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Informe Epidemiológico do Sus

versão impressa ISSN 0104-1673

Inf. Epidemiol. Sus v.6 n.2 Brasília jun. 1997

http://dx.doi.org/10.5123/S0104-16731997000200004 

Epidemia de Febre Tifóide em Laranja da Terra/Espírito Santo: relato preliminar

 

 

Aderbal Henry Strugo ArrudaI; Tânia Maria de AraújoII

IMédico, com especialização em Saúde Pública, Epidemiologia e Planejamento, do Centro Nacional de Epidemiologia (CENEPI), Fundação Nacional de Saúde (FNS), Ministério da Saúde
IIAssistente Social, com especialização em Saúde Pública, do Núcleo de Controle de Doenças de Veiculação Hídrica, Superintendência de Epidemiologia, Planejamento e Informação (SPEI), Secretaria Estadual de Saúde do Espírito Santo (SESA/ES)

 

 

No ano de 1996, o Município de Laranja da Terra, no Estado do Espírito Santo, foi acometido por uma epidemia de febre tifóide, detectada pelo sistema de vigilância epidemiológica a partir de uma solicitação de cloranfenicol, feita pela Secretaria Municipal de Saúde de Laranja da Terra, em 24 de julho. Por tratar-se de um medicamento de uso pouco freqüente, isso suscitou a curiosidade dos técnicos da Secretaria Estadual de Saúde, os quais, após indagarem o porquê da solicitação, foram informados que vários casos de gastroenterite vinham ocorrendo no município, desde o dia 11 do mesmo mês. Estes apresentavam febre e queda do estado geral e respondiam satisfatoriamente apenas ao uso de cloranfenicol. Nos dias subseqüentes, os primeiros resultados de exames laboratoriais realizados, a partir de amostras de sangue colhidas de alguns pacientes, identificaram a Salmonella typhi - agente etiológico da febre tifóide. O presente relato tem como objetivo descrever sucintamente alguns aspectos fundamentais da doença e da evolução da epidemia, nos elementos pessoa, tempo e lugar, atualizando as informações junto ao Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica. Os dados utilizados, sujeitos a revisão, serão objeto de novos estudos.

 

1. A Febre Tifóide

É uma doença infecciosa, transmissível, sistêmica, de gravidade variável, caracterizada por um quadro de febre prolongada, cefaléia, esplenomegalia, sintomas gastrointestinais, tosse e queda do estado geral, e que pode levar à morte por perfuração intestinal, hemorragia ou toxemia severa1,2,3. Seu agente etiológico, a Salmonella typhi, é uma bactéria gram negativa da família Enterobacteriaceae, transmitida através de água e alimentos contaminados por fezes de doentes ou portadores3. Sua resistência é variável, de acordo com o meio: até quatro semanas em água doce, ostras, mariscos e outros moluscos, ou até dois meses em manteiga, por exemplo.

Após um período de incubação, de uma a três semanas (podendo variar de 3 a 56 dias, de acordo com a dose infectante), o paciente passa a apresentar febre alta, que pode ser acompanhada por cefaléia, mal-estar geral, inapetência, esplenomegalia, exantema (roséola tífica), obstipação intestinal ou diarréia, e tosse. Sua evolução geralmente é arrastada, podendo levar a complicações: hemorragia intestinal, pneumonia, colecistite, perfuração intestinal com peritonite, septicemia e óbito.

O diagnóstico laboratorial baseia-se no isolamento e identificação da S. typhi , através da hemocultura, nas primeiras duas semanas após o início dos sintomas; da coprocultura, após a segunda semana; e da urocultura, na convalescença4. A reação de Widal, outro método bastante utilizado, consiste na identificação de antígenos (O-somático, e H-flagelar) da S. typhi, através de anti-soros específicos. A aglutinação O surge entre o 6o e o 12o dias após o início dos sintomas, e pode persistir até 3 meses; a aglutinação H aparece entre o 8o e o 15o dias, e pode ser positiva por vários anos.

O tratamento da febre, da desidratação e do estado geral deve ser acompanhado por tratamento específico: cloranfenicol (primeira escolha), ampicilina, sulfametoxazol-trimetoprim ou outros, por um período mínimo de 14 dias, a maior parte das vezes em caráter ambulatorial.

A febre tifóide permanece endêmica em grande parte dos continentes asiático (importante no subcontinente indiano), africano e americano, marcadamente nos chamados países do terceiro mundo, onde persiste como uma importante causa de mortalidade, apresentando taxas de letalidade entre 12% e 32%, enquanto em países desenvolvidos essa taxa tem sido reduzida com sucesso para cifras inferiores a 2%.

Estatísticas referentes a doenças de veiculação hídrica nos Estados Unidos mostram, até 1989, a existência de 1.702 surtos ou epidemias, com 542.018 casos doença e 1.089 mortes, e apontam que quase todos os óbitos ocorridos antes de 1940 foram causados por febre tifóide5. Uma revisão de 2.666 casos de febre tifóide ocorridos entre 1975 e 1984, nesse mesmo país, mostrou que 62% dos mesmos eram importados, em contraste com apenas 33% durante os anos de 1967-72; a proporção de casos importados continuou a crescer, alcançando 69% em 19846. As maiores fontes foram o México (39%) e a índia (14%). A taxa de letalidade foi de 1,3%.

Estudos referentes às condições de saúde na União Soviética, em 1989, apontavam que a morbidade por doenças intestinais agudas, registrada nos anos imediatamente anteriores, deviam ser encaradas como uma conseqüência da não resolução dos problemas ligados ao suprimento de água e alimentos seguros para a saúde7.

Um surto de febre tifóide ocorreu no norte de Israel, em 1987, logo após uma grande epidemia de disenteria; tanto um quanto a outra resultaram de contaminação de poço artesiano que supria o sistema de água municipal, devido à ruptura de um cano de esgoto. Acometeu 77 pessoas, das quais 75 foram hospitalizadas, e demonstrou o alto risco de surtos por contaminação da água de abastecimento municipal8. Estudo semelhante, referente a uma epidemia de febre tifóide ocorrida em Chu-Tung, Taiwan, entre julho e agosto de 1983, sugere que a epidemia teria sido causada por contaminação repetida de fonte comum de água, a qual seria o serviço de água potável municipal9.

Registros de 370 pacientes tratados de febre tifóide em Singapura, entre 1986 e 1988, mostram que a doença teve evolução geralmente branda, sem óbitos. A febre foi o achado mais comum em 98,4% dos casos, e a diarréia esteve presente em 21%. O risco de desenvolver o estado de portador foi significativamente maior naqueles pacientes que se apresentaram afebris na admissão10.

A importância dos portadores assintomáticos é assinalada em vários artigos internacionais. Um pequeno surto ocorrido em Maryland, USA, entre 24 de agosto e 01 de setembro de 1986, apontou como fonte de infecção uma salada de camarão servida em um restaurante, onde foi identificada uma portadora assintomática entre os manipuladores de alimentos11. Na região de Nápoles, sul da Itália, onde a febre tifóide é endêmica, um estudo caso-controle, conduzido de janeiro a junho de 1990, detectou que o consumo de mariscos crus foi o fator de risco mais importante (odds ratio de 13,3; IC95% 5,5-32,8)12.

No Brasil, dados do Ministério da Saúde mostram que há um declínio no coeficiente de incidência da febre tifóide (de 4/100.000 hab. em 1970, para 1,34/100.000 hab. em 1990, e 1,0/100.000 hab. em 1993), como também na mortalidade (0,11/100.000 hab. em 1979 para 0,05/100.000 hab. em 1988), e na letalidade (3,27% em 1982, e 1,98% em 1985). As regiões Norte e Nordeste são as mais atingidas, devido à precariedade de suas condições de saneamento; na década de 80, a incidência nestas regiões variou entre 2,1 e 9,8/100.000 hab..

Em 1990 ocorreram duas epidemias de febre tifóide por transmissão hídrica, em municípios do interior de São Paulo, e em 1991 houve um surto de transmissão por alimentos3. Porém, não foi possível aos autores, até o momento, encontrar relatos ou estudos de epidemias de febre tifóide na literatura científica brasileira.

 

2. O Município de Laranja da Terra

Localizado na região serrana do Estado do Espírito Santo, a 154 quilômetros da capital, Vitória, Laranja da Terra faz fronteira, a oeste, com o Estado de Minas Gerais. Com uma área de 461 km2, e uma altitude de 150 metros, seu relevo é montanhoso, seu solo argiloso, e sua hidrografia tem como destaque o rio Guandu, pertencente à bacia do Rio Doce. O período de maior ocorrência de chuvas vai de outubro a março e, por tratar-se de um município eminentemente agrícola, as águas fluviais têm um importante papel na irrigação das lavouras, cujos maiores representantes são o tomate e o quiabo.

Segundo o censo de 1991, o município contava com 10.635 habitantes, 51% do sexo masculino e 49% do sexo feminino, distribuídos em três distritos: Laranja da Terra, que passaremos a denominar Sede, com 4.416, Sobreiro, com 3.430, e Joatuba, com 2.789 habitantes. A população urbana dos três distritos totalizava 2.044 habitantes, 1.078 dos quais localizados na Sede.

Dos 2.583 domicílios recenseados, apenas 27% contavam com abastecimento de água proveniente de rede geral (água tratada, geralmente na sede dos três distritos), 35% com água de poço ou nascente, e 38% de outras fontes, dentre as quais deve-se ressaltar a utilização da água do rio Guandu e de córregos; por exemplo, somente na Sede do município, em 1996, a CESAN (Companhia Espírito Santense de Saneamento) constatou a existência de 46 poços e nascentes.

Quanto ao destino de dejetos, somente 6% tinham seu esgoto ligado à rede geral, e 67% contavam apenas com fossa rudimentar. No caso da área urbana da Sede, a rede geral ia desembocar diretamente no rio Guandu, sem nenhum tratamento, isto acontecendo também a montante e a jusante, em praticamente todas as localidades ribeirinhas, algumas delas sedes de outros municípios.

No que se refere ao destino do lixo, em apenas 8% dos domicílios era coletado, em 26% queimado, e em 60% dos mesmos jogado em terreno baldio.

A Prefeitura mantém uma Casa de Saúde, com 18 leitos, mas cadastrada junto ao SUS somente como ambulatório, uma Unidade Sanitária tipo II, que atende uma grande demanda de consultas médicas, e cinco pequenas unidades na área rural, com consultas médicas periódicas.

Os dados de morbidade do município são bastante escassos, devido a não ter cadastrada nenhuma de suas unidades junto ao SIH-SUS, bem como a não ter um sistema de vigilância epidemiológica em funcionamento, mas tão somente notificações esporádicas. A Coordenação de Informações da Superintendência de Planejamento, Epidemiologia e Informação (SPEI/SESA), tem em seus registros de 1995, apenas 359 casos de doença notificados em Laranja da Terra, com a seguinte distribuição: 68,8% esquistossomose, 12,3% caxumba, 8,6% gastroenterocolites, 4,5% pneumonias, 2,8% rubéola, 0,8% hepatites inespecíficas, e 0,8% febre tifóide (3 casos). Existem registros de febre tifóide no município também em 1993 (9 casos) e em 1994 (11 casos), porém não há indícios de que tenham sido objeto de investigação e/ou outras medidas de controle em Saúde Pública.

 

3. A Epidemia de Febre Tifóide em Laranja da Terra

Logo após a suspeita de que poderia tratar-se de febre tifóide, a Secretaria Estadual de Saúde do Espírito Santo (SESA/ES) e o Centro Nacional de Epidemiologia (CENEPI/FNS/MS) destacaram equipes técnicas com a finalidade de acompanhar os trabalhos in loco, e colaborar no acompanhamento da epidemia e na tomada de medidas para o seu controle.

Devido à ausência de um registro sistematizado dos pacientes, foi necessário realizar um rastreamento de casos suspeitos, nos prontuários hospitalares e fichas de ambulatório da Sede, tomando-se um tempo de seis semanas antes do surgimento do primeiro caso confirmado, o que corresponderia à primeira semana de junho. Somente a partir da terceira semana do mesmo mês (semana epidemiológica 25) havia registro de casos que se convencionou chamar "compatíveis com febre tifóide": febre a esclarecer, ou febre acompanhada de sintomas gastrointestinais, como dor abdominal, diarréia, obstipação, náuseas e vômito. Isso já permitia a elaboração de uma curva, a qual mostrava um incremento, semana a semana, de modo que até o dia 23 de agosto (semana epidemiológica 34) tinha-se uma listagem preliminar de 112 casos "compatíveis".

Foi estabelecido um sistema de vigilância epidemiológica, com o intuito de manter as informações atualizadas quanto ao comportamento da epidemia, ao mesmo tempo em que foram tomadas uma série de medidas para evitar o alastramento da mesma, por meio das atividades de vigilância sanitária, de saneamento, de educação em saúde e de manejo de casos.

Os métodos de diagnóstico laboratorial utilizados foram a hemocultura, a coprocultura e a reação de Widal, realizados pelo Laboratório Central do Estado do Espírito Santo (LACEN/SESA/ES), em Vitória, sob a coordenação e supervisão dó "Centro de Referência Nacional para Cólera e Outras Enterobactérias", da FIOCRUZ/RJ. Apesar de alguns problemas no que se refere à coleta e ao transporte de amostras (falta de material, coleta inadequada nas primeiras semanas, transporte em más condições, entre outros.), mais de um terço dos pacientes suspeitos (38%), desde o início da epidemia até dezembro/96, tiveram pelo menos um exame positivo. Deve-se ressaltar que nem todos os pacientes suspeitos foram submetidos a exames de laboratório e, alguns daqueles que o foram, tiveram suas amostras colhidas fora das condições ideais para o diagnóstico; por exemplo, em muitos casos foi solicitada a reação de Widal nos primeiros dias de febre, ou hemoculturas após uso de antibióticos, o que deve ter determinado um número ainda não avaliado de falsos negativos.

Por orientação da SESA/ES, o tratamento dos casos foi padronizado, tendo como primeira escolha o cloranfenicol, na dose de 50 mg/Kg/dia, de 6 em 6 horas, seja por via oral ou endovenosa; como segunda escolha a ampicilina ou a amoxicilina, na dose de 100 mg/Kg/dia, de 6 em 6 horas, e como terceira escolha o sulfametoxazol-trimetoprim, na dose de 800 mg de sulfametoxazol/dia, para adultos, e de 50 mg/dia para crianças, de 12 em 12 horas, todos devendo ser ministrados durante 14 dias no mínimo.

 

4. Análise dos dados

Embora o primeiro caso confirmado laboratorialmente de febre tifóide tenha sido atendido na semana epidemiológica 27 (30 de junho a 06 de julho), desde a semana 25 (16 a 22 de junho) começaram a aparecer casos sugestivos da doença, os quais foram incluídos na curva de casos suspeitos, na tentativa de compreender o início da epidemia (Figura 1). A partir da semana 30 (21 a 27 de julho) a curva sofre uma agudização ascendente, atingindo o pico na semana 34 (18 a 24 de agosto), com 113 casos, declinando rapidamente até a semana 37 (08 a 14 de setembro), com 19 casos, um novo pico na semana 39 (22 a 28 de setembro), com 29 casos, e declinando novamente, com pequenas variações, até a semana 50 (08 a 14 de dezembro), com os últimos 2 casos identificados no ano de 1996. O período crítico corresponde ao mês de agosto, com 56,4% dos casos suspeitos.

 

 

Salienta-se que os casos aqui considerados suspeitos não incluem todos aqueles que foram inicialmente notificados, mas tão somente os que tinham quadro clínico compatível com febre tifóide: febre a esclarecer, ou febre acompanhada de cefaléia intensa e/ou sintomas gastrointestinais. Mais de 80 notificações fora destes critérios foram descartadas.

O sexo feminino foi o mais atingido, com 54% do total dos casos suspeitos. Quanto à distribuição por faixa etária, notou-se um maior percentual de casos (70%) entre adolescentes e adultos jovens (10 a 39 anos de idade) (Tabela 1 e Figura 2). No que se refere a ocupação, entre os menores de 20 anos de idade, 60% eram estudantes e 10% lavradores; acima dos 20 anos de idade, aproximadamente 40% eram lavradores. Tanto a distribuição por sexo quanto por ocupação demostraram percentuais bastante aproximados daqueles verificados no total da população, de modo que não foi possível estabelecer sexo ou ocupação de maior risco, nesta primeira análise.

 

 

 

 

 

Quanto à área de residência, consideramos como "área urbana" os casos suspeitos residentes na Sede do Distrito de Laranja da Terra (1.078 habitantes); como "área rural", os residentes em todas as outras comunidades do município (9.557 habitantes); e, como "outros municípios", aqueles pacientes suspeitos residentes em outros municípios, mas que estiveram em Laranja da Terra, entre uma e três semanas antes do início dos sintomas. Essa divisão enfatiza a gravidade da epidemia na área urbana da Sede, a qual apresentou 52% dos casos suspeitos (taxa de ataque de 29%), em contraposição às demais comunidades do município, com 46% dos casos (taxa de ataque de 3%), o que faz crer que a transmissão deu-se originalmente na Sede, e os casos aqui denominados rurais aconteceram seja por terem comparecido à Sede, ou por contato com pessoas, geralmente familiares, que se deslocaram para a Sede na vigência da transmissão.

A Figura 3 mostra a progressão da epidemia no tempo, por área de residência, o início na área urbana, seguida após uma ou duas semanas na área rural, sendo que esta última passa a apresentar um número de casos proporcionalmente maior, semana a semana, após o declínio da área urbana. Tal fato pode ser explicado pela maior dificuldade de acesso aos serviços de saúde das pessoas residentes fora da Sede. Isso teria ocasionado um atraso na procura do atendimento, associado ao mecanismo de transmissão pessoa a pessoa, que pode ter sido mais importante na área rural, devido à menor disponibilidade de água potável e, conseqüentemente, maior precariedade nas condições de higiene. Os 12 casos suspeitos residentes em outros municípios representaram apenas 2% do total, e quase todos foram atendidos em Laranja da Terra.

 

 

A Tabela 2 mostra a distribuição de 430 (71%) pacientes suspeitos que tiveram pelo menos um resultado de exame laboratorial (os outros 178 não tinham resultados disponíveis), conforme os seguintes critérios:

 

 

1. Positivo: um ou mais exames (coprocultura, hemocultura, reação de Widal) positivos, mesmo que tivesse algum resultado negativo ou Widal-suspeito;

2. Widal-suspeito: pelo menos um resultado de reação de Widal com títulos entre 1:20 e 1:80, mesmo que tivesse algum outro resultado negativo, porém sem nenhum resultado positivo;

3. Negativo: Um ou mais exames negativos, sem outros resultados.

Ressalta-se o número relativamente baixo de exames negativos (12,1%), alguns dos quais podem ter apresentado este resultado por terem sido realizados exames incompatíveis com a fase da doença, ou após o uso de antibióticos. Desta forma, consideramos que os exames negativos não afastam o diagnóstico de febre tifóide, até que se possa fazer uma revisão mais acurada destes casos, individualmente.

Apesar das dificuldades com coleta, transporte e processamento das amostras, nota-se um expressivo percentual de exames positivos, o que vem de certa forma a confirmar a validade dos critérios utilizados para a definição de caso suspeito, utilizada na presente epidemia.

A Figura 4 mostra o aparecimento de todos os casos suspeitos (680) e, dentre eles, aqueles que foram confirmados por exames laboratoriais (230) por semana epidemiológica, de tal forma que pode observar-se uma correspondência entre as duas curvas, exceto em duas situações: a primeira, na semana de pico (semana epidemiológica 34, de 18 a 24 de agosto), na qual houve limitações para coleta de amostras, devido ao grande número de pacientes suspeitos; e a segunda, a partir da semana 42, com níveis muito baixos, preditivos do final da epidemia. De fato, o último caso com exame laboratorial positivo ocorreu na semana 48 (24 a 30 de novembro); o último com Widal-suspeito na semana 49 (01a 07 de dezembro), e o último caso suspeito clínico-epidemiológico na semana foram encaminhados para hospitais da Grande Vitória e estão registrados como hospitalizados.

 

 

A Tabela 3 mostra os principais sinais e sintomas encontrados entre os casos suspeitos, obtidos através de revisão de fichas, prontuários e busca ativa de pacientes. A febre é o sintoma ou sinal mais característico, freqüentemente acompanhada de cefaléia.

 

 

Tanto a diarréia quanto náuseas e/ou vômito estiveram presentes em aproximadamente 40% dos pacientes (náuseas e vômito foram colocados juntos, como um sintoma apenas). As dores no corpo e as dores abdominais estiveram por volta de 32%. Curiosamente, a tosse foi mais freqüentemente referida do que a obstipação. Ao procurarmos estas mesmas freqüências apenas entre os pacientes confirmados laboratorialmente 50 (08 a 14 de dezembro).

Quanto ao tipo de tratamento, a quase totalidade dos atendimentos ambulatoriais e hospitalares foi realizada no próprio município de Laranja da Terra: 75% dos pacientes receberam tratamento exclusivamente ambulatorial, e um em cada quatro pacientes (25%) recebeu tratamento hospitalar, em caráter de internamento, em pelo menos uma ocasião. Pacientes com quadro clínico de maior gravidade (exame positivo), verificamos que todas se encaixam dentro dos intervalos de confiança acima, exceto náuseas e/ou vômito. A presença de exantema (roséolas tíficas) e de outros sintomas mais gerais, como queda do estado geral, fraqueza, anorexia, emagrecimento, apesar de serem relatados em várias ocasiões e constituírem motivo de internamento algumas vezes, não foram objeto de análise, por não terem sido sistematicamente investigados entre todos os casos suspeitos.

Aproximadamente 15 pacientes foram encaminhados para tratamento em centros de maior complexidade, a maioria deles por apresentarem estado geral bastante comprometido. Em dois casos houve hemorragia digestiva alta e em outros dois perfuração intestinal. Apenas um óbito foi registrado, em 30 de outubro, já nas últimas semanas da epidemia: uma criança de oito meses de idade, do sexo masculino, que apresentou um quadro de infecção respiratória aguda, e em cujo líquor (colhido após o óbito, quando foi detectado abaulamento de fontanelas), foi encontrada a Salmonella typhi.

 

5. Conclusões

Desde o momento de alerta, ao aventar-se a possibilidade de estar ocorrendo uma epidemia de febre tifóide em Laranja da Terra, foram mobilizadas múltiplas instituições, tanto governamentais quanto privadas, organizações outras, religiosas, de classe, civis e militares, etc., as quais trabalharam nas diversas frentes, no intuito de identificar e tratar os doentes, conter o alastramento da epidemia e identificar os possíveis fatores de risco.

A inclusão neste relato de todos os casos suspeitos e não tão somente os casos confirmados por laboratório (embora pudessem aí estar incluídas outras patologias), não parece relevante do ponto de vista de uma superestimação da epidemia. O rastreamento feito de casos compatíveis com febre tifóide, anteriores aos primeiros casos confirmados, foi infrutífero, e não houve registro de outras patologias que pudessem confundir-se com febre tifóide, no período epidêmico. O expressivo percentual de positividade, bem como o conhecimento - fruto da observação da equipe de vigilância - de que muitos pacientes foram tratados por curandeiros, farmacêuticos e mesmo em domicílio, levam a crer que o número total de infectados pode ter ultrapassado com boa margem os 608 casos aqui registrados.

Quanto aos sintomas encontrados, deve-se lembrar que, com a identificação do agente responsável pela epidemia e com a relativa facilidade de tratar os sintomáticos, muitas pessoas receberam medicação específica tão logo apresentaram os primeiros sintomas, de modo que nem todos chegaram a desenvolver um quadro clínico típico. O intervalo de confiança de 95%, apresentado na Tabela 3, foi incluído com a finalidade de estabelecer uma margem de erro aceitável, de acordo com o número de pacientes que apresentaram cada sintoma. Por outro lado, o tratamento em tempo eficaz fez com que a letalidade fosse bastante baixa: 1 óbito entre 608 casos suspeitos (0,16%), ou 1 óbito entre 230 casos confirmados laboratorialmente (0,43%).

Uma boa parte dos pacientes foi atendida e conseqüentemente medicada em mais de uma ocasião, porém não foi possível registrar o número de recaídas. De qualquer forma, a baixa letalidade fala em prol da qualidade do atendimento ministrado aos pacientes, o que é digno de louvor em se tratando de uma epidemia de tão grandes proporções, acometendo abruptamente um município pequeno e com escassos recursos.

Quanto ao controle ambiental, desde a primeira visita ao município, quando da suspeita de uma possível epidemia, foram coletadas amostras de água de consumo (água potável, de poços, de nascentes, de córregos, do rio Guandu, etc), leite, verduras e outros alimentos, na tentativa de identificar o fator ou os fatores de risco associados à transmissão. As análises laboratoriais destes produtos mostraram contaminação por coliformes fecais em praticamente todas as amostras, mas em nenhuma ocasião foi possível detectar a presença de Salmonella. Foram tomadas as medidas necessárias para garantir a qualidade desses produtos, com especial atenção para a água de consumo, tanto em relação à companhia de saneamento, quanto em relação ao uso individual, com ampla distribuição de hipoclorito de sódio em domicílio, na área urbana e na área rural. As ações de educação em saúde tiveram papel fundamental, e praticamente todos os segmentos populacionais foram envolvidos.

Foram realizados três inquéritos no decorrer dos trabalhos de controle da epidemia, no intuito de identificar os fatores de risco implicados: um na área urbana da Sede, outro nas comunidades rurais de maior porte, e o terceiro entre os escolares, tanto da Sede quanto da área rural. Algumas análises preliminares foram feitas, mas os dados ainda estão em fase de revisão para posterior avaliação. De qualquer modo, a ausência de descrições de epidemias semelhantes em nosso meio, aliada à necessidade de se entender melhor como um pequeno município pode ser alvo de um evento de tão grandes proporções, exige um estudo mais acurado, para que se possam recomendar medidas de prevenção e controle realmente eficazes, na eventualidade de eclosão de outras epidemias(1).

Deve-se procurar maneiras realmente eficazes de proteger a população de Laranja da Terra, pois sabe-se que a presença de um número considerável de portadores remanescentes desta epidemia (1 a 5% até um ano10), aliada às condições precárias de saneamento e de cuidados sanitários com água e alimentos, poderão levar a uma endemização ou mesmo à eclosão de uma nova onda epidêmica.

Torna-se imperativo que as autoridades sanitárias dos três níveis de governo, federal, estadual e municipal, procurem envidar todos os esforços possíveis visando a estruturação e a manutenção das ações de prevenção e controle da febre tifóide, pois ficou amplamente demonstrado com esta epidemia o alto grau de vulnerabilidade que pode apresentar uma população como a de Laranja da Terra e, por extensão, as populações da maior parte dos municípios brasileiros, cujas condições de vida e saúde são, sem dúvida, bastante semelhantes.

 

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(1)Este estudo, realizado por um dos autores, será objeto de tese de mestrado.