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Informe Epidemiológico do Sus

versão impressa ISSN 0104-1673

Inf. Epidemiol. Sus v.10 n.4 Brasília dez. 2001

http://dx.doi.org/10.5123/S0104-16732001000400005 

 

Morbidade por causas externas em crianças de 0 a 12 anos: uma análise dos registros de atendimento de um hospital do Rio de Janeiro

 

External causes of morbidity in children aged 0-12 years: an analysis of medical records at an emergency hospital in Rio de Janeiro

 

 

Inês E. Mattos

Departamento de Epidemiologia e Métodos Quantitativos em Saúde / Escola Nacional de Saúde Pública / FIOCRUZ

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Foi realizado um estudo descritivo de variáveis coletadas em todos os boletins de atendimento de crianças de 0 a 12 anos, atendidas nos meses de maio e outubro de 1995, devido a causas externas, em um hospital de emergência do Rio de Janeiro. Foram selecionadas para análise variáveis demográficas (sexo, idade) e outras, como causa da lesão, tempo decorrido entre a ocorrência do acidente e a consulta, tipo de lesão. Foi observado predomínio do sexo masculino entre as crianças atendidas (57,4%; p<0,01), e maior número de atendimentos na faixa etária de cinco a nove anos (26,8%). As quedas se destacaram como a principal causa de morbidade em todas as faixas etárias, correspondendo a 44,7% dos atendimentos analisados. Alguns dados observados chamaram a atenção para a possibilidade de maus-tratos.

Palavras-Chave: Causas Externas; Morbidade; Acidentes.


SUMMARY

A descriptive study was conducted of the medical records of children aged 0-12 years treated at an emergency hospital in Rio de Janeiro for an external cause of morbidity during the months of May and October, 1995. The records were analyzed according to demographic variables (sex, age) and others related to the cause of injury, time elapsed between the accident and medical attention and type of lesion(s). A high proportion of those receiving medical attention were male (57.4%; p<0.01), and there was a predominance of children aged 5-9 years (26.8%). Falls were the principal external cause of morbidity in all age groups (47.7% of all analyzed records). Some data indicated the possibility of child-abuse.

Key Words: External Causes; Morbidity; Accidents.


 

 

Introdução

Nas últimas décadas, uma série de fatores, entre os quais se inclui o progresso da Medicina no campo do diagnóstico e tratamento de uma série de patologias, entre elas, as doenças infecciosas, contribuíram para que as causas externas se tornassem uma das mais importantes ameaças à saúde e bem-estar de crianças e adolescentes.

Esse problema, observado no Brasil, assim como em todo o continente americano, levou a Organização Pan Americana da Saúde (OPAS), em 1993, a solicitar, de seus países-membros, o estabelecimento de políticas e planos de prevenção e controle da violência.1 Naquele mesmo ano, a Coordenação Materno-Infantil do Ministério da Saúde, preocupada com essa questão, se propunha a garantir o seu estudo como linha de pesquisa prioritária, destacando as universidades e centros de investigação como locais privilegiados para a execução desse tipo de trabalho.2

Nas causas externas, estão envolvidos dois tipos de eventos: a natureza das lesões que o paciente apresenta (codificadas de acordo com o capítulo XIX da Décima Revisão da Classificação Internacional de Doenças - CID-10)3 e as circunstâncias que produziram essas lesões.4 A CID-10 tem um sistema de classificação suplementar para a codificação dessas circunstâncias, encontrado no capítulo XX, que fornece a informação básica necessária para a organização de programas preventivos - a causa da lesão.5

Embora a incidência de lesões por causas externas exceda em muito o número de casos fatais, esse grupo de causas, vem sendo, tradicionalmente, estudado por meio da mortalidade, sendo os sistemas de informação de morbidade, em quase todos os países, precários ou inexistentes.6,7 Em um amplo estudo sobre morbidade por causas externas em crianças de 1 a 17 anos, realizado nos Estados Unidos, Scheidt e colaboradores8 observaram que "em nenhum grupo de idade, as três causas mais freqüentes de lesões não fatais eram as mesmas verificadas para lesões fatais". Com base nesses dados, os referidos autores levantam a possibilidade de que os determinantes dos dois tipos de lesões possam ser diferentes e destacam a importância dos estudos de morbidade para o controle e a prevenção da violência.

Embora seja bastante comum associar a palavra violência com criminalidade, os estudiosos desse tema consideram- na uma questão bem mais ampla, que tem sua origem em processos sociais, assumindo diferentes formas de manifestação.9 Nesse sentido, o aumento da violência estaria, portanto, relacionado a um intrincado processo de determinações econômicas, políticas e sociais, peculiares a cada país, mas que resultam em um quadro geral de elevação da morbimortalidade por causas externas, observado praticamente em todo o mundo, nos anos mais recentes. Devido à extrema complexidade desse fenômeno, diversos trabalhos publicados destacam a importância da abordagem multidisciplinar para a investigação de suas causas.6,9

A realização desse tipo de investigação, de caráter tão amplo, foge, evidentemente, ao escopo e às possibilidades dos profissionais que atuam na rede de serviços de saúde. Por outro lado, é para esses serviços que confluem as vítimas das diferentes formas de violência, em busca de tratamento e solução para seus problemas, consti-tuindo-se eles também num "locus" privilegiado para o estudo e análise dessas questões.6,10 Não é por outro motivo, que nesses mesmos serviços, os pesquisadores vão recolher as informações de que necessitam para a realização de seus trabalhos.7

O desenvolvimento de qualquer trabalho de investigação, assim como a elaboração de programas preventivos e sua posterior avaliação, tem como ponto imprescindível a existência de registros completos e acurados. Esses registros são realizados pelos profissionais que atuam nos serviços de saúde e que, embora "... tenham como dever diagnosticar, notificar e atender os casos de crianças e adolescentes vítimas de violências, além de encaminhá-los e acompanhá-los objetivando um atendimento integrado (...)" raramente têm acesso ao saber de pesquisadores (...)".2

O Hospital Miguel Couto, da rede de saúde do município do Rio de Janeiro, há alguns anos, vem se preocupando em analisar os seus registros hospitalares e devolver a informação já trabalhada, não só ao conjunto de seus profissionais, com o objetivo de fornecer subsídios para a melhora da qualidade do atendimento e de incentivar o aprimoramento individual, mas também à população em geral. Esse esforço de utilizar as fontes de informações originadas no próprio hospital, permitiu que fosse observado um aumento acentuado dos atendimentos de emergência relacionados às causas externas, na faixa etária de 0 a 18 anos.11

Esses dados motivaram a realização de um estudo piloto, com o objetivo de investigar as principais causas de morbidade por causas externas em crianças de 0 a 12 anos (grupo etário que recebe atendimento pediátrico), atendidas no setor de emergência do referido hospital.

 

Material e métodos

Todos os boletins de atendimento do Serviço de Emergência do Hospital Municipal Miguel Couto, referentes aos meses de maio e outubro de 1995, foram separados, para posterior seleção daqueles pertencentes a crianças de 0 a 12 anos de idade. Esses meses foram escolhidos por serem de semestres diferentes e por serem considerados "típicos" em relação aos atendimentos efetuados na Emergência, uma vez que não coincidem com períodos de férias ou festas populares.

Os boletins selecionados foram, então, divididos em dois blocos, de acordo com o tipo de causa que motivou o atendimento. Os boletins, cujo motivo da consulta era uma causa externa, constituíram o objeto desse estudo. Foi desenhado um protocolo para coleta de informações nos Boletins, que incluía uma série de variáveis como sexo, faixa etária, horário do atendimento, causa do acidente e tipo de lesão, procedimentos utilizados para tratamento, atendimento por outros profissionais especializados e tempo decorrido entre o acidente e a consulta. A coleta de todas as informações dos boletins foi realizada sempre pela mesma pessoa.

Com os dados obtidos, foram construídas tabelas de freqüência para a análise da distribuição das variáveis estudadas. Um espaço no final do questionário permitia que fossem transcritas quaisquer outras informações dos boletins que fossem de interesse para o estudo. Algumas variáveis analisadas como descrição da lesão, medidas terapêuticas adotadas, realização de exames complementares para diagnóstico e atendimento por médico especialista não serão aqui apresentadas, devido ao alto percentual de não preenchimento nos boletins (variando entre 33 e 57%).

 

Resultados

Em relação ao total de atendimentos do Serviço de Emergência do Hospital Miguel Couto, nos meses estudados, o atendimento pediátrico correspondeu a 22% do total, com 9.191 boletins; destes, 12% dos casos (1.093 boletins) foram devidos a causas externas, correspondendo a uma média de 18 atendimentos por dia para esse grupo de patologias.

Na Tabela 1, é apresentada a distribuição dos atendimentos por causas externas segundo sexo e faixa etária. Pode-se observar um predomínio do sexo masculino em relação ao feminino, estatisticamente significativo, ocorrendo, entretanto, uma oscilação desses valores nas diferentes faixas etárias. As crianças de 5 a 9 anos foram o grupamento etário com maior número de atendimentos, seguidos dos grupos de 10 a 12 e de 1 a 2 anos.

 

 

Em relação ao tempo transcorrido entre o acidente e o atendimento, observou- se que o percentual de crianças atendidas após 24 horas do acidente era maior nas faixas etárias menores (Tabela 2). No grupo de menores de 1 ano, o atendimento tardio correspondeu a 34% do total; no grupo de 1 a 2 anos, esse percentual diminuiu, mas ainda assim correspondeu a cerca de 16%, atingindo cerca de 11% entre as crianças de 10 a 12 anos.

 

 

A Tabela 3 apresenta os diferentes grupamentos de causas externas e suas freqüências de ocorrência segundo faixa etária. As quedas representaram a principal causa de atendimento pediátrico por causas externas, vindo em segundo lugar a exposição a forças mecânicas inanimadas. No grupo de crianças de 0 a 2 anos, assim como na faixa etária de 5 a 9 anos, as quedas corresponderam a mais da metade dos casos atendidos. A exposição a forças mecânicas inanimadas foi a principal causa de atendimento nas faixas etárias de 3 a 4 e de 10 a 12 anos, destacando-se, nesse grupo, o impacto acidental contra objetos e a introdução de corpo estranho no ouvido ou no nariz. As queimaduras foram importante causa de atendimento no grupo de menores de um ano. É importante destacar o grande número de acidentes de causa ignorada, que dificulta a análise dos dados.

 

 

Na Tabela 4, são apresentados os acidentes por queda, em cada faixa etária, segundo a forma de ocorrência. Grande número de casos com informação incompleta, impedindo a classificação do acidente, aparece em todos os grupos de idade, comprometendo a análise desses dados. Nos casos em que foi possível estabelecer a causa da lesão, verificamos que as quedas de cama ou berço predominam na faixa etária de menores de um ano de idade. No grupo de 1 a 4 anos, assumem maior importância as quedas de escada. As quedas da própria altura são observadas como importante causa de acidente, em todas as faixas etárias, a partir de um ano de idade.

 

 

Discussão

Antes de comentar os resultados desse estudo, algumas limitações precisam ser mencionadas.

Em primeiro lugar, trata-se de um estudo que utilizou dados da demanda do Hospital Miguel Couto. Nesse sentido, os dados levantados, embora correspondam ao total de atendimentos, foram coletados em apenas dois meses e podem estar expressando resultados diferentes daqueles que seriam obtidos ao longo de um período maior de investigação.

É importante lembrar, também, que o grupo de crianças estudado representa apenas uma parcela daquelas que, diariamente, se acidentam. De modo geral, são crianças que sofreram lesões um pouco mais sérias, que requeriam cuidados médicos e que, além disso, tiveram acesso ao tratamento.7 Em um estudo realizado nos Estados Unidos8 foi verificado que 27 em cada cem crianças de 1 a 17 anos, apresentam lesões por causas externas no período de um ano. Desconhecemos a existência de um trabalho semelhante em nosso país, mas, tomando como base os dados acima, é possível, para exemplificar, fazer uma estimativa grosseira do número de acidentes que esperaríamos que ocorressem, nesse grupo etário, ao longo de um ano. A população de 0 a 19 anos da área de planejamento do município do Rio de Janeiro, onde se situa o Hospital Miguel Couto (AP 2.1), era, de acordo com dados do Censo de 1991, constituída por 162.957 pessoas.11 Considerando uma incidência semelhante à do estudo citado, chegaríamos ao número de 43.998 ocorrências por ano, para essa população, um número certamente bem maior do que o que seria observado naquele hospital, ao longo de um ano, considerando uma média de mil atendimentos por mês e somente para moradores daquela área. Entretanto, é preciso considerar que o Hospital Miguel Couto não atende somente os moradores da região onde está situado, mas tem uma demanda ampliada de pessoas residentes em outras áreas consideradas no planejamento do município e mesmo em outros municípios do Estado.11

No presente estudo, observou-se predomínio do sexo masculino, em relação ao total de atendimentos, embora os percentuais por sexo tenham oscilado nas diferentes faixas etárias, fato que poderia ser atribuído ao reduzido número de indivíduos em alguns dos estratos analisados. Scheidt e colaboradores,8 em um estudo sobre morbidade por causas externas em crianças americanas, verificaram o predomínio do sexo masculino em todas as faixas etárias. Kendrick e Marsh,12 na Inglaterra, observaram resultados semelhantes em um estudo sobre mortalidade por causas externas na infância que visava identificar características sociodemográficas associadas a um maior risco de acidentes. Em um estudo realizado num bairro da periferia de Ribeirão Preto, Del Ciampo e colaboradores13 encontraram um maior percentual de acidentes em meninos (55%) do que em meninas (45%), embora essa diferença não tenha sido estatisticamente significativa.

Apesar de ter sido constatada uma preocupação maior em descrever as conseqüências (as lesões) do que propriamente as causas dos acidentes, até mesmo para aquelas existiram inúmeras deficiências no preenchimento dos boletins de atendimento do paciente.

Em um estudo sobre a utilização do código E para classificar a morbidade de pacientes hospitalizados por causas externas, realizado em hospitais de diversos estados americanos, Langlois e colaboradores5 observaram que pouco mais de 50% dos casos de hospitalização por violências recebem codificação adicional para a causa das lesões; em 90% dos casos, entretanto, essas informações estavam presentes nos registros médicos dos pacientes, sendo possível, ao recuperá-las, atribuir o código correspondente. No caso do Hospital Miguel Couto, entretanto, observou-se que cerca de 20% dos boletins de atendimento não registravam em nenhum local a causa da lesão, inviabilizando esse tipo de codificação. Essa informação, de modo geral, foi encontrada com mais freqüência apenas para os chamados casos policiais (colisões, atropelamentos e outros), para os quais o hospital adota, há algum tempo, um carimbo específico para cada causa de lesão.

A falta de informações nos Boletins de atendimento não permitiu que os dados fossem analisados segundo o local de ocorrência do acidente (casa, escola, rua). No seu estudo, Scheidt e colaboradores8 observaram que os acidentes em casa eram mais comuns nos grupos etários mais jovens, sendo substituídos pelos acidentes na escola e, depois, na rua, à medida em que aumentava a idade. Nesse mesmo trabalho, quedas, contu-sões e cortes foram os principais tipos de acidentes em todas as faixas etárias, à semelhança do observado no hospital Miguel Couto. No estudo de Ribeirão Preto,13 mais da metade dos acidentes ocorreram em casa, sendo também mais freqüentes as quedas, as contusões e os cortes.

As quedas, junto com os acidentes provocados pela exposição a forças mecânicas inanimadas e as queimaduras, constituíram cerca de 76% das causas conhecidas dos acidentes atendidos no período do estudo. Pode-se observar que grande parte desses acidentes ocorreu no grupo de crianças menores de dez anos. Uma possível explicação para esses resultados poderia ser o número expressivo de crianças dessa faixa etária, que permanece em casa, sob a supervisão de irmãos um pouco mais velhos, devido a necessidade da mãe em exercer uma atividade remunerada. Esse fato poderia, também, justificar, pelo menos em parte, a demora observada na busca de atendimento médico. Del Ciampo e colaboradores,13 em Ribeirão Preto, também observaram maior percentual de acidentes na faixa etária de até dez anos.

Em relação às causas das quedas, foram observadas diferenças entre este estudo e o trabalho realizado por Scheidt e colaboradores8 pois, enquanto no hospital verificou-se número bastante reduzido de quedas de bicicleta, mesmo nos grupos etários mais velhos, no estudo americano, grande número delas foi devido a essa causa ou a quedas de skate, na faixa etária de 8 a 15 anos. Essas diferenças poderiam estar relacionadas a diferenças socioeconômicas entre as populações de estudo.

Scheidt e colaboradores,8 devido ao grande número de acidentes cuja causa foi a prática de esportes e a utilização de bicicletas e veículos similares, levantam a possibilidade de que a associação positiva que observaram entre freqüência de acidentes e nível socioeconômico, seja explicada pelo fato de essas atividades serem praticadas, de modo geral, pelos grupos de maior poder aquisitivo. Embora o Hospital Miguel Couto atenda indivíduos oriundos de todos os grupos socioeconômicos,11 uma grande parcela de sua clientela é formada por pessoas de baixo e médio poder aquisitivo, o que estaria de acordo com os dados obtidos. Entretanto, é preciso considerar, o grande número de quedas com causa ignorada, observado neste estudo, particularmente nas faixas etárias mais velhas. Na Inglaterra, Kendrick e Marsh12 verificaram a existência de um gradiente socioeconômico na mortalidade por causas externas em crianças, observando que o fato de residir em áreas pobres estava associado com acidentes que necessitavam de internação para tratamento e com o número de lesões apresentadas.

As conseqüências do acidente constituem importante informação para o planejamento e administração dos serviços de saúde, permitindo-lhes prepararse melhor para o atendimento da demanda, tanto em termos de recursos humanos como de recursos materiais. Essa informação, como já mencionamos, também apresenta inúmeras deficiências nos boletins de atendimento analisados: em 33% deles, não havia nenhuma descrição das lesões apresentadas pelos pacientes. A precariedade da informação não permitiu uma análise dos dados coletados.

O grande número de casos de acidentes atendidos após 24 horas, especialmente no grupo de crianças menores de um ano, em que as quedas e queimaduras foram importantes causas de atendimento, é um fato que chama a atenção, assim como as circunstâncias que levaram à ocorrência das quedas (queda de colo, de carrinho). No grupo de um a dois anos, observamos também um grande número de quedas, entre elas, sete quedas de colo, três de cadeira e três de mesa. Esses dois últimos tipos de queda aparecem com quantitativo semelhante no grupo de três a quatro anos, enquanto no grupo de cinco a nove anos chamam a atenção três quedas de cama que necessitaram de atendimento médico.

Em estudo realizado na Inglaterra, Warrington e colaboradores,14 investigando acidentes ocorridos em crianças de até seis meses de idade, observaram um percentual de 1,5% para queimaduras, bem menor do que o verificado em nosso estudo, com a ressalva de que consideramos crianças até um ano. Nesse mesmo trabalho, entre o conjunto de quedas relatadas, 53% haviam sido de camas ou cadeiras e 12% dos braços de quem carregava a criança, percentuais bastante diferentes também dos observados em nosso estudo. Essas diferenças, todavia, poderiam estar relacionadas ao grande número de casos ignorados, devido ao preenchimento incompleto dos boletins de atendimento.

A questão dos maus-tratos é um aspecto importante da morbidade por violências em crianças,10 sendo um de seus principais tipos a violência física, que ocorre no ambiente doméstico.2,10,12 A distinção entre maus-tratos e acidente é uma tarefa complicada, pois a própria conceituação do termo é complexa, em uma sociedade onde os castigos físicos ainda são relativamente comuns e considerados, por muitos, como indispensáveis para a educação da criança.15

Alguns aspectos, entretanto, podem ser facilmente observados pela equipe de saúde: "a história dos pais não está de acordo com os achados clínicos"(...) "muitas vezes eles vêm ao hospital por outra queixa ..."; "a atitude de indiferença dos pais para com a gravidade dos ferimentos"; "nota-se que o problema ocorreu há alguns dias ou horas antes, havendo, portanto, demora em procurar ajuda médica".15 Santoro16 destaca ainda outros aspectos, como a localização das lesões (parte superior do corpo), sua simetria e o seu tipo (queimaduras, principalmente por líquidos quentes, fraturas múltiplas de ossos longos), a discrepância entre a história e o exame físico ou na cronologia do evento e o tempo decorrido entre o acidente e a procura do socorro médico.

Trogan e colaboradores17 mencionam que, segundo a literatura, um terço das lesões de fêmur que ocorrem em crianças abaixo de seis anos poderiam ser atribuídas a maus tratos; entretanto, ao analisarem 57 casos consecutivos de fratura femural em crianças dessa faixa etária, em um hospital de emergência da Grécia, verificaram que em nenhum deles havia sido feito esse diagnóstico, ou mesmo levantada a suspeita de maus tratos, embora o padrão de ocorrência das lesões, em alguns casos, fosse compatível com essa hipótese. Os autores destacam a necessidade de chamar a atenção dos profissionais do hospital para esse problema, de modo que ele possa ser revelado, quantificado e apropriadamente trabalhado naquele país.

Deslandes18 destaca que os maiores percentuais de registros recolhidos sobre esse tipo de violência se encontram nas classes populares, que constituem, justamente, uma grande parcela da demanda da rede municipal, sendo necessário, portanto, que os profissionais de saúde saibam identificar e tratar esses casos, assim como sabem diagnosticar e tratar pneumonias e gripes.

Em um estudo de morbidade realizado com a utilização de dados registrados em boletins de atendimento, e limitado por sérias deficiências no preenchimento, não seria possível uma análise aprofundada sobre a possibilidade de ocorrência de maus-tratos, mas vale destacar os relatos abaixo, bastante ilustrativos de alguns outros que foram observados:

"Menina de seis meses, atendida com traumatismo crânio-encefálico. A família relata que a criança caiu do colo da mãe, três dias atrás, não sabendo explicar direito porque só procurou atendimento hoje".

"Menina de um ano e oito meses, atendida 48 horas após o acidente com relato de queda de berço. Radiografada, apresentava fraturas nos ossos das duas mãos."

Apesar das inúmeras limitações que os dados disponíveis nos serviços de saúde possam apresentar, a importância de sua análise deve ser sempre destacada. Até mesmo registros precários constituem uma aproximação da realidade e, quando analisados, podem sugerir caminhos para serem aprofundados em estudos mais completos.

Por outro lado, pesquisas realizadas por universidades e outros centros de investigação utilizam os dados produzidos pelos serviços de saúde, mas o conhecimento daí resultante percorre um longo caminho até chegar ao profissional que trabalha na linha de frente, o que torna importante a análise desses dados no próprio local.

O uso freqüente dos registros hospitalares e a discussão dos resultados com os profissionais responsáveis pela sua produção possibilitaria o aprimoramento da qualidade da documentação médica, contribuindo para o bom desempenho do serviço e para o melhor atendimento da população.

 

Referências bibliográficas

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Endereço para correspondência:
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