SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.20 número4Análise do controle de qualidade do leite doado para o banco de leite humano da FSCM-PAO Instituto Evandro Chagas: 70 anos índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

  • Não possue artigos citadosCitado por SciELO

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Revista Paraense de Medicina

versão impressa ISSN 0101-5907

Rev. Para. Med. v.20 n.4 Belém dez. 2006

 

QUESTÕES DE LINGUAGEM MÉDICA

 

Balão de oxigênio e eutanásia

 

 

Simônides Bacelar

Médico, Hospital Universitário de Brasília, Universidade de Brasília, DF

 

 

A linguagem médica é um campo da Medicina em que há muito para considerar e conhecer melhor, tendo em vista, haver grande número de expressões questionáveis, dúvidas sobre formação vocabular adequada e outros problemas desse teor. Ressalta-se que essas questões são pertinentes aos profissionais de todas as áreas que assistem o doente, e as soluções são tarefas dessa comunidade que, contudo, deve se valer do auxílio dos profissionais de letras para que se obtenham proposições de valor. Sem outras pretensões que não a de contribuir e de ajudar, o autor apresenta alguns casos de uso questionável.

Bala de oxigênio – torpedo de oxigênio – balão de oxigênio.

Denominações coloquiais inadequadas para relatos científicos formais. O dicionário Aurélio registra balão de oxigênio como expressão de uso popular. A expressão recomendável como termo técnico é cilindro de oxigênio, como consta da literatura médica. Também se diz fonte móvel de oxigênio.

O tamanho é expresso pela capacidade em metros cúbicos e varia entre os fabricantes e distribuidores. Por exemplo: os maiores são de 10 m3, 7 m3 , 6,20 m3 e os menores, de 3,5 m3, 1 m3 , 0,6 m3 (padrões White Martins). Bala e torpedo são designações de peças militares de efeito mortífero, sentido contrário dos cilindros de oxigênio. Pelo mesmo motivo, convém evitar as expressões "bala de CO2" e "bala de gasogênio". Em referência a recipientes pequenos com cerca de 2 litros de capacidade, pode-se dizer garrafa de oxigênio, como aparece na literatura.

Eutanásia – sacrifício (animais de pesquisas).

Ambos são termos usados para exprimir morte programada ou proposital infligida a animais de experimentos. Há quem hesite sobre qual seja a denominação certa para exprimir eliminação referente aos animais: eutanásia, sacrifício, execução, extermínio, abate, destruição ou mesmo matança. Em muitos textos médicos, nota-se hesitação sobre o termo correto a utilizar e escreve-se eutanásia (sacrifício), eutanásia/sacrifício.

No Termo de Compromisso do Pesquisador com o Laboratório de Técnica Cirúrgica da disciplina de Técnica Cirúrgica e Cirurgia Experimental da FMUSP, consta eutanásia / sacrifício. O Centro de Desenvolvimento de Modelos Experimentais para Medicina e Biologia da Escola Paulista de Medicina, em suas Normas para a Utilização de Animais de Laboratório na Pesquisa e Ensino, usa apenas o termo eutanásia no item 6 dos procedimentos e cuidados com os animais, instrução J: "Eutanásia: todo animal que em qualquer fase do experimento demonstrar sofrimento intenso e perseverante deverá ser imediatamente sacrificado. No caso de sofrimento moderado, deverá receber os lenitivos necessários. A eutanásia deverá ser efetuada por meio de substância anestésica (depressor do sistema nervoso central) que não provoque dor ou outro sofrimento. Não é permitido ar ou éter na veia ou no coração, choque elétrico, veneno ou traumatismo violento.".

No entanto, há controvérsias. De acordo com Maria Lúcia Costa Metello, médica-veterinária e advogada, Presidente da Sociedade de Proteção e Bem-Estar Animal "Abrigo dos Bichos" e do Conselho Fiscal Efetivo da Sociedade Brasileira de Medicina Veterinária, "a sentença de morte decretada para este animal não deve ser interpretada como eutanásia e, sim, como sacrifício por uma causa, porque, para obter os resultados desejados para um processo de ensino ou pesquisa, a saúde física do animal é altamente danificada, alterando sua qualidade de vida, tornandose, pois, um quesito necessário. [...] Devemos salientar que as associações de proteção aos animais não são contra a eutanásia, pois este termo significa, segundo o "Dicionário Aurélio", morte serena, sem sofrimento; prática, sem amparo legal, pela qual se busca abreviar, sem dor ou sofrimento, a vida de um doente reconhecidamente incurável.

As associações de proteção aos animais são totalmente contrárias à matança. [...].Isso quer dizer, portanto, que a terminologia "eutanásia" só é admissível quando comprovada sua necessidade e o animal em questão não mais apresentar condições de continuar vivo por ser um doente reconhecidamente incurável e não simplesmente porque é uma morte indolor e, como agravante, praticada substituindo ações efetivas para a preservação da saúde pública."

Atualmente, entende-se como sacrifício de animais o processo de morte causado por métodos como câmara de gás, eletrochoque, disparo de armas e outros que inflijam dor ou agonia ao morrer, e eutanásia – a morte em que o animal é submetido à sedação ou anestesia e posterior indução à morte pela injeção de substância, como o cloreto de potássio, em dose letal. Pela etimologia, eutanásia significa boa morte; do grego eús, bom, nobre, thánatos, morte, e -ia, processo, conforme está no dicionário Houaiss (2001).

Por esse ponto de vista, eutanásia se aplica à morte sofrida pelos animais nas condições em questão. Mas, em Medicina e no uso geral, tradicionalmente, eutanásia indica ato (processo) de provocar a morte sem sofrimento de um doente com afecção incurável que lhe causa dores e outros padecimentos. Por essa óptica, eutanásia não se aplicaria ao caso de causar a morte propositalmente de animais sadios. Nesse caso, sacrifício seria nome mais apropriado. Contudo, essa nominação lembra processo agressivo, ao passo que eutanásia nos acorre como atitude humanista, condição que poderia contribuir para suavizar os sentimentos contrários a esse processo de pesquisa. Esse neologismo de acepção encontra apoio histórico.

Muitas vezes, ao arrepio da gramática, os sentidos das palavras passam por transformações ao decorrer do tempo, como em um processo natural, de acordo com a necessidade do povo. Caso esse novo sentido de eutanásia seja amplamente usado na literatura e no uso geral, passará a ser fato da língua e, desse modo, não haverá de ser erro. Alguns núcleos oficiais de ética em pesquisa, como na UnB (DF), por exemplo, têm rejeitado o nome sacrifício e indicam eutanásia em suas avaliações de projeto de investigação. Pelo que se lê, vê e ouve, ainda não há uma lei que estabeleça eutanásia como nome indicado para expressar a morte programada de animais sadios em nome da pesquisa. Mas, como dizem, assim como se criam animais para o abate e a alimentação humana, a criação de animais para uso em pesquisa científica parece apresentar aspectos semelhantes. Particularmente para esse último caso, eutanásia parece melhor nome que sacrifício, execução, extermínio, abate, destruição ou matança.

Tendo em vista as dissensões sobre uso de eutanásia (não existe morte boa, suave, feliz) ou sacrifício (procedimento próprio para sacerdotes e destinações a divindades) o termo, cientificamente exato, é morte. O animal de experimentação é morto pelos pesquisadores ou por ordem destes. Em ciência, os termos devem expressar a verdade sem eufemismos, mesmo que suas expressões retratem a crueza das ações feitas em seu benefício e da humanidade.

 

REFERÊNCIAS

1. Ferreira ABH, Ferreira MD, Anjos M. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa, 3 ed. Atualizada, 1a impressão, Curitiba: Ed. Positivo, 2004

2. Metello MLC. Eutanásia x matança, http://www.apascs.org.br/materia 1.php, acessado em 12.12.2006

3. Houaiss, A. Dicionário Houaiss da Lingua Portuguesa, 1a ed., Rio de Janeiro: Objetiva, 2001