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Informe Epidemiológico do Sus

versão impressa ISSN 0104-1673

Inf. Epidemiol. Sus v.8 n.2 Brasília jun. 1999

http://dx.doi.org/10.5123/S0104-16731999000200003 

Cenários Epidemiológicos, Demográficos e Institucionais para os modelos de atenção à Saúde

 

 

Flávio A. de Andrade Goulart

Universidade de Brasília

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A falência dos antigos modelos de atenção à saúde vem fomentando um amplo processo de discussões, com o desenvolvimento de autênticas construções históricas e sociais que se caracterizam por não se constituírem, simplesmente, como modelos "corretos" ou "errados", "gerais" ou "universais". O modelo de atenção incorporado pelo SUS, está referido em sua origem, entre outras, à proposta de Promoção da Saúde, divulgada pela OPAS/OMS cuja base é a a Carta de Ottawa, tomando como fatores responsáveis pela saúde das pessoas e das populações (a) a biologia humana; (b) o meio externo; (c) o estilo de vida e, (d) a organização da atenção à saúde. As inúmeras mudanças postas em destaque pelos fenômenos de transição (epidemiológica, demográfica e político-institucional) neste final de década, podem ser traduzidas pela profunda mudança de enfoque dos cuidados, basicamente, de doenças agudas em jovens para doenças crônicas em idosos; pelo deslocamento do objeto das práticas, de indivíduos para famílias, da cura para a prevenção e promoção da saúde; pelo desenvolvimento de novas abordagens voltadas para hábitos e estilos de vida e de novas concepções de práticas educativas; pela necessidade de capacitação de provedores de cuidados na própria família, e a busca de novos cenários de práticas de saúde, além dos tradicionais cenários.

Palavras-Chave: Políticas de Saúde; Modelos de Atenção à Saúde, Transição Demográfica; Transição Epidemiológica.


SUMMARY

The failure of the old health assistance models has risen a broad range of debates, yielding concepts that are not representatives of "right" or "wrong","general" or "universal" models. The assistance model adopted by the new health system in Brazil is related to the proposal of Health Promotion disseminated by PAHO/WHO and take into account several factors responsible for people and populations health, such as: (a) human biology; (b) environment; (c) life style and (d) health care organization, as foreseen in the Letter of Ottawa. The countless changes highlighted by the transition phenomenas (epidemiologic, demographic or in the fields of politics and institutions), have clear implications in people’s health needs for the new millennium. Some predictable transformations are: a shift from caring primarily for acute diseases in young people to chronical diseases in elderly people; a change on health practices targets: from individuals to families, from healing to prevention and health promotion; the development of new approaches oriented towards habits and life styles and new concepts of educational practices, with special emphasis on women's role in self-care and support to the family cell and, finally, the search for new scenarios in health care practices, in addition to the traditional ones.

Key Words: Health Policies; Health Care Patterns; Demographic Changes; Demographic Profile Changes.


 

 

Aspectos conceituais e históricos

São amplamente reconhecidas as atribulações da formação do modelo de atenção à saúde no Brasil, a partir das vertentes de Previdência Social e do Sanitarismo Campanhista, que deixaram uma marca histórica profunda, ainda hoje refletida nas práticas dos órgãos de saúde, seja do ponto de vista político, administrativo e, principalmente, assistencial. A falência de tais modelos, decorrente das antinomias existentes entre eles, bem como de suas disfuncionalidades internas, vem fomentando um processo de discussões, no seio das academias e dos serviços, visando à construção de novos modelos de assistência, capazes de superar as incongruências resultantes das polaridades apontadas acima.

Tem caráter primordial para o entendimento da questão dos modelos de atenção à saúde no Brasil a chamada Medicina Comunitária, movimento de inovação da assistência à saúde, com raízes derivadas de várias experiências internacionais, que teve sua introdução em nosso país como processo articulado a experiências e programas desenvolvidos e mantidos por universidades. Suas origens, entretanto, são mais antigas e remontam às décadas anteriores, decorrendo, entre outros fatores, da crise do capitalismo que resultou na implementação dos estados de bem-estar social na Europa e nos EUA; da formação do National Health System no Reino Unido; da política inglesa de descolonização, entre outras.

A Medicina Comunitária teve seu substrato teórico, político e ideológico consagrado na Conferência Internacional de Alma Ata, em 1978, a partir da qual praticamente se confunde com as palavras de ordem geradas no evento, particularmente Cuidados Primários de Saúde.

As propostas de Medicina Comunitária/Cuidados Primários de Saúde se constituem em torno dos seguintes elementos estruturais:1 (a) coletivismo (embora criticado como "restrito"); (b) integração da promoção, prevenção e cura; (c) desconcentração de recursos; (d) adequação das tecnologias; (e) aceitação e inclusão de práticas não oficiais; (f) novas práticas interdisciplinares e multiprofissionais e, finalmente, (g) participação da comunidade. Tais propostas sempre estiveram no foco de intensas polêmicas, particularmente nos anos 70, mobilizando intensas energias intelectuais para sua crítica, não só no Brasil como em toda a América Latina. Tal crítica se dirigia contra as possibilidades de controle sobre a sociedade, a imposição de mecanismos de participação social, o favorecimento da acumulação de capital aos produtores, a manutenção e aprofundamento das desigualdades de acesso, entre outros aspectos. Curioso constatar que, a partir dos anos 80, esta crítica se atenua bastante, ou por outra, as citadas energias intelectuais vão se concentrar em encontrar soluções, não mais apenas em demolir as propostas colocadas em campo, vistas como eram sob uma ótica fortemente ideologizada e mesmo "conspiratória" .

De qualquer forma, a história das discussões e da formação de um modelo de atenção à saúde no Brasil sempre foi tensa e contraditória. É o que se verifica, por exemplo, a partir das vertentes originais e conflitivas de sanitarismo e previdência. A medicina comunitária foi intensamente criticada, como se viu, com a denúncia voltada contra a reprodução ideológica proposta originalmente. Ocorreram disputas intensas também, de cunho político-ideológico, entre as propostas de formação médica intituladas medicina geral comunitária e a medicina preventiva. Os SILOS, Sistemas Locais de Saúde, de extração localizada nos organismos dos sistemas OPAS/OMS, foram vistos como proposta conservadora e componente de um pacote de ajuste estrutural. A própria proposta de Saúde da Família, atualmente em vigor, já foi taxada de manipuladora, eleitoreira e contrária aos princípios do SUS e, em outro momento, redimida como um novo paradigma, de caráter antagônico ao da "antiga medicina de família".

A década de 70 revela o aparecimento de um novo fator de perturbação do horizonte conceitual, traduzido por um "renascimento da Medicina Social inspirada nos princípios que fundamentaram a sua emergência na Europa em meados do século XIX", configurando, assim, um "novo paradigma" que vai marcar sua influência nas décadas de 70 e 80.2 Tal paradigma alternativo, centrado nas concepções fundamentais relativas à determinação social do processo saúde-doença, bem como na dinâmica do processo de trabalho em saúde, passa a orientar as propostas democratizadoras e de reforma do sistema, vigente na década de 80, resultando daí o conceito ampliado de saúde e de seus determinantes incorporado na Constituição de 1988, no Brasil.

Passemos agora a considerar alguns conceitos referentes ao nosso tema central. Carvalho & Ribeiro3 definem modelo assistencial como "a maneira como são organizadas e combinadas, em uma sociedade concreta, as diversas ações de intervenção no processo saúde-doença". Destaca-se, assim, a importância das formas de articulação e organização de recursos de diversas naturezas (físicos, tecnológicos, humanos, etc.) necessários ao enfrentamento dos problemas de saúde. Segundo os mesmos autores, modelos assistenciais são construções históricas e sociais, ou seja, condicionados pelo modo de desenvolvimento das sociedades e do período histórico a que se referem, resultando, além do mais, de um processo de disputas e acordos entre atores sociais. Decorrem destas definições alguns aspectos essenciais, a saber: (a) não existem modelos em estado puro nas sociedades; (b) não estão isentos dos interesses e das vontades dos diversos grupos sociais; c) não há modelos "corretos" ou "errados", assim como (d) não há modelos gerais ou universais.

É preciso não perder de vista o fato de que houve uma verdadeira "evolução conceitual" dos modos de pensar e fazer em saúde, resultando daí modelos assistenciais diferenciados, desde os modos monocausais de pensamento em saúde, passando pela história natural das doenças, de Leavell & Clark, até chegar ao campo da saúde, de Lalonde. A incorporação do conceito de acumulação e produção social em saúde, derivada do paradigma alternativo referido acima, torna-se, mais contemporaneamente, capaz de dar conta da permanente transformação do estado de saúde dos indivíduos e do próprio modo da sociedade pensar e fazer neste campo, permitindo também uma ruptura com a idéia de um universo isolado para a saúde. A saúde, destarte, adquire o estatuto de produto social resultante de fatores políticos, econômicos, ideológicos e culturais e, assim, "como campo de conhecimento exigindo a interdisciplinaridade e como campo de práticas exigindo a intersetorialidade", conforme expressado pelos autores citados acima.

Campos4, em um instigante artigo, cujo subtítulo é muito apropriadamente "um modo mutante de fazer saúde", defende a idéia de que modelos assistenciais representam um conceito capaz de intermediar o técnico e o político, incorporando contribuições de diversas naturezas, tais como éticas, jurídicas, administrativas, clínicas, sociais, culturais, etc., resultando, assim, em "uma tradução para uma terceira língua dos idiomas profissionais e político-administrativos". Este autor admite como problemas fundamentais da construção de modelos assistenciais: (a) o enfoque excessivamente normatizador das disciplinas constituintes do campo da saúde, como a clínica, a epidemiologia e o próprio planejamento; e (b) a tendência de adoção passiva das diretrizes ordenadoras dos sistemas públicos de saúde.

Algumas diretrizes legitimadoras dos modelos de prestação de serviços podem ser citadas, a saber: (a) acolhida, que se refere à abertura dos serviços para a demanda, bem como à responsabilização pelo conjunto dos problemas de saúde em bases regionalizadas; e (b) vínculo, que embora derivado da prática privada tradicional, deve ser incorporado no sistema público como um contrato de deveres e direitos, do paciente, de sua família e da equipe de saúde.4

A construção de um novo modelo possui, além do mais, um verdadeiro caráter de "luta contra-hegemônica", em que se destacam e se diferenciam componentes de saber, ideologia e ação política, com o deslocamento da "ênfase na questão dos serviços para as condições de saúde e seus determinantes", conforme o trabalho de Paim2. Tal abordagem resulta em que as práticas de saúde são fortemente imbuídas de um caráter social e que sempre apresentam dimensões simultaneamente técnicas, políticas, ideológicas, etc. Desta forma, um modelo de atenção à saúde coerente com os princípios e diretrizes da Reforma Sanitária e do SUS somente poderá se concretizar "no plano técnico-institucional, no encontro de indivíduos ou cidadãos com a burocracia e com os agentes das práticas de saúde", englobando a vida concreta dos homens e a prática empírica, na expressão do mesmo autor.

Não deve ser negligenciado na discussão dos modelos de atenção em saúde o papel da influência externa, dos modelos gerados em outros países e difundidos, particularmente ao terceiro mundo, pelos organismos internacionais de saúde (OPAS/OMS) ou mesmo outros, como é o caso do Banco Mundial. Ocorre, entretanto, que tais modelos acabam por ser reatualizados localmente, com possibilidades, até mesmo, de ampliar e reciclar as questões formuladas pelo movimento sanitário brasileiro há pelo menos duas décadas. Resulta, assim, a transformação do que era, basicamente um movimento ideológico nos anos setenta, em um movimento de ação política, articulador de atores diversos, nos serviços, na sociedade e na academia. É este o entendimento que tenho do momento atual no Brasil, marcado pela emergência das propostas locais de Saúde da Família e outras congêneres, voltadas para o arejamento e a renovação das práticas assistenciais.

Neste texto, trabalharei com a expressão modelos tecnoassistenciais em saúde, conforme explicitado por Silva Jr. apud Campos4 aceitando que a mesma amplia a abrangência do conceito, ao incorporar dimensões de análise tais como (a) interação de saberes sobre o objeto da saúde-doença; (b) integralidade das ações de saúde; (c) regionalização e hierarquização da oferta de serviços; e (d) condições da articulação intersetorial.

 

A Promoção da Saúde como elemento ideológico na organização de modelos de atenção à saúde

Promoção da Saúde, no sentido que lhe é emprestado nas propostas da OPAS/OMS, deriva das formulações de Lalonde a respeito do campo da saúde.5 Segundo este autor, os fatores responsáveis pela saúde das pessoas e das populações obedecem a um campo conceitual que inclui: (a) a biologia humana; (b) o meio externo; (c) o estilo de vida e (d) a organização da atenção à saúde. (Promoção da Saúde já era, na verdade, uma expressão bem conhecida no campo da saúde, a partir da teoria da História Natural das Doenças, formulada por Leavell e Clark na década de 50. Contudo, o sentido da expressão, neste caso, é mais específico, referindo-se basicamente aos cuidados à saúde cabíveis no momento inicial da "história natural", quando o processo de doença se restringe às interações entre hospedeiro, agente e ambiente, sem alterações patogênicas).

A origem dos conceitos norteadores da Promoção da Saúde ocorre, segundo Terris6 (Ministro da Saúde do Canadá no início dos anos 70 e condutor político da reforma do sistema de saúde daquele país), ainda na década de 40, nos trabalhos do notável historiador da medicina, Henry Sigerist, nos quais se definiam as grandes tarefas da medicina como promover a saúde, prevenir as enfermidades, restabelecer e reabilitar os enfermos. Em síntese e nas palavras deste autor, «a saúde se promove proporcionando condições de vida decentes, boas condições de trabalho, educação, cultura física e formas de lazer e descanso», postulados que foram reiterados quatro décadas após, na Carta de Ottawa.7 O autor ainda destaca os «componentes estratégicos» da ação sanitária, quais sejam: (a) a ação intersetorial; (b) o desempenho de papéis ativos por parte da população; e (c) a ação no nível local.

Lalonde,5 revendo após uma década, o seu modelo, defendia sua atualidade e coerência, situando-o como um verdadeiro "mapa do território da saúde", um potente instrumento de análise da saúde e das condições de vida, capaz de abarcar a totalidade dos fatores determinantes, em uma visão unificadora do processo saúde-doença, através da facilitação da mediatização entre os problemas e suas causas, além do esmiuçamento de cada componente do que chamou de campo da saúde. Em tal análise a posteriori, o autor insistia, ainda, no papel menos relevante exercido pelo fator organização da atenção em relação aos demais componentes.

O documento básico para a compreensão da proposta da Promoção da Saúde vem a ser a Carta de Ottawa,7 resultado de uma reunião internacional sobre o tema, realizada naquela cidade, no ano de 1986 (I Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde, realizada sob os auspícios da OMS, Ministério da Saúde e Bem-Estar do Canadá e Associação Canadense de Saúde Pública. Em 1992, ocorreu um segundo evento do gênero, em Santa Fé de Bogotá, Colômbia, e, em 1993, um outro, em Trinidad-Tobago, que geraram documentos semelhantes). O referido documento, redigido no estilo de "carta de princípios", tem como enfoques centrais os aspectos conceituais e operacionais da promoção da saúde (pré-requisitos, promoção do conceito e dos meios, atuação mediadora das instituições) bem como a ênfase na participação ativa no processo de promoção da saúde, propondo as estratégias das "políticas públicas saudáveis" e dos "ambientes favoráveis à saúde". Suas diretrizes operacionais principais, Campos de Ação na Promoção da Saúde, podem ser vislumbradas a seguir:

1. Desenvolver políticas públicas saudáveis - colocando-se a saúde na agenda dos formuladores de políticas em todos os setores e em todos os níveis, procurando conscientizá-los sobre as conseqüências de suas decisões sobre a saúde, para que aceitem suas responsabilidades perante ela.

2. Criar ambientes saudáveis - avaliando-se sistematicamente o impacto sobre a saúde de um ambiente em rápida mudança. A proteção do ambiente natural e construído e a conservação dos recursos naturais devem ser contemplados em qualquer estratégia de promoção da saúde.

3. Fortalecer a ação comunitária - trabalhando-se através de ações comunitárias concretas e efetivas quanto à definição de prioridades, tomada de decisões, estratégias de planejamento e na sua implementação, visando à melhoria das condições de saúde.

4. Desenvolver habilidades pessoais - apoiando-se o desenvolvimento pessoal e social através da divulgação de informação, educação para a saúde e intensificação das habilidades vitais das pessoas.

5. Reorientar os serviços de saúde - movendo-se gradativamente o papel do setor saúde no sentido da promoção da saúde, além da manutenção de suas responsabilidades na provisão de serviços clínicos e de emergência.

É inquestionável a influência de tal conjunto de postulados na formulação doutrinária e operacional referente aos modelos de atenção à saúde na América Latina, em anos mais recentes, mesmo porque os organismos internacionais que promoveram a conferência de Ottawa naturalmente endossaram e passaram a fazer proselitismo em torno das recomendações deles emanadas, transformando a Promoção da Saúde em mais uma das palavras de ordem difundidas aos países membros.

Buck,8 avaliando o impacto da contribuição de Lalonde após uma década, concentra sua análise nos fatores ambientais («entornos») que influenciam a saúde, nominalmente os «entornos perigosos», a «falta de amenidades», o «trabalho estressante, não gratificante e despersonalizado», o «isolamento e a alienação» e a pobreza. Analisa, ainda, as relações existentes entre os fatores ambientais e os demais componentes do campo da saúde, ressaltando os efeitos cumulativos e multiplicadores que entre eles se estabelecem. A autora destaca, também, alguns fatores que têm dificultado as mudanças nos sistemas de saúde em direção aos postulados da promoção da saúde, enfatizando, entre outros, barreiras «filosóficas» (a crença de que o sofrimento é inerente à condição humana); barreiras ligadas à inércia e à desconfiança com que os indivíduos e os grupos encaram as mudanças; a estrutura fragmentada e de baixa comunicação existente no aparelho social público e, finalmente, o que considera «a barreira mais poderosa»: a predominância dos interesses individuais sobre os coletivos.

 

Um modelo de atenção para o SUS

Silva Jr.1 propõe um quadro de análise da conformação dos modelos tecnoassistenciais de saúde existentes no Brasil, envolvendo dimensões que correspondem a uma diversificada gama discursiva, em termos técnicos e ideológicos, configurando, desta forma, a matriz discursiva demonstrada na Tabela 1.

 

 

A matriz permite ainda, ao analisar cada linha da gama discursiva, definir, dos termos iniciais aos últimos de cada série, uma gama correspondente de modelos tecnoassistenciais em saúde, a saber: (a) liberal-privativista (flexneriano, inampsiano); (b) saúde pública (campanhista); (c) vertical (permanente e com reformas internacionais); e (d) saúde coletiva

Evidentemente, o panorama atual no país mostra a convivência, nem sempre harmoniosa, de todos estes modelos, encontrados, de forma simultânea mesmo em micro-realidades. Não há dúvidas, porém, que mesmo enfrentando a diversidade política e institucional, a modalidade mais coerente com os princípios e diretrizes constitucionais do SUS é o modelo tecnoassistencial da saúde coletiva, que resulta da evolução técnica e política dos modelos verticais reformados.

 

Os desafios para os modelos de atenção à saúde no século XXI

Uma boa questão para introduzir o assunto seria: de que adoeceremos e morreremos no próximo século? A OMS, juntamente com o Banco Mundial, obviamente preocupados com o tema, patrocinaram um amplo estudo mundial, baseado na metodologia da carga global de doença (global burden of disease), coordenado por Murray & Lopez, pesquisadores da Universidade de Harvard e da própria OMS, respectivamente.9

Tal estudo foi realizado mediante uma metodologia inovadora, que procurou quantificar não somente o número de mortes ocorridas nas várias regiões do mundo, mas, também, o impacto das mortes prematuras e da incapacidade sobre a população, através da utilização do indicador DALY - anos de vida ajustados por incapacidade (disability-adjusted life year). Um DALY corresponde a um ano perdido de vida saudável. Assim, torna-se possível trabalhar com o novo conceito de carga de doença, assumido como a diferença entre o estado "real" de saúde da população e um estado "ideal" ou "de referência" estimado mediante ampla participação de especialistas de várias áreas, além da consulta a fontes de informação variadas.

Uma estimativa de cenário para os próximos 25 anos mostra que, para um primeiro grupo de enfermidades, englobando as transmissíveis, maternas, perinatais e nutricionais, ou seja, aquelas controláveis por medidas de proteção específicas ou promoção de hábitos saudáveis, as perspectivas são de sua redução, embora com grandes diferenças entre as diversas regiões do globo. Ao contrário, para as doenças não transmissíveis de natureza crônica e degenerativa, bem como para as doenças decorrentes de lesões por acidentes, traumatismos e outras formas de violência individual e social, a tendência é nitidamente de incremento. A Tabela 2 sintetiza os dez maiores impactos para DALY (anos de vida perdidos de vida saudável) em 1990 e a projeção para 2020.

 

 

O estudo de Murray & Lopez9 ainda oferece algumas outras conclusões impactantes, a saber: (a) as doenças psiquiátricas têm sido subestimadas nas estatísticas de saúde; (b) as desigualdades entre as regiões pobres e ricas do mundo são imensas e não se reduzirão substancialmente, mesmo no caso das doenças crônico-degenerativas, consideradas, indevidamente, como decorrência do "desenvolvimento" das sociedades; (c) o uso do tabaco continuará contribuindo para a morte de mais gente do que qualquer outra doença, inclusive Aids; (d) embora as doenças transmissíveis em geral apresentem tendência à redução, tal não acontece com a tuberculose; (e) sexo não seguro continuará sendo um grande fator de risco para o futuro, principalmente nas regiões mais pobres; (f) a expectativa de vida crescerá, mas os homens continuarão com níveis mais baixos que as mulheres, sem que isso signifique que viver mais seja viver com mais saúde; (g) os grandes fatores de riscos com que a humanidade se defronta e continuará se defrontando no futuro serão a desnutrição, a falta de saneamento básico, o sexo inseguro, o uso do tabaco, o estresse, a violência urbana, além de fatores ligados ao processo de trabalho.

São, naturalmente, evidentes as implicações de tais conclusões na formulação de modelos tecnoassistenciais que enfrentem os atuais problemas de saúde das sociedades e, ao mesmo tempo, dêem conta dos desafios do futuro. Alguns aspectos de tais modelos podem ser destacados preliminarmente e são: (a) a garantia da universalidade, da integralidade e da equidade, em um panorama de transições política, institucional, demográfica e epidemiológica; (b) a atenção especial a grupos populacionais (idosos, adolescentes, pessoas em idade ativa em geral); (c) a atenção a doenças de longo curso em face do desafio dos custos crescentes da assistência e da escalada tecnológica; e (d) a necessidade do desenvolvimento de mais e melhores metodologias e tecnologias de educação e promoção de hábitos e comportamentos adequados para uma vida saudável, entre outras.

O desenvolvimento de modelos tecnoassistenciais com tais características exige o conhecimento de alguns cenários que já se delineiam para o futuro, em termos demográficos, epidemiológicos e institucionais.

Do ponto de vista demográfico, são incontáveis as evidências que apontam para uma sociedade com mais pessoas idosas e menos jovens, em termos proporcionais e absolutos. A relação entre pessoas que trabalham e aposentados será cada vez mais próxima da unidade, com evidentes reflexos, senão no financiamento da saúde, pelo menos na organização dos cuidados com base domiciliar. A estrutura das famílias será, também, completamente alterada, com saída crescente das mulheres para a disputa de postos no mercado de trabalho, aumento das mulheres chefes de família, ampliação do conceito de família nuclear e dos núcleos familiares unipessoais, entre outros.

Em termos epidemiológicos, o estudo de Murray & Lopez9 mostra tendências claras, destacando-se, ainda, o impacto das condições provenientes de estilos de vida e comportamentos e dos problemas ligados à interação homem-ambiente, tanto no plano da natureza como social.

Do ponto de vista do financiamento, parecem estar bem claras em todas as sociedades as dificuldades crescentes em adequar os recursos disponíveis às necessidades e demandas sociais, com acirramento da disputa pelo orçamento público em arenas políticas nas quais os grupos sociais dotados de maior capacidade de vocalização tendem a se sair melhor. As disparidades sociais, conseqüentemente, tenderão ao agravamento - e este é um quadro detectado até mesmo nos países mais ricos, como os Estados Unidos.

Ainda na plano institucional, emergem questões bastante sérias a respeito das modalidades de organização de cuidados, nos sistemas de saúde, capazes de dar conta das várias transições em curso. Assim é que a escalada tecnológica, a pujante cultura hospitalista vigente não só entre os profissionais de saúde como na sociedade como um todo, a pouca valorização na educação médica e de outros profissionaias dos aspectos relacionados à prevenção e promoção, a necessidade de novas instâncias de cuidados além do hospitalar e do ambulatorial clássicos, além das marcantes deficiências qualitativas e quantitativas da força de trabalho em saúde, por si só, colocam marcantes desafios ao desenvolvimento dos futuros modelos tecnoassistenciais em saúde.

A tabela 3, elaborada segundo Cox10 procura sintetizar, a partir de cada componente dos cenários futuros (demográfico, epidemiológico, institucional), as implicações para as práticas dos profissionais de saúde e para a estrututura do sistema de saúde como um todo. Embora o artigo de Cox10 aborde explicitamente as práticas de enfermagem, a abrangência da análise realizada permite conclusões para as práticas das demais profissões de saúde, particularmente da medicina.

 

 

Como se vê, não são de pequena monta os desafios que se colocam para a construção de novos modelos de atenção à saúde, capazes de dar conta das mudanças epidemiológicas, culturais e institucionais trazidas pelo momento presente. Chegar ao século XXI pressupõe superar os escolhos colocados pela cultura e pelas práticas tradicionais de saúde ainda vigentes. Ou, parafraseando Edgard Morin, a questão poderia ser: como sair do século XX? Ou até mesmo: como deixar o século XIX para trás? Particularmente na saúde, as rupturas conceituais e empíricas que se fazem necessárias, por certo absorverão grandes energias e somente poderão ser obtidas a partir de um verdadeiro processo de produção social de hegemonia dotado de componentes éticos, políticos e técnicos. O panorama é extremamente mutante e conflitivo, porém capaz de alcançar legitimidade mediante negociação e busca de consenso entre os atores sociais envolvidos com a saúde, pois, apesar das dificuldades, este é um campo aberto para mudanças, pela sua transcendência na existência de cada indivíduo e pelas implicações que possui na vida social, como um todo.

 

Bibliografia

1. Silva JR A. Modelos tecnoassistenciais em saúde - O debate no campo da Saúde Coletiva. São Paulo: HUCITEC; 1998.

2. Paim JS. Bases conceituais da Reforma Sanitária brasileira. In: Fleury S. (Org.) Saúde e Democracia: a luta do CEBES. São Paulo: Lemos Ed; 1997. p.13-26.

3. Carvalho AI, Ribeiro JM. Modelos de atenção à Saúde. In: Carvalho AI, Goulart FA. Gestão em Saúde (Unidade II: Planejamento da atenção à saúde). Rio de Janeiro/Brasília: Ed. Fiocruz/UnB; 1998.

4. Campos GWS. Sobre la reforma de los Modelos de Atención: un modo mutante de hacer salud. In: Eibenschutz C. Política de Saúde: o Público e o Privado. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz; 1995. p.95-98.

5. Lalonde M. El concepto de «campo de salud» en una perspectiva canadiense. In: OPS Promoción de la Salud: una antología. Washington- DC (USA): OPS (Publicación Científica no. 557); 1996.

6. Terris M. Conceptos de la promoción de la salud: dualidades de la teoría de la salud pública. In: OPS Promoción de la Salud: una antología. Washington-DC (USA): OPS (Publicación Científica no. 557); 1996.

7. BRASIL. Ministério da Saúde. Carta de Ottawa; Declarações de Adelaide, Sundsvall e Santa Fé de Bogotá, s/ data.

8. Buck C. Después de Lalonde: la creación de la salud. In: OPS Promoción de la Salud: una antología. Washington-DC (USA): OPS (Publicación Científica 557); 1996.

9. Murray CJL, Lopez AD. Mortality by cause for eight regions of the world: Global Burden of Disease Study. The Lancet 1997; 349:1347-1436.

10. Cox RP. Family Health care delivery for the 21st Century. Journal of Obstetric, Gynecologic and Neonatal Nursing (JOGNN) 1997; 26: 109-118.

 

 

Endereço para correspondência:
Departamento de Saúde Coletiva/FS/UNB
Campus Darcy Ribeiro
Brasília - DF
CEP: 70.910-900
E-mail:fgoulart@tba.com.br