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Boletim de Pneumologia Sanitária

versão impressa ISSN 0103-460X

Bol. Pneumol. Sanit. v.7 n.2 Rio de Janeiro dez. 1999

 

 

Tuberculose - Aspectos históricos, realidades, seu romantismo e transculturação

 

 

José Rosemberg

Professor Titular de Tuberculose e Pneumologia da Faculdade de Ciências Médicas de Sorocaba da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Membro do Comitê Técnico Científico de Assessoramento em Tuberculose do Ministério da Saúde

 

Jehovah te ferirá de tísica e de febre.
Deuteronômio. Cap. 28. Ver. 22.

Só se domina completamente uma ciência, conhecendo sua história.
Augusto Comte.

No curso de milhares de anos a Tuberculose encerrou mensagem ainda não totalmente decifrada. Pela sua influência cultural, seus efeitos sobre a obra humana, suas implicações históricas, sociais, econômicas e políticas, constitui modelo científico peculiar. Modernamente continua causando as maiores devastações. Seu valor epistemológico é imenso. Misteriosa e ameaçadora permanece o paradigma dos temores das paixões e dos conhecimentos humanos.
La Tuberculose. Jacques Chretien.

 

 


RESUMO

Historicamente a tuberculose constitui inusitado fenômeno de interpenetração cultural com diversas formas da manifestação humana, por ter vitimado cientistas, literatos, poetas, músicos, pintores e monarcas, interferindo inclusive no curso político de países. Na época anterior à moderna quimioterapia os tratamentos foram bizarros, danosos, bárbaros, românticos e eróticos. O pneumotórax foi o primeiro tratamento racional. Nos sanatórios, os dramas dos doentes, os internamentos por longos anos despersonalizavam os pacientes, criando-se o denominado "Hominis Sanatorialis". Após a descoberta do bacilo por Koch, criaram-se a histeria contra o escarro e ambiente propício ao charlatanismo. Nas estâncias climatéricas, havia aspectos peculiares de assimilação dos tísicos e paralelamente o desencadeamento de quadros dantescos, de miséria dos doentes amontoados em verdadeiras mansardas. Os tisiólogos dessa época foram heróis idealistas e humanitários, ajudando os pacientes e lutando contra a doença praticamente de mãos vazias. O apogeu da integração da tuberculose no romantismo, dos dramas e dos lirismos de tuberculosos célebres ocorreu no século 19 e primeira metade do século 20, contrastando com a imensa massa humana anônima dizimada pelo Mycobacterium tuberculosis, cujos sofrimentos permaneceram ignorados restando apenas frios números estatísticos.


SUMMARY

Historicaly, tuberculosis verifies a singular on of cultural interaction with a variety of aspects of human revealings because it victimized, scientists, literary, poets, musicians painters, philosofers and Kings. Tuberculosis altered political ocurrences of many countries. Before the modern chemotherapy, the treatments were very extravagants, damaging, romantics and erotics. Among the sanatoriums and health resorts, for many years of hospitalization the patients were lacking in personality, being called "Hominis Sanatorialis". After the bacillus discovery by Koch, the hysteria against the sputum unchained. In the developing countries, because of the great number of the tuberculous patients, the lack of hospital beds, many of them live in poor human conditions. The doctors specialized in tuberculosis, before the modern age of chemotherapy, were idealists, and humanitarians, conforting the ill and fighting against tuberculosis with the precarius measures available. The apogee of the tuberculosis integration of the romantism ocurred on the 19th century and the first half of the 20 th century. On the contrary the hug poor human mass anonimous, the died victimized by tuberculosis, there are no description of their suffering of which only exists statiscs numbers.


 

 

1. Introdução

Este artigo visa abordar alguns aspectos históricos de como foi encarada a tuberculose, pinçando de um lado algumas realidades médico-científicas, às vezes pitorescas, outras vezes danosas, e os dramas, tragédias e situações estereotipadas, com lirismo e romantismo nas sociedades em geral. Ferindo intelectuais, cientistas, literatos, poetas, artistas e as altas classes sociais, constituiu caso inusitado de integração em todas as formas da manifestação humana, cujo apogeu ocorreu nos dois últimos séculos.

Com o advento da moderna quimioterapia, sucedeu notável revolução na tuberculose. O maior impacto foi no mundo rico, onde vários países chegaram ao limiar de sua eliminação. Nos países em desenvolvimento, o efeito, embora significante, foi e é bem menor, pois a doença continua sendo sério problema de saúde pública. A tuberculose, vitimando todas as camadas sociais, sempre feriu mais contundentemente os segmentos pobres, e hoje, no contexto mundial, está essencialmente confinada aos países em desenvolvimento, onde ocorrem 95% dos casos e 98,8% da mortalidade total. Fato marcante é que, tanto nos países ricos como nos pobres, a tuberculose deixou de ser doença das elites para continuar vitimando os segmentos pobres da população. Dessa forma, a tuberculose despiu-se do seu antigo manto aristocrático para tornar-se essencialmente plebéia.

De épocas passadas, desde a Antigüidade, a maior informação que nos chega sobre as vítimas da tuberculose é relativa às camadas sociais mais altas. Como disse Marx, a história da humanidade é a história das classes dominantes. Por isso, em relação à tuberculose, sabemos muito mais dos dramas e comportamentos dos doentes mais destacados e sua repercussão social na época considerada. Dos milhões de desvalidos que morreram consumidos pela tuberculose, tanto no passado como na modernidade, praticamente nenhuma notícia se tem relativamente aos seus sofrimentos e dramas. Nada de lirismo, pobre não tem possibilidades de ser romântico.

Assim, desde a Antigüidade, como por exemplo o Egito, quase tudo que se sabe da tuberculose refere-se aos faraós e altos sacerdotes. Pela datação com o carbono 14, esqueletos com lesões ósseas compatíveis com a tuberculose têm sido encontrados em várias regiões, sendo o mais antigo de cerca de 5.000 A.C. Não há todavia certeza etiológica, porque, mesmo em casos com presença de micobactérias, pode tratar-se de germes que se desenvolvem nos solos. A primeira evidência mais segura de tuberculose constatou-se em 44 múmias bem preservadas, datando de 3.700 a 1.000 A.C., todas em Tebas; a maioria é da 21a dinastia do Egito. Em muitas, as destruições e sínfises de vértebras são compatíveis com mal de Pott. Uma múmia tinha o pulmão preservado, com lesões pleuropulmonares e sangue na traquéia. Esses achados revelam que muitos faraós foram tuberculosos e morreram extremamente jovens. Amenophis IV e sua linda esposa Nefertiti, cujo busto de ouro maciço é a maior atração do museu egípcio de Berlim, morreram de tuberculose em torno de 1.300 A.C.

A primeira múmia plebéia com tuberculose foi identificada em índia do Peru, com técnicas de biologia molecular. É de jovem inca, cujo corpo se mumificou espontaneamente devido às condições peculiares do terreno. No pulmão direito havia volumoso nódulo hilar, contendo bacilos com o DNA conservado. Com a ampliação da PCR, identificaram-se seqüências RFLP da inserção IS 6110 específica do complexo Mycobacterium tuberculosis, não sendo possível saber se era o bacilo humano ou bovino. A datação constatou que a índia viveu há 1.100 A.C.; é o primeiro diagnóstico bacteriológico de certeza em múmia milenar, comprovando a existência da tuberculose na América, na era pré-colombiana.

Dos últimos séculos bem se conhecem as repercussões da tuberculose nas classes sociais mais altas e os dramas de indivíduos que pela sua posição e notoriedade fizeram história. Deles falaremos adiante. Em contraposição, das multidões populares que sofreram a tuberculose, em condições muitas vezes abaixo da dignidade humana, quase nada foi descrito. Temos apenas índices estatísticos cujos dados são sempre abaixo da realidade.

Hordas de tuberculosos existiram, na idade média, por quase toda a Europa. Se temos conhecimento delas é somente porque, nesse quadro epidemiológico, foram implicados os monarcas cristãos, a quem por superstição religiosa atribuíram-se poder de cura. Só por isso sabemos que, naquela fase medieval, havia multidões de tuberculosos, com formas graves disseminadas da primo-infecção, com manifestações linfoganglionares fistulizadas, as escrófulas, que acorriam em massa, muitos, caquéticos, para receber o toque encantado da medalha real (Item 5).

Mais tarde, entre o final do século 18 e início do 19, efetuou-se a revolução industrial na Inglaterra, estendendo-se pela Europa. Multidões operárias concentraram-se nos maiores centros urbanos; adultos e crianças, laborando 15 e mais horas por dia, amontoados em mansardas, subalimentados, vivendo abaixo da condição humana, foram vitimados aos magotes pela tuberculose, cuja mortalidade atingiu a 800 por 100.000, e em Londres, o elevado coeficiente de 1.100 por 100.000.

Em meados do século 19, operaram-se em Paris grandes reformas urbanas, promovidas pelo Barão de Haussmann, sob o governo de Luis Napoleão Bonaparte. A cidade foi embelezada com imensos jardins e largas avenidas, que hoje se admiram. Extensos quarteirões de casas populares foram demolidos. Multidões imensas de trabalhadores pobres (1 em 8 parisienses estava registrado na Agência de Indigentes) foram jogadas para a periferia nas piores condições imagináveis, em cortiços improvisados, geralmente com uma única privada, sem esgoto, para mais de 100 pessoas. Adultos e crianças, na maior promiscuidade, dormiam amontoados no chão. Nessa massa humana, os óbitos por tuberculose atingiam a 80% da mortalidade geral. Na segunda metade do século 19, a mortalidade tuberculosa nas capitais européias ia de 400 a 600 por 100 mil, atingindo a 30% da mortalidade geral.

Na primeira guerra mundial (1914-18), na França e na Alemanha, contraíram tuberculose ativa, respectivamente, 80.000 e 50.000 combatentes, muitos dos quais perambulavam pelas ruas por não haver mínimas condições de hospitalização. Grande mortandade tuberculosa atingiu os pretos senegaleses, recrutados pela França para lutarem contra os alemães. Estes contaminaram-se em massa nas trincheiras e foram dizimados, com quadros graves de primo-infecção, com múltiplas adenomegalias caseosas, torácicas e abdominais, das quais Borrel fez estudo que se tornou clássico. Ante tantos casos ele exclamou: "il neige tuberculose".

Em toda a história das conquistas territoriais, das colonizações, onde o homem civilizado chegou, levou também o bacilo da tuberculose, contaminando os nativos, os quais, sem defesas imunitárias, tiveram grandes contingentes dizimados. Descreveram-se episódios semelhantes na colonização dos países da África, Ásia, América, e Polinésia. Ante esse quadro repetido de forma monótona, Webb desenvolveu a tese de que "ante a terrível mortandade provocada pela tuberculose nessas populações expostas, essa doença foi um dos pontos cardeais, como maior aliado dos civilizados nas conquistas dos povos aborígenes".

Um parêntesis para lembrar que na colonização do Brasil vieram jesuítas e colonos, na maioria tuberculosos, para cá atraídos e destacados pelos "benefícios do clima ameno". Eles contaminaram os índios, tuberculisando-os em massa, na primeira fase da colonização. Em cartas de Inácio de Loyola (1555) e de Anchieta (1583) dirigidas ao Reino, está descrito que "os índios, ao serem catequisados, adoecem na maior parte com escarro, tosse e febre, muitos cuspindo sangue, a maioria morrendo com deserção das aldeias".

Na atualidade, na década dos anos 1990, morreram de tuberculose no mundo 30 a 35 milhões de pessoas, não obstante a quimioterapia, sendo que quase todas, como foi dito atrás, nos países em desenvolvimento (98,8%).

De toda essa legião anônima, não há registros dos seus sofrimentos, dramas e tragédias. Só temos números. Frias cifras.

 

2. Sobre alguns tuberculosos célebres

Os personagens que viveram antes de 1840, mencionados como portadores de tuberculose, eram na época chamados "tísicos". O termo tuberculose só foi criado em 1839, por Schoenlein, que aproveitou a raiz "tubérculo", nome dado ao nódulo lesional por Sylvios Deleboe em 1680.

Tuberculosos célebres que figuram nas principais enciclopédias são: 16 reis e imperadores, duas rainhas, 53 com titulagem de nobreza, 101 escritores, 110 poetas, 40 cientistas, 8 filósofos, 16 músicos, 9 pintores e 9 santos católicos. É interessante destacar que grande número desses tísicos teve laringite como complicação do processo pulmonar, tendo muitos deles morrido sufocados.

Esse pequeno grupo de 364 tísicos amalgamou a tuberculose à história cultural das manifestações criativas e à dramaticidade da doença. Somente alguns casos são aqui comentados.

2.1. Médicos de renome internacional

Começamos com médicos famosos. Bichat, no início do século 19, morreu tuberculoso com laringite sufocante. Sua contribuição anatomopatológica da doença foi importante, sendo o primeiro a vincular definitivamente a laringite com a tísica.

René Jacinto Teófilo Laennec contraiu a tuberculose infectando-se durante os estudos anatomopatológicos, como se descreverá mais adiante. Vindo da província, logo tornou-se professor. Aprofundou seus estudos na clínica experimental e anatomopatologia, entrando para a história como um dos maiores tisiólogos do século 19. Seu grande mérito foi o de dar unidade às lesões tuberculosas, demonstrando que as diferentes lesões, encontradas nos tísicos, eram todas manifestações de uma única doença, "equivalendo, por exemplo, às diferenças aparentes de um mesmo fruto, quando verde e depois maduro". Toda a sua demonstração está condensada no Tratado de Auscultação Mediata, título relacionado com o estetoscópio que inventou. Na época suas idéias foram submersas por Broussais, notável orador, que sustentava a inflamação como geradora de todas as doenças.

Levou mais de um século para se aceitar definitivamente a unidade das lesões tuberculosas. No final do século 19, dominava o conceito do prestigioso Wirchow, pontificando que a tísica tinha uma dualidade, de um lado a componente pneumônica caseosa e de outro o tubérculo, complicação gerando a expansão tuberculosa. Esse disparate teve tal difusão, que Niemayer, eminente tisiólogo, chegou a dizer: "o tísico deve resguardar-se de não tornar-se tuberculoso"(!).

Laennec feriu-se no polegar esquerdo durante uma autópsia de tuberculoso; alguns dias após surgiu inflamação supurada e adenite axilar. Há portanto evidência de se tratar de complexo primário. Mais tarde desencadeou-se quadro clínico, com tosse, expectoração às vezes hemoptóicas. É de admirar que Laennec não tenha dado a importância devida, "aceitando" a tuberculose somente no período final quando voltou à sua cidade natal. Existe um único quadro de Laennec, muito diferente dos divulgados; nele, ele está com o semblante impressionantemente magro, enrugado, pescoço fino "nadando" dentro do colarinho de celulóide, o qual está no museu da Faculdade de Medicina de Paris.

Edward Livingston Trudeau, nos Estados Unidos, foi notável tisiólogo atingido pela tuberculose, contagiado por seu irmão. Doente já antes da descoberta do bacilo da tuberculose, foi viver em Andirondak Lake, onde, como recomendava-se naquela época, fazia longas galopadas diárias e caçava nas matas, com estafantes caminhadas. Usou um casarão, núcleo inicial do que seria o famoso Andirondak Cottage Sanitarium, no qual foram tratados mais de 2.000 tísicos. Na frontada, em letras graúdas, exibia-se o aforismo de Hipócrates: "Curar às vezes, aliviar quando possível, consolar sempre". Esse aforismo foi também a mensagem dos primeiros congressos internacionais de tuberculose, atestando a exigüidade da terapêutica da época. Trudeau fundou o Saranac Laboratory to Study of Tuberculosis que se tornou o mais famoso da América. Os maiores nomes da bacteriologia e patologia ali desenvolveram investigações. Na escola de pós-graduação que fundou formaram-se 600 especialistas. Na auto-biografia escreve que ao receber o diagnóstico de tuberculose pensou: "fiquei siderado. Pareceu-me que o mundo subitamente ficou sombrio, o universo perdeu todo traço de luz. Estava atingido pela tísica, doença das mais fatais que significava a morte sobre a qual jamais sonhei". Não obstante venceu a doença que se cronificou, com a qual conviveu até mais de 50 anos de idade, com capacidade de trabalho e espírito científico para criar uma das maiores organizações de luta contra a tuberculose. Em sua homenagem fundou-se a American Trudeau Society que por anos foi a editora da prestigiosa revista American Review of Turberculosis.

Entre outros tisiólogos ilustres que sofreram de tuberculose cite-se Georges Canetti, cuja contribuição para o conhecimento da doença, de sua imunologia, fisiopatologia, bacteriologia, clínica e epidemiologia, trouxe preciosa colaboração com suas pesquisas e publicação de múltiplos artigos e livros técnicos. Figura destacada em todos os congressos e com altas funções em órgãos de luta antituberculose, notadamente da União Internacional Contra a Tuberculose, erigiu-se em um dos mais altos pilares da moderna tisiologia. Foi o idealizador, com a cooperação de Rist e Grosset, do chamado método das proporções para teste da sensibilidade do Mycobacterium tuberculosis, difundido em todos os países, e largamente empregado no Brasil.

Florence Nightingale, enfermeira, contraiu tuberculose aos 30 anos e não obstante chegou aos 90 anos, trabalhando intensivamente. Conseguiu dar status profissional às enfermeiras e tornar científica a enfermagem. Seu maior empreendimento foi humanizar os hospitais onde os doentes viviam amontoados em condições sórdidas. Teve importante participação na luta contra a tuberculose na Europa e na construção de hospitais específicos para os tísicos, divulgando nos diversos países a concepção da cura sanatorial, melhorando as condições de internação dos tuberculosos como política governamental de saúde pública.

Também sofreram de tuberculose, Chevalier Jackson, pioneiro da broncoscopia, e Ramón y Cajal, prêmio Nobel pelos seus clássicos estudos de anatomia fina do cérebro e da degeneração das fibras nervosas.

2.2. Cientistas e literatos

Champollion - tísico - crônico, decifrou a pedra de Rosetta descoberta no Egito numa expedição de Napoleão, podendo hoje ser admirada no Museu Britânico. Nela está inscrito decreto de Ptolomeu V em grego, em caracteres demódicos e hieróglifos. Essa circunstância facilitou a decifração da escrita egípcia e o conhecimento de sua história. Os estudos consumiram 5 anos e historiadores dizem que a faculdade de análise e paciência exaltada nos tuberculosos crônicos foi decisiva para o êxito da decifração.

Braille - cego, organista, contraiu a tuberculose e foi obrigado a permanente repouso que lhe facultou a paciência e o tempo para criar um alfabeto com pinos salientes para a leitura dos cegos, universalmente adotado.

Priestley - na fase mais intensa de sua tísica acabou com a teoria do flogístico, descobriu e isolou o oxigênio. Morreu com a complicação da laringite.

Dos tuberculosos que suportaram hemoptises, febres, complicações de laringite e outros padecimentos, produzindo sem esmorecer obras para a posteridade, embora quase todos sucumbindo precocemente, há uma lista infinda. Sintetizando lembraremos alguns:

Herbert Lawrence, celebrizou-se com "Os Amores de Lady Chatterley", romance que causou escândalo, sendo processado. Franz Kafka, em dois dos seus romances imprime conotações simbólicas com a tuberculose. "O Processo" no qual o personagem central sofre a angústia de não saber de onde e como vem a acusação, incerteza que ocorre no tísico com a inquietação ante a incógnita do futuro. "A Metamorfose", onde o personagem se transforma numa forma de batráquio sem capacidade de reação, como o doente ante a progressão inexorável do mal. Kafka sofreu final dramático, com intensa dispnéia e dores lacinantes; ao seu amigo Klopstok que dele cuidava, implorava injeções de morfina clamando: "se você não me mata, você é um assassino". O'Neill realizou quase toda a sua obra dramática, convivendo com a tuberculose. Roland Barthes tem sua obra pontilhada por surtos episódicos da tísica. Albert Camus no romance "A Peste" descreveu a invasão de ratos que é considerada crítica ao nazismo; para alguns analistas simboliza a difusão da epidemia tuberculosa no norte da África, onde se passa a ação. É extensa a galeria de escritores tuberculosos que em suas obras especularam sobre a doença explicitamente ou simbolicamente ou pelos personagens que criaram: Maximo Gorki, Prosper Merimée, Somerset Maughan, Paul Eluard, Allan Poe, Edmond Rostand (notório pelo Cyrano de Bergerac e pelo L'Aiglon, filho de Napoleão, descrevendo a dramaticidade de sua morte pela tuberculose), Alfred Musset, Henry Murger, Thomas Mann. Sobre os três últimos, voltaremos nos itens 9 e 13.

Dos poetas de renome mundial, que sofreram de tuberculose, a lista é também extensa, mas bastará chamar a atenção para os quatro seguintes:

Shelley desesperava-se por consumir-se na tuberculose, vendo a alegria de viver dos seus amigos.

E vós outros, ventos selvagens / Podeis dormir em calma / Enquanto tão fortemente palpita/ A tormenta em meu peito?

Schiller, não obstante roído pela tuberculose que literalmente destruiu seus pulmões, com otimismo exasperado cantou a "Ode à alegria" que a sentia fugidia. Esses versos com sua mensagem pela confraternização universal foram usados por Beethoven no coral do último movimento da 9a. sinfonia.

Byron, poeta inglês que tanto influiu no romantismo, sobretudo da França, transfigurava-se nos versos líricos. Além de outros tratamentos extravagantes submeteu-se a incontáveis sangrias como um dos tratamentos heróicos da tísica, ironizando os médicos: "não tendes outro remédio? Morre mais gente da lanceta dos médicos que da lança dos guerreiros". Seu amor com Tereza Aguacciole será contado no item 13.

Antonio Nobre, congenitamente inspirado, afogava-se em hemoptises, tratando-se da ilha da Madeira até Davos na Suíça. Sempre enganado pelos médicos, sabia de sua morte próxima como deixa entrever nestes versos:

Poeta: Coveiro, meu amigo! Abre-me a cova / funda, tão funda como o negro mar./ Eu quero nessa recolhida cova / dormir, enfim, a noite milenar.
Coveiro: Pálido moço, ó meu pequeno poeta! / Doce fantasia, mística visão! / Dize: que mágoa trágica e secreta / te roeu assim depressa o coração. / Que vens pedir-nos? Paz? Consolação? / Olha que nada posso; eu sou um morto,/ Eu sou um vivo, morto de ilusão.

Moliére (Jean Baptiste Poquelin) no século 17 satirizava os costumes e sobretudo os médicos, estes naturalmente porque não aliviavam os padecimentos que a tísica lhe infligia. A maior crítica sarcástica está contida em sua peça "Le malade imaginaire". A espinafração antológica está na cena na qual cinco examinadores se revezavam argüindo o formando em medicina, sobre qual o tratamento da hidropisia, da hipocondria, dor de cabeça, dor no peito, etc., etc. A resposta do doutorando é invariavelmente a mesma para todos esses diferentes males, e os examinadores em coro dão a sua aprovação. A linguagem é um misto de francês-latim grotesco. Assim para o tratamento da hidropesia a resposta é dada:

Clisterum donare / Postea seignare / En suita purgare.

Dizem os mestres examinadores:

Bene, bene, bene respondere/ Dignus est intrare / In nostro docto corpo

O exame continua, sempre com a mesma resposta para cada mal diferente, e o candidato afirma no final:

Resseignare, repurgare et reclisterizare!

A banca examinadora aprova jubiliza exigindo um juramento:

Juras gardere statuta/ Per facultatem prescripta,/ Cum sensu et julgamento

Moliére, ele próprio em cena representava o formando e ao dizer Juro! com toda a força de sua voz, tem uma hemoptise. O público cai na gargalhada imaginando tratar-se de truque cênico. Carregado para a casa o célebre dramaturgo morreu três dias, após a terceira representação da peça, vitimado pela tuberculose.

Ao passar a lista acima, ressalte-se que não há mais possibilidade de surgir um tuberculoso que marque a história da doença, como no passado. Exemplo: tivemos recentemente a tuberculose de Nélson Mandela o grande líder contra o apartheid na África, que pela sua popularidade mundial, se fosse há um século antes, teria capitalizado a doença aumentando-lhe a auréola. A poderosa trinca HRZ tirou-lhe essa chance...

Personagens célebres sobre os quais pairam dúvidas quanto ao diagnóstico de tuberculose são: Goethe, Descartes, Kant, Mozart, Beethoven, Rousseau, Balzac, Ana d'Áustria Rainha da França, Henrique VIII da Inglaterra, Hadriano Imperador romano, Ovídio Publio poeta da Roma antiga.

Afinal, a literatura mundial da segunda metade do século 19 e primeira deste, coincidindo com suas fases romântica e realista, está impregnada de tuberculose. Escritores que não foram tuberculosos, descreveram e analisaram personagens tuberculosos: os mais proeminentes, Vitor Hugo, Zola, Flaubert, Dickens e Eça de Queiroz. Não há descrição mais realista de criança morrendo com meningite tuberculosa, como a de Aldous Huxley no romance "Point counter point". A palavra meningite não é pronunciada, porém é dela que se trata, pela invulgar capacidade eidética do Autor, descrevendo o quadro com nitidez e profundo realismo. Entre os modernistas, Boris Vian, francês, jazzista, participante do movimento existencialista encabeçado por Sartre, no seu romance "L'ecume des jours", sem citar o termo tuberculose, descreve o progresso de um nenúfar que se desenvolve nos pulmões de uma jovem, cujos ramos e flores multicoloridas vão se entranhando nos alvéolos. A medida que o nenúfar cresce os sintomas respiratórios intensificam-se e o quarto se estreita, o teto se abaixa, tornando-se cada vez mais exíguo, como o tempo da vida da paciente que se encurta. De toda a literatura este romance é do maior lirismo e dramaticidade, descrevendo a tuberculose pulmonar, por um ângulo surrealista.

 

3. A tuberculose, a poética e literatura no Brasil

A poética no Brasil por todo o tempo até o final da primeira metade deste século está quase toda impregnada pela tuberculose. Passa de quarenta a relação dos vates vitimados pela tuberculose, entre os notórios e os menos conhecidos. A imensa maioria faleceu entre os 21 a 35 anos de idade. Eram jornalistas, advogados, rábulas, funcionários públicos, todos boêmios vivendo a noite nos bares, botequins, discutindo, bebendo e fazendo versos. Poetas pré-românticos, românticos, parnasianos e modernistas, conforme seu temperamento e evolução da doença, extravasaram seus sentimentos, uns sarcásticos, amargos, outros romantizando seus sofrimentos e outros ainda, fleugmáticos, ironizando sua sorte.

Castro Alves, baiano, com 23 anos compôs estes dramáticos versos, alta madrugada, num bar do Largo São Francisco, em frente à Faculdade de Direito, em São Paulo:

Eu sei que vou morrer... dentro do meu peito /um mal terrível me devora a vida. / Triste Assaverus, que no fim da estrada / só tem por braços uma cruz erguida. / Sou o cipreste qu'inda mesmo florido / Sombra da morte no ramal encerra! / Vivo - que vaga entre o chão dos mortos, / Morto - entre os vivos a vagar na Terra.

Álvares de Azevedo sobre a vida que a tuberculose estava lhe roubando:

Descansem o meu leito solitário / Na floresta dos homens esquecida / À sombra de uma cruz e escrevam nela: / Foi poeta, sonhou e amou a vida.

Casimiro de Abreu revelou a angústia do futuro que o esperava:

A febre me queima a fonte / E dos túmulos a aragem / Roça-me a pálida face / Mas no delírio e na febre / Sempre teu rosto contemplo.
Eu sofro; o corpo padece / E minh'alma se estremece / Ouvindo o dobrar de um sino.

Raymundo Correia, desesperado bradou:

Larga essa lira caquética! / Ouve! E desculpa esta epístola! / Porque antes não curas hética, / Pústula, escrófula e fístula? / Larga essa lira caquética! / Ouve! E desculpa essa epístola!

Nenhum poeta foi tão amargo e sarcástico ante a tuberculose quanto Augusto dos Anjos. Entre muitas de suas poesias no mesmo tom patético destacam-se estas duas quadras:

Falar somente uma linguagem rouca, / Um português cansado e incompreensível, / Vomitar o pulmão na noite horrível / Em que se deita sangue pela boca!
Expulsar aos bocados, a existência / Numa bacia automata de barro / Alucinado, vendo em cada escarro / O retrato da própria consciência...

Barbosa de Freitas, cearense, trabalhava na imprensa passando as noites na boemia. Muito jovem e já tuberculoso internou-se como indigente na Santa Casa de Fortaleza. Ali morreu abandonado, achando-se sob o lençol, longa poesia da qual pinçamos estes lancinantes versos:

É cedo ainda, oh pálidos coveiros! / Ainda quero beber venturas, enganos... / Quero cantar a minha doce aurora / Que me sorri, aos meus vinte e dois anos ! É cedo ainda, oh pálidos coveiros.

Este poeta plebeu teve seu nome perpetuado em aristocrática rua de Fortaleza.

Martins Fontes nas tertúlias bebia por horas seguidas. Tuberculoso, foi se tratar na Ilha da Madeira onde em dramática quadrinha lamentou-se:

Longe defronte do mar / Triste, saudoso, sozinho aqui estou / Vim à Madeira buscar / A saúde que seu vinho me levou.

Nidoval Tomé Reis, poeta modernista desconhecido, viveu em pensões pobres de Campos do Jordão, onde padeceu da doença e da miséria; seus versos foram amargos:

Noite alta / Outros dormem venturosos / Eu tenso / Tusso e escarro sangue. / Os outros são felizes! / Eu, caminhando para o fim da vida / Vou jogando pela boca afora / Esponjas sanguinolentas / Dos meus apodrecidos pulmões...

Da longa galeria de poetas tuberculosos da qual destacamos uns poucos exemplos, terminamos com Manoel Bandeira, que conviveu com uma tuberculose de surtos agudos nos primeiros anos, para depois cronificar-se e viver por mais de 80 anos. É o exemplo da simbiose da tísica crônica com a vocação literária. Inicialmente tratou-se em sanatório da Suíça, onde também esteve internado Antonio Nobre, e conviveu com Paul Eluard notório escritor. Produziu inúmeras poesias, comentando a doença, as angústias, incertezas do futuro, com tintas tristes pessimistas:

Minha respiração se faz como um gemido / Já não entendo a vida e se mais a aprofundo / Mais a descompreendo e não lhe acho sentido
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Temo a monotonia e apreendo a mudança / Sinto que minha vida é sem fim, sem objeto... / Ah, como dói viver quando falta a esperança.

Aos trinta anos Manoel teve o último surto, estabilizando-se depois a doença. Aos poucos vai adquirindo mais confiança no futuro, e como ele mesmo disse, foi depois dos 50 anos que seus horizontes se ampliaram. Embora a morte, quase sempre estivesse presente em seus versos, passou a encarar a tuberculose com fleugma, até dela ironizando:

Já fui sacudido, forte,/ De bom aspecto, sadio /Como os rapazes do esporte / Hoje sou lívido e esguio / Quem me vê pensa na morte.

O modo irônico e até humorístico para a tuberculose está bem explicitado em famoso verso sobre o tratamento com o pneumotórax que será abordado no item 8.

Vários poetas não doentes, porém com familiares tuberculosos, transpuseram em versos suas preocupações com o mal. Jamil Almansur Haddad, poeta modernista com saúde de ferro ante os quadros que presenciou de tísicos, compôs "Tuberculose galopante":

Noutros tempos a morte / Tinha asas e voava / Hoje ela me veio / Montando um cavalo / E eu irei na garupa / Numa viagem veloz / Putupum, putupum /
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Onde eu compro a passagem / No meu leito de doente / Para o país sossegado / País louro da morte / Onde um pulmão escavado / Serve de passaporte, / Putupum, putupum
É um país sossegado / Que não tem hemoptise; / É uma terra decente,/ Sem escarros no chão,/ Putupum, putupum. País sem suores frios, / Sem cadeiras de lona, / Sem bacilos de Koch / Putupum, putupum / E onde o vil pneumotórax / Por certo é ignorado ‘ / Putupum, putupum
Putupum.

A "Balada do Tísico" termina com simbolismos lembrando o romance de Boris Vian já citado:

Senhor! Piedade! Meus pulmões negros / Sofrem agora angústias tamanhas / Que eles no seu retiro nefando / Recordam duas torvas montanhas / Que o túnel da amargura vai cavando.
No meu pulmão há jardineiros / Que, quando chega a primavera, / Cuidam dos trágicos canteiros / Donde despontam papoulas fluídicas,/ Vermelhas rosas liquefeitas.
Sangue que não te estancas! / Suor que não te enxugas! / Andam por meu pulmão milhões de sanguessugas! / Vai prosseguindo o louco a canção otimista: / Pulmão! Pulmão! Ó meu triste pulmão! / Como se o desgraçado tivesse pulmão...

Na fase anterior à quimioterapia em que viveram os poetas mencionados, a epidemia tuberculosa minava o País, e até os poetas da literatura de cordel dela se ocupavam, cujos versos eram vendidos nas barracas de jornais; o exemplo abaixo é citado ao acaso entre dezenas:

No circo o público era multidão / Nisso a linda trapezista despencou / Boca sangrando, estatelada no chão. / O médico que chamavam a examinou: / "É tuberculose que feriu o pulmão / Fazendo nele um extenso rendado / De cavernas, todo ornado".

Não temos conhecimento de exemplo igual ao ocorrido no Brasil, onde dezenas de poetas tuberculosos ou não, tenham se servido da tuberculose para meditar sobre sua interferência humana, seja de forma romântica, realista ou amarga.

Contrariamente do ocorrido com os poetas, poucos prosadores nacionais foram tuberculosos. Júlio Ribeiro, popularizado pelo romance, "A carne" não se ocupa da doença nos seus escritos. Paulo Setúbal, notabilizado pelos livros históricos, escreveu grande parte de sua obra em São José dos Campos, onde esteve em tratamento por longo período. Agnóstico que era, converteu-se ao catolicismo e contou-nos que isso sucedeu durante uma semana de alta febre, tempo que levou para contar a transformação no seu livro "Confiteor". Graciliano Ramos superou parcialmente a tuberculose, tabagista inveterado, tinha também bronquite e enfisema e faleceu de câncer broncogênico. Nas "Memórias do Cárcere" transfere suas reações ante a tuberculose para personagens tuberculosos com quem conviveu na prisão.

Escassa é nossa literatura de ficção, que trata da tuberculose, destacando-se Dinah Silveira de Queiroz, que tinha tuberculose na família e Paulo Dantas que era tuberculoso. Ambos escreveram sobre Campos do Jordão como se menciona no item 9.

 

4. Interferência da tuberculose na história política

Foi sugerido que a tuberculose de Eduardo VI da Inglaterra, nos meados do século 16, foi responsável pela chamada guerra das rosas, porque o poder passou a ser exercido por seu tio que exilou o futuro Henrique VII. Eduardo VI tuberculoso morreu com 16 anos; se tivesse vivido e reinado efetivamente a guerra entre as casas de York e Lancaster, da qual saiu arruinada toda a nobreza, não teria acontecido.

Na França sucedeu que Luis XIII e seu Primeiro Ministro Cardeal Richelieu eram tuberculosos. O primeiro sofria episódios agudos que o prostravam e o retinham no leito. Com tantas sangrias, purgativos e outros tratamentos danosos, com o ventre enorme permanentemente inchado, relegou todas as obrigações do reinado a seu ministro Richelieu que vivia com sua tísica crônica. Especulase que o rei não teria feito a aliança com potências contrárias aos Habsbourg, como foi promovida pelo Ministro, alterando o curso dos acontecimentos políticos da época. Do mesmo modo argumenta-se que vários acordos e manobras com outras potências não teriam se efetuado. Richelieu morreu vários meses antes de Luis XIII, não havendo tempo nem disposição, para este de alterar o quadro político.

Historiadores também argumentam que no século 18, se o primogênito Luis, filho de Luis XV e pai do futuro Luis XVI não fosse tuberculoso, teria vivido para assumir o trono governando de modo diferente; Maria Antonieta não teria sido rainha, seu destino não seria trágico como o foi; e a Revolução, se desencadeada, poderia ter curso diferente. Analisese ainda outro ângulo. Com a morte do primogênito de Luis XVI, seu segundo filho, criança, foi entregue pela direção revolucionária, à guarda de um sapateiro, sendo depois proclamado Luis XVII pelo Conde de Provence. Eis que ele morreu de tuberculose com 10 anos, em 1795. Embora persistam dúvidas sobre sua identidade (que agora vão ser derimidas pela análise do DNA) especula-se que se o pequeno príncipe não tivesse sido vitimado pela tuberculose, os acontecimentos pós Revolução poderiam ter obstaculizado a ascensão de Napoleão. Porém ainda perora-se que a Restauração talvez não tivesse ocorrido, se o filho de Napoleão, com o título de Rei de Roma e proclamado Napoleão II pela Câmara dos Cem Dias, não tivesse contraído tuberculose. Doente, foi levado por sua mãe Maria Luísa, para a Corte de Viena, ficando vigiado e retido no Castelo de Schönbrun, com o título de Duque de Reichstadt, onde foi submetido a tratamento contraproducente, como se verá adiante. Na prática, foi assim mantido por Metternich que manobrava para extinguir a dinastia napoleônica. L'Aiglon, como o apelidaram, foi vitimado por tuberculose caquetizante, morrendo sufocado devido a traqueolaringite, aos 21 anos. Sua máscara mortuária no quarto onde faleceu no Castelo de Schönbrun, mostra um rosto magro apergaminhado como se fosse um octogenário. Se L'Aiglon não tivesse sido vitimado pela tuberculose, Luis Napoleão (Napoleão o pequeno, como Victor Hugo o chamava) não teria implantado o 2.o Império. Assim a tuberculose mudou a história, na fase de sua maior transformação operada pela Revolução da França.

Na América Latina, Simon Bolívar - "El libertador", considerado um gênio político-militar, foi tuberculoso desde a juventude, quando fez várias curas de repouso. Conseguiu vencer a doença, e embrenhar-se nas lutas pela libertação dos países sob domínio espanhol. No final as lesões quiescentes reativaram-se. Morreu em Santa Marta, Colômbia. O laudo da autópsia registra: "grande cavidade no pulmão direito e extenso foco em vias de calcificação à esquerda". Pobre e abandonado, tiveram que procurar até camisa para enterrá-lo.

É de interesse mencionar que San-Martin, outro grande lutador pela libertação da América espanhola, hoje venerado na Argentina, também teve implicações com a tuberculose, porém na pessoa de sua mulher que tratou-se na França, lá morrendo

 

5. O toque da realeza nos escrofulosos

É uma incógnita como nasceu a crença do poder real de curar escrófulas, com seu cerimonial romântico-teatral.

Há muita probabilidade dessa taumaturgia ter sido iniciada por Clovis, Rei dos Francos, no final do século 6, após converter-se ao cristianismo. Com a finalidade de angariar maior apoio popular surgiu a idéia de tocar com moeda de ouro as escrófulas dos tuberculosos, por ser a única lesão exteriorizada da doença, muito disseminada na Europa. O cerimonial resultou proveitoso, transformando-se em costume e difundindo-se entre os monarcas cristãos. Na França, no século 9 sob os reinados de Felipe e Luis VI, quando se instituiu a frase "o Rei te toca e Deus te cura", essa prática generalizou-se. Carlos II da Inglaterra durante os 25 anos de reinado tocou 90.798 escrofulosos. Ali a doença foi batizada King's evil e na França, mal du Roi. Esse cerimonial atingiu o apogeu com Henrique IV na França, que lhe imprimiu um ritual teatral e Ricardo o Confessor, na Inglaterra. Shakespeare na tragédia Macbeth (que reinou no século 12) menciona o poder do Rei de curar as escrófulas, acentuando como médicos estavam convictos disso, pela afirmativa do personagem médico, na cena 3a do ato 4o: "Há uma multidão de sofredores esperando sua cura (pelo Rei); sua doença resiste a todas as tentativas da arte. Em troca curam-se imediatamente, tão sagrado é o poder que Deus depôs em suas mãos".

A taumaturgia dos Reis com o toque da moeda, tinha além de mágica, uma conotação da aproximação do povo com o monarca, pois o doente, último da escala social, era cuidado diretamente pelo Rei que detinha a autoridade divina que Deus lhe concedia.

Ângulo a ser ressaltado é o enorme número de escrofulosos, refletindo a epidemia tuberculosa, atingindo grandes contingentes da população por toda a Europa, com formas clínicas de primo-infecção, de disseminação linfohematogênica em indivíduos sem resistência, vivendo em precaríssimas condições sociais. As peregrinações para o toque real constituíam multidões de criaturas com formas extensas da doença, esquálidas e caquéticas.

A ligação das escrófulas com a tuberculose foi desconhecida até Sylvius Deleboe que em 1680, a identificou após ter batizado de tubérculo o nódulo encontrado nos pulmões dos tísicos.

Com o tempo o toque real nos escrofulosos foi perdendo a mística. No século 17, Guilherme reinando no Principado de Orange, agnóstico, não acreditava nessa taumaturgia. Pela pressão do povo, dos nobres e de médicos teve de realizar a cerimônia, alterando porém a fórmula por: "Deus te dê melhor saúde e mais senso comum". Aos poucos as moedas de ouro, muito caras, foram sendo substituídas por outras de prata e por fim de cobre, perdendo seu encanto.

A crença da cura das escrófulas pelo toque real durou 12 séculos e, em 1825, fez-se o último cerimonial no dia da coroação de Carlos X que tocou 130 escrofulosos trazidos por Dupuitren, célebre cirurgião, amigo de Laennec.

 

6. A tortuosa trajetória do tratamento da tuberculose, quando não havia tratamento

Este capítulo não é sobre a história da terapêutica da tuberculose. São apenas citados aspectos peculiares dos tratamentos propostos até a descoberta do bacilo da tuberculose. Desta, até a era quimioterápica, aborda-se também alguns ângulos do pneumotórax e da cura sanatorial, pela universalidade que tiveram.

Por quase 3 milênios, desde as primeiras referências sobre tratamento da tísica (civilizações hindu e persa) passando por Hipócrates, as escolas de Cós e Cnide na Grécia, depois Alexandria, Galeno em Roma, Salermo, Montpellier, a Renascença até a primeira metade do século 20, recomendou-se repouso e alimentação, enfeixados modernamente sob a denominação regime higienodietético. Climas amenos foram recomendados, crescendo nos últimos cem anos do período considerado, a mística do ar das montanhas. No final aumentaram as indicações de helioterapia, que já vinham sendo feitas, sobretudo para as formas ósseas.

O tratamento de sintomas hemoptóicos perde-se na noite dos tempos. As primeiras recomendações são de infusão de repolho, de pó de casca de caranguejo, de pulmão de raposa e de fígado de lobo em vinho tinto... O grande Avicena, mais romântico, receitava infusão de rosas vermelhas em mel, administrada por via traqueal! Para as hemoptises graves Erasistrato e Europhilus aplicavam garrotes nos braços e coxas, prática que ainda eventualmente se usa para diminuir o volume de sangue de retorno. É estranho e mesmo inexplicável como esses médicos tiveram essa idéia, visto que não se conhecia a circulação descoberta por Harvey no início do século 17.

Para melhorar a respiração e a tosse crônica há receitas persas de comer crocodilo cozido e hindus de pele de burro.

Por volta de 75 D.C., Diascoride resolveu empregar resina de múmias egípcias emulsionadas quase sempre em mel. Esse tratamento, só para pacientes muito ricos, foi empregado por séculos. Luis XIII e o primogênito de Luis XV, foram assim tratados.

Sete tipos de tratamentos, constituindo o "septeto da panacea", porque eram indicados para todos os males, foram: sangria, purgativos, ventosas, vesicatórios, eméticos, sanguessugas e clisteres. Os seis primeiros constavam do "armamento antituberculoso", de todos os centros médicos. A sangria, cuja técnica de aplicação foi estipulada por Galeno, foi fartamente praticada até quase o final do século 19. Indicavam-se até para os doentes hemoptóicos, imaginando-se que retirando sangue do paciente diminuiriam as hemoptises. Com isso os doentes tornavam-se anêmicos, debilitando-se mais ainda. Sua voga era tão larga que foi satirizada notadamente por Moliére e Byron, como exposto em outros itens.

Desde Bayle e Sydenham, que se recomendava alterar o repouso com atividades físicas, exercícios, cavalgadas por longas horas e os doentes extenuavam-se. Livingston Trudeau fazia extensas galopadas, com caçadas. Luis XIII da França, debilitado, com seu enorme ventre, promovia essa cavalgada que o cansava, precisando permanecer no leito por dias. L'Aiglon, filho de Napoleão, mantido vigiado no Castelo de Schönbrun, como dito atrás, era obrigado a montar a cavalo por muitas horas; esse estafante exercício terminava com um banho em emulsão de tripas de porco!

A Marquesa de Pompadour, favorita de Luis XV, na realidade, era um encanto de mulher, como se comprova pelo magnífico retrato pintado por Natier (Museu do Louvre). Seu médico, Renait, lhe infringia tratamentos cruéis submetendo-a a exercícios violentos e sangrias sucessivas; mais ameno era o leite de jumenta como se verá adiante. Com a morte do Rei (varíola), espalhou-se a notícia de seus freqüentes escarros de sangue, sendo enxotada de Versalhes. Seu quadro complicou-se com laringite, ficando afônica. Como era hábito, no dia de sua morte, ainda sofreu uma sangria. Finou-se em dia chuvoso, e no enterro, além do sacerdote, uns três amigos fiéis. Assim finou-se a outra poderosa quando detinha poder nas mãos.

Na Alemanha, em 1650, após cem anos da chegada do tabaco à Europa, Jean Neander, célebre médico-filósofo, publicou alentado tratado "Tabacologia", traduzido em várias línguas, no qual são tratadas com sucesso quase quatro dezenas de doenças por efeito do fumo. Para a tísica recomendou tabaco emulsionado em mel.

Nota a parte foram os tratamentos românticos, alguns com conotações líricas e outros eróticos. Avicena e Averroes mandavam secar rosas vermelhas, moer e espalhá-las no quarto do tísico. Outra receita do primeiro consistia em forrar o chão com pétalas de rosas, sempre vermelhas, e ramos de plantas aromáticas, sobre os quais o tísico deveria passear o maior tempo possível. Galeno propôs aos tísicos viverem em quarto subterrâneo, de temperatura amena, sendo o assoalho coberto de rosas vermelhas e pendurados no teto ramos de palmeiras misturados com ervas coloridas aromáticas. Na renascença, médicos romanos recomendavam temporadas em Veneza, com passeios diários de gôndola, devendo o barqueiro cantar canções eróticas. Evidente, esses tratamentos românticos eram para tísicos abastados. Nessa linha integrou-se o leite, cuja recomendação e uso permaneceram por quase 3 mil anos, desde as civilizações antigas da Pérsia e Hindus até o século 19; o preferido era o de jumenta, mas também indicou-se leite de cabra, de fêmea de elefante e de camelo. Para Avicena, os homens tísicos deveriam tomar leite de mulher jovem e bela, e na Renascença, Petrus Forestus explicava que o leite de mulher deveria ser o mais fresco possível, e portanto sugado diretamente da mama, razão porque ela deveria dormir com o doente. Para isso, o tísico - sempre muito rico - tinha que contratar uma jovem lactante, o que não era muito fácil; custava os olhos da cara. Porém não havia nada mais erótico - romântico! Já se mencionou a tuberculose da Marquesa de Pompadour; esta, durante sua doença, ingeriu centenas de galões de leite de jumenta e de camelo; caríssimo, que sua condição de favorita do Rei, lhe permitia consumir.

Uma idéia mais pormenorizada de como se tratava a tuberculose em meados do século 19 nos chega pelos registros das receitas formuladas para a Dama das Camélias e Chopin: opiácios (xaropes e injeções de morfina), ferruginosos, creosoto, pomada de iodeto de potássio nas axilas, exercícios (dança para a primeira), sanguessugas, sangrias, bálsamo de Peru e musgo da Islândia. É interessante que após a descoberta da estreptomicina, estudaram-se muitos musgos, entre eles o da Islândia, do qual se isolou um antibiótico com certo poder bactericida "in vitro" sobre o Mycobacterium tuberculosis.

 

7. O desastre do tratamento com a tuberculina de Koch

Os tratamentos da tuberculose no passar dos séculos, inócuos na maioria, muitos bárbaros e nocivos, e alguns românticos, não causaram a mortandade, que por ironia da história, foi provocada pelo próprio Koch com sua tuberculina. No XI Congresso Médico Internacional, Berlim 1890, Robert Koch soltou a segunda bomba ao anunciar ter descoberto uma substância que se difunde nos meios líquidos de cultura do bacilo da tuberculose (que chamou de "linfa"), a qual "insensibiliza animais de laboratório à inoculação de bacilos tuberculosos, e é capaz de deter o processo tuberculoso nos já infectados, sendo provavelmente de utilidade no tratamento da tísica humana". Em 1891, Koch publicou o histórico artigo "Sobre um remédio para a cura da tuberculose", que ulteriormente recebeu o nome de tuberculina (proposto por Pohl Pincus). A notícia espalhou-se como rastilho de pólvora por toda a Europa e nos Estados Unidos, sendo logo a tuberculina considerada o medicamento milagroso. Em toda a história da medicina, não há exemplo de maior noticiário sensacionalista pela imprensa mundial quanto foi o da tuberculina. Seu preço tornou-se altíssimo, e nos Estados Unidos cobrava-se 1.000 dólares por centímetro cúbico. Na Europa, as passagens nos vagões dormitórios dos trens esgotaram-se por vários meses, tal era o afluxo de doentes à Berlim para se tratar com a tuberculina de Koch. Não tardou muito para que a euforia internacional se transformasse em cruel desencanto. Com as elevadas doses de tuberculina, então usadas, desencadearam-se, nos tísicos, intensas reações sistêmicas e graves progressões lesionais, com grandes destruições pulmonares e generalização da doença, levando rapidamente à morte. Embora não existam dados seguros, estimou-se que em Berlim morreram várias centenas de doentes, os quais, somados com os vitimados em outros países, devem ter totalizado milhares.

Koch foi acerbamente criticado pela sua precipitação, inexplicável num cientista do seu padrão. Desculpou-se por não ter resistido à pressão dos centros médicos especializados e do governo alemão, para que divulgasse sua descoberta, sem perda de tempo, aumentando o prestígio da ciência germânica na corrida internacional na luta contra a epidemia tuberculosa.

A tuberculina foi abandonada até 1908, quando Von Pirquet, demonstrou seu valor diagnóstico na infecção tuberculosa, sendo hoje uma das mais importantes armas para o estudo epidemiológico da tuberculose.

 

8. Pneumotórax - primeiro tratamento racional da longa era anterior à moderna quimioterapia

Em 1882, Carlo Forlanini, da Itália, consolidando idéias esparsas anteriores, e com suas fundamentais investigações, criou a colapsoterapia médica pelo pneumotórax artificial. A introdução de ar, no espaço intrapleural, faculta ao pulmão, cujo volume é menor que o da caixa torácica, a permanecer como lhe permite sua elasticidade, ocupando seu volume real, propiciando-lhe o que se chamou de repouso fisiológico. Desse modo, as lesões tuberculosas não sofrem o traumatismo provocado pela respiração, pela tosse e outros fatores desfavoráveis, tendo condições para sua regressão. Conforme a capacidade de reabsorção da pleura, as insuflações de ar faziam-se três, duas ou uma vez por semana. Os aparelhos com manômetro para medir a pressão intrapleural, que devia ser subatmosférica, eram de diversos modelos, sendo o mais utilizado o original de Forlalinini. A manutenção do pneumotórax era no mínimo de 2 anos, indo a 5 e até 8 anos em casos especiais. Tinha porém indicações precisas: lesões recentes, cavernas frescas, elásticas, localização nos andares superiores do pulmão; lesões contralaterais, se existentes, não extensas, havendo casos de indicação de pneumotórax bilateral simultâneo.

Criou-se uma literatura especializada. Discutiram-se equações matemáticas sobre a elasticidade do pulmão, conforme a altura do segmento pulmonar, sobre o peso do pulmão, partindo do ápice para a base, as diferenças potenciais elásticas dos segmentos, as variações de pressões intrapleurais subatmosféricas e todo um complexo arrazoado, beirando à metafísica para explicar as vantagens do repouso fisiológico. O livro mais manuseado sobre o assunto foi "Fisiomecânica pulmonar" de Parodi.

Os tisiólogos, preocupados com esses intrincados problemas, chamavam de "insufladores" os médicos que só praticavam a rotina do pneumotórax. A colapsoterapia médica foi a fase áurea em termos econômicos para os médicos que tratavam a tuberculose em sua clínica particular.

A prática do pneumotórax artificial disseminou-se por todos os países, constituindo-se no tratamento heróico até o início da década dos anos 50, quando surgiram as drogas antituberculosas.

Nos países desenvolvidos, com menos tuberculosos, o pneumotórax era aplicado com um certo ritual. Nos Estados Unidos, uma insuflação era verdadeiramente teatral; o paciente era coberto com campos esterilizados, deixando-se um pequeno espaço intercostal, com rigorosa assepsia, para introdução da agulha. No Brasil, a prática do pneumotórax simplificou-se. Nos dispensários, os pacientes faziam longas filas. A medida que chegavam, iam tirando a camisa, deitando-se com o braço sobre a cabeça. Rápida passada de algodão embebido em álcool e a agulha era espetada; mal o paciente se erguia, e já outro se deitava. Havia dispensários, como por exemplo o do Instituto Clemente Ferreira, de São Paulo, e o Dispensário Escola da Rua do Rezende, no Rio de Janeiro, entre outros, com filas de 100 a 150 doentes, diariamente, atendidos por vários médicos. O controle radioscópico, após a insuflação, realizava-se por grupos de uns 20 pacientes que iam passando rapidamente pelo ecram. Na década dos anos 30, os célebres Rist e Sergent por aqui passaram, ficando surpresos com o que chamaram "democratização do pneumotórax". O primeiro escreveu a respeito interessante artigo na então Revue de la Tuberculose.

Não obstante sua universalidade, o pneumotórax teve rendimento relativo. As melhores estatísticas consignaram 60% de curas clínicas, as demais entre 40% a 50%. Além disso, havia o óbice que só 40% a 50% dos doentes tinham indicação e/ou pleura livre, sem sínfises extensas.

Nesses casos havia opções, nenhuma ideal. Havia o pneumotórax extrapleural, pelo descolamento cirúrgico da faixa endotorácica, criando espaço que era mantido com insuflações periódicas de ar, com pressões atmosféricas positivas. A frenicectomia, cortando o nervo frênico no trajeto pré-escalênico e arrancamento da maior porção inferior possível, elevando o hemidiafrágma; indicava-se de preferência nas cavernas situadas na base do pulmão. Para estas era freqüente também a indicação do pneumoperitôneo. Para as cavernas elásticas com sínfise pleural, teve muita voga a drenagem endocavitária de Monaldi, atingindo a caverna com trocate e sonda através da parede torácica e mantendo sistema de aspiração constante até o seu fechamento. Nos casos antigos, fibrosados, de cavernas com paredes rígidas cabia a toracoplastia, cujo pioneiro foi Sauerbruch, com ressecção de número variável de costelas. No início essa cirurgia foi aplicada também em jovens, que com o crescimento do hemitórax oposto encurvava a coluna criando monstruosas deformações torácicas. Outras intervenções preenchiam o espaço, - para manter o pulmão colapsado, com óleo, músculo, bolas de lucite e outros materiais. As ressecções pulmonares (lobectomias e pneumectomias) pelas freqüentes reativações focais e disseminações no pulmão oposto, só foram largamente empregadas com o advento da quimioterapia, dando cobertura protegendo contra essa séria complicação(*). Seu apogeu foi nos anos 50 e 60, até que terminou o estoque de doentes crônicos, com lesões extensas ou pulmão destruído.

Todos os procedimentos citados eram graves, com grande freqüência de complicações sérias, sendo que a cura clínica, em média, mal passava dos 40%.

Dessa forma, a impossibilidade do tratamento com o pneumotórax intrapleural representava para o doente séria decepção, uma sentença negra com a triste perspectiva de tratamentos graves, complicados, pouco eficazes e perda de esperança de cura. Não há melhor descrição e mais crua dessa frustração, que a de Manoel Bandeira, que com ironia e humor negro descreve o impacto quando o médico anunciava a impossibilidade de indicar o pneumotórax:

Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos, / A vida inteira que poderia ter sido e não foi. / Tosse, tosse, tosse./ Mandou chamar o médico./ Diga trinta e três./ Trinta e três... trinta e três... trinta e três.../ Respire / O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo / e o pulmão direito infiltrado./ Então doutor, não é possível tentar o pneumotórax? / Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.

 

9. A cura sanatorial. o hominis sanatorialis

No século 19, surge a idéia do tratamento dos tísicos em estabelecimentos fechados, onde deviam permanecer e receber alimentação adequada. Esse conceito foi considerado absurdo por ser a antítese do recomendado durante séculos, o repouso entremeado com exercícios, galopadas a cavalo e outras extravagâncias. As primeiras sugestões sobre o sanatório foram de Brehmer, mas as bases científicas foram propagadas por Dettweiller, que lutou durante 20 anos para, em 1860, afinal, impor suas concepções. A maior responsabilidade pela estruturação prática dos sanatórios é devido a enfermeira Florence Nightingale, que conviveu com sua tísica crônica (item 2.1).

Sanatório e regime higienodietético foi a simbiose fundamental para a cura da tuberculose, entrando por toda a primeira metade do século 20, até o advento da era da moderna quimioterapia. O sanatório foi associado à mística do ar da montanha. Aos poucos, o conceito climático foi se diluindo e os hospitais para tuberculosos passaram a ser localizados nas cidades com qualquer clima.

A fase dos sanatórios, com sua tonalidade dramática e romântica, muito contribuiu para impregnar a literatura e a dramaturgia. Ressalte-se, novamente, que essa literatura foi sustentada pelos tuberculosos ricos em cultura, ou em finanças, enfim, pela classe mais elevada. Dessa forma, o arquétipo da obra literária condensando a vida sanatorial é sem dúvida o notável romance Zauberberg (Montanha Mágica) de Thomas Mann, também tuberculoso e prêmio Nobel. A ação se passa no luxuoso sanatório Berghof - Davos, na Suíça. O personagem central, Ans Casptor, vem visitar o primo em tratamento, quando descobre que também está doente. Porém, a ação extrapola para todos os demais internados, com seus comportamentos conforme suas personalidades e seus dramas íntimos. O microcosmos social resulta de um universo fechado com as deformações decorrentes da falta de influência exterior. Há uma dissimulação do conteúdo dramático da doença. O sanatório tornase para o tísico um campo progressivamente ampliado da expressão da tuberculose, provocando uma espécie de ressonância às suas alternativas, ora de esperança, ora de desencorajamento, e seus dramas. A segregação sufocante da vontade, a uniformização ritual dos internados, e acentuada por uma hierarquia rigorosa, dirigida não se sabe por quem, cria um ambiente semelhante ao "Castelo" de Kafka, com sua opressão sutil, cruel e demoníaca. Descreve-se o ritual a que o doente está acorrentado, a obsessiva anotação da temperatura, a ansiedade a cada nova radiografia, as 6 refeições diárias religiosamente a horas certas, agem como oposto à ociosidade forçada e dicotomizam o tempo. Este se torna infinito, dentro de um universo finito em função do espaço confinado. Se o tempo é função do espaço como dispõe a teoria da relatividade, a medida do tempo é circular, fechado sobre si mesmo e o terrível presente repete-se sem cessar por anos. O paradoxo é que surgem duas alternativas: o abandono do pensar, caindo no vácuo vazio, ou a reação mental, acentuando a dramaticidade. Todos esses ângulos e outros são questionados pelos diversos personagens ali internados, empresários, sociólogos, teólogos, políticos e anarquistas. Descrevem-se casos de acelerada reação mental, propiciando a criação intelectual. Na realidade, isso sucedeu com vários intelectuais como são os exemplos de Eugene O'Neill, Roland Barthes, que escreveram toda a sua obra no sanatório, e de Paul Eluard e Albert Camus, que internados por várias vezes, mais produziram quando estavam nos sanatórios. Aliás, já na Grécia havia a expressão "spes phtisica" para descrever a energia que muitos tísicos forjavam, dirigindo-a para uma criatividade especial.

Quanto ao comportamento geral dos tuberculosos, por anos internados nos sanatórios, Rist forneceu a definição em poucas linhas. As longas separações, pela lentidão da cura, destruíam os vínculos com os familiares. Esposas e maridos infiéis, famílias desinteressadas ou pouco preocupadas com a sorte do paciente internado, noivados e casamentos desfeitos, aumentavam a solidão, o doente sentia-se exilado, desorientando-se a vida psíquica. Privado de seus alimentos essenciais, como a profissão, o trabalho, a família, a incerteza da cura sempre demorada, produzia sensação de viver num fosso profundo onde a luz não penetrava. Além disso, o tuberculoso convivia por anos numa sociedade de contrastes: introvertidos e exuberantes, místicos e racionalistas, bons e maus, delicados e brutais, resignados e revoltados, inteligentes e pobres de espírito, enfim uma comunidade de heterogêneos condenados a um convívio execrável.

Todos esses fatores criaram um tipo de personalidade sui generis que Dumarest chamou de Hominis sanatorialis, que era fruto da incerteza pelo temor do inesperado, fosse a chegada da morte, fosse a cura clínica, após anos e anos de internamento. No sanatório, o doente, com o tempo, incorporava a ociosidade; organizava-se nela como numa profissão, compenetrando-se dos fins indefinidos a que sua doença expunha, desaparecendo do resto do mundo ante essa preocupação. Em resumo, a personalidade do Hominis sanatorialis negativava-se com a longa espera da negativação do escarro, que podia levar até 10 anos!

Descreveram-se, em muitos tísicos internados, exacerbação da libido, fomentando paixões, atingindo em alguns, comportamentos mórbidos.

Para contar a vida dos tuberculosos nos nossos sanatórios e nas estâncias climáticas, destaca-se o romance de Dinah Silveira de Queiroz, "Floradas na serra", passado em Campos do Jordão; aborda as reações e dramas dos doentes nos sanatórios, a angústia face à doença, ao abandono e afastamento dos familiares. Episódios amorosos com internados, a dificuldade da readaptação à vida normal. Uma jovem adiciona à doença o sofrimento que lhe ocasiona a paixão por seu médico assistente. A autora contou-nos que o personagem Dr. Celso, na vida real tornou-se notório tisiólogo. "Floradas na serra" fez sucesso no cinema e em novela de televisão.

Se são abundantes os relatos dos tuberculosos das classes sociais mais elevadas economicamente, é escassa a literatura dos doentes indigentes. Importante pelo vigor de sua denúncia é o escrito de Maxence Van Der Merch, Prêmio Goncourt na França, sobre as misérias ocorridas com os tísicos nos hospitais públicos, mesmo nos países ricos. Entre nós, Paulo Dantas, que foi tuberculoso e com dificuldades econômicas, descreve de forma crua as tragédias dos doentes pobres em "Cidade enferma" e "As águas não dormem" aprofundando os dramas vividos pelos doentes abandonados em Campos do Jordão.

9.1. A estância climatérica de São José dos Campos

A nosso ver, seria de interesse histórico um relato mais aprofundado da estrutura das estâncias climatéricas do Brasil, como por exemplo, São José dos Campos, Campos do Jordão, Correas, Palmira e outras congêneres, sua organização e sua assimilação da população tuberculosa. Por exemplo, São José dos Campos era uma cidade que em 1930 tinha 8.000 habitantes autóctones e albergava cerca de 2.000 tuberculosos, distribuídos em 4 sanatórios (3 beneficentes com doentes pagantes e indigentes, e um particular de propriedade de um médico), dezenas de pensões e muitas "repúblicas". Os donos de pensões eram tuberculosos ou doentes curados. Poucos desses estabelecimentos eram idôneos. A maioria, com instalações precárias, mantinha 2 a 4 doentes em cada quarto. Geralmente havia uma só privada com chuveiro. Forneciam 3 refeições por dia. Tinham agentes aliciadores (também doentes) que disputavam os tísicos recém-chegados, na estação ferroviária e terminais de ônibus. Nas pensões mistas, eram comuns os casos amorosos. Mulheres, solteiras ou casadas, engravidavam. Em certas ocasiões, instituiu-se a indústria do aborto por curetagem, sem anestesia, praticados por pessoas com algumas tintas de enfermagem. Vários casos de perfuração do útero ocorreram. Nas "repúblicas", montadas por grupos de doentes associados, moravam até meia dezena de doentes em um quarto. Havia beliches. Empregava-se uma doméstica bronca, geralmente proveniente "da roça", que mal sabia cozinhar feijão. Era comum comer em marmitas fornecidas por pensões ou famílias que exploravam esse comércio. Havia carência de tudo, de higiene e outros recursos. Doentes miseráveis recebiam assistência de médicos abnegados. Registravam-se casos de doentes injetarem morfina na veia de agonizante, não para praticar a eutanásia, mas para se livrarem do moribundo no beliche ou na cama ao lado.

Certa ocasião, prostituta tuberculosa instalou um bordel com mulheres também tuberculosas, cuja freguesia era de tísicos (chamado sanatorinho da Zefa) e que funcionou por alguns anos, extinguindo-se com a morte ou cura das prostitutas.

Doentes com profissões definidas empregavam-se, trabalhavam enquanto se tratavam (geralmente com pneumotórax) ou, conforme os recursos econômicos, instalavam seus próprios negócios: alfaiatarias, sapatarias, barbearias, lojas de armarinhos, bares, etc. Alguns, intelectualizados, movimentavam o jornalismo, montavam peças de teatro e, conforme os dotes artísticos, davam recitais pagos. Muitos deles constituíam família, casando-se com habitante local. Alguns ingressavam na política, vários se elegeram vereadores e um chegou à prefeito da estância; tinha episódios hemoptóicos, e quando um deles surgia, o chefe de gabinete informava:"o senhor prefeito está hoje de bandeira vermelha e as audiências estão canceladas". A estância crescia assim, com tuberculosos assimilados, integrados na comunidade. Era relativamente alto o número de autóctones que se infectavam e desenvolviam tuberculose ativa: empregados nas casas com tuberculosos, moças e rapazes da estância que viviam em promiscuidade com doentes.

Na Semana Santa, as irmandades que desfilavam (Filhas de Maria, Sagrado Coração, São Benedito, etc.) contavam com a integração de inúmeros tísicos. No Sanatório Vicentina Aranha, pertencente à Santa Casa de São Paulo, havia uma internada permanente, soprano lírico, que desfilava como Verônica, com véu e longo vestido preto, desenrolando em cada esquina um pergaminho com a efígie de Cristo, e cantando uma litania que terminava: "Pater noster dolor meus". No final da década de 20, aportou à São José, um violinista que tinha sido "spala" da orquestra de companhia lírica italiana, que se dissolveu no Rio de Janeiro. Nome pomposo, Enrico Della Rosa. Tratando-se com pneumotórax, abriu uma sorveteria e ensinava piano às moçoilas para sobreviver. Reuniu vários músicos e fundou a Banda Filarmônica Euterpe. Nas procissões do enterro, na Semana Santa, encerrava o cortejo, e após o canto da Verônica, executava os primeiros compassos da marcha fúnebre da 3a. sinfonia - Eroica - de Beethoven. Aos domingos, no coreto "belle epoque" da praça, a banda Della Rosa embalava os namorados, a maioria tuberculosos que faziam o chamado "footing", com suas melodiosas valsas de Strauss e operetas de Lehar. Esses encantamentos faziam esquecer a triste realidade da doença, criando um toque romântico - terno e repousante naquela cidade enferma.

9.2. A carência dos leitos na fase préquimioterápica

A carência de leitos para tuberculosos, até meados do século 20, foi geral, devido a dimensão da epidemia tuberculosa, na fase em que não havia tratamento eficaz. O problema evidentemente era mais grave nos países subdesenvolvidos e em desenvolvimento. A demanda de leitos era enorme pela gravidade das formas clínicas da tuberculose e as precaríssimas condições econômico-sociais da imensa maioria dos doentes.

No Brasil, a falta de leitos era aguda. Nos anos 20 e 30, os órgãos oficiais do Rio de Janeiro lançaram mão dos chamados abrigos, que eram casarões alugados nos bairros populares, onde se albergavam tuberculosos, porque os leitos hospitalares eram absolutamente insuficientes. Nas estâncias climatéricas, a situação atingia proporções dramáticas. Doentes, em estado grave e de indigência, eram "despachados" por delegados de polícia e funcionários municipais das cidades de origem com apenas a passagem no bolso. Chegavam por exemplo em Campos do Jordão, onde permaneciam na Estação, no chão, deitados em colchões improvisados sem terem onde se internar. Sanatórios repletos, pensões recusando-os, eles ali ficavam e alguns morriam. Quadro dantesco.

Na fase considerada, esforços foram despendidos pelos governos estaduais, pela Campanha Nacional Contra a Tuberculose do Ministério da Saúde e pelas Ligas Assistenciais Contra a Tuberculose, para a construção de hospitais para tuberculosos, minorando parcialmente a situação.

Em suma, o leito para o tísico foi uma contingência dramática na fase em que não havia a quimioterapia, e os tratamentos consumiam anos. Isso tornou sem sentido a discussão então travada sobre a política da hospitalização, não importando saber se a razão estava com os que advogavam a generalização dos leitos nos programas, por motivos técnico-científicos do tratamento, ou com os que questionavam essa finalidade por considerar precárias as terapêuticas vigentes, sendo que o objetivo prioritário não era curar o doente, mas assegurar o seu isolamento, protegendo a coletividade.

9.3. O tisiólogo brasileiro da fase pré-quimioterápica

Os tisiólogos de todos os países que labutaram contra a tuberculose, na fase comentada nos itens anteriores, foram heróis especiais, porque sua luta foi de mãos vazias, sustentada apenas por um ideal humanístico.

Do tisiólogo brasileiro quase nada se escreveu na nossa literatura. Eles encaravam a tuberculose, de forma romântica, no sentido de que não se via a luz do túnel de um gravíssimo problema de saúde pública. Eram movidos tão somente pela sua fé e ideal que lhes davam forças para um trabalho persistente, desgastante. Pelo longo tempo de convívio com os pacientes, integravam-se nas suas vidas, partilhando dos seus dramas, tragédias e angústias. Aconselhavam, eram árbitros para dirimir as discórdias e abandonos familiares. Médicos sacerdotes. Paralelamente, muitos deles dedicaram-se à luta no plano geral. Organizavam e promoviam cursos de divulgação, atualização e de especialização, fizeram escola, e quando em 1946 foram oficialmente criadas as cátedras de tisiologia, por meio de memoráveis concursos, tornaram-se catedráticos universitários. Participaram e assumiram a direção de órgãos oficias de saúde de controle da tuberculose, nos âmbitos nacional e estaduais. Alguns destacaram-se como técnicos em órgãos internacionais de controle da tuberculose. Enriqueceram a literatura científica, com livros e artigos publicados. Em suma, na história da luta contra a tuberculose, muito se deve a esses tisiólogos, que além de técnicos atuando com a visão de saúde pública, ou embrenhados na clínica, bacteriologia, fisiopatologia e outros ângulos da complexa problemática da tuberculose, agiam junto aos doentes com romantismo e até lirismo, para minorar seus sofrimentos físicos e psíquicos, transmitindo-lhes alívio e esperança, embora sofrendo também, por saber que esse lenitivo quase sempre era ilusório, ante a realidade fatal na maioria das vezes.

 

10. A histeria contra o escarro

Com a descoberta do bacilo da tuberculose, Koch afinal comprovou o que Pierrre Dasault afirmou em 1733 que a tuberculose se transmitia pelo escarro, e alertou da necessidade de esterilizá-lo, "para torná-lo inofensivo, suprimindo o contágio".

De início todos os médicos tuberculosos ou suspeitos de sofrerem da doença apressaram-se a examinar sua expectoração, que era neles freqüente, pois a maioria fumava cachimbo. Caso dramático foi de Herlich, ideador das cadeias laterais e descobridor do Salvarsan 606 para tratamento da sífilis. Amigo de Koch, pediu a este uma cultura do bacilo para estudar novo processo tintoreal. Entre os escarros que examinou incluiu o de sadios, para controle, inclusive o seu. Sua triste surpresa foi constatar que estava marchetado de bastonetes vermelhos, fazendo assim diagnóstico de sua tuberculose. Livingston Trudeau (item 2.1), que se julgava curado de sua tuberculose, teve a surpresa de constatar que sua expectoração era bacilífera. Como disse em sua autobiografia, se ao receber o diagnóstico de sua doença, ficou siderado e o mundo se tornou sombrio, muito mais agoniado e como que paralisado, por ainda estar doente quando pensava estar curado.

Com as constatações de Koch da transmissão da doença pelo escarro e com as pesquisas de Pflügge, que obtinha culturas do bacilo da tuberculose nas placas distribuídas nos recantos dos quartos onde viviam tísicos, pelas gotículas produzidas pela tosse e pelas poeiras de material dessecado que nelas se depunham, desencadeou-se verdadeira histeria contra o escarro pelas campanhas alarmantes das instituições médicas e órgãos de saúde pública. Cartazes afixados em todos os locais, nos transportes coletivos, e folhetos distribuídos às populações, alertavam sobre a transmissão da tuberculose pelo escarro e poeiras, com advertência da proibição de escarrar no chão. A comercialização imediatamente entrou em cena. Anunciavam-se escarradeiras próprias para hospitais, escritórios, fábricas, restaurantes, teatros, transportes coletivos, etc. A empresa Truette em Paris fazia propaganda de escarradeiras de bolso; Lutécia vendia bolsas, "pochetes", porta-lenços com antissépticos e descartáveis. Em Berlim inventaram um preparado aderente para colar nas solas dos sapatos, que matava os bacilos; seus usuários desse "modo não os traziam para a casa". Houve impermeabilizadores de assoalhos com substâncias bactericidas. A empresa internacional Simmons apurou grandes rendas com seus colchões e travesseiros com antissépticos que matavam os bacilos. Entre nós, nos anos 1930 a 35, médico do Rio Grande do Sul inventou e anunciava travesseiro "com propriedades esterilizantes antituberculosas".

Nos Estados Unidos, o Departamento de Saúde promulgou portaria, proibindo escarrar nos assoalhos, plataformas das estações e viaturas públicas. Os contraventores eram multados em 25 dólares, ou conforme o caso, 10 dias de prisão. Os denunciantes dos infratores recebiam metade do valor das multas. Várias cidades norteamericanas aprovaram resoluções semelhantes com multas atingindo até 500 dólares. Em Viena, a multa ia de 2 a 200 coroas com prisão de 6 horas até 20 dias. Hotéis de primeira categoria, na Europa, ofereciam apartamentos sem tapetes e sem cortinas protegendo os hóspedes das "poeiras transmissoras da tuberculose. O London National and Military Gazette acolheu artigos de médicos, que recomendavam aos homens usar bigodes para proteção contra as poeiras nos locais de trabalho, que poderiam estar impregnadas com bacilos da tuberculose. O mais inusitado ainda foi a portaria da Secretaria de Saúde de Paris, proibindo e multando as mulheres que usassem saias longas, arrastando-se pelo chão, "levantando poeiras e espalhando pelos ares o bacilo da tuberculose".

 

11. A onda de charlatanismo na tuberculose

Com a descoberta do agente causal da tuberculose, após o desastre da terapêutica tuberculínica e outras decepções com a soroterapia, antigenoterapia e de outros produtos biológicos extraídos do bacilo, por uns tempos, até os anos 20 deste século, abriu-se vazio propício à proliferação do charlatanismo. Paradoxalmente, repetiu-se, guardadas as proporções e peculiaridades, o quadro imperante na Roma antiga, que Plínio "O Velho" fustigou clamando contra o "amontoado incrível de receitas as mais bizarras, absurdas e monstruosas, que deviam suportar os pobres tísicos". No início do século 20, laboratórios e médicos anunciavam a cura da tuberculose com o Xarope Pantauberge. Hemoglobina Dalloz, contra as formas ganglionares, era vendida em toda a Europa. "Eminente especialista, da Faculdade de Medicina de Paris, anunciava ter descoberto "remédio que cura a tuberculose em menos de um mês". E mencionava o endereço: Proves Higienique Rue de Rívoli, 4, Paris. Dr. Bernay, vedete da tisiologia de Lyon, tinha um "método embolígeno catalítico", consistindo na tomada de "medicamentos à base de biocatalizadores susceptíveis de regular as reações químicas eletrônicas da série de Mendeleiev sobre o bacilo da tuberculose", levando à cura da tuberculose. Outro tisiólogo, Victor Simon, curava a tísica com injeções nos músculos do tórax, de óleo extraído de uma folha de palmeira rica em fibras. Foi também muito difundido um remédio "milagroso", o Vinho Saint Courflor, à base de planta das Antilhas, preparado pelo "eminente" Dr. Acard. A pasta dentifrícia Sarte e o sabão Dalloz matavam os bacilos da tuberculose em minutos. Em 1918, logo após o término da grande guerra, fez grande estardalhaço em todo o Continente Europeu o tratamento da tuberculose com injeção, na região glútea, de preparado especial em solução concentrada de certo açúcar cristalizado. O Diretor de Higiene de Paris publicou portaria obrigando os militares tuberculosos, que eram dezenas de milhares, e civis dependentes do serviço de saúde, a se "submeterem metódica e rigorosamente" às referidas injeções, muito dolorosas. No Congresso Internacional de Actinologia, em Berlim, 1929, apresentou-se com grande repercussão o "método Dangerfield", constante de "raio molecular" que destruía os bacilos da tuberculose "em menos de 2 minutos", baseado nas "propriedades bactericidas da energia científica vibratória por heterodinação actínica" (!); verdadeiro jargão esotérico incompreensível. Nessa onda, os fabricantes de queijos e outros produtos laticínios anunciavam "Camembert preparado com leite antituberculoso"; produtos preparados com leite de estábulos indenes de tuberculose, a Nestlé vendia um "leite bactericida" e chocolate confeccionado com "leite de vaca indene de tuberculose". Em vários países, empresas faziam propaganda de "leite antituberculoso".

Foi criada uma sociedade, com sede à Rua du Coq 60, em Marselha, para demonstrar a "estupefaciente atividade do remédio Radiol, produto biológico, na tuberculose não cavernosa", com convites para presenciar os seus efeitos. A lista charlatanesca era infinda. Uma organização política, o Partido Social da Saúde Pública da França, aproveitou a corrente elaborando, em 1910, programa do qual constava o "seguro obrigatório contra o desemprego, garantindo melhor qualidade de vida, diminuindo a tuberculose no país".

A Alemanha, através da Liga de Pesquisas Sobre a Tuberculose, promoveu a mais larga operação de marketing que se tem notícia sobre tratamentos, com a chamada vacina de Friedmann, preparada com micobactéria isolada da tartaruga, inócua para os animais de sangue quente. A propaganda estendeu-se por toda a Europa nos anos 20 e 30. Foi remetida, em 1936, a Arlindo de Assis, sendo a micobactéria cultivada no laboratório do Hospital São Sebastião, no Rio de Janeiro, onde constatou que a "vacina" não exercia nenhuma proteção contra a infecção tuberculosa experimental em animais de laboratório. A propaganda da Saúde Pública da Alemanha garantia a obtenção de curas clínicas de tuberculosos, embora os protocolos dos casos jamais tivessem sido divulgados. A vacina Friedmann foi largamente usada em vários países. Por fim, estudos controlados realizados em diversos centros tisiológicos europeus, não constataram qualquer modificação favorável nas lesões tuberculosas dos doentes tratados. Em conseqüência, a vacina foi interditada em vários países, inclusive na França, provocando enormes controvérsias. Foi tão intensa a propaganda popular da vacina de Friedmann, que os doentes dos sanatórios rebelaram-se, exigindo serem tratados com ela, e em um deles a revolta foi com depredação das instalações, inclusive de aparelhos radiológicos.

 

12. Símbolos anti-tuberculose. A tuberculose na luta contra o nazismo

O selo antituberculose nasceu na Dinamarca em 1904, quando Einar Hollboel, empregado nos correios, teve a idéia de colar, em todos os envelopes, uma etiqueta com frases alertando do perigo da tuberculose. Logo foi editado um selo com a efígie da Rainha, que era tuberculosa. A seguir foi lançado em Portugal o selo da Associação Nacional de Tuberculose com o retrato da Rainha D. Amélia, que também era tísica. Inicialmente vendido no Natal, teve difusão mundial pelas Ligas e Associações de luta e de assistência. Mais de 60 países editaram selos oficiais de correio, a maioria com edições anuais, tornando-se especialização dos filatelistas. Na década dos anos 40, a República Dominicana editou um selo com mensagem dupla contra a tuberculose e o impaludismo. Retratava um sanatório encimado por enorme anófeles; por certo tempo, professores de escolas primárias ensinaram às crianças que a tuberculose se transmitia pelos mosquitos...

Aqui no Brasil, todas as ligas assistenciais de luta antituberculose editaram selos, alguns artísticos e até românticos. Nos anos 30, entidade fantasma, criada por espertalhões, arrecadou boa soma, vendendo por "um mil réis" selo com a frase "tudo pela luta antitubercular".

Em 1902, Sendon, médico relativamente obscuro, propôs ao Bureau Internacional de Prevenção da Tuberculose, em Berlim, que a cruzada contra a tuberculose tivesse como símbolo mundial, a cruz vermelha de duplo braço, hasteada na Basílica do Santo Sepulcro em Jerusalém, em 1099, pela 1a. cruzada, então chefiada por Godofredo de Bouillon. Em 1920, esse símbolo foi adotado pela União Internacional Contra a Tuberculose, sendo oficializado para todos os países no 6o. Congresso Internacional de Tuberculose, Roma, 1928.

O selo e a cruz antituberculose erigiram-se em símbolos de maior curso internacional de toda a história da medicina.

Não se esperava que a cruz de braço duplo criasse incidente diplomático religioso com os países muçulmanos, cujas organizações antituberculose negaram-se a adotá-la. O impasse durou até 1959, havendo acordo no Congresso da União Internacional Contra a Tuberculose, no Cairo: os países com crença maometana passaram a usar o quarto crescente como símbolo antituberculose, ficando optativa a representação simultânea da cruz.

Na segunda guerra mundial (1939-1945), a luta e a resistência contra o nazismo na França adotou a cruz, símbolo da tuberculose, de modo a confundi-la com a cruz de Lorena, por sua vez, mensageira da libertação. Assim, a conclamação ao povo pela resistência contra o nazismo realizou-se através da campanha antituberculose. Milhões de panfletos foram periodicamente difundidos nas áreas ocupadas pelos alemães, sem maiores problemas. Com a dupla cruz encimando a mensagem, a proclamação do Comitê de Defesa Contra a Tuberculose dizia "a tuberculose é um risco de guerra. Pensem nos soldados vitimados pelos carrascos bacilos da tuberculose. A vitória só se conquista com um exército que defende a Pátria, e uma Pátria que sabe se defender. Temos esperança de cura e vitória nessa guerra".

Além da cruz referida, o pneumotórax e o BCG foram eficientes auxiliares para salvar inúmeros militantes da deportação para trabalhos forçados nas indústrias alemãs, explorando o grande temor que o exército de ocupação tinha da tuberculose. Nas vésperas da apresentação, médicos da resistência instalavam um pneumotórax e davam ao convocado uma cápsula contendo suspensão de BCG, que na boca era esmagada, tornando a expectoração rica de bastonetes álcool-acido resistentes. Pneumotórax, evidenciado na radioscopia e escarro positivo, constituía passaporte seguro para a rejeição do convocado. Fato singular é que por muito tempo esse estratagema não foi descoberto pelos médicos do exército alemão.

Entre os médicos militantes da resistência antinazista, destacou-se o tisiólogo Jacques Arnaud, tuberculoso crônico, diretor de um dos principais sanatórios da França, que mantinha como internados, com pneumotórax, elementos da resistência, que à noite saiam para ações de proselitismo e sabotagem. Afinal, descoberta a trama, Arnaud foi preso pela Gestapo e fuzilado.

 

13. O romantismo incorporado à turberculose

O auge da fase, chamada romântica, da tuberculose ocorreu no século 19, dos meados para o fim, com manifestações anteriores e ulteriores.

Na renascença, Rafael, que era tuberculoso, não deixou, em suas telas, traços sobre a doença. Boticelli produziu alegoria indiretamente relacionada com a tuberculose. O modelo preferido pelo pintor, que posou para todas as madonas, foi a linda Simoneta Vespucci, tuberculosa cuidada por notáveis médicos. Lorenzo, o Magnífico por ela arrastou a asa. Nas célebres telas, Alegoria à Primavera e Nascimento de Vênus (Galleria degli Uffizi - Florença) ela resplandece, alta, esguia, loura, de face macilenta, olhar distante. Foi consumida pela tuberculose aos 23 anos. Pintores tuberculosos foram Rembrandt, Watteau. Na fase mais intensa do romantismo, temos Gauguin, sabendo-se hoje que abandonou a mulher e filhos, não para libertar o gênio de pintura, mas devido à tuberculose; refugiando-se no Haiti, muitas das nativas que pintou têm o olhar triste do seu próprio sofrimento. Dessa fase, outro tuberculoso, Delacroix, transferiu para a face de Chopin, a sua amargura expressa nos olhos e na contratura do rosto (Louvre). Modernamente, Modegliani, consumido pela doença e o álcool, deixou legado triste e dramático. Mais profundo, porém é o dramatismo de Munch (no quadro "O Grito") e a doente visitada pelo médico, da fase rosa da juventude de Picasso.

Dos músicos, temos Paganini, violinista exímio, encantando toda a Europa, que executava as mais difíceis composições, inclusive o seu Moto Perpetuo, quando era acometido pelos violentos acessos de febre da tísica que o consumiu.

Pergolesi, tísico, morreu aos 26 anos, e todo o seu sofrimento está estampado nas suas obras sacras, sobretudo no Stabat Mater, que traduzem com profunda sensibilidade o seu sofrimento.

Compositores tuberculosos, com grande participação na expressão romântica da música, são Pursell, Bocherini (fenomenal violoncelista) Grieg, Weber. Este, com seu famoso Der Freischutz e a ópera Oberon, compôs a cantata Natur un Liebe (Natureza e Amor), com melodias de pungente dramaticidade; deixou um diário com anotações de seus padecimentos até o dia da morte. Stravinsky teve tísica crônica que lhe permitiu longa existência. Sua música, inclusive com incursões dodecafônicas, serviu para as maiores manifestações coreográficas do Balé Bolshoi, em Paris, influindo no romantismo da "belle epoque".

Com Napoleão e após este, a França mergulhou no mais profundo romantismo. Já se viu que seu filho L'Aiglon (item 4) faleceu muito jovem com granulia tuberculosa. Sua irmã, Paulina (magnífica escultura de Casanova, Galeria Borghese, Roma), ficou tuberculosa, dizem, por excesso sexual; é mencionada como exemplo de exaltação da libido pela tuberculose.

O auge do romantismo, devido à concentração de intelectuais em Paris, fenômeno que se acentuou a partir de 1820, quando Laennec ainda pontificava, é devido a apenas cerca de 6.000 pessoas, que eram escritores, cientistas, músicos, pintores, críticos literários, jornalistas, que produziam suas obras, faziam conferências, davam concertos, freqüentavam os espetáculos, os restaurantes, os salões intelectuais e clubes noturnos. Paris tornou-se assim o palco onde se desenvolveu toda a representação do romantismo. Alguns estrangeiros como Byron, poeta, tuberculoso, exerceram influência literária no romantismo francês. Na sua época, o romantismo da tuberculose (esta era a doença da moda!) estava tão disseminado na intelectualidade, que uma aura lírica envolvia os tísicos. Byron escreveu: "gostarei de morrer tísico porque as jovens têm a maior compaixão quando vêem um doente no leito de morte". Atraída pelo seu porte elegante e provavelmente também pela sua tísica, a jovem Tereza Aguacciole por ele se apaixonou: ao sentir que estava perdendo seu amante, fingiu-se de tuberculosa para nele despertar compaixão. Após separações e reencontros, num destes, passeando de gôndola em Veneza, surge sério desentendimento e Byron passa a agredí-la, só parando ante hemoptise que a acometeu. Afinal, para felicidade mútua, ela também estava tísica e não sabia.

Nessa época surge Musset, o poeta lírico, precoce, considerado o mais autêntico do romantismo. Em muitas passagens, seus versos refletem a angústia íntima devido à tuberculose que o devorou, superando-se à insuficiência cardíaca que lhe facultou auto-observar-se descrevendo o sinal que nas semiologias levam o seu nome. Os versos seguintes são os mais eloqüentes, quando o poeta antevia seu final próximo:

L’Heure de ma mort...
L’heure de ma mort, depouis dix-huit mois, / De tous les cotès sonne à me oreilles, / Depouis dix-ouit mois d’ennuis et de veilles,/ Partoux je la sens, partous je la vois.
Plus je me débat contre la misère, / Plus s’èveille en mois l’instinct du malheur, / Et, dès que je veux faire un pas sur terre,/ Je sens tous à coup s’enfler mon coeur.
Jusqu’a repos, tout est un combat; / Et, comme un coursier brisè de fatigue, /Mon courage èteint chancelle et s’abat.

Henry Murger, escritor, apesar de tuberculoso, consumia sua vida nas noites dos clubes galantes de Paris. Nas noitadas alegres, apaixonou-se pela famosa vedete Maria Cristina Roux. Por fim, cansado de suas infidelidades, abandonou-a e ela também terminou seus dias consumida pela tuberculose, esquecida numa enxerga na Pitiê. Murger fez da Mimi (nome de guerra da Maria Cristina) o personagem central no livro "Cenas da vida boêmia" que causou sensação em toda a Europa. Puccini gostou tanto da estória que a aproveitou para a sua ópera "La Boheme". Puccini tocou as árias cantadas pela Mimi, para grupos de doentes de um sanatório, para dizerem se sentiam nelas expressões sobre a tuberculose.

Alexandre Dumas Filho, defensor de teses sociais causando escândalo como o da emancipação da mulher, o divórcio, o direito das prostitutas, não foi tuberculoso, mas tem seu nome ligado indissoluvelmente à tuberculose. A estória começa na província onde nasceu Alphonsina Duplessis cujo pai, um devasso, alcoólatra, a entrega aos 14 anos a um velho libidinoso. Depois leva-a a Paris onde a deixa empregada em um bar. Aí passa a comercializar seu corpo. Falando o patois e quase analfabeta do francês, porém bela e graciosa, freqüentando os bailes populares conhece o aristocrata Agenor de Guiche, dândi badalado da alta sociedade e filho do Duque de Gramont; com vestidos caros e coberta de jóias faz sucesso nos salões e clubes da elite, até que o Duque impõe um final a essa ligação. Alphonsine une-se então ao Conde de Perregault, neto do gerente do Banco de França. Troca seu nome para Maria, aprende a falar e escrever corretamente o francês e estuda piano. Em 1842, com 21 anos, liga-se ao Duque Narbon-Pelet e instala-se por tempos em seu castelo. Cronistas sociais a introduzem em suas colunas nos jornais. É quando passa a usar um ramo de camélias vermelhas no decote; quando deseja aceitar um novo amante, dá o sinal com camélias brancas. Pálida, com tosse seca permanente, numa festa do Café Anglais, tem uma hemoptise. Dumas Filho que a acompanhava e por ela se apaixonou, chama Davaine, médico famoso por ter descoberto o bacilo do carbúnculo. Este tornou-se um de seus médicos e por ela também se apaixonou. Com a tuberculose progredindo, tem longo caso com o Conde de Stackelberg, russo riquíssimo, que lhe presenteia com uma carruagem com 8 cavalos, casa, jóias e centenas de vestidos. Entre festas, episódios hemoptóicos e febre ética, conhece Teofilo Gautier, Prust, Balzac, Musset, Dumas o pai, e Liszt, tendo com este um caso amoroso durante os três meses de sua temporada em Paris. O compositor dedicou-lhe as "Valsas Esquecidas" e a "Valsa Triste", e parece que este foi o único que Maria Duplessis verdadeiramente amou. Há um episódio complicado do seu casamento com o Conde de Perregault, realizado em Londres, sem validade na França. Com a saúde cada vez mais abalada, emagrecimento extremo, hemoptise e febre, confina-se abandonada por todos. Para pagar os médicos e sobreviver, vende quase tudo que tem, desfazendo-se de suas jóias, carruagem, móveis e casas. O tratamento que recebeu foi mencionado no item 6. No dia anterior à sua morte, com 23 anos, Davaine chama Dumas Filho, que recebe enorme choque ao ver aquela ruína, um feixe de pele e ossos, quadro dantesco da caquexia tuberculosa. O que se sabe ao certo é que se Maria Duplessis tivesse se casado com Agenor de Guiche, seu primeiro amor, teria tido destino muito diverso. Não conseguiu mudar sua vida pelas pressões que sofreu em contrário. É impressionante como uma menina analfabeta, em pouco mais de 5 anos, tornou-se letrada, centro das atrações da aristocracia e intelectualidade de Paris. Dumas Filho resolve escrever sua biografia publicando o celebérrimo romance "A dama das camélias". Transformando Maria em Marguerite Gautier, prostituta de bons sentimentos, impedida de se regenerar no amor, face aos preconceitos sociais. Escreveu também um drama teatral representado com sucesso no Teatro Vaudeville, que Maria tanto freqüentou. As maiores intérpretes dramáticas da Dama das Camélias foram Sara Bernhardt, Eleonora Duse e Cecile Sorel, as três também tuberculosas. Verdi serviu-se do tema na ópera "Traviata"; o prelúdio do ato final é uma das composições musicais mais pungentes. Na estréia, porém, a soprano Donatelli no papel de Violetta (que é a dama das camélias) gordissima, com todo o seu peso corporal, ao lançar o grito da agonia "la tisi non le accorda que poche ore", provocou uma onda de gargalhadas. No correr dos anos até hoje, com sopranos magras e gordas, a Traviata é uma das óperas que mais sucesso alcança. Tanto no teatro como na ópera, massas de expectadores choram até hoje, mas oceanos de lágrimas foram e são provocados pela Greta Garbo no filme dirigido por George Cukor. Não há filmoteca no mundo que não tenha cópia dessa fita, que continua comovendo multidões. Sem dúvida, o fenômeno Maria Duplessis (Dama das Camélias) constitui o acme do romantismo, impulsionado pela tuberculose.

Quase todos os personagens tuberculosos do auge do romantismo estão enterrados no cemitério Père Lachaise, em Paris. Este cemitério é "sui generis", porque praticamente não tem mortos; a imensa maioria dos que ali dormem está viva na história e nossa cultura: Molière, La Fontaine, Claude Bernard, Augusto Comte, Champolion, Gay Lussac, Musset, Oscar Wilde, Lavoisier, Balzac, Proust, Alan Kardec, Bichat, Rossini, Dieulafoy, Dumas Filho e tantos outros. Andando por uma da alas centrais, cujas copas de árvores se entrelaçam, encontra-se uma lápide branca, simples, coberta por um chorão com longos ramos pendentes que, balançando-se, difundem sons harmoniosos, enternecedores e envolventes. Estamos diante de Chopin. Seguramente ninguém, como este poeta da música, vinculou tanto sua capacidade criadora para nos contar sua tragédia. Quando Frederic Chopin chegou em Paris com 20 anos, era moço, esguio e pálido. Com o crescer de sua notoriedade, sua palidez virou moda e os aristocratas empoavam mais e mais suas faces para imitá-lo, e porque a tuberculose estava na moda. Tímido, externava, porém, plena consciência da grandeza do seu destino. Não obstante, a nostalgia do seu primeiro amor adolescente - Constanza Gladkovska - no primeiro encontro com George Sand, descreveu-a como mulher simpática, inteligente, irradiante. Todavia, nos seus retratos, elaborados por Delacroix e Charpentier (Museu Carnavalet), delineiam-se traços sérios e até duros. Aurora Dupin, Baronesa Dedavant (pseudônimo George Sand), caracterizou-se pelas teses de independência da mulher, que a levaram a separar-se do marido. Teve uma ligação com Musset (tuberculoso, como vimos) e por fim, com Chopin. Compreendeu logo que ia ligar-se a um dos maiores gênios artísticos. Com a saúde de Chopin declinando paulatinamente, começam as peregrinações a regiões de climas amenos, sem melhoras substanciais. Mais de três dezenas de médicos, a maioria professores das Faculdades de Medicina da Europa, o examinaram, constataram a tísica e receitaram-lhe as barbaridades da época. Entre eles, Clark, médico da Rainha da Inglaterra, Trousseau, apologista dos ferruginosos, Koreff (que foi também médico da Dama das Camélias), Röemer, Cruveilhier, Louis (que foi discípulo de Laennec), Malfatti que assistiu Beethoven nos últimos dias. Prescreveram-lhe revulsivos, vesicatórios, banhos sulfurosos, sangrias, sanguessugas, exercícios físicos exaustivos. Só Detweiller, em Berlim, que então propagava a doutrina do repouso em sanatório (então considerada um absurdo), aconselhou-o inatividade absoluta, que evidentemente não foi seguido. Da temporada na Ilha Majorca, há uma carta de Sand, queixando-se que eram "tratados como galinha. Um médico disse que Chopin não era tuberculoso, outro diagnosticou tísica crônica e um terceiro prognosticou a morte em breve". O patrão da pequena casa, que conseguiram alugar, quis processá-los, exigindo de acordo com a lei local que fosse lavada com desinfetantes, e em Barcelona, o senhorio exigiu pagamento pelo colchão no qual Chopin dormiu, pois deveria ser queimado por exigência da saúde pública. Um parêntesis para registrar como em vários países e na França o conceito do contágio da tuberculose estava arraigado na população, pois Chopin, voltando a Paris, não encontrou hospedaria que quisesse aceitá-lo(**). A vida sexual com George Sand teve breve duração; Chopin não era o homem ardente sonhado por Sand e esta não lhe dava o afeto que necessitava. Há a crua declaração em carta de Sand a uma amiga: "tenho a sensação de deitar-me com um cadáver". Separaram-se um ano antes de sua morte. Nos últimos anos, os sintomas intensificaram-se: episódios hemoptóicos, por fim dispnéia intensa que não lhe dá descanso, febre ética, dores agudas que o torturaram. Finou-se em 1849 com apenas 39 anos. Apesar de jovem, após os 30 anos parece um velho como transparece no retrato pintado por Delacroix, que também tuberculoso, soube, como já dito, imprimir no rosto do gênio sofrimento com o qual convivia.

Quanto à composição musical, a potência criadora de Chopin parece crescer com a destruição dos seus pulmões, e suas obras são reflexo de suas torturas. Durante a temporada de Liszt em Paris, dos contatos prolongados dos dois gênios, embora de temperamentos diferentes, introvertido o primeiro e extrovertido o segundo, o espírito agudo deste nos deixou uma análise realística quanto a influência da doença na obra de Chopin. Afirmou que em todas as produções de Chopin, desde Majorca até o final, encontram-se os sofrimentos agudos que o torturam, e por isso, sua música é divina, impregnada de ternura e melancolia.

Ainda no dizer de Liszt, a primeira grande manifestação desse infortúnio está no famoso prelúdio em Ré Bemol Maior. Considerou também que os 29 prelúdios op. 28, compostos em Majorca, refletem não só as explosões de suas reações, como às vezes a euforia que precede à morte. Em verdade, nos momentos mais agudos do amargo cortejo sintomatológico, Chopin munia-se de forças atingindo o clímax da criação. Daí a maravilha dos seus improvisos que brotavam em borbotões sob influxo da febre para em seguida cair extenuado, como descreveu George Sand. Quanta música sublime, não anotada, se perdeu, a qual ninguém mais ouviu. Em suma, esse mago que fez do piano uma verdadeira orquestra, para este transferiu as sonatas, baladas, noturnos e prelúdios, seus estados de alma, com tons ora líricos, alegres, esperançosos, ora melancólicos, amargos e trágicos. Estranho paradoxo: o bacilo de Koch, ao mesmo tempo que destruiu seu corpo, exaltou-lhe a inspiração e a criação de arte sublime que se tornou eterna.

 

14. O vilão responsável pela saga

O responsável pelo exposto até aqui pertence ao microcosmos, têm duas a cinco micra de comprimento e 0,2 a 0,3 décimos do mícron de espessura, protegido por forte e espessa carapaça cero-lipídica. Seu genoma contém 4.000 genes, dos quais 3.924 já decodificados e 4.411.529 pares de bases nucleotídeas. Diariamente identificam-se novas funções dos genes e novos epítopos. Esses conhecimentos, após 120 anos de sua descoberta, abrem-se enfim melhores perspectivas para enfrentá-lo e destruí-lo.

Por enquanto continua vitimando milhões de seres humanos, sendo o maior responsável pela mortalidade nos adultos, e configura-se como o maior agente isolado de morte entre as doenças infecciosas.

Entretanto, a estratégia para barrar sua propagação é simples e do menor custo entre as ações de saúde, que é o DOTS (Directly Observed Treatment Short Course), a qual, todavia, não está tendo sua implantação efetuada com a rapidez necessária. Para obviar esse óbice, criou-se a "Stop TB iniciative", congregando a Organização Mundial de Saúde, a União Internacional Contra a Tuberculose e Doenças Pulmonares, a Real Associação Holandesa de Tuberculose, a Associação Americana de Pulmão, o Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos (CDC-P) e o Banco Mundial. A prioridade da aplicação da estratégia DOTS será nos 22 países que concentram 80% dos casos de tuberculose do mundo, em cujo grupo o Brasil está inserido. Em dezembro de 1999 o Ministério da Saúde instituiu o Plano Nacional de Controle da Tuberculose, no qual está incluída a estratégia DOTS.

A Organização Mundial de Saúde enfatiza que para o controle da tuberculose impõe-se a descoberta intensiva dos casos novos, submetendo-os imediatamente à quimioterapia correta pela sua administração diretamente supervisionada (DOTS); esta impede a multidrogarresistência e reduzirá a mortalidade, evitando 70 milhões de óbitos por tuberculose que, sem essa estratégia, ocorrerão até o ano 2020.

Germe tão maléfico, no entanto nos campos do microscópio, do escarro corado pela técnica de Ziehl-Neelsen, apresenta-se como traços e vírgulas num emaranhado de trabéculas de fibrina e mucina, encantando os olhos qual quadro abstrato romântico, transmitindo harmonia e tranqüilidade da mesma forma que uma tela abstrata de Jackson Pollock. Paradoxalmente ambos têm poder semelhante de abstração, como se vê nas figuras aqui estampadas.

 

 

 

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(*) Em decorrência da quimioterapia irregular, está aumentando assustadoramente no mundo, sobretudo nos países em desenvolvimento, a multidrogarresistência do Mycobacterium tuberculosis. Para os pacientes nesses casos, estão se realizando ressecções pulmonares. Sem dúvida é tentativa obrigatória para salvar a vida desses doentes. Entretanto sob o ângulo epidemiológico, a volta dessa cirurgia é um melancólico retrocesso de meio século, e em piores condições que antigamente, porque para a tuberculose multirresistente não há meios de impedir as reativações focais e propagação das lesões, por não haver cobertura quimioterápica.
(**) A medicina oficial desde o século 16 com os conceitos de Fracastoro adotou a doutrina do contágio que mais se arraigou na Itália e Espanha, onde inclusive promulgaram-se editos regulando medidas contra o contágio da tuberculose. A doutrina contagionista nos séculos seguintes foi questionada e mesmo abandonada. Desse modo no século 19 na França, a medicina oficial não admitia a transmissibilidade da doença; quando Villemín demonstrou-a, infectando animais com catarro ou material de pulmões de tísicos falecidos, a Academia de Medicina de Paris incumbiu Pidoux a repetir essas experiências, o qual "demonstrou" que continham erros. Recebeu um prêmio de 10.000 francos por ter comprovado que a tuberculose não era transmissível! Impressionante, como mesmo após a descoberta do bacilo por Koch, muitas escolas continuaram negando o papel do contágio, considerando a tuberculose conseqüência somente da reativação de focos residuais contraídos na infância, posição essa definida na célebre frase de Behring: "a tuberculose do adulto é o último verso de uma canção recitada pela ama ao pé do berço".