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Informe Epidemiológico do Sus

versão impressa ISSN 0104-1673

Inf. Epidemiol. Sus v.11 n.3 Brasília set. 2002

http://dx.doi.org/10.5123/S0104-16732002000300002 

Entre a fragmentação e a integração: saúde e qualidade de vida de grupos populacionais específicos*

 

Between fragmentation and integration: health and quality of life in specific population groups

 

 

Elizabeth UchoaI; Brani RozembergII**; Marcelo Firpo de Souza PortoIII

ICentro de Pesquisas René Rachou/FIOCRUZ
IIInstituto de Pesquisa Clínica Evandro Chagas/FIOCRUZ
IIIEscola Nacional de Saúde Pública/FIOCRUZ

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente texto, produzido para balizar um debate ampliado sobre saúde e qualidade de vida em grupos populacionais específicos, apresenta exemplos extraídos da experiência dos autores em campos particulares da saúde pública, a saber: a) medicalização da experiência rural em saúde; b) propostas de intervenção no campo da saúde mental; c) saneamento básico em população rural; e d) saúde do trabalhador. Buscou-se destacar a relação entre ciência, qualidade de vida, saúde e ambiente. Essas questões incluem a dialética entre o universal e o particular, e entre o sujeito e o objeto; a articulação entre aspectos objetivos e subjetivos; e a interação entre o sujeito e o contexto socioambiental e cultural. Os exemplos envolvem simultaneamente problemáticas de campos disciplinares diversos, vindo desafiar a compartimentalização do saber e a profunda dicotomia entre o saber técnico-científico, as práticas institucionais, e os saberes e necessidades efetivas dessas populações. O texto deixa patente a fragilidade das análises reducionistas e descontextualizadas que tentam, exclusivamente por meio de quantificações, avaliar um conceito marcado pela subjetividade, como é o de qualidade de vida. Ressalta-se a necessidade de se afinarem referenciais conceituais de qualidade de vida, conceito amplamente utilizado tanto por especialistas quanto pela população em geral, porém marcado por imprecisões e requerendo uma atividade constante de negociação de sentido entre diferentes atores sociais. O desafio central apontado pelos autores é o de não incorrer no excessivo relativismo, mas o de gerar análises bem contextualizadas e transformadoras da realidade de forma criativa e sem idealizações, ampliando alternativas de promoção da saúde.

Palavras-Chave: Subjetividade; Medicalização; Saúde do Trabalhador; Saúde Mental.


SUMMARY

This paper was elaborated to support a broad debate on health and quality of life regarding specific population groups. It presents examples from the authors’ experiences in specific issues of public health, such as: a) medicalization of the rural health experience; b) proposals of intervention in mental health; c) basic sanitation in rural populations; and d) occupational health. The analysis of such examples address the interrelations between science, quality of life, health and environment. It deals with the balance between universal and the particular; between the subject and the object; the articulation between objective and subjective approaches; and the interaction between man and his social, cultural, and environmental context. The examples presented in this paper simultaneously encompass problems from diverse disciplinary fields challenging scientific knowledge fragmentation and its deep divorce from institutional practices and from the population’s real needs, knowledge and experience. The authors reinforce the fragility of reductionism and non-contextualized analysis, in trying to analyse quality of life exclusively through quantification, disregarding how subjectivity is the concept of quality of life. Such concepts, frequently used both by specialists and lay people is marked by imprecision and is still to be discussed in terms of conceptual basis, demanding a constant negotiation of meaning among social actors. The central challenge stressed by the authors is to avoid extremes of relativism, but at the same time to generate analysis grounded in the actual life context, creatively contributing to transformations and broadening of the alternatives for health promotion.

Key Words: Subjectivity; Medicalization; Occupational Health; Mental Health.


 

 

Introdução

A elaboração de políticas e a agenda de investigações científicas relativas à saúde evocam duas questões importantes. A primeira refere-se à identificação de problemas prioritários para populações específicas e a segunda refere-se às ações que devem ser privilegiadas diante desses problemas.

Estudos construídos a partir do paradigma biomédico (epidemiológicos e clínicos) contribuem de maneira fundamental para responder à primeira dessas questões. Estudos clínicos permitem identificar um problema e avaliar sua evolução em função de tratamentos ou situações específicas. Estudos epidemiológicos permitem avaliar a importância dos problemas de saúde, identificar categorias de pessoas mais vulneráveis a esses problemas e os fatores de proteção ou risco que lhe são associados. Ainda assim, quando se trata de abordar problemas de maior nível de complexidade e incertezas, como é o caso de várias questões ambientais e de saúde, as abordagens clássicas, em particular as que envolvem os paradigmas das ciências naturais e biomédicas, tornam-se insuficientes.

O grande êxito da ciência ocidental moderna deu-se pela simplificação da complexidade, a partir de um conhecimento abstrato e normalizado que dominou diversos processos naturais. A construção dos paradigmas nas várias disciplinas da ciência normal tem por base essa simplificação, cuja visão positivista buscou impor fatos “duros” sobre valores “brandos”, por meio do propalado discurso da neutralidade e da racionalidade científica. Boa parte dos problemas ambientais modernos, como os riscos globais, seria uma conseqüência prática dessa concepção reducionista da complexidade, colocando em crise o próprio papel e legitimidade da ciência e dos cientistas na atualidade.1,2

No campo da Saúde Pública, o problema se intensifica quando deslocamos nosso interesse dos problemas prioritários em saúde para as ações que devem ser privilegiadas para resolvê-los. Particularidades econômicas, sociais, ambientais e processos lógicos, predominando em cada contexto, emergem como elementos essenciais para a elaboração de políticas de saúde adequadas às características de populações junto às quais se quer intervir. Nesse caso, torna-se imprescindível identificar os fatores sociais, econômicos e ambientais que intervêm positiva ou negativamente na qualidade de vida dessas populações e que influenciam a tradução de lógicas culturais em comportamentos concretos, em face dos diversos eventos da vida e, mais particularmente, ante a saúde e a doença.3

Com a ampliação do conceito de saúde pela Organização Mundial da Saúde em 1958, a ênfase deslocou-se da ausência de doenças e enfermidades para “um estado completo de bem-estar físico mental e social”, e das taxas de mortalidade e morbidade como únicos indicadores de saúde para as questões relativas à qualidade de vida.4 Existe, hoje, um consenso sobre a necessidade de levar-se em conta a qualidade de vida de populações no planejamento de serviços e de programas de saúde que lhe são destinados.5

Na área da saúde, indicadores de qualidade de vida têm sido utilizados para distinguir pacientes e grupos de pacientes, para predizer a evolução desses pacientes e para avaliar intervenções terapêuticas.6 No campo mais específico da economia da saúde, a qualidade de vida tem sido quantificada sob a lógica da relação custo-utilidade das intervenções terapêuticas, buscando definir os parâmetros de planejamento e os investimentos em saúde. Um amplo repertório de indicadores de qualidade de vida é apresentado por Minayo e colaboradores7 para incitar a reflexão crítica sobre o tema. Entre os principais indicadores estão: índice de desenvolvimento humano (IDH), índice de condições de vida (ICV), índice de qualidade de vida (IQV), qualidade de vida ligada à saúde (QVLS), health related quality of life (HRQL), World Health Organization Quality of Life (WHOQOL), quality-adjusted life-years (QALY), Global Burden Disease (GBD), disability- adjusted life-years (DALY) e healthy life-year (HEALY). Entretanto, e apesar da proliferação de instrumentos para medir a qualidade de vida e da extensa literatura existente sobre o assunto, não existe consenso sobre a definição do conceito de qualidade de vida, sobre seus elementos constitutivos, sobre os parâmetros para construção de um modelo de avaliação, sobre a amplitude de aplicação desses modelos ou sobre os critérios de avaliação da qualidade de vida. Para Tamaki,8 qualquer método aplicado à avaliação da qualidade de vida sempre vai ser reducionista pela impossibilidade de se criar um modelo agregador que reúna as múltiplas facetas deste objeto, em uma construção coerente, lógica e consensual e com uma capacidade explicativa do fenômeno da vida ou da qualidade de vida.

Sendo assim, mesmo amplamente utilizado tanto por especialistas quanto pela população em geral, o conceito de qualidade de vida é caracterizado por imprecisões. Essa dificuldade faz com que a questão da qualidade de vida seja deslocada para condições de vida, estilo de vida ou situação de vida, uma vez que estas são, em essência, descritivas, não trazendo conotações ideológicas ou de concepção de vida, prioridades, hierarquias ou julgamentos de valor.8 O uso indiferenciado dos termos qualidade de vida, estado de saúde e estado funcional na literatura médica refletiria a imprecisão que caracteriza o conceito.9 Gill e Feinstein6 estabeleceram uma clara distinção entre uma descrição do estado de saúde de pacientes e sua qualidade de vida, ou seja a maneira pela qual eles percebem e reagem ao seu estado de saúde e a outros aspectos não médicos de suas vidas. Revisando 75 artigos sobre as questões relativas à qualidade de vida, Gill e Feinstein6 ressaltam que os autores, raramente definem o conceito qualidade de vida, explicitam razões de escolha de um determinado instrumento de medida, distinguem qualidade de vida em geral de qualidade de vida relacionada à saúde ou se interessam pela percepção dos pacientes sobre os itens investigados. Segundo esses autores, a maioria das medidas de qualidade de vida presentes na literatura estaria perseguindo o alvo errado, na medida em que negligencia a opinião dos próprios pacientes.

Leplege e Marcinyak5 também ressaltam a ausência de fundamentos teóricos das medidas atuais de qualidade de vida e os limites dos modelos atualmente disponíveis, em particular do biomédico, quando se trata de apreender as percepções das populações alvo. Segundo estes autores, o modelo biomédico atribuiria um peso excessivo ao aspecto funcional, ignorando a diversidade de valores que são atribuídos pelos indivíduos ao exercício de determinadas tarefas, às variações interculturais e aos ajustamentos que podem intervir para preservar uma certa qualidade de vida. Estes autores lembram que o modelo biomédico postula um nível ótimo de funcionamento humano ao qual aspirariam todas as pessoas e que, muitas vezes, sob o pretexto de recolher percepções de populações, as pesquisas continuariam a refletir apenas os julgamentos profissionais. Aqui, uma outra distinção impõe-se entre o objetivamente definido por parâmetros médicos e o subjetivamente construído.

O estudo das relações entre saúde e qualidade de vida evoca necessariamente uma articulação entre condições objetivamente definidas (estado de saúde, serviços e recursos disponíveis, bens, redes sociais de apoio) e o universo de representações (avaliação do estado de saúde, satisfação com os serviços, recursos, bens materiais e redes sociais de apoio), ou seja, entre as dimensões objetiva e subjetiva da existência.

Outro problema que permeia o estudo das questões relativas à qualidade de vida e saúde das populações é a distorção criada por um modelo de qualidade de vida enraizado em valores ocidentais e sua pretensa aplicabilidade.10 Uma introdução efetiva da dimensão subjetiva no estudo destas questões permite o contato com os subuniversos de sentido em grupos populacionais distintos, reintroduz o particular e permite checar o caráter universal de algumas propostas.

Nesse sentido, Herculano11 questiona a tendência, reforçada pela publicidade em geral, de vincular-se o conceito de qualidade de vida aos de requinte e sofisticação, e portanto, algo supérfluo, secundário, diante de questões mais substantivas, como a de se garantir um “patamar mínimo de dignidade e de condição humana”. Mas, segundo a autora: Qual é esse patamar e como defini-lo? Como determinar as “necessidades básicas”? E quem as determina? Pressupor que o debate sobre qualidade de vida excede o debate prioritário sobre o fim da miséria não seria mais uma discriminação que perpetuaria a desigualdade e injustiça sociais? A autora exemplifica essa atenção ao básico com as intervenções tidas como realistas e viáveis, que, por exemplo, projetam casas populares de 16m2 para grupos familiares de cerca de dez pessoas, ou que produzem sopas industriais para crianças pobres subnutridas, feitas com as xepas (sobras) do mercado hortigranjeiro. As carências habitacionais e alimentares parcialmente assistidas por meio desses programas paliativos, convocam-nos a rediscutir qualidade de vida entre as dimensões objetiva e subjetiva da existência, ou, ainda, entre as dimensões sociais e individuais.

Cabe, ainda, uma interrogação sobre a possibilidade de avaliar-se exclusivamente por meio de quantificações um conceito intrinsecamente marcado pela subjetividade, como o conceito de qualidade de vida.12 Quando nos voltamos para o estudo da saúde em grupos populacionais específicos na realidade brasileira, fica patente a fragilidade das análises reducionistas e descontextualizadas dos problemas de saúde dessas populações. Em cada grupo, seja ele de pessoas que convivem com o vírus da síndrome da imunodeficiência adquirida (HIV), de usuários de drogas, de populações indígenas, de trabalhadores rurais contaminados por agrotóxicos, de populações urbanas, respirando o ar poluído das grandes cidades, de crianças e adolescentes vitimados pela violência urbana ou de pacientes psiquiátricos, o desafio central é o de produzir análises contextualizadas e transformadoras da realidade que fujam do paradigma médico-assistencialista e ampliem as alternativas de promoção e prevenção da saúde.

Neste artigo, apresentaremos exemplos construídos a partir da vivência dos autores em campos particulares da saúde pública: a) medicalização da experiência rural em saúde; b) propostas de intervenção no campo da saúde mental; c) saneamento básico em população rural; e d) saúde do trabalhador. A análise desses exemplos busca destacar algumas questões centrais, envolvendo a relação entre ciência, qualidade de vida, saúde e ambiente. Essas questões incluem a dialética entre o universal e o particular e entre o sujeito e o objeto; a articulação entre aspectos objetivos e subjetivos; a interação entre o sujeito e o contexto socioambiental e cultural; e, finalmente, algumas conseqüências metodológicas para a investigação e a intervenção nessas áreas.

 

Exemplo 1: medicalização da experiência rural em saúde

Rozemberg e Manderson13 levamnos a refletir sobre a desertificação das práticas rurais alternativas ao consumo de calmantes no Brasil rural. Podemos supor que o problema do consumo quase que exclusivo (88% dos casos relatados) de calmantes adquiridos em farmácias possa estar circunscrito às 25 comunidades rurais do Espírito Santo referidas nesse estudo. Entretanto, a experiência direta em outras comunidades do Sudeste brasileiro parece confirmar o abandono das práticas alternativas para tratamento do nervoso (quadro abrangente das perturbações psicossociais) em favor dos medicamentos produzidos em laboratórios. Em anos recentes, obtivemos de moradores rurais as seguintes justificativas para o consumo de drogas psicotrópicas. A questão que se colocava era justamente a do abandono do uso da erva cidreira. Por que não se fazia uso das tantas plantas que cresciam no quintal e que são calmantes comprovados por gerações? Uma das respostas obtidas foi: “A erva-cidreira pode ser muito perigosa, porque não sabemos exatamente quantos miligramas têm. Já o valium 10, não. O valium 10 o nome já diz: 10. São dez miligramas. Tenho medo de me intoxicar tomando a erva-cidreira”.

Assim, a escolha recai sobre o que foi medido, confirmado, aferido, indicado no rótulo pelo laboratório. A aferição é aqui sinônimo de segurança e proteção da população, em confronto com o amadorismo de se fazer um chá caseiro. É importante esclarecer que a entrevistada desconhece os conceitos de impregnação, síndrome de abstinência, e que não sofreu qualquer reavaliação de sua receita para o valium 10mg durante anos. Apenas assumiu que estava protegida por adotar o procedimento que a medicina autorizou.

A mesma lógica de julgamento está presente em uma infinidade de outros exemplos obtidos em comunidades rurais do Município de Nova Friburgo, no Rio de Janeiro. Em uma ocasião, saímos para coletar erva-de-bicho para nosso próprio uso, com uma vizinha. Coincidentemente, ela própria havia sofrido alguns arranhões profundos no braço, no dia anterior, em decorrência de um tombo. Seu ferimento nos pareceu pior e inchando. Em sua casa, verificamos que ela havia utilizado nos arranhões uma pomada ginecológica vencida há mais de um ano e com péssimo aspecto. No pequeno posto de saúde encontramos uma grande caixa de pomadas ginecológicas vencidas, fruto de uma doação, que estavam sendo distribuídas a todos que procuravam o posto com ferimentos externos. A partir daí, fizemos uma triagem, jogando fora a maior parte dos medicamentos de que o posto dispunha, pois eram vencidos. Novamente nos ocorre a pergunta: “E os tantos bálsamos naturais que as plantas do quintal produzem, por que foram abandonados se eram tão úteis por anos a fio?”

Compreendemos que a confiança está depositada no recém-criado posto de saúde. Assim como a população local, também os profissionais de saúde tendem a almejar a extensão de cobertura em saúde, ou seja, que toda a população tenha acesso aos serviços básicos. Entretanto, cabe questionar com Herculano:11 qual é este patamar básico e como defini-lo? Como determinar as “necessidades básicas”? Quem as determina? Temos assistido “à realização deste sonho” da extensão de cobertura de saúde nas distantes localidades rurais onde trabalhamos, mas consideramos urgente a análise do que vem sendo efetivamente “estendido” a esses grupos populacionais.

Sabemos da ocorrência, em escala internacional, de uma política de exportação, dos países centrais para os países em industrialização, de produtos e processos produtivos comprovadamente degradantes para o meio ambiente, para a saúde dos trabalhadores, para as unidades produtivas e para a população circunvizinha. Em áreas rurais do Brasil, essa ocorrência é muitíssimo bem ilustrada pelo uso generalizado e indiscriminado de agrotóxicos de classe toxicológica 1, os altamente tóxicos para o organismo humano. No campo das tecnologias médicas, temos a profusão das marcas de fantasia de medicamentos proibidos e condenados que, assim como os agrotóxicos classe 1, foram, evidentemente, há muito banidos dos países centrais. Tal política de exportação do “lixo tecnológico” vem-se reproduzindo, dos grandes centros do Sudeste para as Regiões Norte e Nordeste, das grandes cidades para as periferias, dos núcleos urbanos para as áreas rurais do Brasil.

Mas, o que nos cabe rever, no âmbito do exemplo apresentado, é a introjeção, por parte destes grupos populacionais específicos, dos valores, conceitos e das práticas que acompanham o aporte das “novas tecnologias”. Todo um campo simbólico e uma visão funcionalista e atomizada do mundo (características do paradigma vigente em saúde), ainda tão pouco avaliado, passa a ser partilhado também por estas comunidades. Verificamos logo, grosso modo, que o conceito de “saúde” que vem sendo estendido às áreas rurais é o de saúde como sendo o consumo de bens e serviços “autorizados” em saúde. Ter saúde é poder consumir tais serviços. Assim, a qualidade de vida local vem sendo aferida pelo acesso a um patamar de consumo determinado aos moradores. A qualidade da atenção médica, por exemplo, é aferida pelo número de exames pedidos ou pela quantidade de medicamentos prescritos. Os nomes de técnicas e diagnósticos sofisticados são valorizados, enquanto que o amadorismo é mal visto, assim como o médico que “só conversa, sem aplicar sequer uma injeçãozinha”.

Nos grupos populacionais rurais, verificamos a ausência de mediações que permitiriam uma apropriação mais seletiva das tecnologias médicas, criando-se aí um campo fabuloso de expansão do que Guattari14 denomina “sistema de valorização capitalístico”. Seu caráter de equivalente geral aplaina todos os outros modos de valorização, os quais ficam alienados à sua hegemonia. É nesse sistema de pasteurização e universalização de valores que o homem “moderno” tende a desconhecer e rejeitar as peculiaridades, a história e o testemunho da própria experiência, e passa a fazer coro às exigências contemporâneas de aferição, de precisão, e a evitar precisamente qualquer sinal de singularidade intrusiva. Mais do que o retorno simplista (e, ao que parece, impossível) aos valores do “antigamente”, as novas práticas científicas e sociais devem fortalecer a aparição de novos pólos de valorização (como resistência ao sistema de valorização capitalístico) e a reinvenção, em nível local, do conceito de qualidade de vida.

 

Exemplo 2: doentes mentais, reformas e qualidade de vida

A história da psiquiatria revela uma sucessão de dois grandes movimentos que invertem as relações entre o doente mental e seu contexto socioambiental. Durante o século XIX, observa-se a institucionalização das práticas terapêuticas: o doente mental deixa sua comunidade para ser internado e tratado em grandes instituições. Na segunda metade do século XX, começa a esboçar-se um movimento oposto guiado pelo esforço de desinstitucionalização: o doente deve deixar os hospitais e retornar à suas comunidades; e os psiquiatras, além de outros profissionais, devem garantir seu tratamento, controle e reinserção social mediante programas comunitários. Cada um desses movimentos reflete processos históricos específicos.15

Durante séculos, o objetivo de melhora na abordagem dos doentes mentais tem impulsionado as grandes reformas psiquiátricas, como a criação dos asilos e, mais recentemente, a desinstitucionalização. Entretanto, poucos esforços têm sido feitos para medir o impacto real dessas reformas sobre a qualidade de vida dos doentes mentais.16

No Brasil, o movimento de desinstitucionalização iniciou-se há mais de duas décadas, mas estudos que avaliem o impacto deste processo sobre a qualidade de vida dos pacientes psiquiátricos são praticamente inexistentes.

No contexto da desinstitucionalização, a ênfase é dada ao retorno dos pacientes psiquiátricos às comunidades, com o objetivo de resgatar sua integridade, sua identidade, sua vida familiar, comunitária e profissional. Não há dúvida quanto ao fundamento de tal projeto, nem quanto à urgência de transformarmos nossos modelos de prática.17 Entretanto, devemos interrogar sobre a qualidade de vida e da assistência disponível para um paciente no hospital psiquiátrico e como esta pode ser comparada àquela possível fora do hospital.

Em primeiro lugar, é preciso avaliar que recursos alternativos estão disponíveis na comunidade. É indispensável que os profissionais sejam capacitados aos exercício da prática psiquiátrica com orientação comunitária; que haja verbas e uma distribuição adequada de recursos (financeiros e outros) para que estes atendam às exigências de práticas alternativas, e ainda que as famílias e as comunidades queiram e possam acolher, cuidar e mesmo participar do tratamento de seus próprios doentes.15 O processo de desinstitucionalização é altamente dependente de condições específicas de contexto (sociais, culturais e econômicas).

Além disso, é preciso lembrar que nesse processo de reintegração social do paciente psiquiátrico, a garantia de condições materiais não é suficiente. Alguns trabalhos ressaltam que os programas de reabilitação devem focalizar tanto as necessidades materiais quanto a satisfação subjetiva dos pacientes.9 Tem sido demonstrado que certos pacientes psiquiátricos podem ter boas razões para querer permanecer no hospital e que, no decorrer do processo de desinstitucionalização norte-americana, muitos pacientes foram desinstitucionalizados involuntariamente,18 sentindo-se pressionados para assumir a responsabilidade de suas vidas, mesmo sem conseguir ou desejar ser autônomos.

Nas últimas décadas, o conceito de qualidade de vida tem sido progressivamente valorizado como indicador de intervenções tanto em psiquiatria como em outras áreas da medicina e, como conseqüência, foram desenvolvidas algumas tentativas importantes de definição conceitual e padronização metodológica. Em 1991, a Organização Mundial da Saúde iniciou um projeto para definir e criar uma medida de Qualidade de Vida (QOL), definida como “percepção de um indivíduo de sua posição na vida diante da cultura e do sistema de valores em que vive e em relação a suas metas, expectativas, padrões e interesses”.19 Essa ampla definição coloca a ênfase na natureza subjetiva do conceito e em sua multidimensionalidade, características que se traduzem na escala pela investigação da avaliação que o indivíduo faz de si mesmo e de seu mundo social e material.6,16,19,20

Essa redefinição de qualidade de vida representa um importante passo na reversão dos reducionismos que caracterizaram, durante longo tempo, a elaboração e a avaliação de políticas de saúde, visando aos doentes mentais. Nessa proposta, torna-se imprescindível que os pacientes psiquiátricos recuperem o lugar de sujeitos, sejam reinseridos no centro do processo de investigação e atribua-se o devido peso às suas opiniões. É também imprescindível que a articulação entre as dimensões objetiva (condições efetivas) e subjetiva (suas representações) seja integrada na avaliação do impacto dessas políticas, o que reintroduz o particular e vem relativizar o caráter absoluto de algumas propostas ditas “universais”.

Podemos aqui referir-nos a Murphy,21 um dos precursores da psiquiatria transcultural. Murphy21 insistiu que políticas de saúde mental devem ser pensadas a partir de uma profunda análise do contexto a que elas são destinadas, pois o modelo adequado a um país pode não ser o mesmo para o seu vizinho. Segundo ele, se a teoria médica ensina que o tratamento adequado depende da natureza da doença e do comportamento do doente, na prática, as características de uma sociedade podem ser o fator determinante.

 

Exemplo 3: saúde e ambiente e o caso do saneamento básico nas populações rurais

Um problema da relação entre saúde e ambiente refere-se à questão do saneamento básico em populações rurais, onde se pode constatar o reducionismo decorrente da leitura simplista da extensão de cobertura de serviços para essas populações. Muitos sanitaristas e educadores ocupam-se em produzir e reproduzir mensagens, valorizando ou até mesmo impingindo fossas sanitárias como solução para o problema do destino dos dejetos em áreas rurais. A universalização dessa medida sanitária como medida de escolha para o contexto rural é, em princípio, óbvia, uma vez que as fossas sanitárias podem prevenir a transmissão de inúmeras parasitoses e doenças infecciosas, enquanto outras medidas coletivas de esgotamento sanitário não se aplicam na maior parte dos casos, dadas as grandes distâncias entre as residências em localidades rurais.

Entretanto, quando se desloca o foco da atenção do universal para o particular, questionando-se a experiência em nível local com as fossas sanitárias, verificamos o quão distante desses grupos está a perspectiva técnica dos serviços de saúde pública e de suas mensagens e campanhas. Um estudo das representações sociais das fossas sanitárias entre grupos populacionais do Sudeste efetivamente usuários delas, revelou expectativas e interesses diametralmente opostos aos dos serviços sanitários.22 A experiência popular com as fossas é reportada em grande parte às fossas secas ou às fossas sépticas mal construídas ou mal mantidas, a alternativa vivenciada por todos “no passado”. Segundo as entrevistas realizadas, esse é um passado do qual a esmagadora maioria prefere esquecer. As representações são de mau cheiro, picada de insetos, desconforto e “falta de higiene”, além do desagradável trabalho periódico de “esvaziar a fossa”. É preciso considerar ainda que nenhum dos entrevistados jamais viu um ator na televisão ter que “esgotar a fossa”. O referencial cultural urbano apresenta o cidadão simplesmente puxando a descarga de um banheiro confortável e todo ladrilhado. Segundo os moradores de diversas comunidades, a infeliz fase das fossas ficou para trás com a chegada da “rede de esgoto”.

Fundamental é deixar claro que estas comunidades conhecem como “rede de esgoto” o despejo direto dos dejetos das casas nos rios e lagos mais próximos através de uma rede de manilhas conectadas. Em nenhum caso encontramos sequer tratamento primário dos dejetos. Ainda, nas entrevistas, com freqüência o nome de algum político local está associado às primeiras manilhas. Em Boa Esperança (distrito de Nova Friburgo) uma entrevistada sentenciou: “Uma manilha custa só dois votos!”, e, com isso, tem-se uma idéia do prestígio local dos portadores da “boa nova” que a “rede” representa em contraposição à trabalhosa e primitiva fossa sanitária.

Nos anos recentes, os banheiros em áreas rurais tornaram-se ladrilhados sempre que possível. As duas modificações: revestimento dos banheiros com ladrilhos e troca de “fossa” para “rede”, foram em geral simultâneas, de modo que para muitos o banheiro bonito está associado à idéia de “rede de esgoto” e de “progresso”, enquanto que o buraco imundo com paredes caindo está associado à “fossa sanitária” “dos tempos antigos”. Para os profissionais da saúde, sem vivência em área rural, entretanto, nada mudou. A medida sanitária de escolha, por razões técnicas e funcionais, é e sempre foi a fossa sanitária, a qual sentenciam inadvertidamente (e há várias gerações) como sendo a mais simples e de baixo custo. Sua proposta parte de pressupostos universais da vigilância sanitária e desconhece as particularidades locais e sua repercussão na lógica dos grupos de possíveis usuários. Em muitos casos, reverter o sistema de “redes” novamente para “fossas”, além de retrógrado e indesejado, representaria fazer obra, “quebrar o banheiro ladrilhado”.

A promoção e a prevenção em saúde certamente requerem fossas sanitárias (e com que urgência!), uma vez que os despejos das redes tendem a aumentar ou recrudescer a transmissão e a reincidência de doenças veiculadas pelas águas. Mas, do ponto de vista de muitos usuários, os dois fenômenos – redes e transmissão de doenças – sequer estão relacionados. O que conta é a experiência do conforto, da ausência do mau cheiro e de uma tarefa ingrata, a da limpeza periódica de fossas, que se revelava exclusiva dos habitantes rurais. Além disso, aparentemente, as fossas “mantêm a doença perto”, enquanto as redes “levam a doença para longe”, o que inclui uma tendência à percepção das águas como fator de “diluição” das doenças (junto com a diluição das fezes). Novamente aqui se evidencia a importância da pesquisa qualitativa para informar práticas de intervenção que possam considerar o sujeito de forma integrada às particularidades socioambientais e culturais de seu contexto de vida e trabalho, ao invés de contentar-se com a perspectiva unilateral do saber técnico.

 

Exemplo 4: a saúde dos trabalhadores, os acidentes e os equipamentos de proteção individual

As pessoas, em particular as adultas, costumam passar boa parcela de suas vidas trabalhando. Para uma jornada de 44 horas semanais, poderíamos calcular cerca de 2.200 horas por ano e 77.000 ao longo dos 35 anos necessários para a aposentadoria. Tanto tempo, em ambientes e situações muitas vezes insalubres e perigosas, certamente é fundamental para a qualidade de vida das pessoas adultas. Mas, esse tema continua ainda periférico ao campo da Saúde Pública e, durante muito tempo, permaneceu fora do setor saúde, restrito aos setores do Trabalho e da Previdência Social, dentro de uma lógica patronal oriunda de legislações desenvolvidas desde a era Vargas ou durante o governo militar.

Um importante movimento de reversão desse quadro foi a construção do campo da saúde dos trabalhadores no Brasil, a partir de meados dos anos 80, influenciado pela Medicina Social e pela experiência do movimento sindical e reforma sanitária da Itália nos anos 60 e 70. De acordo com vários autores23-25 as características básicas do campo de práticas e saberes denominados como Saúde do Trabalhador são:

a) a busca da compreensão das relações entre o trabalho, a saúde e a doença dos trabalhadores, para fins de promoção e proteção da saúde, nesta incluída a prevenção de agravos, além da assistência, mediante o diagnóstico, o tratamento e a reabilitação;

b) a ênfase na necessidade ou possibilidade de mudanças dos ambientes e nas transformações dos processos de trabalho, com vistas a sua humanização;

c) a forma de abordagem da relação entre saúde e trabalho, a qual deve assumir caráter multiprofissional, interdisciplinar e intersetorial, para que seja entendida em toda a sua complexidade;

d) a participação dos trabalhadores, como sujeitos fundamentais dessa prática social, envolvendo-os na análise das condições de trabalho e na identificação de mecanismos de intervenção técnica politicamente recomendáveis; e

e) a articulação com as questões ambientais, já que os riscos dos processos produtivos podem afetar não somente os ambientes de trabalho e os trabalhadores, mas o meio ambiente e a população em geral.

Mas, esta concepção abrangente vê-se em conflito com outras concepções e práticas ainda hegemônicas, desenvolvidas pela Medicina do Trabalho, pela Engenharia de Segurança e pela Higiene Industrial e adotadas em muitas empresas brasileiras e instituições, principalmente dos setores do trabalho e da previdência social. Nestas visões, o problema dos acidentes e doenças relacionados ao trabalho é um tema restrito a certos especialistas: engenheiros de segurança, médicos do trabalho, a gerência das empresas e outros técnicos especializados como os únicos “detentores” do conhecimento para analisarem os riscos nos locais de trabalho e propor soluções. Os trabalhadores seriam meros e passivos coadjuvantes, ora fornecendo informações aos especialistas, ora indo aos exames e respondendo perguntas aos médicos ou mesmo sendo acusados como responsáveis pelos acidentes, graças ao conceito perverso e cientificamente errado de “ato inseguro”.

Deixavam-se de lado as causas mais profundas que geram os acidentes e doenças nos locais de trabalho, como os projetos de tecnologias, a organização do trabalho e as características da própria sociedade, como a legislação, a atuação dos trabalhadores e das instituições regulamentadoras e fiscalizadoras. Esta visão também assume a compensação financeira ou monetização dos riscos, por meio da concessão dos adicionais de insalubridade e periculosidade e, em termos de prevenção, privilegia soluções de final da linha, ou seja, espera-se a ocorrência de eventos como acidentes e doenças, enquanto as ações visam ao controle dos próprios trabalhadores ou do seu ambiente no entorno imediato, como normas de segurança e equipamentos de proteção individual, nem sempre com fornecimento e treinamento adequados.

Os Equipamentos de Proteção Individual (EPI), por exemplo, são freqüentemente apontados como soluções mágicas para os problemas dos acidentes e doenças, e a sua não utilização como demonstração da irresponsabilidade e falta de consciência dos trabalhadores para cuidarem de sua saúde. Na visão moderna de prevenção, os EPI são vistos como uma solução limitada, que deveria ser adotada somente quando não houver alternativas. Se não forem adequados, podem gerar uma sobrecarga e dificultar o trabalho. Muitas empresas adotam os EPI como uma prática do gerenciamento artificial de riscos,23 onde medidas efetivas de prevenção técnica não são implementadas e, em seu lugar, ocorre o que alguns estudiosos chamam de prevenção simbólica.26 Esse tipo de prevenção visa mais controlar os trabalhadores, fazendo-os acreditar erradamente que os riscos estão sob controle, já que o reconhecimento de que suas vidas estão em risco poderia resultar em reações dos trabalhadores e suas organizações, resultando em prejuízos políticos e econômicos para as empresas. Quando um acidente ocorre, também faz parte desta estratégia responsabilizar os trabalhadores pelos próprios acidentes, por meio do conceito de ato inseguro que transforma as vítimas dos acidentes em culpados. Dessa forma, o que deveria servir de exemplo e aprendizado sobre as falhas gerenciais das empresas, gera pouco ou nenhum impacto em termos de transformações das condições de trabalho.

Um exemplo interessante nesse sentido nos foi narrado, em entrevista, por um operário de uma barulhenta fábrica metalúrgica. O operário havia explicado ao médico da previdência social que estava com problemas de saúde recorrentes, devido ao uso de um equipamento de proteção individual contra o ruído que era extremamente desconfortável, apertava sua cabeça e provocava muitas dores. E como o ambiente era muito quente, ele “suava” dentro do ouvido, agravando uma tendência a infecções. A resposta do médico ao problema foi simples e direta: ele deveria abandonar o emprego. O operário então respondeu de pronto que acatava a sugestão, desde que, como novo emprego, pudesse substituir aquele médico, pois achava que, com a sua experiência, seria mais útil aos trabalhadores que lá fossem, do que o médico havia sido com relação ao problema dele.

Na fábrica, esse operário continuou na dúvida entre usar ou não o equipamento de proteção. E aproveitava o som rítmico produzido pela máquina que operava para improvisar rodopios dançantes, como se fosse um mestre sala, e a máquina a porta-bandeira. Mais tarde, soubemos que ele integrava mesmo a ala dos compositores de uma escola de samba. Evidenciamos ali o reducionismo dos enfoques tecnicistas para avaliar a relação entre a saúde e o trabalho e a qualidade de vida desse operário em seu ambiente.

Este exemplo, como os anteriores, evidencia a importância de compreender-se o sujeito em seu contexto e particularidades socioambientais e culturais, ao invés de contentar-se com a perspectiva unilateral do saber técnico.

Este debate coloca em discussão quem, como e com que critérios são definidos os riscos para a vida dos trabalhadores e das pessoas em geral e para o meio ambiente. Além disso, o debate em torno dos riscos ocupacionais e ambientais é um importante instrumento para a democratização dos locais de trabalho e da própria sociedade, pois coloca em jogo o tipo de sociedade que temos e queremos construir.

Existe um aspecto metodológico importante para o reconhecimento dos trabalhadores como sujeitos do processo de conhecimento. Como revela a ergonomia contemporânea,26 sempre existe uma diferença entre o trabalho prescrito nas regras, procedimentos e instruções de manuais e gerências, e o trabalho em situações reais; e as análises dos riscos nos locais de trabalho deveriam considerar as situações reais, com a participação ativa dos trabalhadores. Os riscos não são apenas informações teóricas, dadas por especialistas e pelas gerências das empresas a partir de seus documentos e conhecimentos técnicos. Eles fazem parte do trabalho real vivido no dia-a-dia dos trabalhadores e, muitas vezes, as análises de risco, apresentadas por especialistas e pelas gerências das empresas aos fiscais ou auditores externos, são muito diferentes das situações de risco reais vivenciadas pelos trabalhadores.

Essa concepção mais abrangente propicia novas alternativas de vigilância em saúde do trabalhador e é resultado da construção de metodologias de investigação e intervenção de caráter interdisciplinar e participativo, onde disciplinas e profissionais advindos das áreas sociais e humanas, tecnológicas e da saúde articulam-se, tendo por marco a valorização do trabalhador e sua subjetividade na produção do conhecimento e de novas práticas sociais e institucionais.

 

Discussão

O presente texto foi produzido para balizar um debate ampliado sobre saúde e qualidade de vida de grupos populacionais específicos. Em sua versão preliminar, a grande questão que ele suscitou na Oficina de Trabalho realizada em abril de 2000 refere-se à necessidade de afinar os referenciais conceituais de qualidade de vida. Mesmo sendo amplamente utilizado tanto por especialistas, quanto pela população geral, esse conceito é necessariamente caracterizado por imprecisões.

Em primeiro lugar, é preciso referir-se ao aspecto multidimensional de um conceito que envolve perspectivas interdisciplinar e intersetorial em sua interação com o entorno social e ambiental. Nessa ótica, a busca de índices de qualidade de vida a partir de indicadores compostos é uma atividade complexa que envolve uma constante negociação com os diversos atores sociais. É preciso ter em mente que os indicadores e índices medem sempre “aspectos” da qualidade de vida, tendo méritos e limitações uns em relação aos outros.8 Tais índices são válidos na medida em que propiciem instrumentos de mobilização social e intervenção na realidade, construindo agendas públicas de ações prioritárias e práticas sociais transformadoras. Essa visão de qualidade de vida de caráter mais processual opõe-se à outra, bastante difundida, que vê a qualidade de vida como um bem de mercado pautado pelo nível de consumo, e não enquanto um direito de cidadania.

Em segundo lugar, é preciso referir-se ao significado e à contextualização desse conceito, particularmente em sociedades fortemente marcadas pelas desigualdades sociais como o é a sociedade brasileira. Neste caso, a desalienação do conceito de qualidade de vida passa necessariamente por sua mediação – o conceito de condições de vida – que reflete de forma central a questão dos recursos econômicos e sociais para a sobrevivência digna das populações, e por sua articulação com discussões mais gerais sobre as questões de exclusão social, eqüidade, cidadania, pobreza, violência urbana e vulnerabilidade. É necessário dar significado ao conceito enquanto exercício da dignidade humana, realizando análises contextualizadas que fortaleçam a capacidade da sociedade como um todo, e das populações vulneráveis em particular, de resgatarem e exercerem sua humanidade de forma digna.

Os exemplos apresentados no presente texto envolvem simultaneamente problemáticas e campos disciplinares diversos, vindo desafiar a compartimentalização do saber. Eles desafiam também as dicotomias cristalizadas entre o individual e o coletivo e entre o médico e o social, obrigando-nos a encará-las como obstáculos ao entendimento e à ação. Cada um dos exemplos apresentados ressalta, de forma particular, a urgência de transpor fronteiras disciplinares para verdadeiramente apreender a articulação entre os diversos fatores inerentes às questões relativas à saúde e à qualidade de vida de grupos e populações específicas.

Em todos os exemplos, que em realidade são narrativas livres dos dilemas que se apresentam de forma muito concreta na experiência profissional no campo da saúde de grupos e populações específicas, é possível identificar como questão de fundo a presença de uma dicotomia profunda entre o saber técnico de base científica e os saberes, práticas e necessidades efetivas dessas populações. Para superarmos esse dilema, é preciso contextualizar os problemas de saúde no entorno social, cultural e ambiental e dar valor e voz aos conhecimentos, anseios e necessidades dessas populações. Entretanto, há o risco de prolongarmos esta dicotomia por meio de posições populistas que fazem apologia do senso comum. Outro risco é o do excessivo relativismo, que particulariza as análises e vem imobilizar qualquer possibilidade de transformação da realidade. Para enfrentar tais riscos, devemos trabalhar com as realidades complexas desses grupos populacionais, de forma criativa e sem idealizações, utilizando referenciais teóricos que possibilitem atingir os elementos centrais dos problemas analisados e, ao mesmo tempo, operacionalizar alternativas de transformação.

A análise das relações entre qualidade de vida e saúde suscita uma série de questões que são pertinentes não somente ao campo científico e institucional da Saúde Pública, mas à sociedade moderna como um todo, com suas práticas científicas e institucionais.

A fragmentação do conhecimento científico apresenta-se na dicotomia entre as abordagens “objetivas” do estado de saúde e a relação deste com determinados fatores de risco, e as abordagens “subjetivas” que aprofundam qualitativamente questões como as representações sociais, o universo de significados e as relações de poder.

Em termos político-institucionais, a fragmentação apresenta-se nas próprias estratégias de intervenção do setor saúde para o desenvolvimento das ações de promoção e prevenção. Intra-setorialmente, a lógica clássica de intervenção sanitária simplesmente não dá conta de uma série de problemas de saúde, que não cabem nos “compartimentos setoriais” das vigilâncias, como as causas externas, as doenças crônico-degenerativas e os problemas de saúde mental. Também não ficam claros o papel e os limites dos setor saúde, ou seja, qual a eficiência das ações intra-setoriais, assim como, de que forma e quando devem ser desenvolvidas as ações intersetoriais.

Como objetivo último das políticas e práticas do setor saúde, o sujeito é simultaneamente receptáculo e agente de todas essas influências socioambientais, e, se existe um espaço de convergência possível na produção de conhecimento, este é o do corpo e da consciência dos sujeitos, individuais ou coletivos. Apesar dos seus limites, a discussão sobre qualidade de vida traz à tona a questão fundamental do sujeito e suas implicações éticas, como a liberdade e o direito à escolha.

Num mundo econômico e tecnificado, soluções “técnicas” são impostas – e com grande velocidade – aos vários grupos populacionais atingidos por situações específicas de saúde: medicamentos, agrotóxicos, fossas sépticas, reformas (como a desinstitucionalização psiquiátrica) ou equipamentos individuais de proteção. Eles colocam-se como alternativas para que as pessoas evitem sofrimentos e fiquem mais “saudáveis”. Mas, quem define, como define, e com que interesses, o impacto destas alternativas sobre a qualidade de vida das pessoas? Quais os critérios que orientam a produção, a avaliação e a difusão destas alternativas, em particular nas práticas do setor saúde? No final das contas, quem fala e quem ouve? Essas perguntas agudizam-se no caso de populações mais vulneráveis.

A discussão sobre qualidade de vida revela a necessidade de integração entre a produção de conhecimento científico e as práticas institucionais e sociais como resposta à fragmentação da sociedade. De um lado, trata-se de verificar os atuais reducionismos e possibilidades de avanços conceituais e metodológicos ante os processos saúde-doença mais complexos. De outro lado, é necessário traduzir estes possíveis avanços em termos de novas alternativas de políticas públicas e práticas institucionais.

 

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* Publicação duplicada: Série Fiocruz: Eventos Científicos 2000;2:15-26.