SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.10 número4Projeto Bambuí: um estudo epidemiológico de características sociodemográficas, suporte social e indicadores de condição de saúde dos idosos em comparação aos adultos jovens índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

  • Não possue artigos citadosCitado por SciELO

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Informe Epidemiológico do Sus

versão impressa ISSN 0104-1673

Inf. Epidemiol. Sus v.10 n.4 Brasília dez. 2001

http://dx.doi.org/10.5123/S0104-16732001000400001 

EDITORIAL

 

Novas perspectivas nas análises de padrões de desgaste de grupos populacionais

 

 

Paulo Chagastelles Sabroza

Membro do Comitê Editorial - IESUS

 

 

No século vinte, as populações humanas apresentaram profundas alterações que, em pouco tempo, vieram modificar padrões demográficos históricos que expressavam o resultado de experiências seculares de adaptação das sociedades aos seus contextos ambientais, sempre com custos elevados em relação a mortes prematuras e sofrimento físico. Essas mudanças decorreram de transformações no conjunto das organizações sociais, destacando-se os movimentos populares por melhores condições de vida e a rapidez na incorporação e difusão de inovações técnicas.

Conseqüentemente, mesmo nas formações socioespaciais periféricas, as taxas de mortalidade na infância e as taxas de natalidade caíram de modo rápido e acentuado, embora de forma defasada, o que levou a inédito crescimento das populações e aumento das demandas sociais. A ênfase na preocupação neomaltusiana com a questão das taxas elevadas de crescimento populacional, que logo se mostraram temporárias, limitou até há pouco a nossa capacidade de dar destaque a outros componentes fundamentais deste processo de transição demográfica, que vieram a se mostrar como de maior e duradouro impacto sobre as condições de vida e de saúde: a intensa e irreversível urbanização e a profunda alteração da estrutura etária, com o progressivo aumento da participação dos idosos, já excluídos da reprodução biológica e dos processos tradicionais de trabalho.

Os modelos de sociedades urbanas evoluíram, na metade do século passado, daqueles apoiados no trabalho, que enfatizavam o desenvolvimento social, para outros centrados na expansão do consumo de produtos e serviços disponíveis em mercados globalizados e sempre em expansão. As implicações que isso acarretou para os projetos de saúde foram marcantes. Questões como o prolongamento progressivo da duração da vida humana, o uso difundido de próteses mecânicas e químicas e a redução da morte a um evento técnico, desprovido de valor simbólico, vieram responder mais aos estímulos e expectativas de ampliação de mercados da crescente indústria médica do que a propostas concretas relativas a melhores condições de saúde ou mesmo redução do sofrimento humano.

No Brasil, a intensa medicalização das demandas sociais, iniciada no período militar e acentuada com a integração desigual da maior parte da população como consumidores do circuito inferior urbano, conseguiu efetivamente deslocar a ênfase do direito à melhoria da qualidade de vida para a questão do acesso a produtos e serviços de atenção médica, cuja oferta passou a expressar as prioridades de um dos setores mais dinâmicos da economia.

Difundiu-se, assim, a ilusão de que a técnica seria capaz de compensar os desgastes decorrentes da precariedade das condições de vida. Mas, o que se constatou, foi a expansão do sentimento de desamparo nas populações.

Ao contrário do que previa a ideologia científica da transição epidemiológica, a redução da mortalidade precoce por doenças infecciosas e o conseqüente aumento da expectativa de vida não resultaram em melhores condições de saúde das populações. O acúmulo de morbidade como conseqüência do desgaste devido às condições precárias de vida e trabalho, o sofrimento mental decorrente da alienação social e as várias formas de violência produziram um quadro que os modelos de atenção médica não conseguem reverter.

A conscientização das conseqüências desses processos, orientados até agora mais pela lógica da reprodução do capital do que da reprodução da vida, impõe a revisão do modo como tem sido tratadas as questões das mortes prematuras, das agressões e da qualidade de vida e cuidado no momento da morte inevitável dos idosos. A alternativa concreta à expansão inesgotável da demandas e ofertas de serviços e produtos dirigidos a uma atenção médica de custo cada vez maior e de precários resultados parece ser a recuperação do valor de duas práticas essenciais na tradição da humanidade: o cuidado e o trabalho.

Se, agora, já podemos pensar em outras formas de trabalho além daquelas priorizadas no modelo industrial tradicional, surge a ocasião de construir projetos de saúde que considerem outras oportunidades de participação das pessoas e que não priorizem apenas seu papel de consumidor e sua inserção no mercado, mas respeite sua prática e inserção social, independente da idade de cada um.

A possibilidade de saúde dependeria mais de um contexto de cuidados e promoção de competências singulares do que apenas do acesso a técnicas de tratamento, sendo perfeitamente compatível a condição de saúde com a presença de limitações decorrentes de enfermidades ou da idade, desde que não inviabilizem a inserção social e a busca de realização pessoal. Por outro lado, a simples extensão da duração da vida pode estar representando apenas a acumulação de dor, sofrimento, dependência e medo, se não for acompanhada da possibilidade de respeito e participação.

Estudos como estes apresentados neste número do Informe Epidemiológico do SUS começam a mostrar como abordar os problemas da saúde e da morte, em perspectivas que permitam tratar essas questões com a complexidade necessária, sem a redução a simples estatísticas.

O artigo de Maria Fernanda de Lima e Costa e colaboradores apresenta os resultados de estudo de condições de vida e saúde de população de idosos em uma cidade de pequeno porte, mostrando como o padrão urbano, nas suas dimensões demográfica, de difusão de fatores de risco e de consumo, já está presente mesmo nas pequenas localidades do País, integradas em uma extensa malha urbana, que subordina as áreas rurais e universaliza seus projetos, problemas e modelos de atenção.

Os dois artigos de Lenice Ishitani e Elizabeth França apresentam a questão das causas múltiplas de morte, abordando um dos principais aspectos metodológicos dos procedimentos de classificação e sua utilização nos serviços de saúde. O outro trata da sua aplicação na análise das causas múltiplas de morte por doenças crônico-degenerativas em adultos de uma região metropolitana. A utilização do conceito de causas múltiplas de morte possibilita uma primeira aproximação em relação à perspectiva de deixar de entender a morte como evento isolado e passar a considerá- la como processo integrado no movimento da vida, refletindo o seu desgaste nas múltiplas formas de adoecer, que expressam as condições da experiência vivida.

Finalmente, o trabalho de Inês Mattos discute a morbidade por causas externas em crianças a partir dos registros de atendimento hospitalar. O descuido e a violência contra crianças e adolescentes são o mais dramático componente do desgaste de uma sociedade, na medida em que coloca em questão a perda de compromisso em sua continuidade e na reprodução da vida. No momento em que essas questões emergem, a busca de indicadores que nos imponham a reflexão sobre as prioridades do sistema de saúde e a ampliação do conceito de cuidado certamente é uma das principais contribuições que os epidemiologistas podem prestar à sociedade.