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Informe Epidemiológico do Sus

versão impressa ISSN 0104-1673

Inf. Epidemiol. Sus v.8 n.3 Brasília set. 1999

http://dx.doi.org/10.5123/S0104-16731999000300003 

Os primeiros cinco anos da sétima pandemia de cólera no Brasil

 

The seventh pandemy of cholera in Brazil - The first five years

 

 

Moacir GerolomoI; Maria Lúcia Fernandes PennaII

IFundação Nacional de Saúde
IIUniversidade do Estado do Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho avalia o comportamento da sétima pandemia de cólera no Brasil, através de uma análise descritiva da distribuição de casos diagnosticados e notificados ao Ministério da Saúde, entre abril de 1991 e março de 1996, totalizando um período de cinco anos, abordando questões gerais, tais como: incidência, distribuição geográfica, sazonalidade, distribuição por faixa etária e sexo, letalidade, critério diagnóstico e tipo de atendimento, podendo-se observar uma grande heterogeneidade entre as regiões e, nestas, entre os estados. Analisando-se as informações referentes ao critério diagnóstico adotado para confirmar os casos, ao tipo de atendimento que tiveram os doentes e a taxa de letalidade apresentadas, pode-se afirmar que a subnotificação de casos ocorreu em todo o país, sendo mais intensa em algumas unidades federadas. A incidência aumenta gradativamente a partir dos 15 anos de idade, mas mantém-se alta nas faixas etárias mais elevadas, e na faixa de menores de 15 anos é maior nos menores de cinco anos. Em todas as faixas etárias a incidência no sexo masculino foi maior que no sexo feminino. Somente no Estado do Amazonas pode-se observar um componente sazonal e continua a produção regular de casos, o que gera várias indagações sobre o porquê desta ocorrência.

Palavras-Chave: Cólera; Brasil; Epidemia; Sétima Pandemia.


SUMMARY

The study evaluates the pattern of the seventh pandemy of cholera in Brazil, through a descriptive analysis of the distribution of the cases diagnosed and notified by the Ministry of Health between April 1991 and March 1996, since its beginning, totalizing a five-year study. Several issues investigated such as: disease incidence, geographic distribution, seasonally-related, sex and age-groups distribution, mortality, diagnosis criteria, and type of medical assistance. An important heterogeneity among the five Macro-Regions as well as among the States within each of these regions, was observed. The analyses of information regarding the diagnosis criteria to confirm the cases, the type of medical assistance offered to the patients, and the mortality rates, indicate that the subnotification of cases took place throughout the country, being more intense in some states. According to the international literature, the pattern of incidence of cholera in Brazil is more frequent in the age-groups older than age fourteen, remains high among the eldery and it is also high in the age-group younger than age five. The incidence of cholera was higher among males than females and it remained such way in all five years age-groups. By taking the States into consideration in the analysis it was observed that the tendency of the number of cases notified was reduced after the two outbreaks observed within the five-year study. The only exception was the Amazon State which shows a consistent yearly seasonal pattern of outbreaks generating some hyphoteses in order to explain such findings.

Key Words: Cholera; Brazil; Epidemic; Seventh Pandemy.


 

 

Introdução

A sétima pandemia de cólera, ainda em curso, iniciou-se em 1961, quando o Vibrio cholerae, biotipo El Tor, ultrapassou os limites de uma área endêmica em Célebes, Indonésia, e estendeu-se a outros países da Ásia Oriental. Reforçada pelos deslocamentos da população, através dos movimentos migratórios, a pandemia chegou a Bangladesh no final de 1963, à Índia em 1964, e à União Soviética, Irã e Iraque em 1965 e 1966.1 Em 1970, a cólera invadiu a África Ocidental e se dispersou rapidamente ao longo da costa e das vias fluviais, até penetrar terra adentro. A doença é agora endêmica naquele continente, especialmente nas zonas costeiras, onde a temperatura, pluviosidade e densidade populacional contribuem para a sua persistência.2 Nos anos seguintes, a cólera adentrou em países industrializados, mas a eficiência dos serviços de saúde, do sistema de vigilância epidemiológica e sobretudo das condições de saneamento ambiental não permitiram a sua instalação.3 Foi introduzida na América Latina através do litoral peruano, atingindo posteriormente o Brasil e outros países da América do Sul.4,5,6

No decorrer de 1991, a cólera espalhou-se pelo continente americano, atingindo 14 países, com 391.734 casos confirmados e causando 4.002 óbitos; em 1992, 20 países notificaram 352.300 casos e 2.399 óbitos; em 1993, 20 países notificaram 204.547 casos e 2.362 óbitos; em 1994, 15 países notificaram 12.612 casos e 1.229 óbitos.7

Os primeiros casos de cólera no Brasil foram registrados em abril de 1991, no Estado do Amazonas, nos municípios de Benjamin Constant e Tabatinga, ambos na fronteira com Colômbia e Peru, em decorrência da grande pressão de transmissão procedente de Letícia, na Colômbia, e de Iquitos, no Peru, e, a partir destes casos, alastrou-se pelo país.8

Este trabalho tem por objetivo descrever o comportamento desta epidemia no Brasil, no período de abril de 1991 a março de 1996.

 

Material e Métodos

Os dados populacionais utilizados foram obtidos na Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (FIBGE), incluindo os dados censitários de 1991 e 1996 e as estimativas populacionais do intervalo.

Os dados sobre os casos de cólera foram obtidos no Centro Nacional de Epidemiologia (CENEPI), da Fundação Nacional de Saúde (FUNASA) do Ministério da Saúde (MS), que gerencia o sistema de vigilância epidemiológica da cólera no país, descrito detalhadamente em documento técnico.6 O banco de dados dos casos de cólera notificados, utilizado, inclui todos os dados registrados até julho de 1996 e contém as seguintes variáveis: sexo, idade, procedência, data de início dos sintomas, tipo de atendimento, evolução e critério de diagnóstico. Segundo informação da gerência técnica do controle de cólera, o intervalo entre a ocorrência do caso e o seu registro no banco de dados tem variado de alguns dias a um máximo de quatro meses. Assim, no banco trabalhado, consideramos como completa a informação dos casos ocorridos até 31 de março de 1996.

Os casos foram agrupados em períodos de um mês, e a unidade geográfica de análise foram as unidades federadas (26 Estados e o Distrito Federal), que estão distribuídos nas cinco macrorregiões (Norte, Nordeste, Centro Oeste, Sul e Sudeste).

O componente sazonal foi calculado segundo um modelo aditivo, através do alisamento por médias móveis, com janela = 12, e da diferença entre a série alisada e observada, sendo o componente sazonal, a média desta diferença para cada mês, utilizando o programa de computação STATISTICA 4.3.

 

Resultados

Entre 15 de abril de 1991 e 31 de março de 1996, foram notificados ao Ministério da Saúde 154.415 casos de cólera, e a grande maioria destes casos concentrou-se na região Nordeste, que notificou 141.856 casos (91,9%); na região Norte ocorreram 11.436 casos (7,4%); as regiões Sudeste, Centro-Oeste e Sul registraram, em conjunto, 1.123 casos (0,7%), dos quais 25,4% concentram-se no Estado de Mato Grosso. Na Tabela 1 estão dispostos os coeficientes anuais de incidência apresentados por todas as unidades federadas, entre 15 de abril de 1991 e 31 de março de 1996.

 

 

Na região Nordeste ocorreram três anos de pico, entre 1992 e 1994, com uma queda abrupta já em 1995, quando a incidência foi de apenas 5,73 por 100.000 habitantes, contra uma incidência de 131,32 e 109,68 por 100.000 habitantes, observadas, respectivamente, em 1993 e 1994.

Na região Norte estes números foram diferentes, com taxas de incidência menores, atingindo o máximo de 38,95 por 100.000 habitantes em 1992, e não apresentando grandes alterações dentro do período, com exceção de 1996, quando houve uma queda significativa que, provavelmente, ocorreu devido a fatores relacionados ao diagnóstico e notificação de casos, como poderemos observar mais adiante.

Na região Sudeste, a maior incidência da doença foi observada no Espírito Santo, com 3,71 casos por 100.000 habitantes em 1993, e 8,68 casos por 100.000 habitantes em 1994, números estes bastante baixos quando comparados aos coeficientes apresentados pelas regiões Norte e Nordeste.

Na região Centro-Oeste só ocorreram casos em 1994, no Estado de Mato Grosso, com coeficientes de incidência de 12,64 para o estado e 2,82 por 100.000 habitantes, para a região.

Na região Sul foram registrados apenas seis casos da doença, em um surto familiar ocorrido em 1993, no Estado do Paraná.

Na Figura 1 estão representadas as taxas de incidência mensais de cólera apresentadas no período pelo Brasil e pelas regiões Norte e Nordeste. Enquanto na região Nordeste os casos concentram-se nos anos de 1992, 1993 e primeiros meses de 1994, mais precisamente, num período de dois anos, compreendido entre os meses de abril de 1992 e maio de 1994, caindo significativamente depois deste período, percebe-se que, na região Norte, após um pico ocorrido no final de 1991 e início de 1992, quando a epidemia completou sua implantação na região, os casos passaram a distribuir-se de maneira mais homogênea durante os anos seguintes, com taxas de incidência anuais semelhantes, e com os picos ocorrendo nos meses de outubro a janeiro. O Brasil apresenta taxas de incidência com números próximos aos da região Norte, diluídos pelo acréscimo das populações das Regiões Sudeste, Sul e Centro-Oeste, que, praticamente, não produziram casos. Sua curva, porém, acompanha a da região Nordeste, por ter sido esta a grande produtora de casos no país.

 

 

Os Estados da região Norte, com exceção do Estado do Amazonas, apresentam picos de incidência em períodos irregulares, principalmente no início da epidemia, não se podendo notar nenhum comportamento sazonal da doença. No Amazonas, ao contrário, percebe-se claramente a endemização da cólera, com picos sazonais bem definidos, que ocorrem nos períodos compreendidos entre os meses de outubro a janeiro (Figura 2), época em que ocorre drástica diminuição nos níveis das águas dos rios da região.

 

 

Na região Nordeste, mesmo conhecendo-se as diferenças existentes entre os estados com relação a vários fatores que podem influir nestes números, como a eficiência dos serviços de vigilância epidemiológica e de diagnóstico e tratamento de casos, e a aceitação e adoção do critério clínico epidemiológico para a confirmação de casos, entre outras, é surpreendente a heterogeneidade apresentada entre eles. Em 1992, pode-se pensar que a epidemia ainda se encontrava em fase de expansão na região, o que justificaria a menor incidência nos locais onde a mesma implantou-se mais tardiamente; mas, nos anos seguintes, nada justifica coeficientes de incidência maiores que 25 vezes de um estado para outro, como é o caso do Maranhão (13,44 por 100.000 habitantes) e do Ceará (346,19 por 100.000 habitantes), em 1993. No conjunto, percebe-se que a produção de casos foi maior entre 1992 e 1994, caindo significativamente em 1995, e que nesse ano, os Estados do Piauí, Rio Grande do Norte e Sergipe não registraram um único caso.

Na Figura 3 podemos observar os coeficientes de incidência apresentados pelo Brasil em 1993, distribuídos por sexo e faixa etária. Em todas as faixas etárias a incidência foi maior nos indivíduos do sexo masculino, sendo esta variação menos marcante nos menores de dezenove anos. Tanto para o sexo feminino quanto para o masculino, a incidência aumenta gradativamente a partir dos 15 anos de idade, com aumento mais acentuado nas faixas etárias mais elevadas. Nos menores de 15 anos, a incidência é maior na faixa etária de menores de cinco anos do que nas faixas de cinco a nove e dez a 14 anos. Este padrão é semelhante para todos as unidades federadas, em todos os anos observados.

 

 

Os casos suspeitos notificados foram confirmados através dos critérios laboratorial (com cultura de fezes positiva para V. cholerae) e clínico-epidemiológico (com cultura de fezes não realizada ou negativa para V. cholerae, mas com aspectos clínicos e antecedentes epidemiológicos compatíveis com a doença), que se encontram descritos detalhadamente em documento técnico.6

Em 1991, como exigência da Comissão Nacional de Prevenção da Cólera (CNPC), todos os casos foram confirmados pelo critério laboratorial. Com exceção do Estado do Amazonas, todos os demais continuaram confirmando muito poucos casos através do critério clínico-epidemiológico nos anos subseqüentes, o que reforça a suspeita de que este tenha sido um dos motivos para ocorrência da maior incidência da doença nesse estado.

Os estados da região Nordeste, com exceção de Pernambuco e Bahia, confirmaram mais de 50% de seus casos de cólera pelo critério laboratorial, chegando a números próximos ou maiores de 85% no Maranhão, Paraíba, Piauí e Sergipe. O baixo percentual observado na Bahia, ocorreu devido a 5.000 casos diagnosticados e confirmados pelo critério clínico epidemiológico pela 7a Diretoria Regional de Saúde (DIRES) em 1992, quase o total apresentado por todo o estado durante o ano, e só reconhecidos pela Secretaria de Saúde estadual após o estudo, encomendado pela própria secretaria9, concluir que não havia supernotificação e que todos os casos notificados deveriam ser considerados confirmados. Ao contrario da região Norte, na região Nordeste este percentual caiu significativamente nos anos seguintes, só voltando a aumentar em 1995 e 1996, provavelmente devido ao pequeno número de casos ocorridos no período.

A grande maioria dos casos diagnosticados na região Sudeste foram confirmados pelo critério laboratorial, que apresentou, em seu total, taxas acima de 90% em 1993 e 1994.

Na região Centro-Oeste, a porcentagem de casos diagnosticados pelo critério laboratorial foi 38,4%, proporção ainda alta, mas menor do que a observada nas outras regiões.

A grande maioria dos pacientes diagnosticados no Brasil, no período estudado, foram atendidos ao nível hospitalar. Na região Norte, essas taxas variaram de 67,0 a 83,3% para a região como um todo, e que em alguns estados, como o Amapá em 1993 e 1995 e Rondônia em 1995, a taxa chegou a 100%. Os estados da região Nordeste também apresentaram percentuais altíssimos de casos que foram atendidos ao nível hospitalar, alguns chegando a apresentar números próximos de 100% em quase todos os anos. Na região Sudeste estes percentuais também foram bastante altos, com uma média de 57,5% para a região. Na região Centro-Oeste, a percentagem de casos atendidos ao nível hospitalar foi de 51,4%. Como apenas os casos graves necessitam de internação, o que no caso da cólera constitui a minoria (cerca de 10%), suspeita-se que foram diagnosticados apenas casos graves, que necessitaram de atendimento hospitalar. Este fato reforça a suspeita de que ocorreu uma grande subnotificação de casos.

Em 1991, a letalidade, dentre os casos notificados pela região Norte, variou de 0 (zero) para o estado de Rondônia a 1,8% para o Amazonas, com 1,5% para a região como um todo. Em 1992, apesar de um aumento para o Estado do Amazonas, que chegou a 2,8%, a taxa mantém-se estável, mas aumenta significativamente em 1993 e 1994, chegando a 4,6% no Amazonas e 7,1% no Acre, em 1993, e a 5,6% no Pará, em 1994, o que não era esperado, pois, nesse momento os serviços de saúde deveriam estar melhor preparados para diagnosticar e tratar rapidamente os casos, com conseqüente diminuição dos óbitos. Muito provavelmente este fato ocorreu devido ao relaxamento da vigilância epidemiológica, com conseqüente aumento na subnotificação de casos. As taxas de letalidade observadas na região Nordeste no período de 1992 a março de 1996 variaram de 0 (zero) a 6,7%, destacando-se as altas taxas apresentadas pelo Estado do Maranhão, acima de 3,0% entre 1993 e 1995 e chegando a 6,7% entre janeiro e março de 1996. Segundo relatório de supervisão efetuada pelo CENEPI10, no Estado do Maranhão, este número chegou, em alguns momentos a 10,5%, o que foi atribuído exclusivamente à subnotificação de casos. As altas taxas apresentadas em 1996, por quase todos os estados do Nordeste, também devem-se, provavelmente, à subnotificação de casos, ocasionada pelo relaxamento das atividades de vigilância epidemiológica, decorrente da diminuição de casos apresentada já em 1995. As taxas de letalidade apresentadas pela região Sudeste em 1993 e 1994, que foram as mais altas observadas no país, durante todo o período observado, variaram de 1,7% no Rio de Janeiro em 1994 a 33,8% em Minas Gerais, também em 1994, confirmando a deficiência na realização do diagnóstico da doença e indicando que devem ter ocorrido muito mais casos do que os diagnosticados. A taxa de letalidade na região Sudeste foi de apenas 0,4%.

De uma maneira geral, com poucas exceções, os números encontrados e as diferenças observadas entre as regiões e estados não causam surpresa, visto que era de nosso conhecimento a capacidade diferenciada, entre as regiões, em produzir casos, e entre os estados, em detectar e diagnosticar estes casos.

 

Discussão

Num período de aproximadamente três anos, compreendido entre abril de 1991 e abril de 1994, o V. cholerae conseguiu adentrar em todas as regiões brasileiras, sendo o seu maior impacto sentido, devido à grande produção de casos, nas regiões Norte e Nordeste, com o Sul e Sudeste sendo poupados. Isto não surpreende, pois, ao mesmo tempo que se sabe que a entrada da cólera não pode ser impedida, sabe-se também que sua implantação e disseminação podem ser controladas, onde as condições de saneamento e as condições de vida da população são melhores. A proporção de domicílios ligados à rede de água (DLRA) nestas regiões, segundo o censo demográfico realizado em 1991, eram 33,5% para a região Norte, 42,5% para a região Nordeste, 79,6% para a região Sudeste e 66,4% para a região Sul.

Quanto à região Centro-Oeste, o Distrito Federal e o Estado de Mato Grosso do Sul apresentam condições de saneamento semelhante às regiões Sul e Sudeste: 62,0% e 81,2% DLRA, respectivamente. Mas o saneamento não explica o fato de o Estado de Goiás ter sido totalmente poupado e o Estado de Mato Grosso ter diagnosticado poucos casos, em um curto período de tempo (44,2% e 49,8% de DLRA respectivamente). Pode-se conjecturar que nesses dois estados, onde a densidade demográfica é menor, o trânsito de pessoas também seja menor e com fluxo das populações mais pobres, as mais suscetíveis à cólera, direcionado mais para fora do que para dentro da região, o que pode ter determinado a ocorrência de um pequeno número de portadores e de casos não diagnosticados, insuficientes para desencadear uma epidemia de grandes proporções.

Esta variação entre as regiões deve-se, em parte, às condições de saneamento, à densidade populacional e aos meios de transporte, mas a variação entre os estados, para cada uma das regiões, deve-se, mais provavelmente, a problemas relacionados ao diagnóstico e confirmação de casos, como já apontado por outros autores.11 Reforça esta hipótese os dados do tipo de atendimento recebido e o critério diagnóstico adotado. Por razões operacionais a cobertura de swab retal e cultura para V. cholerae é baixa em geral, sendo maior nos hospitais localizados em centros urbanos, concentrando o diagnóstico laboratorial nos hospitais, como mostram os dados. Por outro lado, o critério clínico-epidemiológico mostrou um valor preditivo positivo de 88% em estudo no Peru12, sendo portanto a alternativa factível para a vigilância epidemiológica no nosso meio, uma vez constatada a circulação do vibrião. Na maioria das vezes, os estados com os menores coeficientes de incidência são aqueles que têm as maiores percentagens de pacientes atendidos ao nível hospitalar e as maiores taxas de letalidade, o que indica que foram diagnosticados apenas os casos graves da doença, e também as maiores percentagens de confirmação de casos através do critério laboratorial, indicando que muitos casos detectados não foram considerados como cólera. Vale ressaltar que a interpretação dos coeficientes de letalidade deve ser realizada com cautela, já que não dependem apenas da gravidade dos casos notificados, como também do acesso aos serviços de saúde e da qualidade da atenção recebida. A despeito do grande investimento realizado quanto à atenção às diarréias e desidratação, estudo recente em nove capitais brasileiras demonstrou grande proporção de atendimentos inadequados.13

A análise realizada nos níveis regionais e estaduais, no entanto, não esgota a questão da vulnerabilidade à cólera das áreas com bons indicadores globais de saneamento. O controle da qualidade da água na rede de distribuição nem sempre assegura a qualidade da água consumida,14 e bolsões de pobreza nas regiões mais desenvolvidas do país permitem a introdução e estabelecimento da cólera.15

Quanto à distribuição dos casos por sexo e idade, o grupo mais atingido foi o de homens maiores de 15 anos que, devido à sua maior mobilidade, provavelmente estão mais expostos a fontes de infecção, como, por exemplo, alimentos vendidos na via pública16. Entre os menores de 15 anos, foi o grupo de menores de cinco anos o mais atingido, o que reforça a posição de outros autores quanto à importância deste patógeno na etiologia da diarréia infantil em áreas endêmicas ou durante epidemias.17

Os coeficientes de incidência variaram muito entre as unidades federadas, chegando, na região Norte, a 111,59 por 100.000 habitantes no Amapá, em 1992, e na região Nordeste, a 346,19 por 100.000 habitantes, em 1993, e 302,74 por 100.000 habitantes em 1994, no Ceará.

O Ceará chama a atenção por apresentar as maiores taxas de incidência anuais do país por dois anos consecutivos. As características da epidemia neste estado foram detalhadamente descritas e analisadas por Toledo.18

Outra unidade federada que chama a atenção é o estado do Amazonas, que apresenta um comportamento sazonal marcado desde a introdução do vibrião no país. Se observarmos a ocorrência de casos até dezembro de 1996 - abril a dezembro não estavam incluídos na análise - observamos uma incidência de 2,26 por 100.000 habitantes, uma diminuição significativa quando comparamos com os anos anteriores, mas que mantém o seu componente sazonal, pois, dos 54 casos notificados, 49 (90,7%) ocorreram nos meses de janeiro (31 casos), fevereiro (6 casos), novembro (4 casos) e dezembro (8 casos). Esta diminuição da incidência pode, em parte, ser explicada pelo fato de o estado ter novamente adotado o critério laboratorial, em larga escala, para a confirmação dos casos. Enquanto a percentagem de casos confirmados por este critério, em 1995, foi de 21,1% e, em 1996, até 31 de março, foi de 13,9%, no restante do período, ou seja, entre os meses de abril e dezembro de 1996, este percentual voltou a ser 100%, como em 1991.

Hoje se sabe que o V. cholerae é um microorganismo que sobrevive em ecossistemas aquáticos de estuários e pântanos costeiros, a partir dos quais infecta o homem acidentalmente.19 A infecção humana através destes reservatórios pode estabelecer ou não surtos e/ou epidemias com uma dinâmica de transmissão dependente da organização social humana. A possibilidade de sobrevivência do microorganismo em sistemas aquáticos de água doce já foi demonstrada em laboratório20 e a hipótese de seu estabelecimento em algum nicho ecológico da região amazônica já foi sugerida por outros autores.

 

Considerações Finais

A entrada da cólera no Brasil provocou epidemia nas regiões com piores condições socioeconômicas, porém com menor magnitude do que no vizinho Peru. O comportamento da cólera indica seu estabelecimento enquanto doença endêmica no continente. A análise descritiva dos dados do sistema de vigilância epidemiológica no país permite levantar hipóteses sobre o comportamento epidemiológico da doença, que orientem estudos de campo sobre reservatórios aquáticos permanentes, como vimos no caso do Estado do Amazonas.

Estudos científicos e ações sanitárias efetivas são importantes, não apenas para eliminar a circulação do V. cholerae 01, biotipo El Tor, do país, como para enfrentar no futuro uma possível oitava pandemia produzida pelo V. cholerae O139.21,22

 

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