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Boletim de Pneumologia Sanitária

versão impressa ISSN 0103-460X

Bol. Pneumol. Sanit. v.11 n.2 Rio de Janeiro dez. 2003

 

ARTIGO ORIGINAL

 

Tuberculose, Vila Rosário e a cadeia da miséria angústias e reflexões de um cidadão

 

 

Claudio Costa Neto

Professor Emérito, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Sociedade QTROP de Química Fina para o Combate a Doenças Tropicais

 

 


RESUMO

Este artigo mostra a tuberculose como um dos elos de uma cadeia da miséria. Os outros elos que a ela se ligam indissoluvelmente são a fome e a falta de renda, aos quais se juntam a falta da educação para o trabalho e da cultura do saber. Relata a experiência da Sociedade QTROP em Vila Rosário, uma região do município de Duque de Caxias (RJ), com vistas à eliminação da tuberculose dessa localidade (103 casos/100.000 pessoas). Analisa os resultados obtidos com o trabalho realizado e mostra caminhos que podem levar ao controle da doença. Entre as principais sugestões feitas para se chegar à efetiva eliminação da tuberculose estão: a presença necessária das agentes comunitárias e da assistente social junto aos médicos; o uso dos jardins das curas; o acompanhamento psicológico dos doentes e pós-doentes; novos medicamentos mais eficazes e menos tôxicos; nutrição eficiente para o reforço das defesas do organismo; trabalho para auferir renda. Tudo isso sustentado por intenso e amplo processo de educação. Conclui dizendo que será só com a ação holística sobre todos os elos da cadeia da miséria que se poderá lograr êxito na eliminação da tuberculose.

Palavras-chave: eliminação da tuberculose, pobreza-misérria, medicamentos.


SUMMARY

This article discusses tuberculosis as a link of a chain-of-poverty. Other links of the chain are famine, lack of work (employment) and the corresponding lack of income, lack of education together with lack of the culture of education. It describes the results of a study conducted by the QTROP Society in Vila Ros·rio, a region in the Duque de Caxias municipality of the state of Rio de Janeiro, looking toward eliminating tuberculosis from this region (103 cases/100,000 inhabitants). It analyses the results obtained with the work and discusses ways to control tuberculosis. Among the main suggestions made to eliminate tuberculosis are the necessary presence of communitarian agents and of social assistants working together with the medical staff; use of the ëgardens of curesí; implementation of psychological assistance to patients and pos-patients; development of new drugs more efficient (less treating time and less toxic); establishment of an efficient nutrition program to garantee reinforcement of natural body defenses; implementation of new job places (employment) through production of plant medicines and phytonutraceuticals, all that sustained by an intense and broad education process. It concludes saying that it will be only through a holistic action over all links of this poverty chain that will enable success to eliminating tuberculosis.

Key words: elimination of tuberculosis, poverty, drugs and medicines.


 

 

Introdução

Sou um cidadão - não-médico - que vem para falar da tuberculose, após pouco mais de seis anos de uma experiência vivida junto ao programa da Sociedade QTROPI na região de Vila Rosário, município de Duque de Caxias, Rio de Janeiro. Em fins de 1997, a Sociedade estabeleceu nesta localidade uma área de atuação, com o objetivo de desenvolver um modelo de intervenção para o controle da tuberculose.

Doença infecciosa, que se transmite diretamente de pessoa para pessoa, a tuberculose afeta um número elevado de indivíduos no Brasil e no mundo. É considerada, atualmente, pela Organização Mundial da Saúde - OMS, a maior endemia mundial. Os dados mais recentes dão conta que no Brasil, anualmente, há uma expectativa de adoecimento de 110 mil pessoas,II das quais morrem cerca de seis mil. Em termos mundiais os números são ainda mais dramáticos: a cada ano, 6 a 7 milhões adoecem e 2 a 3 milhões morrem por essa causa. Estima-se que um terão da população mundial (cerca de dois bilhies) esteja infectada com o Mycobacterium tuberculosis.

A tuberculose é uma doença, e como tal espera-se que a solução venha através do tratamento médico: hospitais e outros serviços médicos adequados, médicos e equipes treinadas, medicamentos prôprios distribuídos gratuitamente à população. Fosse só isso, a tuberculose estaria sob controle no Brasil: o governo conduz, já há muitos anos, um Programa de Controle da Tuberculose vinculado ao Ministério da Saúde, de abrangência nacional, que inclui centros de treinamento para os profissionais de saúde, centros de atendimento médico que operam permanentemente - em alguns casos acompanhados de programas de cestas básicas, às vezes de ajuda financeira aos doentes e aos programas por doentes curados, alèm de um sem nímero de atividades pontuais 'de-cima-para-baixo', isto é, atividades advindas de iniciativas de governo.

E o que se vê? Os jornais noticiam constantemente e, atingem - duas vezes por ano - o auge do paroxismo nos dias nacional (12 de novembro) e internacional (24 de março) de combate à tuberculose, sempre dizendo que a 'doença avança', tanto em níveis nacionais quanto mundiais, que é a maior pandemia com a qual o mundo atualmente convive, etc. E isto é verdade, a 'doença avança', mesmo descontados os exageros que cometem os jornais para que as suas notícias chamem a atenção dos leitores. Resultados obtidos nesse ano de 2004 (referentes ao ano de 2003), colocam o Rio de Janeiro como o estado da federação onde a doença está mais presente: cerca de 17.000 casos foram registrados oficialmente em 2003, e os municípios da Baixada Fluminense são aqueles em que a doença se mostrou mais presente. Esta foi a situação em 2003 e a previsão para os anos futuros é que o número de casos aumente. Desde que as estatísticas começaram a ser feitas, tem sido constatado que a presença da tuberculose na população é alta.

E por ser assim há tanto tempo, é de se perguntar: as coisas são assim, porque têm que ser assim, ou seria uma questão de 'ser' ou de 'estar' assim?

A não se aceitar um fatalismo - as coisas são assim porque têm que ser assim - por que então as coisas 'estão' assim, já faz muito, tanto tempo?

A constatação a que esses dados levam é que, apesar de a tuberculose ser hoje uma doença que tem cura na base do indivíduo, os paradigmas atualmente vigentes não atendem ao que é necessário para o controle na base social. O problema do controle/eliminação da tuberculose deixa de ser um problema de tratamento do doente visto apenas como um indivíduo, para ser um problema de tratamento do doente inserido em um contexto social. Como será mostrado ao longo deste artigo, a experiência em Vila Rosário deixa bem claro que a eliminação da tuberculose no Brasil é um problema que só terá solução através do 'tratamento' que se dê à sociedade - que inclui, certamente, o tratamento médico strictu sensu dado ao doente.

Os argumentos usados no presente trabalho se valem da experiência realizada na região de Vila Rosário, como foi mencionado. Cabe, portanto, que nesta apresentação se faça uma pequena descrição da região.

Vila RosárioIII é uma área de aproximadamente 30 km2 situada a noroeste na confluência do rio Sarapuí com a avenida Presidente Kennedy - antiga estrada Rio-Petrópolis -, segundo distrito do município de Duque de Caxias, estado do Rio de Janeiro; situada, portanto, no centro de onde as estatísticas governamentais recentes extraíram os números alarmantes de casos de tuberculose detectados, correspondendo a uma taxa real de 103 por 100 mil habitantes.2

Por esta mesma razão - a de ter um número elevado de casos de tuberculose - Vila Rosário foi escolhida para ser uma 'área de atuação' da Sociedade QTROP e, como tal, foi alvo de intervenção através de um programa de combate à tuberculose liderado pela Sociedade, que coordenou a atuação em conjunto com a Fundação Ataulpho de Paiva-FAP, o Centro de Referência Professor Hélio Fraga e o Ambulatório de Vila Rosário (uma unidade de saúde instituída e mantida pela Igreja Católica). As ações do programa se fizeram de acordo com protocolo firmado com a Secretaria Municipal de Saúde de Duque de Caxias e tiveram auxílio financeiro da Fundação Nacional de Saúde - Ministério da Saúde. A reflexão sobre os resultados obtidos nessa intervenção, realizada nos anos 2001 e 2002, é que deu luz ao presente artigo.

A área de atuação da Sociedade QTROP é povoada por grupos sociais que abrangem um gradiente de pobreza que se estende do mais pobre - a Vila da Fraternidade, uma favela localizada à margem esquerda do rio Sarapuí, que tem sua estrutura de funcionamento típica de qualquer favela do Rio de Janeiro - a bairros habitados por uma população de renda baixa a média. O nível de desemprego é alto. A maioria dos que aí moram e têm emprego, trabalham fora da região. Poucos são os que conseguem trabalho no local. Restam os que não se sentem em condições físicas e psíquicas - ou que nem têm mesmo essas condições - para enfrentar a dura luta pelo emprego. São muitos. Há fome e doença na região. O nível de educação é, quando muito, o elementar, e mesmo assim não é o de toda a população, embora conte com a presença de uma unidade de ensino superior nas proximidades (Parque-Fluminense) - a Federação Educacional e Universidade Duque de Caxias - FEODUC.

As manifestações culturais são inexpressivas. O resultado é que nessa região o nível de pobreza é alto.

A miséria não está em Vila Rosário por opção das pessoas. Sua população, em grande parte migratória de outros estados, certamente veio para a cidade do Rio de Janeiro em busca do el dorado, do fascínio que a capital federal de época passada exercia sobre as pessoas de outras partes do País. Muitas delas, atraídas pela possibilidade de uma vida melhor, mas sem condições de competir por cargos e empregos, se situavam à margem da sociedade central. Como eram muitos, uma discriminação 'natural' ganhava corpo: um centro rico e uma periferia pobre. A pobreza dava lugar à fome. À fome seguia-se a desnutrição, e à desnutrição a doença. Em meio à doença, à desnutrição e à pobreza, princípios mínimos de educação - ética? - se diluíam ao extremo. Cultura? Que cultura? A da sobrevivência é a única que resta. A maior parte dessa população tem dificuldade em conseguir emprego, e por causa disso vive uma vida difícil. Mas não tem meios para romper com essa situação. Não há forças internas para romper o bloqueio. Na maioria das vezes busca a salvação através de forças externas, entre as quais a principal é o governo. Essas populações ficam, portanto, a mercê de programas governamentais. E só deles. E 'aprendem' a viver só deles. Por um processo 'natural', desaprendem a andar de pé. Curvados, deixam de ser cidadãos. Transformam-se, quando muito, em 'votos'.

É interessante constatar que, contrastando com essa situação, encontra-se a alguns poucos quilômetros e ainda no mesmo distrito do município (Campos Elíseos), um pólo petroquímico de grande porte, com a refinaria da Petrobras (REDUC), que processa cerca de 120 mil barris de petróleo por dia, fábricas diversas do complexo petroquímico e, em vias de ser montado, um grande conjunto de indústrias do setor gás-químico. Milhões de reais (ou dólares) em mercadorias, serviços etc. circulam diariamente por essa região. Por que esse 'disparate', um 'bolsão de riqueza' separado de um 'bolsão de miséria' por apenas alguns quilômetros, ambos os bolsões de um mesmo povo, em um mesmo país, sob um mesmo governo? IV

O trabalho realizado pela Sociedade QTROP em Vila Rosário ao longo desses anos levou a um número expressivo de conclusões, algumas das quais serão a seguir resumidas na forma de teses.

 

Descrição e análise das teses

Eliminar a tuberculose da comunidade de Vila Rosário deve ser o objetivo primeiro do modelo de atuação da Sociedade QTROP

A tese central desse trabalho diz que se deverá trabalhar com estratégias que visem eliminar a doença. Onde difere, esta tese, do que preconizam os programas oficiais?

No jargão oficial, eliminar uma doença é tê-la controlada no patamar de 1-2 casos para cada 100 mil habitantes (há definições mais rigorosas que elevam esse nível para 1 a 2 casos para 1 milhão de habitantes). Para muitos, é utópico lançar-se a um objetivo como este quando se trata da tuberculose no Brasil. Seria mais sensato trabalhar com metas menos exigentes, que levassem, paulatinamente, à eliminação da doença.

A Organização Mundial da Saúde definiu como metas para 2005, descobrir 70% dos casos de tuberculose existentes e tratar, com êxito, 85% deles, ou seja, curar 59,5% dos doentes. Espera a OMS que, alcançando-se essas metas de forma sustentada, ano a ano, a incidência da tuberculose sofra uma redução gradativa e consistente, até chegar a uma situação que permita considerar a doença 'sob controle' (como é o que acontece, hoje, por exemplo, em alguns países - do chamado 'primeiro mundo' - que apresentam menos do que 10 doentes por 100.000 habitantes, a caminho, portanto, da eliminação).

Entretanto - na visão de um cidadão - é inaceitável que, num planejamento social de envergadura, se proponha o controle da doença em qualquer nível diferente da eliminação. Consideradas as metas da OMS, que fala em curar 59,5% dos doentes de tuberculose em 2005, pergunta-se: como ficam os 40,5% restantes? A experiência de Vila Rosário mostra claramente que será impossível eliminar a tuberculose se aproximadamente 40% dos doentes forem mantidos 'fora do controle' (no Brasil esses 40% correspondem a cerca de 30 mil doentes!). 60% de curas é uma meta baixa, mesmo a ser alcançada em curto prazo em regiões onde a doença esteja 'completamente fora de qualquer controle'. A longo prazo, e mesmo a médio prazo, a única condição socialmente aceitável é a de definir estratégias que levem à eliminação da doença, mesmo porque as estratégias de eliminação serão diferentes daquelas que procuram atingir o 'controle' gradual da doença (em 60% - ou em qualquer outro número - de curas por ano). Só com o objetivo maior - a eliminação - é que se poderá aprofundar no conhecimento das causas que levam à pandemia. Por conta desse objetivo, certamente novos paradigmas terão que ser estabelecidos para o confronto com a doença (alguns deles serão apresentados nas próximas teses).

A eliminação da doença deve, portanto, ser a grande meta do modelo, isto é, fazer com que o número de casos se limite ao insignificante em um horizonte visível de tempo.

A eliminação da tuberculose só se dará pela atuação holística sobre a cadeia da miséria,V particularmente na parte pobre / miserável da população

Já foi dito que a tuberculose dispõe hoje de tratamento médico que leva à cura os doentes, que o governo fornece os medicamentos de graça, que há nos postos de saúde/hospitais públicos, setores - gratuitos - de tratamento da doença, e que há programas nacionais, estaduais, municipais etc. que visam o controle da doença. Entretanto, as estatísticas mostram que a doença se alastra desordenadamente, no mundo, e mesmo no Brasil.VI Essa situação, aparentemente paradoxal no País (a preocupação do governo de estabelecer e prover um sistema de controle da doença, e o que se observa em muitas regiões é um aumento do número de casos - é o que mostram os dados oficiais para o estado do Rio de Janeiro, por exemplo) pode ter resposta expressa pela tese acima.

No segmento pobre/miserável da população fica bem claro que a solução não passa mais só pelos cuidados médicos: a eliminação da tuberculose só poderá acontecer como fruto de uma intervenção holística no problema da miséria, isto é, através de soluções que dêem conta, orquestradamente, das necessidades das várias partes do sistema social. De nada valerão intervenções pontuais se estas não forem feitas como parte de um sistema que atenda a uma visão ampla do problema. Intervenções pontuais isoladas nunca passarão de paliativos: dinheiro - às vezes muito dinheiro - foi e será gasto, esforço será despendido. Alguns resultados imediatos, fugazes, até poderão aparecer. Mas não serão mais do que fugazes: logo serão tragados pelo tempo e desaparecerão até mesmo da história daquela sociedade. Sem a visão holística, repito - a de conhecer as partes do sistema, o papel que cada parte exerce na cadeia social de eventos e a interação que existe entre as partes - e sem uma intervenção orquestrada sobre essas várias partes, nunca se resolverão problemas de uma sociedade. E este é o caso da tuberculose em Vila Rosário.

A Sociedade QTROP, embora sempre tivesse se mantida fiel aos seus objetivos primeiros - a química fina dos fármacos - passou a reconhecer, após dirigir suas ações para a 'área de atuação' em Vila Rosário, que o problema de controle e eliminação da tuberculose no País não passava apenas pelos medicamentos, e nem mesmo só pelas ações na área médica, mas que a pobreza - essa sim - é que seria a principal responsável pela manutenção da doença.

Surgiu daí o conceito da 'cadeia da miséria' que, em Vila Rosário, foi caracterizada por cinco elos: doença (tuberculose), fome, trabalho, educação e cultura. A doença existe porque há fome - e com a fome vem a desnutrição que reduz as defesas naturais do organismo. Há fome porque não há trabalho, emprego que dê ao cidadão a renda necessária para viver. Não encontra emprego porque não tem a educação necessária para buscar em outros ambientes um que lhe propicie auferir a renda necessária. Não tem educação porque não tem a cultura da educação; a cultura é mais a do não-trabalho, um não-estímulo para uma educação consciente.

A mesma cadeia pode ser vista no sentido inverso: sem a cultura do fazer e do aprender não se estabelece na sociedade a educação como necessidade. Pode até haver alguma educação como acessório, mas não como necessidade, como ferramenta de resolver problemas, de gerar trabalho, alimento, enfim, como ferramenta de sobrevivência. Sem educação não há como atingir um nível competitivo de trabalho. Sem esse nível para exercer trabalho não se galgará emprego; sem fonte de renda vem a fome, e com a fome vem a desnutrição e a doença. São estes os elos da cadeia que levam uma sociedade à miséria.

Ao mesmo tempo, será com base nessa cadeia da miséria que se poderá definir estratégias que levarão às ações de curto, médio e longo prazos, mencionadas anteriormente: o atendimento médico é a ação imediata, de curto prazo. Já a criação dos empregos que conduzirão à geração de renda e à eliminação da fome, são ações de médio prazo (3-10 anos). A educação, que forme o cidadão e o conduza a exercer um comportamento ético - a mais fundamental dentre todas as ações, - é ação a ter frutos a longo prazo (10-20 anos). De mais longo prazo, ainda (20-100 anos) é a instalação na sociedade da cultura do saber e do trabalho. É importante enfatizar que a implementação de todas as ações que envolvem a cadeia da miséria - sejam as de curto, médio ou longo prazos - devem ter início simultânea e imediatamente, embora os resultados esperados só venham a ser alcançados nos prazos que vão variar do curto ao longo.

A Sociedade QTROP ví hoje o programa de atuação em Vila Rosário como uma sonda enviada àquela comunidade que, na sua volta, traz o conjunto de informações sobre como são as pessoas que lá vivem, e como vivem, muito mais do que apenas rastrear e tratar as pessoas doentes de tuberculose. Uma sonda que faz da tuberculose uma medida do grau de miséria em que vive uma comunidade. Será baseado nessas informações que se poderá estabelecer programas que venham eliminar os gargalos que dificultam - ou praticamente impedem - que a doença seja eliminada.

Cabe aqui lembrar que outras sociedades conseguiram controlar a tuberculose. Por exemplo, os índices de tuberculose na Suíça e na Holanda são de 1-2 casos (com confirmação bacteriológica) por 100 mil habitantes. Este é um nível de ocorrência no qual se considera que a doença está 'controladamente eliminada'. Se o que se quer é atingir esses níveis em Vila Rosário, a solução imediatista do problema, diriam alguns, é fazer de Vila Rosário uma Suíça ou uma Holanda. Isso seria possível? Isso seria desejável? Acho que a resposta é não para ambas as perguntas: não é possível nem é desejável. Que caminhos, então, seguir, para tornar a sociedade de Vila Rosário livre da tuberculose?

A eliminação da tuberculose requer uma descentralização radical do atendimento aos doentes

O País tem condições e mostrou eficiência para curar a tuberculose na base do indivíduo (aquele que procura o serviço médico), mas não estabeleceu a estrutura necessária para eliminá-la (a cura na base social).

Os programas nacionais de combate à tuberculose são programas centralizados nos órgãos de governo onde 'vultosas' somas de dinheiro são alocadas. Vultosas quantias são realmente importantes para se levar a bom termo qualquer programa de grande porte, como é o da eliminação da tuberculose no País. Entretanto, o que se observa é que expressivas somas de dinheiro acumuladas em um ponto, tornam o programa ineficiente para a consecução dos seus objetivos. Por que essa situação paradoxal (vultosas somas são necessárias ao mesmo tempo que vultosas somas tornam o programa ineficiente)? E se for assim, como 'desfazer' o paradoxo, isto é, como fazer com que grandes somas de dinheiro sejam usadas eficientemente? A resposta óbvia imediata é: eliminar as causas da ineficiência. Que causas são essas?

Um fator que leva à ineficiência dos 'grandes programas' é que a própria máquina administrativa consome grande parte dos recursos para administrá-lo. As quantias podem ser vultosas mas não são infinitas, e rapidamente não há mais dinheiro para cumprir a atividade fim: só uma pequena parte - quando muito! - dos recursos chega ao seu objetivo final. E, devido à 'falta de recursos' a que logo se chega, rapidamente as pessoas se desinteressam pelo programa, que, geralmente, termina em fracasso.

Outro fator importante responsável pela ineficiência dos 'grandes programas'- fácil de constatar na nossa sociedade - é o fato que as vultosas quantias atiçam a ganância daqueles que vêem no dinheiro a sua única motivação para o trabalho. Tão logo um programa é anunciado, imediatamente tem início uma 'corrida' para a ocupação de 'postos' no programa. A escolha das pessoas que vão ocupar os altos postos na alta esfera governamental é geralmente feita com base em fatores políticos - que em grande parte das vezes nada têm a ver com a competência para exercer a função.

Há que se reconhecer, ainda, um terceiro fator: vultosas somas estimulam e facilitam a má aplicação do dinheiro como, também, estimulam e facilitam a corrupção - a mais triste constatação de nossa realidade.

Outras razões podem ser dadas para explicar as causas que levam os 'grandes programas' ao fracasso. Sempre começam com grandes pompas, têm uma vida efêmera e um final melancólico, longe de cumprir suas metas e desígnios. Têm mais o efeito de marketing para os governos, do que se constituírem em uma ação efetiva para resolver o problema.

As causas apresentadas acima, aliadas à experiência de Vila Rosário, seriam para nós suficientes para optar que um plano maior de combate à tuberculose fosse ' pulverizado' em pequenas unidades bem estruturadas - como são as células dos organismos vivos.

A analogia com a célula dos organismos vivos mostra mais claramente o que se quer dizer com esta tese: um programa que tivesse uma estrutura fundamentada em um trabalho cooperativo entre (pequenas) unidades autônomas e independentes, cujas ações convergissem, harmoniosamente, para um mesmo e bem definido objetivo (no caso dos seres vivos o objetivo é preservar o indivíduo e a sua espécie). Assim também deveria acontecer com as 'células' do programa de combate à tuberculose: unidades autônomas e independentes, que trabalhassem harmoniosamente e obedientes a uma doutrina maior - que tenha por base uma estrutura holística, ética, racional e objetiva -, com a finalidade de eliminar a tuberculose das comunidades a que pertencem.VII Éessencial para o êxito do programa que se alcance a compreensão e a aceitação da 'doutrina' por todos os que dele participam, compreensão e aceitação estas que se fazem demonstrar pelos atos e ações praticadas pelos seus participantes, a todo o momento.

Nesse ponto é preciso entender que a mencionada 'pulverização' do programa em 'células' corresponderia a uma grande 'horizontalização' do mesmo. Entretanto - reconhecemos - é precisamente essa horizontalização o 'calcanhar de Aquiles' do modelo: parece ser (quase?) impossível alcançar com pessoas - particularmente com as pessoas de nossa sociedade - um funcionamento como os das células em um organismo. A experiência em Vila RosárioVIII tem mostrado que a nossa sociedade não sabe - ainda não sabe, esperamos... - conviver harmoniosamente em parcerias. Vaidades, incompreensões, falta de um espírito de cooperação - prevalece o espírito da vantagem - entre os 'poderes' inviabilizam, em alguma hora, as ações 'horizontais'. O 'maior' - isto é, o objetivo maior - é sempre prejudicado pelo 'menor' - causas imediatas, de menor importância. E por isso, só os programas verticalizados têm tido possibilidade de sobreviver: um poder central, superior, comandando todo o processo. Desse poder central deriva uma cadeia hierárquica de (pseudo) poderes, que nada resolvem sem o aval do poder superior (o que leva a que quaisquer decisões sejam sempre emanadas do poder central).

A proposta de 'pulverizar' as ações de combate à tuberculose encontra, portanto, sérios óbices na atual estrutura funcional social brasileira. Uma grande mudança na maneira das pessoas se comportarem em sociedade será necessária, com base na educação, na compreensão filosófica do mundo, na ética do convívio social e em conhecimentos afins para que se alcance o estágio de um 'organismo' social que funcione como funcionam os organismos dos seres vivos. O modelo de ' células' pode ser ótimo para os organismos 'naturais', deterministas, mas não funciona para os organismos sociais. O 'livre arbítrio' das pessoas permite-lhes que se desviem do que é certo e justo para o estado - o interesse coletivo - para fazer prevalecer a visão individualista, egoísta, de olhar para si e seus problemas, seu mundo particular. De um modo geral, falta-lhes a visão de estadistas.

Embora permaneça a convicção de que a tese que defende que a eliminação da tuberculose passe por uma descentralização radical do atendimento aos doentes, há, também, a convicção que esse modelo está 'verde' para a nossa sociedade. Há que se esperar por uma ' evolução' da maneira de ser e de pensar das nossas pessoas para que esse modelo possa dar frutos.

Qualquer programa que se destine a eliminar a tuberculose terá que se basear na 'busca ativa' e constante de casos

Nos anos de 2000 e 2001, anos de atuação do programa QTROP-TB com o auxílio financeiro do Ministério da Saúde, um número expressivo de doentes foi descoberto e conduzido ao tratamento pelas agentes comunitárias/assistente social do programa. Este número é estimado em cerca do dobro dos que procuraram espontaneamente o serviço de tuberculose do Hospital de Caxias, centro de atendimento dos doentes de tuberculose no município. Este fato é da maior relevância para estabelecer qualquer programa que se destine a eliminar/controlar a tuberculose em comunidades com baixo nível de educação: o número de pessoas portadoras da doença que não procurou espontaneamente o tratamento, foi maior do que o que procurou - espontaneamente - o serviço médico oficial. As razões para que isso tivesse acontecido são várias: ignorância - a mais fundamental dentre todas -, estigma da doença, falta de recursos para o transporte até a unidade central (que, no caso do município de Caxias, fica no centro da cidade de Duque de Caxias, do qual Vila Rosário dista cerca de 6 km). Há que se esperar que em outras localidades onde prevaleça igual nível de pobreza, que seja também alto o número de pessoas que não procuram espontaneamente o serviço médico oficial.

É bem conhecido que o 'fenômeno' do abandono do tratamento contribui de forma marcante para a persistência 'social' da tuberculose (a pessoa que não se curou da doença continua sendo um transmissor da mesma e a levar a bactéria infectante a adotar formas resistentes aos medicamentos tomados). Isto acontece com um número considerável de doentes (pode chegar a 25%), desde o primeiro mês de tratamento. As mesmas razões indicadas acima prevalecem para o abandono, acrescidas do fato que o doente após 2-3 semanas de tratamento sente uma melhoria sensível nas condições físicas (deixa de ter a 'fraqueza' que tanto caracteriza a doença). Ao mesmo tempo, sintomas adversos (náuseas etc.), provocados pela toxicidade dos medicamentos, afastam-no do tratamento. Ignorância certamente é o cerne da questão, a palavra-chave que explica e justifica todas as causas de porquê a doença se alastra e foge do controle social.

Há, entretanto, uma constatação adicional 'numérica' que Vila Rosário nos traz sobre a importância relativa entre o abandono e a não-procura do tratamento. A literatura fala sempre do abandono ao tratamento como uma das principais causas que mantém a doença nos níveis presentes. Esta assertiva é baseada nos doentes que procuram os ambulatórios em busca de tratamento. Entretanto, veja-se o que os resultados obtidos em Vila Rosário mostram: os doentes que vão ao ambulatório espontaneamente formam a parte menor do número de doentes da região. 20% de abandono (nesta região, por exemplo) refere-se a 20% daqueles que procuram tratamento, enquanto a maioria dos doentes nem procura tratamento - por qualquer das causas mencionadas. Fica bem claro que esta última é, na verdade, a grande categoria de doentes que necessita ser encontrada e tratada, por constituir o verdadeiro 'reservatório' da doença e que, se não for tratada, manterá a tuberculose em constante expansão. Ao se pensar em eliminar a doença, portanto, deve-se ter sempre em mente que o número de doentes que ignoram a doença pode ser até uma ordem de grandeza maior do que o número dos que abandonam o tratamento nos ambulatórios.

Tanto os que abandonam o tratamento quanto os que ignoram a doença e não procuram tratamento, só poderão ser 'resgatados' com a atuação das agentes comunitárias.IX Uma conclusão importante para a condução do programa de eliminação da tuberculose a que esse fato nos leva é, portanto, a da necessidade imperativa do trabalho dedicado e atencioso das agentes comunitárias aliado ao de uma assistente social - o grupo pode ser 'comandado' pela assistente social -, para se levar o empreendimento ao sucesso.

É importante que se diga nesse ponto da discussão que, por força do término do contrato com o Ministério da Saúde, a ação do programa QTROP-TB em Vila Rosário reduziu-se sensivelmente, e isso se deu tanto pela falta de recursos quanto pelo afastamento da irmã- assistente social que gerenciava o programa QTROPTB. Um outro fato, ainda, contribuiu para que se pensasse em uma reformulação do programa: muitas vezes, doentes de tuberculose do programa QTROP-TB eram atendidos no ambulatório de Vila Rosário, onde, em dias diferentes, eram atendidas crianças (serviço de pediatria) e mulheres (serviço de ginecologia e obstetrícia). Embora o atendimento aos tuberculosos fosse feito em dias diferentes - como frisado anteriormente -, causava um certo constrangimento a todos, a presença deles no ambulatório (estigma da doença?). Era importante que se buscasse uma forma alternativa de atuar.X

Terminado o auxílio financeiro do Ministério da Saúde, o programa só persistiu existindo - embora em escala muito menor - por conta de um auxílio da Fundação Ataulpho de Paiva - FAP, que garantiu a continuidade do pagamento de cinco agentes comunitárias, e do acoplamento do programa QTROP-TB com o de tratamento da tuberculose do Posto Médico municipal do Parque Fluminense, inaugurado faz pouco tempo. A conseqüência dessa diminuição na busca ativa de casos foi - no 'sentimento' das atuais agentes - o aumento do número de casos (na retomada do programa é necessário que seja feito um novo censo dos doentes para avaliar a justeza desse 'sentimento').

As pessoas envolvidas com a eliminação da tuberculose devem ser escolhidas com base em uma qualificação rigorosa, que se assente no espírito da cidadania e da ética

Vivemos uma época em que o que importa é o dinheiro (talvez tenha sido sempre assim...). Este é o maior - e parece que o único - objetivo das pessoas. Trabalhar com esse objetivo nas partes ricas da sociedade pode até dar certo. Contudo, quando se trata de trabalhar com a pobreza, com a miséria, ganhar dinheiro não pode ser o objetivo maior na mente das pessoas (ganhar dinheiro com a miséria?). É claro que o dinheiro é necessário. É claro que as pessoas engajadas em programas que visam atuar na pobreza têm que se alimentar, vestir-se, morar etc., e para isso precisam de dinheiro. Mas o dinheiro deve ser para cobrir essas necessidades - um pouco mais... - mas não deve ser a única razão de ocuparem a posição que estão ocupando no programa. Há de haver uma razão maior que as prenda ao objetivo.

É fundamental que as equipes envolvidas na eliminação da doença sejam capazes de agüentar os 'sobe-e- desce' dos financiamentos, as mudanças políticas, os modismos, a 'pressão psicológica' permanente com a doença e a miséria, as intrigas e desentendimentos internos e externos próprios das pessoas e que se mantenham obstinadamente perseguindo o objetivo.

Nesse sentido, há um outro ingrediente importante de se acrescentar à escolha das agentes: há que se reconhecer que existem agentes comunitárias e agentes comunitárias, assistentes sociais e assistentes sociais, ou seja, há aquelas pessoas que assumem a missão por opção e vocação, e o fazem com amor, dedicação, desprendimento, devoção mesmo, visando 'de coração' o objetivo de levar o doente à cura. E há as que aceitam a missão como um emprego, uma forma de ganhar a vida, sobreviver. Distância destas últimas... Serão apenas fontes de aborrecimento permanente (muitos direitos e poucos deveres... - poucos? pra quê tantos?). Só as do primeiro tipo conduzirão o programa ao sucesso. É difícil trabalhar com a pobreza, repito. A experiência de Vila Rosário bem mostra isso. O fato de que a assistente social que assumiu o programa era uma irmã da Igreja Católica, e de que todas as agentes eram também ligadas à Igreja Católica, parece indicar que uma formação espiritual, de amor e de doação ao próximo - ao contrário da ganância pelo dinheiro - seja uma qualidade fundamental para a escolha da agente.

Por tudo isso é que essa tese enfatiza a necessidade de que as pessoas envolvidas no programa - todas elas - devem estar imbuídas de um grau de cidadania/espiritualidade em que a causa pela qual estão trabalhando - a eliminação da tuberculose na região - seja mais importante do que o dinheiro que estão recebendo para executá-la. Será só com pessoas especiais, aquelas que na sua formação cultural/espiritual esteja presente o sentimento de 'doação' do seu trabalho a uma causa social maior e sem que a preocupação primeira seja com o dinheiro, que o programa poderá ter sucesso. Com isso estamos pedindo 'super-pessoas', é verdade. Mas só com super-pessoas é que haverá chance de sucesso. Essas pessoas existem. Não são muitas, também é verdade, mas as temos em Vila Rosário.

É importante e necessária a parceria entre o governo legal local e as organizações civis que promovem programas sociais abrangentes

A atuação do programa QTROP-TB em Vila Rosário contava - à época do auxílio financeiro concedido pelo Ministério da Saúde - com um médico e uma enfermeira contratados (além da supervisão feita pelos médicos ligados à Sociedade). Isso foi necessário porque na região de Vila Rosário não havia - na época - nenhuma unidade de saúde oficial local que estivesse atuando no controle da tuberculose. Esse pequeno 'corpo médico', não só tratava dos doentes mas, também, fazia a ponte com o serviço médico do município, necessária para resolver dificuldades burocráticas que surgiam (por exemplo, se o médico do QTROP-TB poderia ou não receitar os medicamentos e questões correlatas). Entretanto, a proposta da Sociedade QTROP sempre foi a de acoplar suas atividades com as do governo: acha a Sociedade que cabe a ela provocar as inovações - principalmente as mais radicais -, prová-las, e deixar para o governo pô-las em prática em ações contíguas e contínuas, e tão imediatas quanto possível. É o desejo da Sociedade ter suas atividades atreladas aos programas do governo tendo em vista, principalmente, que o programa QTROP-TB se vê como um grande laboratório no qual se desenvolve um modelo de intervenção (para o controle da tuberculose, no caso) e que esse modelo só se validará quando a experiência puder ser multiplicada e expandida para outras áreas. E essa multiplicação e expansão só se concretizarão em ação conjunta com o governo. Contudo, foram poucas as vezes no passado em que essa tão desejada colaboração se estabeleceu. Atualmente, o quadro parece mudar, uma vez que a região passou a contar com um posto de saúde (Parque Fluminense), e a parceria com a unidade de tratamento da tuberculose se aproxima de uma ação concreta e harmoniosa, o que faz a Sociedade QTROP galgar mais um degrau em seus objetivos.

Continuidade e memória são dois requisitos básicos para um programa voltado para a eliminação da tuberculose

Esta tese complementa uma anterior. Os mencionados ' sobe-e-desce' dos financiamentos, as mudanças políticas etc., costumam afetar sobremaneira os programas de longo prazo. Com isso, a memória do que foi feito se esvai e a cada novo ciclo 'financeiro' ou 'político' tudo começa 'de novo'. Não há evolução porque não fica a memória do conhecimento e da experiência adquiridos na experiência anterior. É preciso memória. É preciso constância. É preciso permanência dos princípios centrais da doutrina. Épreciso obstinação no cumprimento da missão para que, a longo prazo, as ações tomadas a cada passo do programa possam se somar em resultados concretos. E para que essa memória permaneça 'acesa' no programa, é importante que as equipes com ele envolvidas possam permanecer por longos períodos.

Entretanto - outro 'gargalo' do sistema... -, é preciso, também, não esquecer que as pessoas se cansam.XI Cansam-se de repetir, cansam-se de fazer uma mesma coisa, cansam-se até de manter um mesmo objetivo por um tempo muito longo. A idéia da mudança é uma constante no comportamento humano. É preciso, portanto, que a gestão de um programa de longo prazo conte com essa variável importante, e que estabeleça estratégias para não ser apanhado de surpresa com o afastamento de pessoas-chave. Por isso, é necessária a doutrina e regras - escritas!... - que definam como manter a memória do que é feito e que essa memória seja incluída, permanentemente, nos 'comandos' que definem a trajetória do programa, de forma que os 'novos' que venham a ele se associar possam manter uma linha coerente com o que vem sendo feito.

É preciso que sejam desenvolvidos medicamentos mais eficazes - capazes de reduzir o tempo de tratamento e serem menos tóxicos - para auxiliar na eliminação da tuberculose

O direcionamento que a Sociedade QTROP tomou em Vila Rosário, 'abrindo' suas atividades para o campo social além do que seu nome indicava que seriam seus objetivos - desenvolvimento de novos fármacos e 'rejuvenescimento' dos fármacos existentes com vistas a obter medicamentos mais eficazes -, foi resultado da própria missão do programa QTROP-TB, que se propunha promover ações que levassem ao controle e até a eliminação da tuberculose.

É importante lembrar que no período de existência da Sociedade, muitas reuniões tiveram lugar com as empresas fabricantes de farmoquímicos - sempre ao lado da Associação Brasileira da Indústria de Farmoquímicos - ABIQUIF - com o objetivo de produzir, no Brasil, os insumos (farmoquímicos e complementares) necessários aos medicamentos usados para o tratamento da tuberculose. Foram em vão todas essas tentativas, frustradas pela política governamental de compra de insumos sempre e apenas pelo menor preço: China e Índia sempre apresentam condições de preço menor (embora cerca de 20% dos produtos sejam rejeitados por não atenderem à qualidade exigida). Essa atitude do governo central, talvez levado por um desejo de fornecer mais medicamentos à população (menor custo significa mais produto para um mesmo orçamento) é, no entanto, lesiva à indústria brasileira de farmoquímicos e reduz a zero a possibilidade de desenvolvimento do setor, uma vez que só é possível desenvolver o que existe (se não há mercado no Brasil para os produtores nacionais de farmoquímicos para a tuberculose, que empresa investiria no desenvolvimento destes produtos?). Os farmoquímicos para a tuberculose são moléculas de fácil preparação, a partir de matérias primas disponíveis, que não estão mais protegidas por patente. Por que a produção nacional custa mais caro do que a que é feita do outro lado do mundo?

Contribui, também, para essa 'ausência' da indústria nacional no mercado de insumos para a tuberculose, além da política governamental de compra pelo menor preço, o fato dos farmoquímicos para a tuberculose terem um só comprador - o governo -, uma vez que estes medicamentos são fornecidos gratuitamente a todos os que dele necessitam, pelo e só pelo governo (medida acertada para conter o aparecimento de formas resistentes).

Entretanto, embora o tema fármaco esteja sempre presente e em primeiro plano nos objetivos da Sociedade, lançar-se no desenvolvimento de novos fármacos pelos mesmos caminhos como fazem os países desenvolvidos, é tarefa inócua presentemente no País, dado o nível de recursos disponibilizados pelos órgãos de financiamento no Brasil, se comparados com os que dispõem os outros países. Veja-se, por exemplo, a Global Alliance for TB Drug Development, uma organização não governamental internacional, que dispõe de um orçamento anual de cerca de US$22 milhões (valor de 2002 anunciado no seu 2002-2003 Annual Report) para o desenvolvimento de novas drogas para o combate à tuberculose. Esta organização - diz o relatório - trabalha em cooperação internacional no desenvolvimento de moléculas pioneiras de piridonas, quinolizinas, ascidideminas e macrolídeos de terceira geração, na otimização de quinolonas, análogos da isoniazida, nitroimidazopiranas e análogos do rifalazil. Em estado pré-clínico encontra-se uma nitroimidazopirana (PA-824) e um derivado pirrólico (LL-3858). Diz ainda o relatório que a moxifloxacina, uma quinolona desenvolvido pela empresa Bayer AG, já se encontra na fase de ensaios clínicos. Pode-se notar, portanto que há um grande esforço no desenvolvimento de novas drogas para a tuberculose, em nível internacional.

Tendo em vista todas estas limitações, optamos, em um primeiro momento, por uma via que nos desse uma perspectiva de êxito, embora de crédito menor como método 'moderno' de desenvolvimento de fármacos: é a proposta de uso da biodiversidade das plantas brasileiras através de um método que se vale de farmacóforos para chegar a plantas que possam ser efetivas como medicamento para o combate à tuberculose (note-se que o método usado, em desenvolvimento no Instituto de Química- UFRJ, é de concepção completamente diferente do que postula o método do large scale screening). E nesse caso serão incluídas não apenas plantas que possam ser bactericidas ou bacteriostáticas para o M.tb. mas, também, as que possam ser utilizadas sinergisticamente com os medicamentos em uso, aumentando-lhes a 'potência' com a conseqüente diminuição de toxicidade (efeitos colaterais) muito comuns nesses medicamentos. Coadjuvantes para o tratamento - como plantas que atuem melhorando o sistema de defesa do organismo - fazem parte do 'coquetel' a ser usado como remédio.

Esta linha de trabalho rompe radicalmente com a linha de pensamento em voga para o desenvolvimento de fármacos:XII cria uma linha de produtos para uso popular, que possam ser difundidos em larga escala (as pessoas podem ter as plantas no seu próprio quintal, jardim ou mesmo vasos). O conhecimento de um conjunto de plantas que leve o doente de tuberculose à cura, no menor tempo possível, sem - ou talvez com um mínimo - de efeitos colaterais, valendo-se da cultura milenar dos chás, infusões e garrafadasXIII é o objetivo desse programa.

Lembrar que essa linha de desenvolvimento de novos medicamentos para o combate à tuberculose segue fielmente o que foi estabelecido no Seminário QTROP de Química, que teve lugar no Rio de Janeiro nos dias 12 a 14 de junho de 1995, que estabelecia como objetivos obter novos fármacos que:

· Reduzissem o tempo de tratamento (para um mês, por exemplo).

· Reduzissem o número de doses (uma por mês, ou até, talvez, na sua forma limite, a uma dose).

· Apresentassem menor toxicidade. Os fármacos em uso atualmente apresentam razoável nível de toxicidade, que podem levar a efeitos colaterais indesejáveis durante o tratamento.

Esses objetivos visavam interferir diretamente na alta taxa de abandono dos doentes ao tratamento, uma das principais causas da falta de controle para a eliminação da doença. Ao mesmo tempo, o abandono ao tratamento após tê-lo iniciado, poderia contribuir para o aparecimento de formas resistentes aos farmoquímicos usados.

Se houver êxito na iniciativa, as plantas poderão ser disponibilizadas in natura ou na forma de extratos ou garrafadas, e, ainda como bonus, não se terão royalties envolvidos com patentes, condição bastante desejável para conter uma doença largamente espalhada por uma população intimamente ligada à pobreza.

É estratégico para a sociedade brasileira que o País disponha de uma produção interna e garantida de fármacos essenciais

Esta tese é uma conseqüência do que foi dito na anterior. O Brasil tem hoje condições científicas, técnicas, financeiras e comerciais de produzir no País os fármacos essenciais à população. Entretanto, veja-se o que acontece, por exemplo, com os fármacos utilizados para o tratamento da tuberculose (isoniazida, rifampicina, etambutol e pirazinamida): são todos totalmente importados! O que aconteceria se os países produtores desses farmoquímicos, por uma causa qualquer, deixassem de exportar esses produtos para o Brasil? Como ficariam os 80 mil novos doentes, diagnosticados a cada ano no País? Começar a produção no País? Seria muito difícil iniciar a produção desses - e dos outros fármacos essenciais às outras doenças - a partir 'do nada', em curtíssimo prazo.

O argumento do governo para a compra externa desses produtos é que 'são mais baratos'. Oferecem menor preço mas oferecem, também, má qualidade (conforme já foi mencionado acima, até 20% dos produtos costumam ser rejeitados). E são mais baratos porque contam com subsídios que recebem nos países de origem. Reconhecemos que o governo brasileiro não deve subsidiar a indústria nacional para produzir esses farmoquímicos - o que poderia ser até uma atitude (de retaliação) esperada. Contudo, não pode, também, abrir mão de uma garantia de 'saber' produzí-los, no País, em curto prazo, em caso de necessidade. O que fazer, então?

A solução que propõe esta tese é o governo comprar da indústria nacional uma parcela dos insumos consumidos anualmente nos seus programas. O restante seria comprado seguindo-se os trâmites legais hoje adotados. Com isto, ter-se-ia estabelecida uma 'Garantia Estratégica de Tecnologia' necessária para a produção dos farmoquímicos essenciais no Brasil. Essa quota - que pode ser de 10%, 20% ou outra qualquer - seria comprada pelo governo através de concorrência pública entre produtores nacionais, que venderiam a produção ao governo a um preço compatível com o custo nacional da produção (que, no início do programa, seria certamente maior do que o valor do produto importado).

Os insumos de fabricação nacional teriam que necessariamente ser produzidos conforme apregoam as ' Boas Práticas de Fabricaçãoí (no inglês Good Manufacturing Practice, GMP)XIV e serem submetidos aos mais exigentes critérios de qualidade. Talvez até, com esse estímulo à produção nacional, e com o conhecimento científico e tecnológico que o País já possui, a indústria nacional possa assumir - em prazo médio - a venda integral dos referidos insumos ao governo, obedecido o critério de menor preço, acrescido, agora, do fato desses insumos estarem atendendo 'aos mais exigentes critérios de qualidade'.

A ação política de estimular a produção desses insumos no País através do mecanismo de compra de quotas, seria da maior relevância para restaurar esse parque industrial estratégico. Certamente estimularia o desenvolvimento do setor, que se iniciaria com objetivos mais simples de serem alcançados a curto prazo como, por exemplo, a otimização das rotas de síntese presentemente usadas na preparação dos fármacos. Seguir- se-ia o desenvolvimento de novas rotas, em particular daquelas que dessem ênfase ao uso de matérias primas brasileiras. Mantido o sistema de compra de quotas pelo governo seria possível pensar em modificações das moléculas conhecidas e até - em mais longo prazo - na obtenção de moléculas novas. Enfim, abriria o caminho para o desenvolvimento de fármacos no País, matéria das mais sensíveis no plano estratégico de qualquer nação.XV

Todavia, a euforia que essas idéias podem trazer deve ser devidamente 'cruzada' com o que foi dito em teses anteriores; por exemplo, que 'lançar-se no desenvolvimento de novos fármacos pelos mesmos caminhos como fazem os países desenvolvidos, é tarefa inócua presentemente no País, dado o nível de recursos disponibilizados pelos órgãos de financiamento no Brasil, se comparados com os que dispõem os outros países'. Outra tese diz que 'um fator que leva à ineficiência dos 'grandes programas' é a própria máquina administrativa que consome a maior parte dos recursos para administrá-lo, mas aponta o que talvez seja a maior causa de fracasso desses programas: 'Há que se reconhecer que vultosas somas estimulam e facilitam a má aplicação do dinheiro' e, pior, 'estimulam e facilitam a corrupção - a mais triste constatação de nossa realidade'. Sem probidade e sem escrúpulo no trato da coisa pública, e sem uma consciência ética que deve estar presente em todas as pessoas envolvidas em um 'grande programa' que vise a sociedade e particularmente os grupos menos favorecidos dessa sociedade, dificilmente terão solução os problemas que envolvem a pobreza e a miséria.

A eliminação da tuberculose requer que os doentes tenham, permanentemente, uma nutrição correta e adequada, estendida, igualmente, a toda comunidade

Essa é uma tese óbvia, já cantada em prosa e verso por todos que se preocupam com o problema das doençaas em geral. Entretanto, a realidade de Vila Rosário nos faz ser mais enfáticos com relação ao problema da nutrição, porque, muito mais do que desnutridos, muitos da comunidade de Vila Rosário têm fome. A fome, um dos elos da cadeia da miséria, é uma das causas mais diretamente vinculadas à tuberculose prevalente em Vila Rosário. Com a fome vem a desnutrição, que leva à baixa nas defesas naturais do organismo e ao conseqüente favorecimento ao aparecimento das doenças infecciosas. E a tuberculose está entre elas. A eliminação da tuberculose passa, necessariamente - ao lado dos medicamentos - por um cuidado especial com a alimentação nutritiva, de modo a manter ativas, e no seu melhor, as defesas naturais do organismo.

Dois princípios serão mostrados na forma da Sociedade QTROP atuar nesse elo:

· alimento só será dado (doado) àqueles que não têm como consegui-lo com trabalho. A Sociedade não se coloca como uma entidade assistencialista, fornecedora de alimento. Seu objetivo é o de formar o cidadão, e cidadão se forma com trabalho, não com esmolas. Entretanto, há que se reconhecer que muitas vezes a fome causa um estado de 'inconsciência' nas pessoas que nem mais sabem o que estão fazendo - casos temos em Vila Rosário de famílias que passam até três dias sem comer e quando comem são alimentos doados, muitas vezes de baixo valor nutritivo. A esses, é necessário alimentar (o trabalho das agentes comunitárias e da assistente social em Vila Rosário tem sido, muitas vezes, o de suprir o alimento para os tuberculosos absolutamente necessitados, até mesmo para que tivessem condições de ir ao centro de saíde para tomar o remédio. O livro Vila Rosário3 relata vários casos desse tipo de atendimento).

Foi dito que a alimentação das pessoas deveria estar relacionada a um trabalho que pudesse lhes valer um emprego. Mas que trabalho seria esse, se trabalho como fonte de renda é praticamente inexistente em Vila Rosário? Surge daí, espontaneamente, um terceiro elo da cadeia da miséria: a inexistência de emprego, de trabalho como fonte de renda. Diz a FAO (Organização para a Alimentação e Agricultura - órgão da Organização das Nações Unidas - ONU) que não falta alimento no mundo; o que falta é dinheiro para comprar alimento. E o dinheiro vem com o trabalho, através do emprego. Em Vila Rosário, a situação não é diferente. Tivessem seus habitantes dinheiro para comprar alimento e poderiam comprá-los facilmente em qualquer supermercado, onde os alimentos de toda a sorte abundam. É necessário, portanto, acoplar à atividade de alimentação (combate à fome) a de criar renda através de trabalho.

· a comunidade deve se alimentar corretamente (isto é, a alimentação deve ser nutritivamente correta). Resolveu a Sociedade QTROP começar sua intervenção na 'fome' por um levantamento do estado nutricional dos tuberculosos. Por que essa estratégia? Porque sabendo das deficiências e exigências nutricionais dos tuberculosos, seria possível estabelecer um ciclo local de produção de alimentos que, ao mesmo tempo, fossem de importância para equilibrar as defesas orgânicas dos doentes (alimentos nutracêuticos) e a sua produção sistemática local poderia lhes dar trabalho (e a outros membros da comunidade). Um estudo amplo do estado nutricional da população de Vila Rosário neste sentido está sendo conduzido com a participação do Instituto de Nutrição da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

É necessário criar no local de atuação do programa, atividades de produção capazes de proporcionar renda aos recém-curados da tuberculose

É bem claro para a Sociedade QTROP que de nada adiantará, para se construir uma sociedade de cidadãos que 'andem de pé, de coluna vertebral erguida', lhes dar alimento se não lhes for dado trabalho - será só do trabalho que deverá provir a renda para adquirir o alimento. Pouco também adiantará dar trabalho (emprego) se, junto com o trabalho não vierem a educação para o trabalho e a cultura da educação ética.

Para tanto, um grupo de ações para a cidadania foi iniciado pela Sociedade QTROP. Encontrar formas de trabalho (imediato) para uma sociedade pouco instruída é uma tarefa difícil de ser cumprida. Como primeira opção, procurou-se pensar em cooperativas e, para início, uma cooperativa de produtores de fitoterápicos e nutracêuticos. São produtos agrícolas, de grande tradição em qualquer sociedade - por mais simples que seja -, e que poderiam 'acender' o interesse das pessoas, tanto pelo conhecimento que têm ou que ouviram falar 'em casa' das 'plantas de remédio', quanto pelo uso da terra, que sempre se associou à cultura das pessoas. A produção de fitoterápicos (chás, pomadas, xaropes, garrafadas etc.) e de nutracêuticos (hortas caseiras, coletivas etc.), seria uma forma de acoplar a necessidade desses produtos à sua produção. Desse trabalho deveria provir a renda - pela compra dos produtos pelo governo, ONGs etc. - para a população. Dietas bem estabelecidas com base em plantas produzidas localmente, na abundância necessária, poderiam trazer, em um primeiro momento, o conhecimento de como a sociedade se comportaria neste tipo de empreendimento.

Uma cooperativa - a Cooperativa QTROP de Produtos Agrícolas - foi formada: teve seu estatuto registrado, uma diretoria foi eleita e implantada, mudas de plantas e implementos essenciais - ferramentas, regadores etc. - foram comprados pela Sociedade QTROP para um conjunto de 20 titulares - número mínimo imposto pela lei que regula as cooperativas. Foram ainda contratados um agrônomo e um técnico em agronomia, recomendados pelo representante local da EMATER, para dar o suporte técnico necessário aos 'novos agricultores'. Uma estrutura inicial simples porém lógica, dava por certo que o instituto da cooperativa caminharia por trilha correta. O que aconteceu? Nada. Interesses e dissidências internas entre os membros, falta do atendimento proposto aos 'novos' agricultores pelos técnicos contratados, associada à falta de conhecimento no trato da terra pelos cooperados, levaram a que o funcionamento da cooperativa se estagnasse. Pouco aconteceu no início (plantação das mudas). Contudo, sem o devido cuidado no seu trato, no interesse em conhecer sobre sua colheita e métodos de industrialização e comercialização etc., enfim, um sem número de fatores que envolviam conhecimento - educação - e comportamento social - cultura do trabalho - levaram a que o empreendimento interrompesse suas atividades. Presentemente, continua em compasso de espera, aguardando novas lideranças de parte da Sociedade para retomar as atividades. Pensa-se que poderá ser legal e administrativamente mais ágil substituir a estrutura de uma cooperativa pela de uma associação.

O ensinamento que a tentativa de implantação da cooperativa de fitoterápicos e nutracêuticos trouxe à Sociedade QTROP, é que atividades desse porte requerem um acompanhamento direto por parte daqueles que detêm o conhecimento; que esse conhecimento seja parte de um programa de formação de líderes locais a quem esse conhecimento será passado; que esses líderes tenham um pagamento de subsistência que lhes permita uma dedicação em tempo integral, até que a produção local possa suportar seus gastos e necessidades; que toda uma estrutura de educação nas áreas técnica, de produção e de comercialização das plantas e mesmo de cultura geral lhes seja ministrada, de forma ampla para toda a comunidade (cursos, palestras, filmes/vídeos etc.). Sem uma preparação que atue fortemente na educação e na cultura não haverá como a sociedade saltar do patamar em que se encontra.

Pensa-se também associar ao trabalho com as plantas uma atividade artesanal que propicie o seu uso (das plantas) e possa, dessa forma, ampliar as possibilidades de trabalho e renda para a comunidade. Uma atividade que se tem em vista é a de instituir um artesanato à base de vidro, que se estenderia desde uma cooperativa (ou associação) de catadores de vidro - um nível mais simples de ocupação -, a uma fabricação artesanal de peças de vidro artísticas (que poderia se tornar uma 'especialidade' da região), tudo isso estabelecido dentro de uma estrutura moderna de comercialização e suportado por uma forte rede de educação. Plantas medicinais e nutracêuticas, juntamente com os objetos para o seu uso - como xícaras, potes, bandejas, mesas de mosaicos com motivos próprios etc. etc. etc. - poderiam levar a região a criar um 'pólo' de desenvolvimento social, o que daria o necessário emprego à população (parte), que a partir da renda auferida teria como comprar o seu alimento e, devidamente alimentado poderia se educar, e, alimentado e educado, levaria a região a se livrar da tuberculose (e das outras doenças que, como a tuberculose, são retratos da miséria).

É bom que se pense assim, com esperança. Mas é importante não perder de vista que num país onde o direito de ir e vir é dado - corretamente - igualmente a todos os seus habitantes, nunca se terão 'ilhas' de prosperidade por muito tempo, pois o crescimento não será mais do que um prenúncio da decadência: se um lugar é próspero e produz riqueza é porque sua população trabalha e produz mais do que são as suas necessidades. Se a região enriquece, começa a atrair a atenção e a migração de populações de regiões menos favorecidas. Essa atração se dá tanto para aqueles que vão lhe agregar mais riqueza, como para aqueles que, sem a educação à altura do que nela se faz, se limita ao trabalho periférico. A tendência é que essa população 'agregada' cresça, e cresça, e cresça... ao ponto da riqueza que a região produz já não ser mais suficiente para dar conforto a todos que nela vivem. Segue-se, então, uma segregação da riqueza e dos grupos sociais, desenvolve-se um centro 'rico' e uma periferia 'pobre', que cresce, cresce... Com o passar dos anos, e por conta do 'desequilíbrio' social que se implanta, toda a estrutura de riqueza e de prosperidade da região começa a ruir, e vem a decadência. É assim a história das cidades. Sempre foi assim e por que deixaria de ser agora? Nascer, crescer e morrer é bem uma lei para as coisas que ocorrem na natureza. E como parte da natureza, as cidades também nascem, crescem e, enquanto não morrem, agonizam...

É preciso manter um nível de prosperidade - mais precisamente, de qualidade de vida - que se sustente e que possa se expandir para as regiões vizinhas, como uma grande onda capaz de varrer todo o país. Em caso contrário, em alguma hora a decadência virá.

O programa QTROP-TB para a eliminação da tuberculose deverá acrescentar às suas atividades em andamento, duas novas: O Jardim das Curas e o atendimento psicológico aos recém-curados

O modelo Vila Rosário para a eliminação da tuberculose tem algumas novas propostas objetivas para serem implementadas. Duas delas, baseadas na experiência vivida naquela localidade, constituem esta tese:

· O Jardim das Curas

O Jardim das Curas é uma concepção do Programa QTROP-TB que procura eliminar alguns dos pontos críticos observados em Vila Rosário com o tratamento da tuberculose. Uma visita que se faça aos postos de saúde ou hospitais de Duque de Caxias que tratam tuberculosos, mostra fatos de difícil aceitação para um cidadão: doentes de tuberculose, em qualquer fase da doençaa, convivem, promiscuamente, em corredores estreitos, com pessoas que vão ali se consultar sobre quaisquer outras doenças. Esse contato inclui crianças, mesmo as de colo, que ali vão para tomar vacinas etc. O médico atende o paciente de tuberculose em salas quase fechadas, muito pequenas, sem máscaras apropriadas, portanto sem mínimas condições de (bio)segurança. Tivemos uma situação semelhante - embora não tão severa - no ambulatório de Vila Rosário, como foi mencionado anteriormente.

Um dos melhores 'anti-sépticos' para o M. tb. é a radiação ultravioleta do sol. Portanto, a consulta ao ar livre, em um ambiente ensolarado (o sol varrendo toda a área) e ventilado, já será, por si só, um ambiente favorável ao atendimento do tuberculoso, como também o será para os profissionais de saúde (médico, enfermeira ou qualquer outro atendente) ou mesmo para conversas entre doentes, ex-doentes, doentes-ex-doentes, como forma auxiliar do tratamento. Para os dias de chuva há que haver algum tipo de proteção - toldos retráteis, por exemplo -, mas sempre ao ar livre. Jamais os atendimentos ou encontros deverão se realizar em ambientes confinados.

E por que esse ambiente aberto, ao ar livre, não ser um belo jardim? Pequenas mesas e cadeiras bonitas - podem ser de pedra para facilitar uma lavagem e desinfecção - colocarão paciente e médico frente a frente em condições mais seguras - ambiente altamente arejado e banhado pelo sol - criando no doente um estímulo para o tratamento, e dando-lhe, enfim, vontade de viver.

A concepção dos Jardins das Curas, portanto, nada mais é do que promover o tratamento dos doentes de tuberculose em um jardim, altamente ensolarado, de modo a criar um ambiente agradável e bonito, com plantas de várias espécies, principalmente aquelas de reconhecido poder anti-séptico (para ajudar a 'purificar' o ambiente e, para os que acreditam em 'aromaterapia', 'cromoterapia' etc., acrescentar 'ingredientes' que possam criar no doente - e por que não dizer, nos médicos e atendentes - uma sensação de bem estar, um estímulo ao trabalho para atingir a cura, uma expectativa de que a vitória sobre a doença é possível, etc.).

O jardim deve ser construído e tratado por ex-doentes de tuberculose, que representarão a prova 'viva' e o exemplo do efeito do tratamento. Esse jardim deverá ter, ainda, uma pequena concha acústica, também ao ar livre, para atividades com os ex-doentes, visando a sua recuperação psicológica pós-doença.

· O acompanhamento psicológico dos doentes e dos recém-curados de tuberculose.

Este é um assunto de máxima importância para Vila Rosário. A falta de perspectiva do ex-doente de tuberculose, sem trabalho e conseqüentemente sem condições de se alimentar, faz com que retorne a hábitos antigos - mais comumente o alcoolismo - e logo vem a recaída. O número de retratamentos é grande em Vila Rosário: há casos de pessoas que se submeteram ao tratamento por cinco vezes. Na verdade, a pessoa se sente 'melhor' doente - porque recebe tratamento e as agentes ainda se lhe acrescenta atenção e afeto - do que sã - porque é abandonada às suas próprias e inexistentes forças. Um programa de acompanhamento pós-doença é, portanto, fundamental se o objetivo for o de eliminar a doença. Esse programa passa por palestras, discussões, encontros - muitos deles poderão ser feitos nas conchas acústicas dos Jardins das Curas - e trabalho.

É absolutamente fundamental - conforme já foi discutido anteriormente - criar empregos, dar condições de trabalho a essas pessoas, resgatar-lhes a condição de cidadãos. O que muito se observa em Vila Rosário é que os doentes, principalmente os mais velhos, nem mais se consideram cidadãos. São meros párias da sociedade. E restituir-lhes este sentimento de cidadania deve ser parte importante do programa. E isso poderá acontecer se lhes for dado trabalho; os recém-ex-doentes têm grande dificuldade de se empregar pelo estigma da doença. É preciso, pois, que se lhes seja dada a oportunidade de um 'primeiro trabalho' - pós-doença - para que possam, passada a fase inicial pós-cura, se lançar em empreendimentos junto à sociedade maior, que então não mais os discriminará

Tudo o que foi até aqui dito, tem o objetivo de registrar o que ficou bem claro para a Sociedade QTROP com a experiência de Vila Rosário: que nada adiantará para se eliminar ou mesmo controlar a tuberculose em uma sociedade se não houver uma atuação holística na busca ativa para a descoberta de casos, no tratamento em toda a sua amplitude - atenção médica, medicamentos mais eficazes e menos tóxicos, acompanhamento psicológico dos doentes e dos recém-pós-doentes - na alimentação correta da comunidade, na geração de trabalho para auferir renda, na educação para o trabalho, e na cultura, aquela que define o trabalho como um direito e um dever social e que tenha nos seus cidadãos os arautos da ética como diretriz para a convivência social.

 

Referências bibliográficas

1. World Health Organization. Global Tuberculosis Control. WHO Report 2003. Geneva: World Health Organization; 2003. WHO/ CDS/TB/2003.151-152.

2. Gerhardt G, Teixeira GM, Diniz LS. O Controle da tuberculose em Área do Distrito de Campos Elíseos de Duque de Caxias/ RJ. Bol Pneumol Sanit 2002; 10 (2):13-20.

3. Costa Neto C. Vila Rosário. Rio de Janeiro: Cálamo; 2002.

4. Costa Neto C. Pensamentos Variados. Rio de Janeiro: Em publicação; 2003.

 

 

Artigo recebido em 08/12/2003
e aprovado em 19/12/2003

 

 

I. Sociedade QTROP de Química Fina para o Combate a Doenças Tropicais - uma organização não governamental, sem fins lucrativos, sediada no Rio de Janeiro
II. No Brasil, o número de casos notificados e as respectivas taxas por 100.000 hab. para os anos de 1998 a 2001, foram, respectivamente: 95.009 (57), 78.870 (47), 77.899 (46) e 74.466 (43) 1
III. VILA ROSÁRIO é o nome de um bairro situado próximo à confluência descrita. Este nome foi usado pela Sociedade QTROP para designar uma área de atuação maior do que o bairro de Vila Rosário (uma 'grande' VILA ROSÁRIO, poder-se-ia dizer), de aproximadamente 30 km2 e 55 mil habitantes. Uma descrição completa dessa região pode ser encontrada no Capítulo 7 do livro Vila Rosário2
IV. E não é assim toda a cidade do Rio de Janeiro?
V. Uma descrição da tuberculose como um elo da cadeia da miséria pode ser encontrada no capítulo 8 do livro Vila Rosário.2
VI. As estatísticas mostram que no chamado 'primeiro mundo', altamente industrializado, a tuberculose diminui progressivamente, enquanto que, em termos mundiais, a incidência de tuberculose aumentou de 0,4% ao ano. Os grandes aumentos ocorrem em países da África com alta prevalência de HIV e nos da antiga União Soviética. As estatísticas oficiais do Brasil mostram que a taxa de incidência entre 1998 e 2001 sofreu uma redução de 24,5%
VII. Este modelo pode ser compreendido, também, como uma 'federação' de unidades autônomas e independentes mas subordinadas a uma 'constituição', uma lei maior que abranja, igualmente, todas elas
VIII. A experiência a que se refere essa nota é o que se passou com o programa de diagnóstico da tuberculose que contava com um aparelho de Raios-X de última geração, adquirido pela Sociedade QTROP através de um auxílio concedido pela FINEP-MCT. Uma descrição detalhada do caso pode ser encontrada no livro Vila Rosário,2 p.289
IX. É interessante citar aqui que todos os agentes comunitários, bem como o assistente social do programa QTROP-TB de Vila Rosário, eram mulheres. Fazendo justiça aos fatos, caberia falar, daqui para a diante, apenas de 'agentes comunitárias' e 'da assistente social'
X. O 'Jardim das Curas' é uma proposta do Programa QTROP-TB para a solução deste problema, a ser discutida mais adiante
XI. Comentários sobre esse assunto podem ser encontrados em Pensamentos Variados 4
XII. É claro que muitas das etapas usadas hoje em dia para a utilização de fármacos - por exemplo, os ensaios in vitro, biológicos e clínicos - serão também necessariamente utilizadas para validar o uso das 'preparações'
XIII. Há que se acrescentar - não mais que em uma nota de rodapé porque essa idéia pode ser tomada como 'politicamente incorreta' - que os extratos e garrafadas são obtidos por maceração das plantas com álcool etílico. Por serem os doentes de tuberculose muitas vezes alcoólatras - essa é, aliás, uma das causas para o 'enfraquecimentoí das pessoas que leva à tuberculose - , esses extratos alcoólicos - de muito baixo teor alcoólico, diga-se de passagem - podem se tornar um atrativo adicional para os doentes tomarem a medicação
XIV. Vale mencionar aqui o absurdo a que se chegou presentemente - ano de 2004 - no Brasil por falta de uma política adequada e estratégica na área de farmoquímicos, voltada para as necessidades sociais: há empresas brasileiras exportando farmoquímicos (para a Europa, principalmente), produzidos sob as regras das Boas Práticas de Fabricação (GMP), que não conseguem vender o mesmo produto para o mercado interno porque ao usarem altos padrões de qualidade não conseguem ser competitivos em preço com os produtos importados (que não atendem, obviamente, a esses padrões)
XV. O País já teve uma experiência de estímulo à produção interna de fármacos que lembra um pouco a proposta desta tese. Foi com a Central de Medicamentos do Ministério da Saúde - CEME, que foi extinta por se constituir em um dos grandes antros de corrupção do governo central