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Boletim de Pneumologia Sanitária

versão impressa ISSN 0103-460X

Bol. Pneumol. Sanit. v.7 n.1 Rio de Janeiro jun. 1999

 

IN MEMORIAM

Raphael de Paula Souza

 

 

José Rozemberg

 

 

Em 2 de junho último, aos 97 anos de idade, extinguiu-se a preciosa vida de Raphael de Paula Souza. Na história da luta antituberculosa no País, ele foi sem dúvida uma das maiores expressões pela sua aguda visão de enfrentar a tuberculose de forma global, desenvolvendo um hercúleo trabalho de âmbito nacional com o precário armamento então disponível na época anterior à moderna quimioterapia: Acrescente-se o entrave de seu alto custo porque o alicerce do projeto era um elevado número de leitos para o isolamento e o prolongado tratamento dos pacientes. Uma idéia da dramaticidade da epidemia tuberculosa na fase em que Paula Souza dirigiu sua luta é fornecida pelo fato que na década dos anos 40, a mortalidade tuberculosa era de 150 a 500 por 100.000 habitantes na maioria das capitais brasileira.

A decisão de Raphael de Paula Souza, de se especializar em Tuberculose, decorreu da circunstância de ter sido acometido pela doença durante sua formação universitária no Rio de Janeiro. Transferiu-se para a Faculdade de Medicina de Belo Horizonte, cidade que com clima ameno era considerada propícia para o seu tratamento. Convivendo com colegas doentes e influenciado por professores que também sofreram do mesmo mal, optou por empenhar-se na luta contra a Tuberculose, abandonando a idéia inicial de se dedicar à ciência pura. Essa decisão tornou-se mais imperiosa, ao chegar a Campos do Jordão, estância climatérica com a mística do ar da montanha. Ao lado dos tuberculosos ricos ou remediados nos sanatórios, legiões de doentes indigentes ali aportavam, muitos deles "despachados" de suas cidades, pelas autoridades municipais ou pelos delegados de polícia, com apenas a passagem no bolso.

Chegavam com formas extensas caseosas desbarrancando os pulmões e vastas adenomegalias mediastinais e abdominais, caquéticos em fase terminal; permaneciam estendidos no chão da estação ferroviária e ali morriam: o número de leitos era precário. Vivendo esse quadro dantesco, mais lhe amadureceu a necessidade de uma política sanitária de âmbito nacional, para pelo menos minorar essa situação. Atuando e clinicando na estância foi convidado a dirigir o então importante Sanatório de São Paulo. Resolveu primeiro aprimorar-se em Paris onde freqüentou o Curso de Aperfeiçoamento em Tuberculose do renomado Prof. Leon Bernard. Assim aprofundou sua formação tisiológica e assimilou a importância social, sanitária e toda a complexa problemática do enfrentamento da tuberculose. Espírito inquieto, interessado nos diversos ramos da atividade humana, impregnou-se com a universalidade da cultura francesa, a qual tanto influenciou sua personalidade. Retornando a Campos do Jordão assumiu a direção do Sanatório São Paulo, pondo em prática seus conhecimentos técnico-administrativos, consolidando sua verdadeira vocação. Essa fase lhe foi proveitosa ainda pelo aspecto da solidariedade humana, pois como sempre relembrava, aprendeu, como os demais tisiólogos, a se integrar com a vida dos pacientes, compartilhando de seus dramas e sofrimentos, pela estreita convivência durante o longo tempo de tratamento. Em decorrência concretizou um dos seus projetos que era da ereção de um conjunto de hospitais de construção modesta de baixo custo para atender a grande demanda de doentes indigentes. Assim presidiu a Associação de Sanatórios Populares, conhecida como "Sanatorinhos". Formou grande equipe de colaboradores, desenvolvendo notável trabalho médico – assistencial.

Pertencente a tradicional família paulista, retornou a São Paulo em 1933. Além da clínica privada atuou nos serviços do então Instituto de Higiene, fundado pelo seu primo Geraldo de Paula Souza o qual muito contribuiu para o desenvolvimento de saúde pública de São Paulo. Transformando o Instituto, na Faculdade de Higiene e Saúde Pública da Universidade de São Paulo, foi nomeado catedrático de tisiologia e por duas vezes foi diretor da Faculdade. Direcionou o ensino da tuberculose sempre conectando a clínica com a epidemiologia e as medidas de controle da doença. Fez notória escola, tornando seus assistentes, nomes conhecidos na tisiologia. Plantou marcantes diretrizes que repercutiram no ensino da tuberculose naquela faculdade, tornando a cátedra um atrativo para os notáveis professores que o sucederam.

Em 1945, Paula Souza abandonou sua rendosa clínica e as funções universitárias atendendo ao convite do Ministério da Saúde para dirigir o Serviço Nacional de Tuberculose no Rio de Janeiro. Convicto que poderia afinal expandir seu pendor de sanitarista, aceitou o cargo, solicitando e obtendo autonomia de ação com verbas específicas para o seu projeto de instituição de uma campanha de âmbito nacional contra a tuberculose. Com sua larga visão dirigiu e orientou a implementação da referida campanha. Fato significativo foi que por primeira vez o combate à tuberculose passou a contar com recursos substanciais com total liberdade de sua aplicação. O projeto objetivava um conjunto integrado de medidas de profilaxia e assistência, de ensino e ação social alcançando todo o país com maior ênfase nas áreas de maior incidência da tuberculose. Projeto custoso porque alicerçado na construção de apreciável rede hospitalar para suprir aflitiva carência de leitos.

Ajustadas as linhas básicas do trabalho institui-se oficialmente em 1946 a Campanha Nacional Contra a Tuberculose (CNCT), tornando-se seu primeiro superintendente. Os hospitais da campanha eram de construção econômica e baixo custo de manutenção. Multiplicaram-se os dispensários que progressivamente passaram a se integrar nos centros de saúde. A abreugrafia de massa constituiu a base para a descoberta precoce dos casos de tuberculose. Em suma, foram postos em ação todos os procedimentos então disponíveis para o controle da doença. Atenção paralela foi dada à formação de recursos humanos, com a multiplicação de cursos, estágios e bolsas oferecidas aos Estados. Formaram-se médicos, enfermeiros, visitadores sanitários, bacteriologistas, radiologistas e outros técnicos, com ênfase no aspecto médico-sanitário da tuberculose, no seu caráter acentuadamente social, atingindo prioritariamente a população mais carente. Ampliou-se assim, substancialmente a área do ensino que já vinha sendo promovida por centros oficiais e privados e pelas cátedras de tisiologia nas escolas médicas criadas em 1946 por lei federal. Criou-se o Dispensário Escola sediado à rua do Resende no Rio de Janeiro para servir de campo prático dos cursos da Campanha. Neste, militaram eminentes tisiólogos, entre eles Manoel de Abreu, que ali instalou o famoso serviço de abreugrafia. A CNCT firmou convênios com governos estaduais e municipais, com institutos médico-científicos, cátedras de tisiologia e com organismos como a Sociedade Brasileira de Sociedades de Tuberculose que englobava as Ligas de Tuberculose. Todas essas medidas foram fundamentais para implementação da Campanha e a normatização de técnicas e procedimentos no combate à tuberculose. A Campanha contou com a cooperação direta de apreciável contigente de destacados tisiólogos. Um parêntesis para citar que a esposa de Paula Souza foi sua dedicada colaboradora criando a Ala Feminina Auxiliar de Luta Contra a Tuberculose, com atuação social nos hospitais e junto aos doentes em geral.

Na história da luta contra a tuberculose no Brasil, a CNCT representou marco saliente pela sua abrangência, mobilizando todas as forças disponíveis, em fase ingrata pelos recursos profiláticos precários, e por ter conseguido, fenômeno incomum, o apoio integral dos tisiólogos, que eram numerosos, e de muitos sanitaristas, todos integrados na verdadeira cruzada contra a tuberculose.

Deixando, em 1951 a direção do Serviço Nacional de Tuberculose e a superintendência da CNCT, Paula Souza reassumiu a cátedra na Faculdade de Saúde Pública e ocupou vários cargos oficiais, entre eles a Divisão dos Serviços de Tuberculose da Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo.

Paula Souza envolveu-se em duas polêmicas científicas. Uma foi com os defensores do clima como fator de cura da tuberculose; ressaltando que os doentes podiam ser tratados inclusive nos centros urbanos, negando qualquer importância do clima, a diretriz para a construção dos hospitais pela Campanha foi somente de atender as áreas de maior incidência da doença. A outra polêmica foi sobre o BCG, portanto diretamente com Arlindo de Assis e por extensão com os integrantes da então chamada escola brasileira de BCG. Questionava o valor profilático do BCG e ainda mais o método oral, apontando falhas na conservação da vacina. Com o ocorrer dos anos estabeleceu-se que os principais pontos de divergência, eram de natureza operacional. Aliás, em nenhum momento pensou em tomar atitude de suspender o programa de vacinação em massa em desenvolvimento no país.

Paula Souza militou em todos os congressos brasileiros de tuberculose, do primeiro até os realizados na década dos anos 80. Em todos os seus trabalhos publicados ressaltou a constante preocupação com o controle da tuberculose no país, avaliando os aspectos institucionais, a problemática epidemiológica da tuberculose, e a formulação de políticas de saúde para seu combate.

Recebeu inúmeras homenagens, entre elas as premiações conferidas pela Academia Nacional de Medicina, e pela Sociedade Brasileira de Tuberculose, assim como a decisão do Serviço Nacional de Tuberculose de conferir seu nome ao sanatório de Curicica e sua efígie em bronze no Centro de Referência Hélio Fraga perpetuando o culto à sua memória.

Raphael de Paula Souza, dedicou toda a sua existência ao ideal ao qual serviu com unção religiosa, que foi sua luta contra a tuberculose. Nesta, seu nome está inscrito de forma indelével.

Há mais de dois séculos, Jean Jacques Rousseau, desenvolveu notável documento sobre o homem a serviço da sociedade, cujo conteúdo pode ser sintetizado no seguinte conceito "O Homem só existe quando é útil à humanidade". Neste contexto Raphael de Paula Souza sempre existiu e continuará existindo como paradigma às futuras gerações de médicos.