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Boletim de Pneumologia Sanitária

versão impressa ISSN 0103-460X

Bol. Pneumol. Sanit. v.12 n.1 Rio de Janeiro abr. 2004

 

CRÔNICA

 

A tuberculose, o suicídio e a doutora Petitflor

 

 

Fernando Augusto Fiuza de Melo

Diretor do Instituto Clemente Ferreira - Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo - Doutor em Medicina pela EPM-UNIFESP
e-mail: fernandofiuza@terra.com.br

 

 

Percebemos que estamos maduros (aqui sem nenhuma conotação com senilidade ou envelhecimento) quando viramos avós, encanecemos os cabelos, atendemos o filho com a mesma idade que consultamos a mãe pela primeira vez, somos chamados de tio por aquela jovem interessante, nos congressos ficamos em grupo admirando a beleza das novas residentes ou quando o diagnóstico da doença que mais curtimos (no meu caso a tuberculose) acaba sendo concluído mais pelo cheiro do doente e menos pelos recursos complementares.

Esta reflexão inicial vem à guisa de uma questão levantada por uma colega fantástica e por quem tenho o maior respeito e admiração - a dra. Petitflor, evidentemente um pseudônimo, que acrescenta mais uma variável de amadurecimento, dentre as quais enumero acima.

Petitflor é tão quanto grande quanto pequena. Pequena na estatura, grande pela maneira como exerce a clínica, pela seriedade investiga a doença, como diagnostica e trata. Grande ainda mais, pelo respeito como aborda o doente, a ele dedicando um sentimento que só os grandes clínicos conseguem dedicar. Tal grandeza foi por mim testemunhada nas inúmeras vezes que a acompanhei atendendo seus pacientes. Durante a consulta valoriza o doente, moderando o seu padecimento. Era rigorosa na propedêutica. Discutia comigo a doença e suas peculiaridades apenas depois que o mesmo se retirava da sala. Com ela vivenciei o humano da relação médico-paciente.

Trocamos sempre muitas mensagens, via internet. Dúvidas, conceitos e, principalmente, discutindo nossos casos complicados. Numa destas, relatou-me o caso de um jovem de 17 anos, portador de uma tuberculose pulmonar com sérios problemas terapêuticos. Era mais um crônico que um multirresistente, com a doença e suas mazelas se arrastando por anos, sempre com sensibilidade presente às drogas anti-tuberculosas usuais. Por mais que colocasse seu conhecimento e sua experiência, que não são poucos, não conseguia curar o mesmo. De minha parte, tentei orientá-la com alternativas que apliquei no trato de casos similares, algo mais empírico do que resultado de evidências, pois na clínica, nos casos excepcionais e difíceis, predomina mais a experiência pessoal do que a evidência significativa.

Não sei o quanto Petitflor dedicou e lutou por um resultado favorável ou pelo menos para minorar o sofrimento do jovem. Sendo quem é, com certeza deu tudo de si e quanto deve ter sido o tudo dado.

Pois bem, dia destes, recebo uma mensagem de Petitflor me comunicando que iria abandonar a lide tisiológica. Era por demais frustante e pesarosa, escreveu ela. Seu jovem paciente havia se suicidado, cansado de esperar por uma almejada cura não conseguida.

Ao ler sua mensagem, passou pelo meu pensar, vários dos pacientes que acompanhei e também não consegui a cura de sua consupção. Meditei sobre a atenção ao paciente tuberculoso que me passaram antigos tisiologistas nos tempos pré-quimioterapia, onde a morte era a conclusão natural para mais da metade dos doentes. Imaginei também, a felicidade de viver os tempos onde a terapia anti-TB, reduziu drasticamente o óbito, por pior que ela fosse. A oportunidade de usar o esquema RHZ, com eficácia acima de 95% e alta efetividade, quando se consegue seduzir o paciente para a adesão ao prolongado tratamento. Para maioria dos pacientes somos magníficos, por curá-los. Mas, como Petitflor, trabalhando em referência, acabamos por acompanhar casos complicados e de longo curso de adoecimento. A longa duração resulta numa também crônica ligação efetiva e afetiva com o doente. Ele tem um nome, uma família, estórias, sentimentos diversos, alegrias de convívio e temores pelo porvir, além de seu sofrimento.

Com este imaginar, sentei diante da tela do computador e foi isso o que pude escrever:

Minha cara Petitflor:

Suicídios em tuberculose sempre foram muito mais freqüentes que na população geral. Antes da quimioterapia, relacionavam-se estados depressivos à emergência da doença. Na época romântica, na verdade quando a tuberculose alcançou os mais abonados, frustações amorosas, crises econômicas, abandono familiar, incapacidade de produção intelectual e temor pela morte certa, entre outros, constituíam fatores que favoreciam o aparecimento ou ao agravamento da doença. Hemoptises emocionais ficaram famosas na literatura e sempre presentes nos relatos de antigos tisiologistas. Claro que a fome e a miséria sempre foram as principais causas do adoecer. Infelizmente, como diz Rosemberg, para a pobreza não há lirismo, somente o vivenciar...

Atualmente, identificam-se correlações entre estados depressivos e queda da imunidade. O teste tuberculínico, por exemplo, torna-se negativo nesses estados, fato já relatado em alguns trabalhos publicados sobre esse tema. Com a quimioterapia, algumas drogas exacerbam estados depressivos ou psicoses latentes, como é o caso da isoniazida e principalmente da etionamida.

No tempo dos sanatórios era comum o suicídio, daí a presença de psiquiatras, psicológos e terapeutas ocupacionais na equipe sanatorial.

Eu mesmo, cara Petit, quando diretor do Hospital Mandaqui, presenciei seis suicídios, uma média de quase um por ano, considerando que passei pouco mais de sete anos no cargo, além de alguns outros em pacientes ambulatoriais, geralmente pacientes portadores de formas crônicas, multirresistentes ou graves.

Assim, sua experiência com um caso de suicídio, à parte a sensação de perda inusitada e drástica de um paciente, habilita-a como mais uma tisiologista experimentada e do primeiro escalão do país.

Entender o porque do fato, as influências de fatores psico-emocionais relacionados à cronicidade ou gravidade da doença, as interferências medicamentosas, inclusive das alterações neuro-psiquiátricas das novas drogas usadas em crônicos, pode ser um mote importante para espantar a insegurança e o desânimo. A adversidade é madrasta, mas também mãe ardorosa do conhecimento.

Seja bem-vinda, minha caríssima Petitflor, ao Grupo dos Experimentados Tisologistas Modernos. Não desista. Persista.

Não sei se consegui influenciá-la... mas, continuo revendo com Petitflor dúvidas, conceitos e, principalmente, discutindo novos casos complicados.