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Boletim de Pneumologia Sanitária

versão impressa ISSN 0103-460X

Bol. Pneumol. Sanit. v.8 n.1 Rio de Janeiro jun. 2000

 

 

O controle da tuberculose em plena Guerra Civil - Uma experiência em Angola*

 

 

R.F.C. Doveren, MD**

Médico, Controle de Tuberculose. Dept. Infectious Diseases Control. Public Health Service. Rotterdam. The Netherlands

 

 


RESUMO

Após décadas de guerra, a situação da tuberculose em Angola é alarmante. O autor descreve o Programa de Controle da Tuberculose de Malange, adaptado para funcionar nestas difíceis circunstâncias. Considera como fatores chave para sucesso do DOTS, a motivação dos profissionais de saúde, dos pacientes e de outras pessoas ali presentes, além do treinamento dos profissionais. Na opinião do autor, estes dois pontos de apoio do programa de controle da tuberculose em Angola necessitam urgentemente implementação para possibilitar um efetivo controle da doença.

Palavras chaves: tuberculose, programa de controle, Angola


SUMMARY

After decades of war the tuberculosis situation in Angola is alarming. The author describes an adapted TB control programme in Malange, run under difficult circumstances. Key factors for success of the DOTS treatment are the motivation of staff and of patients, partly displaced persons, and the training of the health care workers. In the author's opinion, both support for TB control in Angola is urgently needed and the implementation of effective TB control programmes is possible.

Keywords: tuberculosis, control programme, Angola


 

 

Introdução

Em 1998, a relativa calma em Angola, interrompida por um conflito crônico, incentivou várias Organizações Não Governamentais a estimular a reconstrução da infra-estrutura de cuidados médicos, seriamente debilitada. A quebra geral da economia e a migração da população rural para as cidades, relativamente seguras, tinham pressionado, ainda mais, a já pesadamente sobrecarregada assistência médica.

A saúde geral da população é precária. De acordo com vários relatórios, doenças como malária, tripanosomíase, lepra e tuberculose tinham se alastrado, de um modo sem precedente, desde a independência. Mesmo assim, era-se, pela primeira vez, cautelosamente otimista, devido, entre outras causas, aos tratados de paz de Lusaka e ao início da desmobilização militar (1).

Dado estas circunstâncias, em agosto de 1998, a organização Médicos Sem Fronteiras da Holanda (MSF-H), decidiu começar um projeto, em cooperação com as autoridades angolanas, para fortalecer o controle da tuberculose na capital da província de Malange.

Este artigo descreve algumas das experiências durante o projeto, expondo as possibilidades e chances de um controle de tuberculose em tais circunstâncias, e em um país de alta incidência. A adaptação do plano original, como também vários resultados e alguns aspectos da organização e treinamento serão discutidos.

O autor sentiu-se muito impressionado ao ver pacientes debilitados, sofrendo da "tisis" clássica, começarem a se recuperar em dois meses, como resultado de um tratamento simples.

 

Ponto de partida

Embora a cidade estivesse rodeada de campos minados, Malange estava calma quando o avião ali pousou, em setembro de 1998. Esta situação contrastava com a zona rural circunvizinha, de onde chegavam refugiados diariamente. Uma conexão segura com Luanda só era possível por via aérea (figura 1). A dificuldade de abastecimento fazia a vida cara. Havia provisão de água, mas não se dispunha de eletricidade. Por toda a cidade, as áreas disponíveis eram convertidas em campos de cultivo, fato que revelava falta crescente de alimentos, embora não ocorresse desnutrição geral.

 

 

A situação, com respeito a tuberculose, era alarmante(2). A incidência estimada para a província (420.000 habitantes) alcançava 200/100.000(3). A mortalidade estimada de 135 pessoas com baciloscopia positiva, entre os habitantes da cidade, não era excepcional.

O controle da tuberculose, levado a cabo pelas autoridades, se realizava com problemas. Dos 500 casos de tuberculose, registrados em 1997 no hospital, só 4% completavam o tratamento. Eram constantes as falhas na provisão de medicamentos e no sistema de registros, além da prática de condutas ultrapassadas. Os pacientes hospitalizados recebiam isoniazida (H), estreptomicina (S) e a pirazinamida (Z), mas, uma parte deles comprava, no mínimo a rifampicina (R) no mercado livre, o que fazia temer o desenvolvimento de resistência às drogas. Desta forma o objetivo do programa seria oferecer facilidades para melhorar a chance dos pacientes completarem o tratamento em regime ambulatorial.

 

Alguns aspectos do programa

Características e instalações

O programa visava a melhoria do diagnóstico e da provisão de medicamentos, treinamento do pessoal e a introdução do tratamento diretamente observado (DOTS), este último, até então, desconhecido ali.

Felizmente, foram pequenos os danos de guerra diretos, sofridos pelo centro da cidade, o que permitiu que a população local pudesse recuperá-lo de modo satisfatório. Tinha sido construído pelos portugueses no passado um ambulatório que, constituído de vários ambientes, entre os quais um que se destinava ao laboratório, com microscópio utilizando luz solar. Este ambulatório foi projetado para atender, no máximo, 50 pacientes por hora, e, próximo a ele, construiu-se uma pequena unidade destinada a hospitalizações de curto período, consistindo de barracas com 20 camas e instalações sanitárias.

Medicação e suprimento dos tuberculostáticos necessários.

O trabalho se desenvolvia de acordo com as diretrizes técnicas do Programa Nacional de Tuberculose e Lepra, utilizando como tratamento, principalmente, os regimes 2RHEZ/6TH (I) e 2SRHEZ/1RHEZ/5RHE (II) e às vezes 2SHT/10 TH(III)4). Os resultados eram acompanhados por meio de baciloscopia de controle aos 2, 3 e 7 meses, após o início da terapia. Ocasionalmente, o hospital realizava alguns exames laboratoriais adicionais, como parâmetros clínico-hematológicos ou sorologia para tuberculose. Devido ao alto custo de alguns tuberculostáticos, era crucial só manter em estoque uma quantidade limitada, e supervisionar estritamente a distribuição e o uso das drogas.

A disponibilidade e treinamento de pessoal.

O projeto tinha a sua disposição suficiente pessoal da saúde pública angolana, fato decorrente de acordos anteriores com as autoridades do país. Alguns deles foram treinados no passado pelos portugueses e eram experientes no controle de tuberculose.

Um mês depois do início do projeto realizou-se um treinamento, em cooperação com o programa de AIDS, constando de duas partes. A primeira, com uma semana de duração, baseado em material instrucional de trabalho, abordava aspecto gerais, enfocando assuntos como patologia, coleta de escarro para baciloscopia, uso de tuberculostáticos, efeitos colaterais, estratégias e administração, tratamento supervisionado, orientação aos pacientes, localização de faltosos, prevenção, etc. A segunda parte do treinamento era dirigida a um grupo de técnicos de laboratório, objetivando a prática em manipulação e coloração de amostras, microscopia e destino dos rejeitos.

Organizar e executar o treinamento não foi tarefa fácil. Basta referir que a eletricidade para a máquina copiadora, retroprojetor e projetor de slides, provinha de um gerador.

 

Administração e medidas de apoio

Para garantir o fluxo de pacientes, os dois grupos (com e sem estreptomicina) de tratamento diretamente observado, tomavam sua medicação diária entrando pela "porta da frente", e saindo pela "porta de trás". Um terceiro pequeno grupo seguindo um sistema de que, baseado em sua história, era suspeito de apresentar resistência às drogas, e outros, precisando de atenção especial, obtinham o medicamento de uma enfermeira, em um local separado.

O número grande de pacientes significava uma pesada carga de trabalho para o pessoal de laboratório, especialmente no início do projeto. Para prevenir esta sobrecarga os pacientes foram admitidos gradualmente, após se avaliar a aceitação deles à terapia. Noventa e cinco pacientes começaram o tratamento.

Deu-se atenção especial às medidas de apoio para encorajar a adesão, como uma entrevista ao começo do tratamento e consultas diárias para educação em saúde, e atendimento de pacientes com queixas devido a efeitos colaterais do medicamento.

Pacientes enfraquecidos, assim como aqueles que, portadores de artrite, tinham que caminhar mais de dez quilômetros diariamente (figura 1), eram admitidos na unidade de internação para uma permanência curta (menor que 3 semanas), até a melhoria do seu estado geral de saúde, quando passavam a ser tratados como pacientes externos. Apenas estes, eram alimentados com fruta e peixe.

Inicialmente foi planejado utilizar alimentos como um incentivo aos pacientes, mas a idéia foi rejeitada devido às circunstâncias. Rapidamente se percebeu que, até mesmo sem comida como incentivo, o programa corria bem. Ao término da fase intensiva todos os pacientes recebiam um certificado que eles pareciam valorizar muito. Oito vezes usamos "termos de compromissos", como um acordo para a terapia. Depois da consulta com o representante local do departamento de seguro social e várias organizações religiosas, alguns pacientes, como os completamente sem-teto ou órfãos de guerra, ficavam abrigados durante o tempo de tratamento, às vezes com pessoas da comunidade. Aspectos como localização de faltosos, administração das drogas e treinamento dos supervisores não serão discutidos aqui.

Os salários em geral eram muito baixos, o que limitava o tempo disponível das pessoas envolvidas no projeto, e levavam-nas a buscar suplementação de renda após suas atividades no Ambulatório, com trabalhos adicionais no campo informal. Com ajuda de trocas rotativas e um trabalho em um sistema compartilhado (com descrições de cargo detalhadas), os dezessete trabalhadores de atenção médica permaneceram altamente motivados e o programa se manteve funcionando com um alto números de atendimentos diários.

Duas vezes por semana, as enfermeiras desenvolviam atividades educativas, tanto em português como no idioma Kimbundu local. Os pacientes eram reunidos na sala de espera com muito cartazes informativos. Tentava-se localizar e estimular a participação dos ex-pacientes para ajudar no diálogo com os pacientes em tratamento.

 

Primeiros resultados do programa

O Quadro 1 ilustra algumas características dos 95 pacientes da coorte mencionada acima. A idade média foi de 30 anos (média de 28, variando de 2 - 74 anos). As queixas mais frequentemente mencionadas foram: tosse (média de 8 meses, variando de meio a 36 meses) e hemoptise. Raramente eram mencionados febre, mal estar, dispnéia e perda de peso, isto até mesmo por pacientes já emagrecidos. Muitos apresentavam o estado geral comprometido, com uma média de peso de 45 Kg, nos grupos de pacientes com idade de 21 a 30 anos, e uma variação de 29 - 58 quilos.

 

 

Entre os pacientes, 46 eram mulheres e 28 (30%) eram refugiados. Ao contrário de nossas expectativas, esses últimos completaram o tratamento sem muitos problemas extras porque, devido a fortes laços familiares, conseguiram um lugar para ficar na cidade, em companhia de parentes, o tempo necessário até poder retornar às suas próprias casas.

Quatro pacientes da coorte morreram, em um tempo médio de 21 dias. Entre os doentes tratados com o esquema I, 54 dos 58 pacientes apresentaram escarro positivo a baciloscopia. Dos tratados com o esquema II, 26 dos 34 pacientes, apresentaram escarro positivo a baciloscopia.

Durante o tratamento, foi detectado em 3 pacientes alergia moderada, e a artralgia ocorreu mais freqüentemente no início do tratamento. Em 4 ocasiões, foi requerida breve admissão de pacientes ambulatoriais na unidade de internação, além de três prováveis associações com AIDS - ou complicações (hemorragia disseminada, malária severa em um adulto e candidíase oral) foram também internados. A hemoptise severa era tratada com vitamina K, alta dose de NSAIDS e diazepam. Dos 7 pacientes abaixo de 15 anos, 2 acima de 10 foram positivos ao exame de escarro. Três pacientes com um localização exclusivamente de forma extrapulmonar foram tratados com o regime III de longa duração.

Ao término de dezembro, dois pacientes foram transferidos a um centro em Luanda. Dos 25 pacientes com baciloscopia positiva, 23 negativaram no 2o mês de tratamento (permanecendo negativo ao término do 3o mês), e 2 no 3o mês. O controle de qualidade da preparação da lâmina era feito por um funcionário do MSF.

Durante a primeira fase, 4 faltosos foram localizados; a ênfase permaneceu na prevenção da perda por meio das medidas acima mencionadas. Pacientes que completaram a primeira fase obtiveram melhora de sua condição física e continuaram vindo tomar seu medicamento diário, na periodicidade fixada. Fora as perdas da guerra, a adesão ao tratamento foi boa, com só 5 faltosos (ausência injustificada por um período maior que 3 dias).

 

E então… a guerra

Embora a retirada da missão de observadores das Nações Unida da cidade fosse um presságio ruim, a rompimento da guerra aberta ainda foi recebido como inesperado. Neste período a cidade esteve completamente isolada do mundo externo - principalmente por terra. Com nossa intervenção, algum pessoal da equipe de enfermagem escapou do recrutamento obrigatório. Todas as pessoas começaram a construir barricadas de sacos de areia. Mais e mais granadas e tiros de longa distância paravam a vida diária depois que vários mercados foram atingidos. Foram transferidos quinze pacientes das barracas para um porão mais seguro do hospital, onde muitos civis procuravam abrigo também.

Durante o intervalo dos tiros, a maioria dos pacientes do ambulatório continuava a vir ao OPD, onde um número suficiente de pessoal permanecia para manter o programa funcionando. Ao término de janeiro, 61 pacientes estavam na segunda fase do tratamento.

Depois de quatro meses, minha presença ficou muito perigosa e a evacuação de emergência, por meio de um avião pequeno, não veio tão cedo. Foi feito uma preparação para que o pessoal da assistência médica completassem o tratamento dos pacientes. A cidade continuou por meses debaixo de fogo, e sendo inundada subseqüentemente por refugiados.

 

Discussão

Descrevendo o projeto, eu tentei dar as impressões do controle de tuberculose em um país de alta incidência, com uma realidade diferente de um país em paz. Vários aspectos, como iniciativas para prevenir a estigmatização dos pacientes de tuberculose, não foram mencionados.

Estou convicto que é possível efetuar um programa de controle de tuberculose, com baixo custo em Angola, contanto que a situação esteja bastante calma e não haja chuva de granadas. É importante adaptar o desenvolvimento dos trabalhadores de saúde às circunstâncias locais, e usar uma mistura adequada de capacitação e incentivos. Pelo alto estímulo do pessoal e dos pacientes, foi possível continuar até mesmo com o tratamento diretamente observado na fase de continuação. Contanto que o tratamento seja completamente observado, pelo menos na fase inicial, o risco de aparecimento de resistência a droga, no caso de interrupção, é pequeno.

Atualmente o programa em Malange continua com um foco renovado em treinamentos em tuberculose e administração. O número enorme de pacientes de tuberculose desamparados não deve ser deixados por sua própria conta, e o programa de tuberculose nacional (NTLP) merece o apoio que precisa para implementar um programa de tuberculose efetivo em todas as áreas de Angola, onde as condições o permitam.

 

 

Referências bibliográficas

1. Pesquisas regionais do mundo. África sul do Saara 2000. Publicações de Europa 1999, 29 edição.

2. Relatório de uma visita a Angola, 2-3 fevereiro 1998.Gorkom van J. KNCV, Haia.1999.

3. Manual de normas de controle da tuberculose. Ministério Saúde, Rep. de Angola. Luanda, 1997.

4. Global Tuberculosis Control. WHO Report 2000, página 69-7 - OMS, Genebra 1999.

 

 

*Tradução do inglês por: Maria José Procopio e Sonia Natal
**Endereço do autor: Kerkstraat 12. 6543 KK Nijmegen. The Netherlands