Services on Demand
Journal
Article
Indicators
- Cited by SciELO
Related links
- Similars in SciELO
Share
Informe Epidemiológico do Sus
Print version ISSN 0104-1673
Inf. Epidemiol. Sus vol.11 no.3 Brasília Sept. 2002
http://dx.doi.org/10.5123/S0104-16732002000300004
Mudanças globais e desenvolvimento: importância para a saúde
Global changes and development: health importance
Ulisses E. C. ConfalonieriI; Márcia ChameI; Alberto NajarI; Sérgio A. de Miranda ChavesI; Thelma KrugII; Carlos NobreII; José D. G. MiguezIII; Judith CortesãoIV; Sandra HaconI
IEscola Nacional de Saúde Pública/FIOCRUZ
IIInstituto de Pesquisas Espaciais
IIIUniversidade Federal do Rio de Janeiro-UFRJ
IVFundação Universidade Federal do Rio Grande
RESUMO
Neste artigo busca-se inventariar o estado atual das inter-relações entre mudanças ambientais globais e saúde, incluindo uma revisão do estado atual das ameaças de origem antrópica sobre a biodiversidade, trazendo o enfoque ecossistêmico como linha de pesquisa para a melhoria da qualidade de vida. Os processos de mudanças ambientais globais afetam a saúde humana, direta ou indiretamente, pontual ou regionalmente. Alterações na química da atmosfera, mudanças climáticas, degradação do solo, perda da biodiversidade, urbanização e grandes empreendimentos, escassez de água e poluições químicas de âmbito global podem ter conseqüências severas para o bem-estar humano, saúde e sobrevivência. A importância dessas mudanças para a saúde humana dependerá de quanto as populações são ou podem ser afetadas no futuro, do grau e amplitude dos impactos e das possibilidades de adaptações biológicas e das formas de mitigação e controle disponíveis. Vários programas têm sido desenvolvidos em todo o mundo, mas é preciso avançar em modelos conceituais, incluir as questões das mudanças ambientais globais na agenda científica e institucional brasileira, buscar modelos de desenvolvimento sustentável, criar mecanismos que interrompam a perda da biodiversidade, minimizar o uso de poluentes e sensibilizar as pessoas para o possível esgotamento dos recursos naturais renováveis.
Palavras-Chave: Ecossistema de Saúde; Riscos Ambientais; Saúde Humana; Brasil.
SUMMARY
In this article we intended to survey the current state of relationships between global environmental changes and health. It includes a revision of the current state of threats of anthropic origin on biodiversity, bringing an ecosystem approach as a field of research for the improvement of quality of life. Global environmental changes affect human health directly or indirectly, locally or regionally. Alterations in the chemistry of the atmosphere, climate changes, soil degradation, loss of biodiversity, urbanization and major development sites, shortage of water and chemical pollutants constitute driving forces that can have severe consequences for human well-being and health as well as, its survival. The importance of these changes for human health will depend on how populations may be affected in the future, the severity and magnitude of the impact, the possibility of biological adaptations, and the availability of strategies to mitigate and control. Several programs have been developed around the world. However, the Brazilian scientific and institutional agenda needs to move forward in conceptual models that include aspects related to global environmental changes, searching for models of sustainable development, and creating mechanisms that interrupt the loss of biodiversity, minimize the use of pollutants, establish awareness programs concerning the exhaustion of renewable natural resources.
Key Words: Global Changes; Ecosystem Health; Environmental Health Risks; Human Health; Brazil.
Introdução
As mudanças ambientais globais, constituem importante questão socioambiental graças à complexidade dos processos nelas envolvidos, bem como à magnitude dos impactos delas decorrentes. Têm sido definidas como aquelas que: “(...) alteram os envoltórios do Sistema Terrestre e, dessa forma, são experimentadas globalmente (...) e aquelas que ocorrem em áreas mais restritas mas, por serem muito difundidas, adquirem caráter global”.1 Outros conceitos importantes são: “(...) aquelas que ocorrem a nível global e afetam o sistema global como um todo e as que ocorrem a nível local ou regional, mas têm conseqüências para o sistema global”.2 Ou ainda “(...) aquelas que podem alterar a capacidade da Terra de sustentar a vida”.3
Como os demais processos de mudanças ambientais, as mudanças ambientais globais têm como forças propulsoras subjacentes (driving forces), processos socioeconômicos e culturais que, conjuntamente, têm imposto pesadas demandas sobre os recursos naturais, sobre os ciclos da biosfera e o meio físico em geral. Esses processos envolvem os seguintes fatores principais: a) demanda de consumo de bens materiais, motivada por valores culturais dominantes, de caráter antropocêntrico; b) inovações tecnológicas que têm ensejado maior eficácia na extração e processamento de recursos do meio e distribuição de bens; c) crescimento econômico que enseja a disponibilidade de renda para aquisição de bens; d) crescimento populacional contínuo, aumentando as demandas de consumo; e e) empobrecimento, resultando em ações predatórias sobre o meio ambiente, na busca pela sobrevivência.
Atuando isolada ou conjuntamente, esses elementos têm contribuído, por meio das atividades econômicas da sociedade, para a depressão de recursos naturais, destruição de habitats, ecosimplificação e despejo de resíduos em escala sem precedentes.
Um modelo conceitual importante para o entendimento da ação das forças propulsoras das mudanças ambientais e globais e suas implicações para a saúde pode ser obtido de um fluxograma determinante (Figura 1). As “pressões”, no modelo, também denominadas de “fontes imediatas” (proximate sources) ou “fontes materiais”, são as atividades humanas que afetam diretamente o meio ambiente, tais como o desmatamento, a queima de combustíveis fósseis e as práticas agropecuárias. Por “estado ambiental”, designam-se as situações concretas de degradação ambiental, tais como a perda de biodiversidade, as diversas formas de poluição, a perda de solos cultiváveis, o esgotamento dos estoques de água. As etapas subseqüentes representadas do modelo dizem respeito à abordagem tradicional da epidemiologia ambiental no estudo das influências dos fatores do meio sobre a saúde humana.
Neste artigo, busca-se inventariar o estado atual das inter-relações entre mudanças ambientais globais e saúde, incluindo uma revisão do estado atual das ameaças de origem antrópica sobre a biodiversidade e trazendo o enfoque ecosistêmico como linha de pesquisa para a melhoria da qualidade de vida.
Aspectos institucionais
Vários países estabeleceram, no início dos anos 90, programas nacionais de mudanças globais. Esse foi o caso dos Estados Unidos da América, Inglaterra, Canadá, Holanda e Alemanha. O Brasil possui um programa de mudanças globais coordenado pela Academia Brasileira de Ciências. O Ministério da Ciência e da Tecnologia possui uma Coordenação de Pesquisas em Mudanças Globais.
A importância de investimentos em pesquisas na área de Mudanças Ambientais Globais pode ser aquilatada com o exemplo norte-americano. Em 1996, a dotação orçamentária governamental, para esse fim, chegou a 1,2 bilhão de dólares, superior mesmo à do Instituto Nacional do Câncer dos Estados Unidos da América.4 Para o ano fiscal de 2000, essa dotação chegou a 1.779 bilhões.5
Existem vários programas ou agências internacionais envolvidas com as mudanças ambientais globais, tais como: o International Geosphere-Biosphere Program, criado em 1986, com o objetivo de “descrever e compreender a interação dos processos físicos, químicos e biológicos que regulam o sistema terrestre como um todo, o ambiente único que este proporciona para o sustento da vida, as mudanças que estão ocorrendo neste sistema, e as formas por meio das quais elas são influenciadas pelas ações humanas”; o Programa Internacional de Dimensões Humanas, voltado para os aspectos sociopolíticos, econômicos e culturais das mudanças globais, sediado na Alemanha; e o plano de trabalho deste Programa Internacional, que sugeriu seis temas amplos de pesquisa a serem adotados pela comunidade internacional: a) mudanças no uso e cobertura da Terra, b) transformação industrial e uso da energia, c) dimensões sociais e demográficas do uso de recursos, d) atitudes públicas, conhecimentos, comportamentos e percepções, e) instituições, e f) segurança ambiental e desenvolvimento sustentável, incluindo as relações entre as mudanças globais e a Saúde Pública.
Outros programas internacionais específicos são o The Global Change System for Analysis, Research and Training, voltado para o desenvolvimento de redes regionais de cooperação entre cientistas e instituições para pesquisas em mudanças globais; o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas; e o Consortium for Earth Science Information Network, que constitui uma base de dados mundial sobre as interações humanas com o meio ambiente.
O International Geosphere-Biosphere Program agrega vários projetos que visam ao entendimento das mudanças globais e suas conseqüências; os seus projetos principais (ou core projects) são o Global Change and Terrestrial Ecosystems e o Land Use and Land Cover Changes.
Como um esforço conjunto de coordenação de pesquisa, associam-se o International Geosphere-Biosphere Program, o International Human Dimensions Program e o World Climate Research Programme. Essa combinação visa atender aos três grandes aspectos temáticos das mudanças ambientais globais: os “sistemas biogeoquímicos”, o “sistema climático físico” e as “atividades humanas”.
Como instituição dedicada ao fomento de pesquisas nos diversos aspectos das mudanças globais, está o Interamerican Institute for Global Change Research, com sede em São José dos Campos, São Paulo, com financiamento oriundo, principalmente, da National Science Foundation, dos Estados Unidos da América. O International Institute for Applied System Analysis, com base em Viena, também tem-se destacado como instituição voltada para pesquisas em mudanças ambientais globais.
Há grandes projetos com focos regionais que buscam compreender os processos das mudanças globais em regiões específicas. Esse é o caso do projeto internacional Experimento de Grande Escala da Biosfera-Atmosfera na Amazônia, em execução no Brasil, sob a coordenação do Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticos do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais.
Outro projeto é o que visa ao levantamento da interferência humana sobre a floresta amazônica, que realiza avaliações anuais das alterações da cobertura vegetal da Amazônia Brasileira, também coordenado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Coordenação de Observação da Terra).
No que tange aos esforços internacionais para monitoramento e efetivo controle dos impactos gerados pelas atividades humanas no meio ambiente global, embora existissem alguns esforços anteriores a 1992 (como foi o caso do Protocolo de Montreal, de 1987, para a proteção da camada de ozônio estratosférico), foi a partir da Conferência da Organização das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, em 1992, que passos importantes foram dados nesse sentido. A partir deste evento, realizado no Rio de Janeiro, elaboraram-se e colocaram-se em vigor a Convenção-Quadro sobre Mudanças Climáticas e a Convenção sobre a Diversidade Biológica, visando-se aos compromissos, entre os países signatários de reorientações de suas políticas nacionais para atender às metas de redução das emissões de gases do efeito estufa, no primeiro caso, e da perda da biodiversidade (variedades genéticas, espécies e ecossistemas), no segundo.
Mais recentemente, estabeleceram-se negociações supranacionais, visando ao controle da produção e uso dos poluentes orgânicos persistentes. Um acordo preliminar foi realizado (setembro de 1999) entre negociadores de 115 países que concordaram em eliminar 8 das 12 substâncias identificadas como problemas pela Organização das Nações Unidas.
A situação brasileira
Nos complexos processos das mudanças globais, o Brasil tem um papel relevante no contexto internacional. Para isso, contribuem vários aspectos: a) a grande extensão territorial, a pluralidade de ecossistemas naturais e as formas predominantes de uso da terra; b) a economia e as políticas setoriais baseadas em estratégias específicas de uso da energia; c) a dimensão dos parques industrial e agroindustrial e os grandes projetos de desenvolvimento; e d) a situação demográfica e econômica que implica pesadas demandas sobre os recursos do meio ambiente.
Dada a predominância da hidreletricidade, o país apresenta uma matriz energética limpa. No entanto, devido à eliminação e à degradação da vegetação natural, o país situa-se na condição de um dos maiores emissores de gases do efeito estufa (principalmente o gás carbônico) do planeta, bem como de poluentes persistentes. Por outro lado, possui uma enorme reserva estratégica de biodiversidade, albergando cerca de 41% das florestas tropicais remanescentes no mundo e 28% das espécies do planeta.6
Muito embora os fatores determinantes, bem como as conseqüências das mudanças globais no Brasil venham a ser eventualmente sentidas em todo o território, é na região amazônica que se podem discernir, de forma mais clara, esses processos. É nessa região que se concentra a maior parte da biodiversidade e também onde ocorrem anualmente as maiores alterações da cobertura vegetal, com os desmatamentos e queimadas, responsáveis por boa parte das emissões antrópicas de dióxido de carbono, a nível nacional.
Tem também grande impacto, nessa região, os megaprojetos de desenvolvimento, quer sejam eles industriais, agroindustriais, de geração de infra-estrutura ou geopolíticos. Os exemplos mais críticos são: o Projeto Ferro Carajás, a abertura de estradas tais como a Transamazônica, a Cuiabá-Porto Velho, a Belém-Brasília e a Perimetral Norte; o Pólo de Urucum, de gás natural, no Amazonas; o projeto Jari, celulose; as barragens hidroelétricas de Tucuruí, Balbina e Samuel; a mineração de Serra Pelada, entre outros.
Fora da Amazônia devemos citar a combinação de fatores - com ênfase nas práticas agrícolas - causadoras de perda do solo e desertificação, no extremo Sul e em partes da Região Nordeste. São importantes também os projetos de larga escala de manejo de recursos hídricos, tal como a hidroelétrica de Itaipu e a planejada hidrovia Paraná-Paraguai, na Região Centro-Oeste. Na Região Nordeste, segundo o Primeiro Relatório Nacional para a Convenção sobre Diversidade Biológica,7 os atuais estudos disponíveis indicam que o processo de desertificação na região semi-árida brasileira vem comprometendo seriamente uma área de 118 mil km2, ou seja, 12% da região, com a geração de impactos difusos e concentrados sobre o território. Ainda segundo o relatório, nas áreas de impactos difusos, os danos ambientais resultam em erosão dos solos, empobrecimento da caatinga e degradação dos recursos hídricos. Nas áreas de efeitos concentrados, em pequena porção do território, configuram-se núcleos desertificados.
Mudanças climáticas
Em relação às questões climáticas no Brasil, é importante primeiro diferenciar a variabilidade natural do clima das mudanças climáticas e, em seguida, distinguir que mudanças climáticas podem resultar tanto do aquecimento global como também de alterações da cobertura vegetal. Eventos extremos relacionados à variabilidade intra-sazonal e interanual do clima comumente são causados pela instabilidade da interação bidirecional dos oceanos tropicais com a atmosfera global. Nesse caso, encontram-se as interações do Oceano Pacífico Tropical com a atmosfera, conhecidas como fenômeno El Niño-Oscilação Sul que, na fase de águas mais quentes, El Niño (mais frias, La Niña), provoca secas (chuvas abundantes) na Amazônia e no norte da Região Nordeste e excesso de chuvas (seca) no extremo Sul. O forte acoplamento também do Oceano Atlântico, Tropical e a atmosfera causam variações climáticas extremas no norte e leste do Nordeste, Amazônia e possivelmente em outras partes do país. Discutem-se as possíveis relações entre as alterações observadas recentemente na periodicidade e intensidade de episódios El Niño e La Niña no Oceano Pacífico - predominância de episódios quentes - com o aquecimento global. Há evidências preliminares8 de que mudanças climáticas aumentam a intensidade da transmissão da malária, o que foi observado em algumas áreas do continente africano. Por outro lado, na América do Sul, durante o fenômeno El Niño, de 1997 a 1998, a seca reduziu os casos de malária na Amazônia.
Na questão da mudança climática global, dois aspectos devem ser considerados: possíveis impactos do aquecimento global nos ecossistemas e, inversamente, os efeitos climáticos do desmatamento, especialmente da floresta amazônica, no sistema climático global. Alguns cenários desenvolvidos pelo Centro Hadley de Previsão Climática, na Inglaterra, referidos a uma taxa de concentração de gás carbônico duas vezes maior que os níveis pré-industriais, mostram projeções de aumentos de temperatura na região amazônica entre dois e até sete graus centígrados, na segunda metade do século XXI.9 Há muito maior incerteza quanto ao impacto do aquecimento global na precipitação, mas, se o aumento da temperatura for acompanhado de redução acentuada na precipitação pluviométrica, com sérios impactos no ciclo hidrológico, poderia provocar a substituição da floresta pelo ecossistema de savana (“savanização”) em partes da Amazônia. Os possíveis impactos desses processos na dinâmica das doenças endêmicas focais dos ecossistemas regionais ainda não foram avaliados.
Por outro lado, o desmatamento tropical afeta, em caráter imediato, os vários microclimas existentes. Isso significaria modificações importantes em parâmetros críticos para o ciclo vital de vetores e reservatórios de doenças infecciosas. As evidências das conseqüências da substituição da floresta no mesoclima e, principalmente, no clima global são menos consistentes e ocorreriam em prazo mais longo, porém há evidência de que a substituição em grande parte da floresta por pastagens iriam provocar um aumento da temperatura do ar à superfície entre dois e três graus centígrados, redução na evapotranspiração regional e, possivelmente, diminuição das chuvas, em especial durante a estação seca. Essa combinação de fatores também contribuiria para uma tendência de “savanização” de partes da região.
Adicionalmente, os desmatamentos (queimadas e decomposição da vegetação derrubada) respondem pela maior contribuição do país à emissão de gases responsáveis pelo efeito estufa, com cerca de 200 milhões de toneladas de carbono por ano em comparação com uma emissão total de pouco menos de 300 milhões.
As mudanças climáticas globais afetarão a saúde humana principalmente por meio de alterações nos padrões das doenças infecciosas endêmicas transmitidas pela água (exemplo: cólera, leptospirose) ou por vetores animais (malária, dengue, leishmanioses, arboviroses). Ao serem criadas condições ambientais mais favoráveis à reprodução e à sobrevivência de patógenos e vetores, as mudanças climáticas poderão acelerar os ciclos de transmissão bem como estender as suas áreas de distribuição geográfica, tanto para latitudes quanto para altitudes maiores.
Um outro aspecto associado com as mudanças climáticas diz respeito às alterações nos eventos extremos, tais como as tempestades, furacões, ondas de calor e inundações. Projeta-se que as mudanças climáticas globais modificarão a distribuição dos padrões locais de tempo, principalmente a prevista intensificação do ciclo hidrológico. Isso pode ter conseqüências com relação a fatalidades associadas com acidentes e com epidemias de doenças transmissíveis conseqüentes aos desastres climáticos.
Biodiversidade
Biodiversidade é a variação das formas de vida que se manifesta na diversidade genética, nas populações, espécies, comunidades, ecossistemas e paisagens que se constituíram ao longo dos 3,5 bilhões de anos de vida na terra, por meio dos processos evolutivos dinâmicos, pressionados pelas mudanças físicas do ambiente.
Nessa intrínseca rede co-evolutiva de formas biológicas amarra-se a sobrevivência do Homo sapiens à biodiversidade. Dela se obtêm serviços ambientais de usos múltiplos: alimentação, combustíveis fósseis, fibras naturais (o valor dos serviços ecológicos no mundo estão calculados entre 16 e 54 trilhões de dólares). A água, o ar e a capacidade produtiva dos solos estão ligados aos ciclos naturais dependentes da biodiversidade. No plano econômico, sua importância é decisiva: 40% do Produto Interno Bruto do Brasil advém do setor da agroindústria beneficiada diretamente pela biodiversidade, o setor florestal contribui com 4% do Produto Interno Bruto e o setor pesqueiro com 1%. Basicamente, três plantações (café, laranja e soja) respondem por 31% das exportações brasileiras e a biomassa vegetal (cana-de-açúcar, lenha e carvão obtidos de florestas nativas e plantadas) é responsável por 26% da matriz energética do país, ultrapassando os 50% no Nordeste do Brasil.
Em última instância, a diversidade biológica, em todos os seus níveis, mantém seu papel estratégico - permite a possibilidade de adaptação das populações humanas e de outras espécies às pressões ambientais externas - cada vez mais importante nos cenários futuros.10
Esses cenários, principalmente os relacionados às mudanças climáticas globais, sinalizam um rearranjo importante na distribuição geográfica e abundância das espécies. O aumento de apenas alguns graus na temperatura poderá deslocar o habitat de muitas espécies para latitudes e altitudes mais altas, alterando, assim, a incidência de doenças antes restritas a determinadas regiões. Esse parece ser o caso da malária, cujas espécies de Plasmodium necessitam de temperaturas altas (entre 20 e 35°C dependendo da espécie) para completar a fase de esporogenia nos mosquitos (vetores) que, por sua vez, também poderão ampliar suas distribuições geográficas em conseqüência dos mesmos fatores abióticos.
Se a expansão poderá ocorrer, a extinção também é factível e já é fato. Anfíbios, por exemplo, desaparecem em todo o mundo num episódio de alteração climática nunca detectado, e até o momento identificado como global. O aumento de temperatura tornou, então, essas espécies suscetíveis a infecções diversas, causadas principalmente por fungos e bactérias.
O entendimento da importância da conservação da biodiversidade nos últimos anos, consolidada na Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e Desenvolvimento (UNCED, 1992), mobilizou os países signatários da Convenção sobre a Diversidade Biológica a inventariar seus estoques de biodiversidade e definir estratégias nacionais para sua conservação.6 Questões complexas estão previstas na Convenção sobre a Diversidade Biológica: a) tratar a diversidade biológica em toda a sua amplitude; b) tratar da conservação da diversidade biológica, da utilização sustentável de seus componentes, e da repartição justa e eqüitativa dos benefícios derivados da utilização dos recursos genéticos; c) incluir todas as diferentes formas de manejo da diversidade biológica; e d) contemplar os principais instrumentos para subsidiar o planejamento do uso e gerenciamento da diversidade biológica.
Atualmente, estima-se que apenas 10% das espécies existentes no planeta estejam descritas e conhecidas pela ciência.11 Nos levantamentos da distribuição geográfica da diversidade biológica, o Brasil surge como o país que detém em seu território a maior biodiversidade, com a maior riqueza de plantas vasculares, mamíferos, anfíbios, peixes de água doce; seguido da Colômbia, Indonésia, Peru e México.6 Quando se avalia biodiversidade e endemismo, o Brasil mantém-se também na liderança, seguido da Indonésia, Colômbia, Austrália e México.
Há, entretanto, responsabilidades e interesses distintos no cenário mundial quando se trata de biodiversidade. As nações consumidoras de biodiversidade (países industrializados) preocupam-se com a erosão-extinção das espécies, propondo medidas determinadas por seus interesses próprios. Por outro lado, as nações provedoras da diversidade biológica, na sua maioria subdesenvolvidas ou em desenvolvimento, preocupam-se em obter retorno econômico da utilização de seu patrimônio biológico que possa garantir e financiar a conservação da biodiversidade e a melhoria da qualidade de vida de sua população.
A Convenção sobre a Diversidade Biológica estabeleceu, assim, a repartição justa e eqüitativa dos benéficos comerciais e científicos derivados do desenvolvimento de insumos biotecnológicos entre o país de origem dos recursos genéticos e a nação que desenvolva cada produto, o rateio dos custos de conservação e a utilização sustentável da biodiversidade, in situ e ex situ. Os países ricos signatários comprometem-se a custear significativamente as ações de conservação e uso sustentável.
Com o desenvolvimento da biotecnologia e outras técnicas e tecnologias, a biodiversidade é um recurso econômico para o futuro: novos princípios ativos e medicamentos derivados de plantas, fungos, peçonhas; novos alimentos, fibras, decompositores de resíduos industriais e muitas outras potencialidades. Nos Estados Unidos, 25% dos fármacos contêm substâncias ativas derivadas de plantas e microorganismos. Estima-se em 200 bilhões de dólares por ano o valor da comercialização dos produtos químico-farmacêuticos derivados de seres vivos.
O decréscimo rápido dos recursos biológicos em função da expansão geográfica da espécie humana e de suas atividades e dos impactos por elas gerados (Tabela 1), elimina possibilidades de acesso aos novos insumos e produtos e reduz a plasticidade genética, única possibilidade de adaptação das espécies às mudanças. Vale ressaltar que mais da metade das variedades dos 20 alimentos mais importantes, com seus genes únicos, específicos e adaptados a outros tipos de clima, solo, doenças e pragas, que existiam no início deste século foi perdida. Incluem-se nessa lista arroz, aveia, cevada, feijão, milho e ervilha.
A perda não representa integralmente o problema. Se, por um lado, aumentamos a taxa de desaparecimento das espécies silvestres – extinção, por outro também impedimos o processo natural de surgimento de novas espécies – especiação. Esse bloqueio no processo evolutivo deve-se, principalmente, ao isolamento e fragmentação das áreas naturais originais que hoje comprometem a saúde evolutiva das espécies, mesmo aquelas protegidas pelas unidades de conservação. Os corredores ecológicos que interligam ecossistemas associados e zonas de transição e que permitem o fluxo genético entre as populações estão sendo interrompidos, o que gera o processo moderno de extinções causadas pelo homem, de intensidade ímpar sobre a biosfera.
Este padrão não se reproduz quando se trata de pragas, microorganismos patogênicos ou vetores que agem sobre a saúde humana e animal e a agricultura. O uso em larga escala de medicamentos e biocidas modifica o ambiente e, por conseguinte, pressiona a modificação genética e fenotípica desses organismos, tornando-os espécies multirresistentes aos produtos químicos responsáveis por controlar seu crescimento populacional.
Dessa forma, exterminamos espécies potencialmente benéficas e tornamos abundantes e resistentes as causadoras de doenças e as pragas.
Mitigar a perda da biodiversidade é, assim, fundamental para manutenção do homem não somente do ponto de vista da manutenção biológica, mas como a garantia das bases de recursos necessários à manutenção das sociedades modernas.
Há que se revisar conceitos e modelos que possibilitem o uso dos recursos e que garantam a manutenção evolutiva biológica nos seus vários níveis de organização. As Estratégias Nacionais de Biodiversidade que estão sendo elaboradas por vários países, inclusive o Brasil, deverão se incumbir de desenvolver condições e planos, entre os múltiplos setores da sociedade, para conter as perdas da biodiversidade. Devem, no entanto, observar os princípios gerais das Políticas Nacionais da Biodiversidade (Figura 2) e algumas ações de reversibilidade do cenário atual (Figura 3).
Detentor da maior biodiversidade do planeta, o Brasil tem enorme responsabilidade perante as novas gerações da terra. A megadiversidade gera dificuldades e complexidades de monitoramento, manejo e conservação. A partir dos últimos cinco anos, vários avanços vêm sendo consolidados de modo a implementar a Convenção sobre a Diversidade Biológica no Brasil. O Ministério do Meio Ambiente é o responsável por essa implementação por meio da Coordenação Geral de Diversidade Biológica e vem desenvolvendo várias ações em conjunto com o Programa Nacional da Biodiversidade, programa que estabelece a parceria entre o governo e a sociedade na conservação, uso sustentável e partilha de benefícios obtidos da biodiversidade.
Nesse caminho, tem-se trabalhado:
a) no avanço da legislação (biossegurança, acesso e repartição dos benefícios da biodiversidade, propriedade industrial, proteção de cultivares, leis de crimes ambientais, e sistema nacional de unidades de conservação);
b) nas políticas setoriais (florestal, pesqueira, agrícola, recursos hídricos, controle de desertificação, mineral, educação ambiental e conscientização pública, turismo, integração da Amazônia Legal, e agenda amazônica); e
c) nos programas integrados para a biodiversidade (Programa Nacional de Meio Ambiente, programa piloto para a proteção das florestas tropicais, corredores ecológicos da Amazônia e Mata Atlântica, programa de Levantamento do Potencial Sustentável dos Recursos Vivos da Zona Econômica Exclusiva, Programa Nacional da Biodiversidade, Projeto de Conservação e Utilização Sustentável da Diversidade Biológica Brasileira, e Fundo Brasileiro para o Uso Sustentável da Biodiversidade da Amazônia).7
No que concerne às questões de saúde, a perda da biodiversidade resulta na redução de recursos genéticos que poderiam vir a ser utilizados, por exemplo, para o tratamento de doenças como o câncer. Também significa a modificação de ecossistemas naturais e a redução na oferta de seus “serviços”, tais como a preservação do solo, a estabilidade do clima local, a disponibilidade de ar e água limpas, que são todos fatores essenciais para o bem-estar, a saúde e a sobrevivência humana. O desaparecimento de paisagens naturais tem também impacto pelo seu valor estético e para o lazer.
Poluentes orgânicos persistentes
Nas últimas décadas, tem sido dramático o crescimento dos químicos manufaturados e outras atividades humanas que resultam na liberação de poluentes tóxicos. Muitas dessas atividades são essenciais para a sociedade moderna, mas, também, representam uma ameaça para a saúde humana e para os ecossistemas terrestres e aquáticos.
Os poluentes orgânicos persistentes, chamados POPs, configuram-se num grupo de substâncias químicas de particular interesse para a agricultura, a indústria, a saúde pública e o meio ambiente. Numa ação conjunta, no âmbito das Nações Unidas, realizaram-se estudos12-15 a respeito dos poluentes orgânicos persistentes, com uma lista inicial de 12 substâncias a saber: Diclorodifenil-tricloroetano, Aldrin, Dieldrin, Endrin, Clordane, Hexaclorobenzeno, Mirex, Toxafeno, Heptaclor, Policlorinatobifenil, dioxinas e furanos. A partir daí, foi proposta a criação de um Comitê Intergovernamental Negociador com a finalidade de elaborar um instrumento legal vinculante para reduzir e eliminar emissões de substâncias orgânicas persistentes.
Os poluentes orgânicos persistentes são compostos orgânicos representados pelos hidrocarbonetos aromáticos policíclicos e pelos hidrocarbonetos halogenados. No conjunto dessas substâncias, estão inseridos os pesticidas, produtos industriais e produtos de origem secundária, também chamados de produtos não intencionais, como o caso das dioxinas e os furanos.
Os pesticidas do grupo organoclorados iniciaram a era dos pesticidas modernos. Foram largamente usados no aumento da produção agrícola e em campanhas de saúde pública, principalmente nos países em desenvolvimento no controle da malária. Os compostos organoclorados são os produtos sintetizados pelo homem que maior impacto causam ao meio ambiente. Isso se deve basicamente à alta persistência no ambiente, resistência à degradação, capacidade de transporte a longas distâncias via atmosfera e via correntes marinhas, e ao potencial de bioacumulação e biomagnificação.
Resíduos de produtos organoclorados são encontrados praticamente em todos os ecossistemas, incluindo a Antártica e o Ártico. Alguns dos efeitos desses produtos para o ambiente são a redução da vida selvagem, a redução dos organismos predadores, o extermínio dos competidores naturais e a redução da biodiversidade, com efeitos na reprodução com alterações do sistema imunológico nos animais.
Os alimentos representam a principal via de exposição ambiental para estes produtos.
Em nível mundial, cerca de três milhões de envenenamentos com 220 mil mortes devido a exposição aguda a pesticidas são relatadas anualmente, de forma oficial.16,17 Esse quadro evidencia a riscos da exposição a esses produtos para a saúde humana.
Estudos13-16 têm mostrado que restrições locais ao uso de organoclorados, evidenciam efeitos positivos ao nível de ambientes aquáticos, com a redução do níveis de organoclorados nos animais e vegetais.
Nos países em desenvolvimento, principalmente no Hemisfério Sul, muitas são as dificuldades no controle dos poluentes orgânicos persistentes. Isso se deve à capacitação, ainda restrita para manejo de produtos tóxicos, à falta de pesquisas e informações para subsidiar ações técnicas e legais, e à falta de recursos financeiros.
Com relação à produção, uso e fontes de poluentes orgânicos persistentes o quadro oficial internacional, de acordo com informações prestadas pelos países durante as negociações da “Convenção poluentes orgânicos persistentes”, é o seguinte: a) Aldrin, Dieldrin, Endrin e Toxafeno - estão com a produção suspensa; b) Mirex e Hexaclorobenzeno não são produzidos; c) Diclorodifeniltricloroetano ainda é produzido para controle de vetores; d) Clordane e Heptaclor são produzidos para controle de formigas e preservação de madeiras; e) Policlorinatobifenil e Hexaclorobenzeno não são mais produzidos. A maior fonte de Policlorinatobifenil são os fluidos dielétricos de equipamentos eletrônicos e, em menor escala, fluidos hidráulicos e selantes. Em relação ao Hexaclorobenzeno, suas fontes de exposição aparecem como produtos não intencionais oriundos de processos industriais; e f) Dioxinas e furanos, cujas fontes são oriundas de subprodutos de processos industriais, processos de combustão, disposição e incineração de resíduos sólidos urbanos e industriais, entre outros.
O Ministério do Meio Ambiente é o representante institucional - Ponto Focal - brasileiro junto ao Comitê Intergovernamental Negociador. Durante as negociações, no âmbito do Comitê Intergovernamental Negociador, o Brasil tem adotado posições que atendam aos interesses dos países em desenvolvimento, principalmente no que se refere aos mecanismos financeiros para viabilizar o cumprimento das obrigações legais e de pesquisa.15,16
No aspecto técnico, o Brasil tem consciência das dificuldades práticas para a eliminação total dos poluentes orgânicos persistentes. Consideramos que os 12 poluentes orgânicos persistentes, em negociação, devem ser tratados de forma diferenciada. Os pesticidas são os que, provavelmente, serão de mais fácil manejo. Por outro lado, os produtos industriais, principalmente o Policlorinatobifenil, exigirão do país atividades mais específicas, tais como elaboração de inventários. As dioxinas e os furanos, tratados como produtos não intencionais, são problemas comuns tanto aos países desenvolvidos como aos em desenvolvimento, e ainda necessitam de muita discussão até que se chegue a um consenso.
Pontos considerados de relevância para o Brasil: a) as prioridades nacionais no uso de alguns poluentes orgânicos persistentes, como a utilização do heptacloro para a preservação de madeira; b) as especificidades dos nossos ecossistemas em relação à avaliação do potencial de perigo; c) a harmonização e a divulgação das iniciativas regionais com relação as ações internacionais; d) a realidade socioeconômica do país em relação ao banimento ou eliminação gradativa de alguns poluentes orgânicos persistentes, com especial enfoque em relação aos impactos na produção de alimentos e aos impactos na saúde pública; e e) a necessidade de financiamento e capacitação técnica na implementação das ações globais.
Desde 1998, o Ministério do Meio Ambiente vem discutindo com a comunidade técnica e científica nacional a proposição e implementando ações. Essas ações, que ainda não foram concluídas, seriam: a) o inventário da produção, do comércio de importação e exportação, dos usos e dos estoques existentes; b) o conhecimento da capacidade de destruição e incineração dos produtos armazenados no país; c) a capacitação dos órgãos responsáveis pelo monitoramento dos poluentes orgânicos persistentes; d) a implementação de campanhas de esclarecimento, visando encorajar o desuso dos poluentes orgânicos persistentes; e) a remediação de sítios contaminados; f) a elaboração de diagnósticos para subsidiar a participação brasileira no Comitê Intergovernamental Negociador; e g) a implementação de medidas que visem à redução dos riscos relacionados aos poluentes orgânicos persistentes, tendo por base a legislação existente para os 12 produtos.
O Brasil assinou, em 23 de maio de 2001, em Estocolmo, a Convenção sobre Poluentes Orgânicos Persistentes. A Convenção de Estocolmo constitui importante instrumento do ponto de vista do reforço da segurança química internacional, em consonância com as metas preconizadas na Agenda 21, adotada pela Conferência do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, em 1992. Sua adoção representa uma medida de precaução para evitar que o uso indiscriminado desses produtos possa causar danos irreversíveis à saúde humana e ao meio ambiente.
O acordo sobre poluentes orgânicos persistentes exige o estabelecimento de planos de ação nacionais para lidar com as substâncias identificadas. O acordo prevê, ainda, níveis diferenciados de responsabilidades e capacidades entre os países e vincula o cumprimento do acordo, por parte dos países em desenvolvimento, ao acesso à assistência financeira e técnica que se fizer necessária. Dessa forma, assegura que o esforço de proteção considere as condições socioeconômicas de cada país e que os planos de ação se reportem a prioridades nacionalmente definidas. O acordo consagra, dessa forma, o princípio das responsabilidades comuns, mas diferenciadas, na proteção do meio ambiente, consagrado na Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento de 1992.
Recursos marinhos
O Programa Nacional de Gerenciamento Costeiro vem avaliando os diversos problemas que comprometem a qualidade dos recursos marinhos, buscando ações mitigadoras e reguladoras. Assim, completou-se a avaliação das políticas federais nos setores de turismo, transporte, indústria e desenvolvimento que geram impacto sobre as zonas costeiras. Encontra-se em andamento o macrodiagnóstico da zona costeira do Brasil, com as tendências de ocupação, caracterização física natural, potencial de risco e vulnerabilidade e áreas de conservação.
Há, no entanto, que se articular ações entre os múltiplos setores que utilizam o mar, para que sejam conservativos em suas ações e não ultrapassem a capacidade suporte desse imenso ecossistema de promover a vida e regular o clima terrestre.
O tempo é crítico. A biodiversidade nos ecossistemas marinhos é importante para o controle de doenças na flora e fauna marinha e para as espécies que delas dependem (aves e homens). A temperatura das águas marinhas afeta a saúde da vida marinha, dos recifes de corais, habitats importantes para a nutrição do homem.
Grandes empreendimentos
Historicamente, no Brasil, os projetos de desenvolvimento que envolvem grandes empreendimentos, quer por sua interferência no ambiente quer pelos aspectos sociodemográficos associados, têm mostrado importantes modificações epidemiológicas como conseqüência. É conhecida a alteração no perfil epidemiológico da hanseníase na região dos chamados “rios borracheiros” no Amazonas, devido à migração de nordestinos no final dos anos 70 do século XIX. Esses migrantes fugiam da grande seca ocorrida e foram utilizados como mão-de-obra para os empreendimentos seringalistas.
Da mesma forma, no início do século XX, no atual Estado de Rondônia, a construção da ferrovia Madeira-Mamoré atraiu grandes contingentes de mão-de-obra estrangeira, resultando no aumento da malária, inclusive com a introdução de cepas importadas.
Também a abertura da ferrovia Sorocabana, no início do século XX, no interior de São Paulo, foi acompanhada de epidemias de leishmaniose tegumentar. No início dos anos 60, com a abertura da rodovia Belém-Brasília, foram observados, pela primeira vez, casos importados de calazar, esquistossomose e doença de Chagas em Belém.
Nos anos 70, o governo militar, em sua geopolítica amazônica, iniciou ambicioso programa de abertura de rodovias, como a Transamazônica, a Perimetral Norte e a BR-174 (Manaus-Caracaraí). Nesses casos particulares surgiram importantes surtos epidêmicos como resultado quer da introdução de agentes infecciosos desconhecidos das populações indígenas, com efeitos devastadores sobre elas (exemplo: dizimação de comunidades ianomâmi na Perimetral Norte) ou em função da vulnerabilidade de migrantes do sul do país (febre hemorrágica de Altamira, na Transamazônica).
Outros exemplos de grandes empreendimentos, resultando em modificações importantes dos quadros sanitários, estão as hidroelétricas e, mais recentemente, os pólos de exploração petrolífera. Os casos das barragens de Itaipu (Paraná) e Tucuruí (Pará) são ilustrativos. Em ambos, foram observadas epidemias de malária em função do aumento dos criadouros de vetores proporcionado pelo espelho d’água. Em Tucuruí, foi observada também uma explosão da população dos mosquitos hematófagos do gênero Mansonia, que atacaram a população do entorno.
O processo de incremento acelerado da população urbana de Manaus, migrada do interior do Amazonas, atraída pelo Distrito Industrial, resultou em grandes epidemias de malária e leishmaniose tegumentar na periferia da cidade.18
Também o extrativismo intensificado e em larga escala tem resultado em surtos epidêmicos, principalmente nos garimpos e extração madeireira. No primeiro caso, temos como exemplo a introdução de calazar em Santarém, Pará, nos anos 60 e no final da década de 80, no Estado de Roraima.
Graças à alta mobilidade da população garimpeira, têm sido observados importantes aumentos de malária nas áreas de mineração informal, com redistribuição espacial de cepas de Plasmodium resistentes. O incremento da malária em Roraima é um bom exemplo, com o IPA de 63, em 1987, passando para 94, em 1991, devido ao rápido afluxo de cerca de 40 mil garimpeiros para áreas indígenas do Estado.
No caso da exploração madeireira, registraram-se epidemias de malária na região do Vale do Javari, Estado do Amazonas, associado à invasão de madeireiras em áreas indígenas semiisoladas.
No caso de projetos industriais e agrosilvicultores considerados como exemplares, sob o ponto de vista sanitário, como fora a Icomi Mineração, no Amapá, nos anos 60 e, recentemente, o Pólo de Urucum da Petrobrás, verificou-se que a população autóctone do entorno, ao contrário dos empregados das empresas envolvidas, verdadeiras “bolhas sanitárias”, não se beneficiaram do controle epidemiológico.
Discussão
Praticamente todos os processos das mudanças globais afetam a saúde humana, seja de forma direta ou indireta. A importância do impacto dessas mudanças dependerá, em grande medida, da fração da população humana atingida, da severidade e reversibilidade do dano e também das opções de adaptação e mitigação disponíveis.
Algumas mudanças globais afetam a saúde humana de forma cumulativa. É o caso dos despejos de poluentes químicos na água, solo e na biota, em incontável número de localidades, em todo o mundo, e que, de modo geral, afetam a maior parte da população, no nível local, regional ou global.
Um outro exemplo de processo cumulativo diz respeito aos múltiplos processos loco-regionais de destruição de habitats naturais e de extinção de espécies biológicas em áreas freqüentemente não conectadas e mesmo muito distantes entre si. Entretanto, ao nível global, a soma desses processos resultará na perda de recursos genéticos e do legado relativo às paisagens naturais.
Outros processos são importantes por seu caráter sistêmico, como nos casos do sistema climático e da camada de ozônio estratosférico, um dos grandes ciclos da biosfera que estão sendo afetados como um todo. Distúrbios nesses compartimentos poderão afetar a saúde humana enquanto fatores globais de perigo (hazards) e, portanto, em uma escala espacial maior do que o caso das fontes locais de poluição. Por outro lado, processos de degradação ambiental que anteriormente se acreditava afetar a população apenas localmente, tal como o uso de pesticidas agrícolas, têm, nos dias de hoje, efeitos a longa distâncias. Esse é o caso dos poluentes orgânicos persistentes que, às vezes, são liberados no ambiente tropical (baixas latitudes), mas, devido à ação de correntes oceânicas e atmosféricas, são depositados na região ártica, a milhares de quilômetros de distância. Os danos documentados são especialmente significativos nas espécies de predadores superiores (topo da cadeia alimentar), incluindo-se:
a) danos à reprodução e redução da população da espécie;
b) alteração do sistema imunológico;
c) anomalias de comportamento;
d) funcionamento anormal da tireóide e outras alterações do sistema hormonal;
e) tumores e cânceres;
f) feminização dos machos e masculinização das fêmeas; e
g) malformações congênitas.
Esses são alguns exemplos dos efeitos mais diretos das mudanças globais na saúde. Há muitos outros efeitos indiretos, algumas vezes difíceis de serem quantificados devido aos complexos mecanismos ecológicos e processos sociais que interagem em sua produção. Devemos ter ainda em mente que os diferentes processos de mudanças ambientais globais interagem entre si o que podem potencializar os seus efeitos sobre a saúde humana. Para abordar cientificamente essas questões, novos arcabouços conceituais e métodos de análise se fazem necessários, tais como a aplicação dos Modelos de Avaliação Integrada (Integrated Assessments), cuja utilização pelo setor saúde ainda não foi efetivamente incorporada.
Os problemas de saúde pública constituem um componente crítico das dimensões humanas das mudanças ambientais globais. O estabelecimento de critérios de qualidade ambiental depende, em grande parte, da mensuração dos seus efeitos sobre os sistemas biológicos, em especial sobre a saúde e a sobrevivência humana. Entretanto, não se conhece o suficiente sobre a ampla gama de possíveis conseqüências para a saúde dos complexos processos que fazem parte das mudanças globais. Mais pesquisas se fazem necessárias, tanto em nível conceitual quanto empírico. Isso traz um importante desafio para os pesquisadores em saúde pública uma vez que, para que esses conhecimentos sejam obtidos, a transposição de limites disciplinares tradicionais deverá acontecer. A Saúde Pública, embora se utilize com freqüência das ciências sociais como marco de referência, precisa fazer o mesmo com as ciências da terra, tais como a climatologia, hidrologia, meteorologia, ecologia, sensoriamento remoto e disciplinas correlatas.
Dessa forma, é necessário avançar em pesquisas e consolidação de resultados que permitam: a) construir modelos conceituais adequados para se abordar cientificamente os processos das mudanças ambientais globais, incluindose os impactos na saúde das coletividades; b) incluir a questão das mudanças ambientais globais na agenda científica e institucional brasileira, notadamente no campo das ciências da Saúde-Pública; c) buscar modelo de desenvolvimento compatível com a sustentabilidade econômica e ambiental, a longo prazo; d) criar mecanismos que interrompam ou minimizem a perda exponencial da biodiversidade, garantia dos “serviços prestados” pelos ecossistemas íntegros no Brasil; e) minimizar globalmente a crescente diminuição dos estoques de água doce causada pelos processos de desertificação e contaminações múltiplas; e f) sensibilizar as pessoas para a constatação de que todos os recursos naturais renováveis não são infinitos.
Referências bibliográficas
1. Vitousek PM. Global environmental change: an introduction. Annalls Review Ecology Systems 1992;23:1-14.
2. UK Global Environmental Research Office. Global environmental change: the UK research framework 1993. Swindon: UK Global Environmental Research Office; 1993.
3. International Endocrine Disruptors Workshop Report. Smithsonian Institution; 1997 Jan 23-24; Washington, D.C.: Estados Unidos. [Mimeo].
4. Singer SF. Global climate controversy. The Journal of the American Medical Association 1996;276(5): 372-373.
5. United States Global Change Re search Program. Our changing planet the FY2000: implementation plan and budget overview. Washington, D.C.: United States Global Change Research Program; 1999.
6. Ministério do Meio Ambiente, dos Recursos Hídricos e da Amazônia Legal. Biodiversidade brasileira, avaliação e identificação de áreas e ações prioritárias para conservação, utilização sustentável e repartição de benefícios da biodiversidade nos biomas brasileiros. Brasília: Ministério do Meio Ambiente, dos Recursos Hídricos e da Amazônia Legal; 2002.
7. Ministério do Meio Ambiente, dos Recursos Hídricos e da Amazônia Legal. Primeiro relatório nacional para a convenção sobre a diversidade biológica - Brasil. Brasília: Ministério do Meio Ambiente, dos Recursos Hídricos e da Amazônia Legal; 1998.
8. Patz JA, Hulme M, RosenzWeig C, Mitchell TD, Goldberg RA, Githeko AK et al. Climate change (communication arising): regional warming and malaria resurgence. Nature 2002;420:627-628.
9. Watson RT, editor. Climate change. Impacts, adaptation and mitigation of climate change: scientific-technical analysis, contributions of working group II to the Second Assessment Report of the Intergovernamental Panel on Climate Change. Cambridge: UK; 1996.
10. Mittermeier RA, Gil PR, Mittermeier CG. Megadiversity: earth’s biologically wealthiest nations. México: Cemex; 1997.
11. Wilson EO. Diversidade biológica. São Paulo: Companhia das Letras; 1994.
12. United Nations Environment Programme. Country case studies on persistent organic pollutans (POPs). Inter-Organization Programme for the Sound Management of Chemicals (IOMC). 2000.
13. United Nations Environment Programme. Persistent organic pollutants. Inter-Organization Programme for the Sound Management of Chemicals, November. 1999.
14. United Nations Environment Programme. Dioxin and furan inventories. Inter-Organization Programme for the Sound Management of Chemicals, May-November. 1999.
15. Ministério do Meio Ambiente, dos Recursos Hídricos e da Amazônia Legal. Secretaria de Implementação de Políticas Ambientais. Departamento de mobilização e Articulação Institucional. Critérios para identificação de poluentes orgânicos persistente - Brasil. Brasília: Ministério do Meio Ambiente, dos Recursos Hídricos e da Amazônia Legal; 1999.
16. Stockholm Convention on Persistent Organic Pollutants [online] (s.d.) [capturado 2002 nov 26]. Disponível em: http://www.pops.int.
17. Oliveira, S. Poluentes orgânicos persistentes - POPs. Relatório interno do Ministério do Meio Ambiente. Brasília: Ministério do Meio Ambiente, dos Recursos Hídricos e da Amazônia Legal; 1999. [Mimeo].
18. Santos TCC, Câmara JBD, organizadores. Geo Brasil 2002 - perspectivas do meio ambiente no Brasil. Brasília: Instituto Brasileiro do Meio Ambiente; 2002.
Endereço para correspondência:
Av. Brasil, 4.036/sala 703
Manguinhos - Rio de Janeiro/RJ.
CEP: 21.040-361.
E-mail:pmags@ensp.fiocruz.br