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Informe Epidemiológico do Sus

versão impressa ISSN 0104-1673

Inf. Epidemiol. Sus v.11 n.3 Brasília set. 2002

http://dx.doi.org/10.5123/S0104-16732002000300006 

Conceito de vida no trabalho na análise das relações entre processo de trabalho e saúde no hospital

 

The concept of life at work in the analyses of work process and health at hospitals

 

 

Jorge Mesquita Huet MachadoI; Marilena Villela CorreaII

ICoordenação de Saúde do Trabalhador/FIOCRUZ
IIEscola Nacional de Saúde Pública/FIOCRUZ

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente texto apresenta uma discussão metodológica a partir da necessidade de aprofundamento das observações da relação do processo de trabalho com a saúde, objeto fundamental do campo disciplinar da saúde do trabalhador. Para tal, desenvolve algumas reflexões sobre o trabalho em hospitais, destacando a sua natureza humana e apresentando conceitos de vida no trabalho e de situações descritoras para operacionalização da reconstrução do processo de trabalho em hospitais. Os avanços teóricos metodológicos observados foram: introdução do conceito de vida no trabalho na análise de processo de trabalho; inclusão do conceito de situações descritoras, e da abordagem da Antropologia Simétrica na análise do processo de trabalho; tomar de Foucault ferramentas conceituais para a descrição do processo de trabalho (distribuição de espaço; controle das ações; acompanhamento das pessoas de acordo com a hierarquia; registro do processo para classificar, julgar, medir e relocar as pessoas; e estratificação do processo de trabalho segundo a natureza das atividades realizadas).

Palavras-Chave: Saúde do Trabalhador; Trabalho Hospitalar; Vida no Trabalho.


SUMMARY

The main issue of this paper is a methodological discussion regarding the need of studying more deeply a fundamental aspect of occupational health: the relation between the work process and health. Reflections about the work at hospitals are discussed considering the complexity of human nature and its peculiar characteristics. Life concepts in the work environment as well as specific situations that help to reconstruct the work process at hospital sites are presented. The theoretical and methodological advances observed were: introduction of the concept of life at work in the work process analysis; inclusion of the concept of descriptive situations and symmetrical anthropology in work process analysis; and the inclusion of some of Foucault’s conceptual tools to describe the work process (spatial distribution, control of actions, follow-up of people with respect to hierarchy, registration of the process to classify, judge, measure, and reallocate the people; and stratify the work process based on the nature of the activities).

Key Words: Occupational Health; Hospital Occupation; Working Life.


 

 

Introdução

A visão hegemônica naturalizante da medicina e da epidemiologia encara o processo de adoecimento como um fenômeno biológico individual, abstraindo outras dimensões fundamentais da vida do homem, com destaque para a questão das relações humanas ou interpessoais, e a própria atividade de trabalho (ou a privação do trabalho pelo desemprego), para a qual todos nós somos formados e da qual depende, em grande parte, a própria produção material da vida de cada um.

Dentro do campo da saúde do trabalhador, o processo de trabalho tornouse uma categoria fundamental, possibilitadora de análises sobre o adoecimento e o sofrimento ligados a ele, que ultrapassam aquela visão naturalizante, e que permitem propor novos modelos de abordagem do processo saúde e doença. Disso resultaram análises sobre o problema do desgaste físico e psíquico ligado a tipos específicos de atividade produtiva ou laborativa.

De certa maneira, essas análises não deixam de refluir na direção do modelo médico naturalizante, na medida em que nos seus resultados, apontam indicadores de morbidade e ou de mortalidade - ferramentas fundamentais no combate aos agravos impostos aos trabalhadores e demais pessoas (no caso de agravos ambientais), mas com relativo prejuízo, ao deixar à sombra a contribuição mais original do modelo da saúde do trabalhador, que seriam as considerações e o detalhamento dos outros elementos acima indicados - as relações humanas, a relação com o trabalho, o sentido e a significação dele.

Colocamo-nos diante do desafio de produzir uma abordagem do trabalho em saúde que guarde relações aos modelos de estudo do campo da saúde do trabalhador, mas com ênfase nos últimos elementos citados.

Estudar o trabalho em saúde pode compreender uma ampla gama de atividades de produção e serviços. Este pode ser entendido desde a prestação de serviços médicos, em nível hospitalar, ambulatorial ou de uma unidade de saúde, até à produção de insumos e medicamentos para o campo médico, passando pela produção do conhecimento e controle da informação em saúde.

Tal diversidade presente no trabalho em saúde, indica-nos a importância de uma reflexão sobre o trabalho e o ambiente na própria Fundação Oswaldo Cruz, em suas unidades, na medida em que a maior parte daqueles diferentes processos de trabalho pode ser encontrada nessa instituição. A análise do trabalho em saúde apresentada, neste momento, vem sendo desenvolvida com o estudo do trabalho hospitalar.

 

Processo de trabalho no hospital

O processo de trabalho em saúde é sabidamente pouco estudado, sendo recentes as pesquisas em nosso meio sobre o tema. Consultando a bibliografia, ao final, o leitor verá que se tratam principalmente de teses de mestrado e doutorado apresentadas na década de 90.

Processo de trabalho múltiplo e complexo, ele pode ser desenvolvido em diversos níveis: ambulatorial, hospitalar, clínica privada. Esse trabalho complexo é pouco articulado pela diferenciação e hierarquia entre os grupos profissionais envolvidos no trabalho em saúde e em função do próprio discurso médico-hospitalar dominante sobre partes dos corpos.

A nosso ver, o foco do processo de trabalho em saúde é o paciente e a produção de saúde. Nesse processo, as profissões de medicina e enfermagem são predominantes e têm, hoje, no hospital um espaço legitimizador privilegiado. É também no hospital que se manifesta de forma mais clara a hierarquia das profissões de saúde. Para alguns, a formulação do objeto do trabalho médico é a dor e a morte e sua finalidade a ação terapêutica, a cura, a saúde, a vida como em Pitta.1

Os cuidados prestados ao doente no trabalho hospitalar são em geral realizados por vários profissionais, constituindo um trabalho em equipe. Nela, os médicos são numericamente minoritários, comparativamente a outros profissionais que participam da assistência. Mesmo sendo a qualificação da força de trabalho médico bastante heterogênea, ele exerce, sempre, uma hegemonia e o monopólio sobre uma série de atividades no campo dos cuidados (com “nuances” que variam de um caso para outro). Esse monopólio e essa hegemonia apóiam-se em regras para a formação profissional e prática, assim como controle e regulamentação de outros profissionais de saúde.

O objeto do trabalho hospitalar é complexo, e é também humano. Interage com o trabalhador. O processo de produção, neste caso, depende da cooperação do objeto de trabalho. A necessidade social geradora do trabalho e o objeto do trabalho hospitalar formam uma unidade. Neste sentido, já se tem considerado o usuário de serviços de saúde como parte dos recursos humanos a serem considerados. A cooperação se dá então, necessariamente, tanto entre trabalhadores em saúde quanto entre estes e seu objeto.

Embora falar em equipe dê uma idéia de articulação – o que pode ocorrer em vários níveis na relação entre as pessoas – do ponto de vista do cuidado de saúde, essa relação mostra-se cada vez mais fragmentada. Ao mesmo tempo, as hierarquias se desdobram no sentido, por exemplo, de que o assistente social remete-se a alguém de sua categoria profissional, assim como o nutricionista, ainda que, na maior parte dos casos caiba ao médico, finalmente, definir o tipo de dieta ou o privilégio de identificar um caso para o serviço social, um caso para o serviço de psicologia, os chamados encaminhamentos.

Sendo o hospital, desde sua gênese, espaço de formação médica, ocorre também em seu espaço o processo de acumulação de conhecimentos pela experiência, trocas, solidariedade, o que constitui uma vertente positiva, no sentido de desfazer, em termos relativos, a fragmentação dos conhecimentos sobre as pessoas e suas doenças ou sobre as pessoas e seus relacionamentos em um hospital específico. Mais do que os espaços de formação formalmente constituídos, e conhecimento empírico acumulado na prática amplia a possibilidade de trocas e diminui a distância entre as pessoas, como pode ser observado no cotidiano do Hospital Evandro Chagas, da Fundação Oswaldo Cruz. Mas há que discutir as contradições que esta forma de relação comporta.

Em outro estudo,2 no Hospital dos Servidores do Estado, há depoimentos de médicos que sentem saudades do espírito de troca de conhecimentos e solidariedade, que viveram anos atrás em suas residências. Na observação realizada no Hospital Geral de Jacarepaguá do Ministério da Saúde, no Rio de Janeiro, anteriormente desenvolvida por Silva,3 o individualismo, nas suas faces de corporativismo e competição mesmo internas às corporações, foi visto como um modo dominante de subjetivação.

Sinteticamente, podemos representar o trabalho hospitalar em um esquema concêntrico onde o centro da atividade hospitalar, será chamado genericamente de cuidado com o paciente (Figura 1). Nestas atividades participam fundamentalmente os profissionais médicos e de enfermagem, sendo neste foco organizada uma nítida hierarquia desde a tomada de decisões do que fazer com o doente à execução dos cuidados mais simples, como a medição da temperatura pelos técnicos de enfermagem. Embora todos possam ser caracterizados como trabalho com alta intensidade de trabalho humano, coloca-se aí uma hierarquia fundamentada no saber e na decisão técnica.

 

 

O trabalho no hospital apresenta ainda dois grupos de atividades de apoio, um primeiro, especificamente relacionado com à saúde do paciente como exames laboratoriais, de imagens e funcionais, nutrição, assistência social e farmácia. E outro, de atividades de apoio, como limpeza e manutenção em geral, que também se divide em predial e de equipamentos.

O centro, primeiro grupo, corresponde, além do contato direto com o paciente, ao foco mais tradicional, e de certa forma mais estável mesmo diante das mudanças tecnológicas, onde predominam o contato humano e a relação entre pessoas. O segundo grupo tem um contato indireto, intermediado pela técnica, influenciado fortemente pelas mudanças tecnológicas do hospital. O terceiro agrega um trabalho de desqualificação com outro de alta qualificação e, ambos, representam a área externa da biossegurança no hospital, mantendo um contato eventual com os pacientes.

Retomando à Figura 1, do processo de trabalho no hospital, no que diz respeito aos acidentes perfurocortantes, aqueles três níveis apresentam também características distintas: o foco central atinge diretamente o profissional de saúde, mas pode também atingir o doente, pois é um risco dividido entre os profissionais e os pacientes. Há uma relação direta entre profissional com o paciente. A situação de risco é decorrente dessa intensa relação humana que se dá no foco do cuidado de saúde e tem como característica a contaminação biológica não intencional de uma pessoa pela outra. A relação entre profissional e o paciente deve necessariamente ser de colaboração. Entretanto, esta é uma das situações em que fica evidente o risco potencial de contaminação que o usuário representa para o profissional.

No segundo nível, a situação de contágio ou está potencializada ou atenuada pela tarefa e posicionamento em relação à técnica que está sendo empregada. É, portanto, mediada pela tecnologia, mas também similar ao primeiro nível de natureza humana e de contaminação cruzada.

No terceiro nível das atividades de apoio inespecífico e mais distante do paciente, o acidente será mais amplo, de natureza técnica e de contaminação coletiva.

Portanto, esses três níveis devem ser considerados na organização e análise dos registros de acidentes, como categorias distintas, pois têm um correspondente diferencial na trajetória de sua causalidade.

 

Aspectos organizacionais do hospital

Retomando a literatura existente sobre saúde e trabalho no hospital, observa-se que a questão do sofrimento ou desgaste está sempre colocada em contraste com a abordagem dos aspectos organizacionais do hospital. O que, sem dúvida, corresponde à ênfase na natureza do trabalho hospitalar, levando em consideração aspectos positivos e analisando a inserção afirmativa dos trabalhadores do campo da saúde na modalidade do trabalho hospitalar e sua permanência, a despeito de aspectos penosos ligados a esse tipo de trabalho.

O modelo dominante de análise do trabalho hospitalar dá muita ênfase aos aspectos reconhecidamente responsáveis pelo sofrimento psíquico. Esta categoria é definida ora como sinônimo de “mal-estar e de sentimento de vida contrariada” em Palácios,4 ora para Dejours5-7 como um espaço que se caracteriza por uma luta contra a doença mental. Para este último, embora a organização do trabalho exerça uma ação específica sobre o aparelho psíquico, não existe doença mental específica do trabalho. O que ocorre muitas vezes, em função daquela luta, é o surgimento de doenças somáticas mediadas pelo sofrimento psíquico.

Estes autores concordam que o sofrimento psíquico estaria relacionado à impotência diante das formas objetivas em que se organiza o trabalho. Essa organização configura um conjunto de normas e regras que estabelecem a forma como o trabalho deve ser executado em uma unidade de produção. Ou seja, é a prescrição do trabalho, que compreende: divisão de trabalho, qualificação, condições; aspectos afetivos e relacionais implicados no posto de trabalho ocupado; o grau de iniciativa e autonomia; o grau de ambiguidade sobre os resultados da tarefa; status social da atividade; possibilidade de cooperação e comunicação; entre muitos outros aspectos. Para Palácios,4 a pouca participação e controle sobre o processo de trabalho no hospital resultaria em carga psíquica.

Não há dúvida de que o desgaste estaria relacionado aos aspectos acima enumerados. Entretanto, a nosso ver, há, muitas vezes, a transposição e operacionalização de categorias analíticas construídas a partir do modelo do trabalho industrial, que devem ser questionadas na análise do trabalho em saúde e do trabalho hospitalar. No trabalho em saúde, algumas atividades se aproximam do trabalho industrial, mas não o seu foco.

Assim, conhecer um hospital implica, por um lado, descrevê-lo por meio de dados secundários, que constituem os indicadores hospitalares rotineiramente produzidos. Mas, para além disso, num estudo que se apóie em instrumentos metodológicos da antropologia, temos buscado inspiração na leitura dos textos de Latour e Woolgar,8-10 e sua proposta de uma antropologia simétrica, da sociologia e outras disciplinas do campo das ciências humanas que nos possibilitem observá-lo, auscultá-lo, penetrar na densidade das questões que uma unidade complexa como esta apresenta.

O caminho que o hospital percorre em sua história como instituição aponta sua transformação de depositário de doentes e excluídos em locus de extrema concentração de tecnologia e saber. Procuramos nos deter, neste contexto de alta complexidade, em aspectos relevantes direcionadores das transformações humanas ocorridas e desencadeadas pelo trabalho no interior do hospital. É este que vai ser o delimitador do lugar, como espaço aberto, onde acontecem as interações entre trabalhadores, doentes e seus familiares com os objetos, técnicas, tecnologias, ferramentas e procedimentos terapêuticos.

Dizem-se espaço aberto, pois as relações existentes no interior de um hospital estão permeadas por elementos externos do presente e do passado e que vão se relacionar com a vida, como um todo, de seus personagens, que podem ser apreendidos pelas vivências internas ao hospital. Ao lado de novos dilemas sobre como estabelecer o bom atendimento ao paciente, mantêm-se antigos problemas: priorizar a ciência, a atenção, o suporte à dor e ao sofrimento?

 

Vida no hospital

Falamos numa perspectiva de estudar os modos de vida no hospital, guardando a idéia de que as relações de trabalho estão englobadas em relações sociais e relações humanas amplas por parte daqueles que ali convivem, tanto os que trabalham em suas diversas modalidades de inserção institucional com seus interesses profissionais e ou de pesquisa, como as pessoas atendidas, alocadas em projetos de pesquisa específicos do hospital com suas expectativas de bem-estar, de tratamento ou de alívio de seu sofrimento.

Isso amplia a perspectiva dominante de análise do trabalho hospitalar, centrada, ora nas questões da carga e do sofrimento, e nos riscos do trabalho em saúde, ora em relação aos acidentes, tal como representado paradigmaticamente, no caso do trabalho hospitalar, pelos acidentes perfurocortantes.

Se dizemos que amplia, é porque não tem sentido abrir mão das perspectivas teórico-metodológicas, como já dito, fundamentais do campo da saúde do trabalhador. Destacam-se algumas questões na discussão prévia do trabalho hospitalar: os riscos específicos, o trabalho feminino, o sofrimento psíquico. E algumas situações descritoras, parafraseando Latour e Woolgar,10 das relações ocorridas no hospital: os doentes; as especialidades; as formas de atendimento; os departamentos com suas divisões; os programas e projetos existentes; o layout, a circulação e seus tempos; os serviços de apoio; a construção de hierarquias; a comunicação; os indicadores que constituem elementos da rede do trabalho no hospital.

Sendo este universo extremamente vasto, ampliá-lo compreende enormes dificuldades, encontradas ao longo de nosso trajeto. De todo modo, mantém-se esse esforço de cada vez mais, aproximarmo-nos do trabalho hospitalar por uma abordagem que não pensa esse trabalho apenas como sofrimento e com suas cargas físicas e mentais.11 Porque o contato com o sofrimento daquele que trabalha se dá na relação entre pessoas, na qual o paciente é quem está mais diretamente colocado numa situação de exposição, dependência, situações extremas de ruptura e de despojamento da própria vida, posição diferente daquelas encontradas nas relações humanas comuns. Por meio da solidariedade daqueles que convivem no hospital, pode ser proposta uma nova abordagem da saúde no hospital.

 

Considerações metodológicas

Propomos, no momento, que avanços metodológicos possam ser alcançados trilhando os seguintes caminhos:

a) introdução do conceito de vida no trabalho e na análise de processo deste, o que se torna ainda mais apropriado no trabalho em serviços de saúde devido à natureza e à intensidade das relações humanas presente no cotidiano desse tipo do trabalho, superando e incluindo modelos centrados em situações de risco e efeitos para a saúde;

b) inclusão do conceito de situações descritoras, e da abordagem da antropologia simétrica10 na análise do processo de trabalho, como formas de observação que possibilitam a reorganização metodológica no campo da saúde do trabalhador;

c) tomar de Foucault12 ferramentas conceituais para a descrição do processo de trabalho: distribuição de espaço; controle das ações; acompanhamento das pessoas de acordo com a hierarquia; registro do processo para classificar, julgar, medir e relocar as pessoas. O modelo de análise que Foucault13 apresenta em seu livro Microfísica do Poder atribui um sentido de aperfeiçoamento a estas técnicas de gestão dos homens. A disciplina implicaria, para o autor:

- uma distribuição espacial dos indivíduos - o exército que deixa de ser um aglomerado de pessoas, a escola que, ao ministrar um ensino a coletivos, organiza espacialmente grupos de indivíduos,

- o controle sobre o desenvolvimento das ações - como são feitos os gestos no trabalho, quais os mais eficazes, rápidos e ajustados,

- a vigilância constante dos indivíduos, o que implica uma hierarquia de olhares, como os instalados por figuras como o contramestre na fábrica, o suboficial no exército, e

- um registro contínuo originado daquela vigilância que individualiza as pessoas em seu poder de classificar, julgar, medir, localizar cada um;13 e

d) estudar a influência da pesquisa na qualidade dos serviços de saúde. Considerando que a pesquisa no hospital é um de seus elementos intrínsecos, esse é sempre um lugar de formação de recursos humanos para o setor e de desenvolvimento de tecnologia com maior ou menor ênfase, dependendo do tipo de hospital. A pesquisa no hospital também pode ser vista como diretamente ligada à atividade clínica ou cirúrgica desenvolvida, ou indiretamente relacionada aos dados secundários decorrentes dos atendimentos. Os diferentes setores do hospital apresentam características distintas no desenvolvimento de investigações.

 

Características do trabalho hospitalar

Desejamos destacar, então, algumas características que temos observado no processo de trabalho em hospital, que consideramos merecedoras de atenção e discussão e, também, algumas particularidades em sua relação com a saúde, deste foco de atividades diretamente relacionadas com o cuidado:

a) a concentração de trabalho humano e a sua aplicação em pessoas intensificam as relações entre elas como um elemento central, e a tecnologia e o conhecimento se tornam fatores distanciadores ou de intermediação desta relação;

b) os trabalhos prescritos são orientações transmitidas em períodos de formação. Nas ações decorrentes do atendimento a cada paciente, há um componente rotineiro e outro particular. Este último faz a diferença objetiva em relação aos trabalhos prescritos industriais. A necessidade de improvisação e impasses decorrentes de falta de algum componente acontecem e, como na indústria, alternativas operacionais são aplicadas e tendem a não ser seguras, ou seja, constantemente trazem um maior risco;

c) exige altos níveis de qualificação para muitas de suas atividades, além de constante treinamento prático e o enfrentamento de situações com alta variabilidade e emergenciais;

d) grau de imprecisão das tarefas é alto e a presença de tomadas de decisão em situações novas faz parte da rotina;

e) a síndrome da imunodeficiência adquirida (AIDS) embora contamine com menos frequência que a hepatite, por sua letalidade e significado social, dissemina uma revisão dos padrões de biossegurança internos aos hospitais, além de estruturar serviços e renovar a preocupação com as doenças infectoparasitárias; e

f) há um consenso sobre o alto valor social do trabalho hospitalar, sendo esse um dos motivadores da satisfação dos trabalhadores do setor saúde. Paradoxalmente, ele pode induzir a ações onde as medidas de proteção são relegadas por um impulso fundamentado na premência de resolver o problema do paciente. Para concluir, essas características são passíveis de observação a partir de análises qualitativas e representam em si situações descritoras do trabalho hospitalar, fazendo parte da rede que o constitui.

 

Referências bibliográficas

1. Pita AMF. Trabalho hospitalar e sofrimento psíquico [tese de Doutorado]. São Paulo (SP): USP; 1989.

2. Silva CO. Vida e Trabalho no Hospital [tese de Doutorado]. Rio de Janeiro (RJ): Escola Nacional de Saúde Pública-FIOCRUZ; 2002.

3. Silva C. O curar adoecendo: um estudo do processo de trabalho hospitalar em busca da saúde [dissertação de Mestrado]. Rio de Janeiro (RJ): Escola Nacional de Saúde Pública-FIOCRUZ; 1994.

4. Palácios M. Trabalho hospitalar e saúde mental: o caso de um hospital geral e público do município do Rio de Janeiro, 1993 [dissertação de Mestrado]. Rio de Janeiro (RJ): Universidade Estadual do Rio de Janeiro; 1993.

5. Dejours C. Travail usure mentale essai de psycopathologie du travail. Paris: Le Centurion; 1980.

6. Dejours C. Le corps entre biologie et psychalyse: essais d’interpretation comparée. Paris: Payot; 1986.

7. Dejours C. La souffrance en France la banalisation de l’injustice sociale. Paris: Seuil; 1998.

8. Latour B. Nous n’avons jamais été moderne: essai d’anthropologie symétrique. Paris: La Decouverte; 1994.

9. Latour B. La rhétorique de la science: pouvoir et devoir dans un article de science exacte. Actes de la Recherche en Sciences Sociales 1977;13:81-95.

10. Latour B, Woolgar S. A vida de laboratório: a produção de fatos científicos. Rio de Janeiro: Relume-Dumará; 1997.

11. Laurrell AC, Noriega M. Processo de produção e saúde. Trabalho e desgaste operário. São Paulo: HUCITEC; 1989.

12. Foucault M. O nascimento da clínica. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 1977.

13. Foucault M. O nascimento do hospital. In: Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal; 1979. p.99-112.

 

 

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