aspectos relacionados ao que contam, os médicos escritores, em suas produções literárias.

O conto, como ensina Assis Brasil, autor do livro Vocabulário técnico de literatura, “É uma narrativa curta, que tem a sua origem na literatura oral de todos os povos. Uma história contada, com começo, meio e fim. Mas a sua forma, durante séculos, sofreu modificações. Do conto tradicional, com enredo concatenado, linear, passou-se ao conto de flagrante, de situação, de ‘estados’ de espírito...” (1979, p. 46).

Tomo, como exemplo, um conto de João Guimarães Rosa, que era médico e clinicou durante alguns anos no interior do estado de Minas, e é um dos expoentes da literatura brasileira.

Esse conto - A terceira margem do rio (in: Para gostar de ler, vol. 10 - contos, 1992, p. 73-79) - narra a história de um homem que manda fazer uma canoa. Um dia ele parte na canoa, rio adentro, e lá permanece, indo e vindo, sem nunca voltar. Até que acaba sendo considerado morto. O conto sugere que a atitude desse homem, ao se abandonar no rio, tenha acontecido talvez pela “doideira” ou “...por escrúpulo de estar com alguma feia doença, que seja, a lepra...” Também conta a angustiosa espera do filho pelo pai e as situações que vão acontecendo enquanto o tempo passa, como o casamento da filha daquele homem e o nascimento do neto.

Percebe-se, nesse conto, a valorização de termos regionais, a forma como as palavras são empregadas, a sutileza ao indicar, num único parágrafo, as possíveis afecções que acometiam o personagem e, também importante, a situação que fez o filho pensar o tempo todo, e que também obriga o leitor a pensar, a imaginar, enquanto lê, que final a história terá.

Isto, é claro, se constitui em arte, na utilização das palavras, na transmissão das idéias, - que fazem o leitor imaginar objetos, roupas, expressões, aspectos, situações e o significado de determinadas palavras -, e no fazer pensar, um item de fundamental relevância nesta forma de narrativa, uma vez que, por ser curta, deve contar muito em pouco espaço.

E, como nos é bem sabido, medicina e literatura são duas formas de arte. A medicina, estruturada no desenvolvimento e aplicação de uma enorme quantidade de conhecimentos técnicos e científicos, é a arte de prevenir, curar ou diminuir o impacto das doenças. A literatura, baseada no gosto pela linguagem, no prazer da leitura e nas inúmeras possibilidades que a redação permite, é a arte de compor obras para transmitir e perpetuar idéias.

A maioria dos médicos, por força das atividades profissionais que exercem, nos mais variados campos e especialidades, sente-se impelida a contar suas experiências, de prevenir e curar doenças. Dessa forma, as experiências profissionais, aliadas ao desejo de transmiti-las, impulsionam a constante elaboração de artigos e livros científicos.

Mas, sabemos que tais obras - artigos e livros científicos -, evidentemente de grande valor e incontestável necessidade, têm uma espécie de “prazo de validade”. Isso acontece porque, na medida que a tecnologia e o conhecimento médico avançam, tais produções precisam ser atualizadas, as idéias talvez necessitem reformulação, conceitos podem ser mudados ou descartados, tabelas e gráficos não mostram mais a realidade ou as ilustrações perderam resolução ou qualidade visual.

Entretanto, indo além da literatura científica, muitos médicos, pelas mesmas experiências, escrevem sobre os vários aspectos da vida, sobre os sentimentos que dela brotam e sobre o que transcende a técnica e o concreto. E o fazem com uma profundidade impar!

E, como “... uma obra literária desenvolve uma linguagem própria, com recursos de expressão diferentes da linguagem cotidiana ...” (Assis Brasil, 1979, p. 127), os médicos escritores contam, nos mais variados estilos, aquilo que a vida lhes mostra e ensina. Com a vantagem, que qualquer obra literária deste tipo apresenta, de não precisar, necessariamente, de atualização.

Vejamos, por exemplo, o sempre falado e discutido Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa, que cito novamente. Obra monumental, publicada em 1956, continua impactante e é motivo de inúmeras pesquisas, teses e trabalhos acadêmicos. Obra repleta de palavras novas, constitui uma enorme contribuição à literatura nacional e ao estudo das variantes regionais da língua portuguesa. O tempo não lhe tira o brilho, nem a importância, nem as opiniões que provoca.

José de Nicola, no livro Literatura brasileira: da origem aos nossos dias, diz que “A linguagem particular de Guimarães Rosa não está no rebuscamento das palavras ou no uso de arcaísmos, mas sim nos neologismos, na recriação e na invenção das palavras, sempre tendo como ponto de partida a fala dos sertanejos, suas expressões, suas particularidades...” (1989, p. 305-306).

Na lavra de Guimarães Rosa, as palavras recriadas ganharam tanta força, tanta importância, e significados tão novos, que o crítico português Óscar Lopes, citado por José de Nicola, assim se expressou:

As metáforas de Guimarães Rosa são tantas e tão originais que produzem um efeito poético radical: o efeito de ressaca do significado novo sobre o significado corrente. A gente lê, por exemplo, que ‘o sabiá veio molhar o pio no poço, que é bom ressoador’, e não fica apenas com uma admirável evocação acústica; as palavras ‘molhar’ e ‘poço’ descongelam-se, libertam-se da sua hibernação dicionarística ou corrente, e perturbam como um reachado todavia surpreendente.” (Nicola, 1989, p. 306).

Claro que, por si só, escrever, - como me referi anteriormente -, sobre os vários aspectos da vida, sobre os sentimentos que dela surgem e sobre o que vai além da técnica e do concreto, não são características específicas, só encontradas nos médicos escritores, uma vez que todos os dedicados à literatura agem de forma parecida quando elaboram seus trabalhos.

Todavia, podemos notar aspectos que transformam as obras, dos médicos escritores, em produções diferenciadas. Conseqüentemente, revestem de importância peculiar aquilo que os médicos contam.

Um deles está relacionado à condição profissional do médico. Quando ainda cursava o terceiro ano do curso de Medicina, ouvi, numa aula de propedêutica, um professor afirmar, mais ou menos com estas palavras: aquele que escolheu a medicina por profissão, escolheu, intrinsecamente, mesmo sem se dar conta disso, trabalhar com três situações básicas: dor, doença e morte. Pareceu-me algo trágico, fatalista, mas, refletindo, logo entendi que era a mais pura verdade. E dei muito valor àquilo que ouvi. Compreendi que cada médico, diariamente, busca diminuir a dor, prevenir e combater as doenças e, sempre que possível, driblar a morte.

E, justamente por isso, pelas características da profissão, o médico está muito próximo de situações extremas, como o nascer e o morrer, a doença e a cura, o conseguir e o não impedir, a calma e o estresse, a felicidade e a tristeza. Por isso, é capaz de ir além, nos trabalhos literários, e apresentar abordagens diferentes e inéditas daquilo que deseja contar.

Um segundo aspecto, que julgo diferenciar os trabalhos literários dos médicos escritores, é o exemplo que transmitem naquilo que contam. Um médico, - e aqui não posso ficar restrito unicamente aos contos - quando apresenta seus sentimentos numa poesia, quando faz a crônica de um fato atual ou conta uma história que surgiu na sua imaginação, está, mesmo que inconscientemente, apresentando exemplos para quem lê seus trabalhos.

Mais que isso, o médico escritor também serve de exemplo, porque, apesar de todas as suas atribuições, ainda encontra tempo para ler e escrever. E ler muito! E escrever bem! O médico escritor valoriza a língua e é reconhecido por isso. Ele, sem saber, acaba influenciando outras pessoas que também desejam escrever. O médico escritor transmite, sem notar, a importância de ter e demonstrar sentimentos, de que escrever é muito prazeroso, de que ler é fundamental. O médico escritor, ao contar suas histórias, é capaz de exercer particular influência nas pessoas, especialmente naqueles detalhes que só ele, por ser médico, sabe como contar.

Assim, por trabalhar nas artes da medicina e da literatura, o médico escritor conta, em suas histórias, sobre sentimentos, experiências pessoais e profissionais, fatos históricos, lendas, religião, ecologia, costumes, festas e tradições, humor, mistério, política, juízos de valor, heróis e anti-heróis e um sem número de possibilidades. Mas, também, conta sobre valores pessoais e gerais, sobre educação e comportamento humano. É, portanto, um educador, um médico que escreve com o cuidado e a profundidade de um exame acurado.

Além disso, - terceiro aspecto - o médico escritor, para bem contar o que pretende, deve ser didata e didático! Vejam a quantidade de ensinamentos que o grande colega Moacyr Scliar transmite, quando perguntado se segue algum método para escrever:

- “Trabalho muito. Tenho de conciliar minha atividade de escritor com a de médico de saúde pública, e, além disto, meu método de trabalho é complicado. Parto de uma idéia qualquer - originária de uma figura real ou imaginada, de um incidente, de um fato histórico, de uma notícia de jornal - e sobre ela começo a escrever, ao acaso, trechos que podem ser o começo de uma história, ou o meio, ou o fim. Quando estas anotações chegam a um certo volume, redijo a primeira versão da narrativa. Sempre a mão. Acredito ser a mão um instrumento mais sensível para a palavra escrita. Depois é que datilografo, uma, duas, três ou mais vezes, até que o texto me pareça razoavelmente bom. Sou um perfeccionista que busca a palavra certa e o ritmo exato.” (in: Para gostar de ler, vol. 9 - contos, 1991, p. 9).

Tais palavras, certamente, contam sobre o valor de se ter um método próprio, sobre uma forma de conciliar as idéias e de como ajustá-las, além de mostrar a importância da paciência e da escolha das palavras e de se atingir o ritmo imaginado para o trabalho.

Agora vejam o que disse Moacyr Scliar, quando lhe perguntaram o que sente quando escreve:

- “Na narrativa propriamente dita, deixo voar minha imaginação, mas tenho bem presente que literatura deve se referir, sempre, ao ser humano em sua dimensão social, histórica, política. Não recuso o humor, porque nada me parece mais desagradável que uma narrativa carrancuda.” (Op. cit., p. 9).

Observa-se, claramente, a importância que o autor dá à imaginação, mas tendo a preocupação constante com as pessoas que vão ler seus trabalhos e, conseqüentemente, com os efeitos que pode causar nelas.

E, a meu ver, há, ainda, um quarto aspecto, que reveste de muita importância a produção literária dos médicos escritores. Trata-se da maneira como falam em relação à maneira como agem. Na realidade, é mais uma expectativa gerada pelo autor. Portanto, é uma responsabilidade a mais! Quando alguém lê o que conta um médico escritor, faz um juízo de valores - por tratar-se de um médico! - e vê, no autor, um ser que trata de doenças, mas que também escreve! O leitor também vê, no médico escritor, alguém que sabe enfrentar seus problemas, já que ajuda tantos a resolver os deles; vê uma pessoa que se esforça para conviver bem com todos, já que sua atenção deve se fazer igualmente, independente de raça, condição financeira, etnia, diferenças de opinião ou quaisquer outros parâmetros desta natureza; vê alguém que valoriza seu tempo, de modo a aplicá-lo sempre da melhor maneira; vê uma pessoa que estuda muito, e sempre; vê um ser que sabe ouvir e entende que é na diversidade das opiniões contrárias que pode nascer o conhecimento e a sabedoria; vê alguém que não se presta a atos contrários aos ditames que realmente acredita.

Desta forma, o médico escritor, nos contos que escreve, narra a sua vida, e um pouco das vidas que cuidou; conforta-se e leva conforto a muitos; dá exemplo e ensina; mostra como pensa e, conseqüentemente, como age, e, com o auxílio da ficção, é capaz de levar esperança a tantos quantos fizer chegar seus trabalhos, porque, nos contos, pode narrar tudo que sua imaginação idealizar, inclusive histórias de dores que foram tiradas, de doenças que foram debeladas ou da morte que, vez ou outra, foi vencida na eterna corrida pela vida.

 

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

ASSIS BRASIL. Vocabulário técnico de literatura. Rio de Janeiro: Tecnoprint, 1979.

GUIMARÃES ROSA, João. A terceira margem do rio. In: Para gostar de ler - vol. 10 - contos. 7 ed. São Paulo: Ática, 1992.

NICOLA, José de. Literatura brasileira: das origens aos nossos dias. 6 ed. São Paulo: Scipione, 1989.

SCLIAR, Moacyr. Sou perfeccionista. In: Para gostar de ler - vol. 9 - contos. 5 ed. São Paulo: Ática, 1991.

 

1Trabalho apresentado em mesa-redonda , no XXI Congresso Brasileiro de Médicos Escritores, em Maceió-AL (20 a 23 de abril de 2006).