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Informe Epidemiológico do Sus

Print version ISSN 0104-1673

Inf. Epidemiol. Sus vol.11 no.3 Brasília Sept. 2002

http://dx.doi.org/10.5123/S0104-16732002000300007 

Relato preliminar de reflexões sobre prevenção de impasses no enfrentamento de doenças transmissíveis de origem socioambiental

 

Preliminary report of reflections on prevention of impasses facing diseases of social-environmental causes

 

 

Marisa da Silveira SoaresI; Odir Clécio RoqueII; Constança Simões BarbosaIII; Luiz Fernando Saraiva da SilvaIV; Darcílio Fernandes BaptistaI; Jorge ValladaresI; Cesar Luiz Pinto Ayres Coelho da SilvaI; Magali Gonçalves Muniz BarretoI; Denise Assunção BorgesI; Renata Elisa S. SoaresI; Pedro Coura FilhoV; Renato MasperoVI; Allan R. GallardoVI

IDepartamento de Biologia/FIOCRUZ
IIEscola Nacional de Saúde Pública/FIOCRUZ
IIICentro de Pesquisas Aggeu Magalhães/FIOCRUZ
IVSecretaria Municipal de Meio-Ambiente de Guapimirim
VCentro de Pesquisas René Rachou/FIOCRUZ
VIPrefeitura Municipal de Paracambi

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O enfrentamento de doenças transmissíveis de origem socioambiental esbarra freqüentemente em dificuldades de entendimento entre comunidades, poder público e cientistas, ainda que haja recursos técnicos abundantes e adequados. Esse trabalho descreve uma experiência de reflexão sobre dificuldades encontradas pelos integrantes de um grupo interdisciplinar e multissetorial para esse enfrentamento e sugere uma metodologia baseada em diálogo para prevenção de impasses entre setores, disciplinas e sujeitos. A metodologia consiste em um processo, ainda em curso, baseado na consolidação de um grupo multissetorial e interdisciplinar, afeito ao diálogo. A reflexão sobre o tema gerou um anteprojeto sobre o comportamento humano ante à transmissão de doenças de veiculação hídrica em municípios do Rio de Janeiro. Outro produto foi um texto em que são sugeridos caminhos para o diálogo.

Palavras-Chave: Doenças Transmissíveis; Ambiente; Diálogo; Comportamento Humano.


SUMMARY

Facing diseases of social-environmental causes is frequently troubled by misunderstanding among communities, public power, and scientists, inspite of the availability of abundant and appropriate technical resources. This work is based on the experience of reflections about difficulties encountered by an interdisciplinary and multisectoral group and proposes dialogue as a method to prevent impasses between sectors, disciplines and subjects. The methodology consists of a process, still in progress, based on the consolidation of a multisectoral and interdisciplinary group accustomed to dialogue. Discussions of this theme generated the proposal of a project about human behavior regarding water-borne diseases in municipal districts of Rio de Janeiro. Another product was a text suggesting methods for achieving dialogue.

Key Words: Transmissible Diseases; Environment; Dialogue; Human Behavior.


 

 

Introdução

O enfrentamento das doenças transmissíveis de origem socioambiental, como a dengue, a hepatite A e as parasitoses intestinais, esbarra freqüentemente em dificuldades de diálogo entre comunidades, poder público, pesquisadores e outros interessados, o que inviabiliza as soluções, ainda que haja recursos técnicos adequados e abundantes. Dois dos obstáculos freqüentes ao entendimento, examinados a seguir, são os interesses econômicos hegemônicos e as reações negativas das comunidades a certas tecnologias sugeridas por técnicos e cientistas.

Os conflitos oriundos dos interesses hegemônicos podem ser exemplificados pelas pressões das indústrias farmacêutica e química, que acabam por induzir o consumo desregrado de medicamentos e de pesticidas. Em muitos casos, os indivíduos infectados por agentes patológicos estão simultaneamente expostos a outros agravos à saúde, provocados pela exposição a pesticidas neurotóxicos1 utilizados no controle dos vetores e pelo uso sistemático desses medicamentos antiparasitários, que têm ação comprovadamente mutagênica em células de mamíferos.2

É importante destacar que o uso de pesticidas costuma ser rotulado como “tratamento” para o “combate” às doenças veiculadas por vetores, sem que sejam lembrados os perigos que derivam dos efeitos do seu uso, sobre as populações humanas, ou pelos distúrbios no meio ambiente, que se refletem em novos danos à saúde.

Os conflitos oriundos dos interesses hegemônicos são uma questão complexa, pois envolvem aspectos políticos, sociais, econômicos, ambientais e culturais. As imposições das multinacionais farmacêuticas; as transações ou favorecimentos de interesses espúrios na aquisição de drogas e a cobrança de aplicação desses pesticidas pelas populações atormentadas por mosquitos; a destruição da fauna e da flora aquática, resultante do uso de moluscicidas; os comportamentos e as crenças de risco e prevenção são algumas das facetas que necessitam ser discutidas e trazidas à luz para que não se reduza a questão do controle de endemias à medicalização dos indivíduos e ao uso indiscriminado de pesticidas.

Nessa situação, seria imprescindível dialogar, mas as condições tendem a desfavorecer um diálogo franco, pois, em geral, o conflito de interesses, embora presente, é intencionalmente omitido da parte mais interessada: os indivíduos, que não sabem dos riscos a que estão expostos, ou, pelo menos, não conhecem a sua extensão. Nesse caso, os profissionais responsáveis pela quimioterapia e pelo controle de vetores nem sempre têm uma visão crítica sobre sua atuação e função. Além disso, o seu trabalho, freqüentemente, é desarticulado de outros realizados com a mesma população, o que, muitas vezes, o impede de conhecer os tratamentos anteriores ou simultâneos a que cada paciente vem se submetendo. Não há, portanto, condições mínimas para um diálogo genuíno, nem para negociação: prevalecem os interesses econômicos.

Eventualmente, o risco do consumo desregrado de medicamentos e pesticidas é percebido em todas as suas dimensões pelos profissionais de saúde e ambiente envolvidos na situação. Entretanto, isso raramente se traduz em iniciativas concretas para abertura de um diálogo sobre as conseqüências das ações atuais de combate às doenças e, quando essas iniciativas ocorrem, o diálogo se dá no plano técnico-científico sem incluir a parte mais interessada, que são os indivíduos expostos aos riscos.

Além dos conflitos gerados por interesses hegemônicos, outra barreira ao enfretamento dessas doenças é a falta ou ineficiência de diálogo entre a população e técnicos ou cientistas. Em investigações feitas por alguns dos autores do presente trabalho no município de Sumidouro, foram observadas três situações em que a dificuldade de diálogo era um obstáculo para enfrentamento da esquistossomose. Na primeira delas, a raridade dos casos graves e algumas experiências mal sucedidas como o uso de fossas sépticas, nos anos 60, tornaram a esquistossomose menos incômoda para a população do que a recomendação para construção de fossas, visando interromper o ciclo do Schistosoma mansoni.

Outra situação observada, com vários aspectos a serem considerados, foi a dificuldade de garantir que um portador assintomático de ovos de Schistosoma mansoni aceitasse submeter-se a métodos de diagnóstico e a tratamentos que considerasse desagradáveis, ou que tenham possíveis efeitos colaterais.

O terceiro exemplo de situação conflitante, observado em Sumidouro, foi a oposição de interesses entre pescadores e órgãos responsáveis pelo controle de moluscos, hospedeiros intermediários do Schistosoma mansoni, quando os pescadores discordavam do uso de moluscicidas em córregos onde se reproduzem os peixes do único rio piscoso de uma região.

Ao contrário da situação em que os interesses hegemônicos não eram facilmente identificáveis, nas três últimas situações, relacionadas à oposição entre técnicos e populações de áreas endêmicas de esquistossomose, os interesses em jogo se apresentam explícitos e se confrontam, podendo resultar em impasse.

Nos casos de recusa ao uso de fossa e de quimioterapia, os interesses dos indivíduos da área endêmica, apesar de legítimos, contrapõem-se a outros interesses também legítimos: os de pesquisadores ou os de qualquer cidadão que perceba que essas recusas propiciam a disseminação da parasitose, sendo, conseqüentemente, responsáveis pelos sintomas que possam advir nos indivíduos que venham a se infectar.

No caso da recomendação de fossas para controle da esquistossomose, sem diálogo e aprovação dos indivíduos, os benefícios da intervenção seriam efêmeros, pois: “Não adianta a fossa, porque eles aceitavam, a gente colocava nas casas, daí a pouco tempo´tava isolado. A gente pelejou, mas não teve jeito (...) A gente tem uma trabalheira, acompanha, depois (...). O que adianta é esclarecimento”.3 Da mesma forma, sem diálogo, o portador assintomático da esquistossomose tenderia a recusar-se, sumariamente, a participar do inquérito parasitológico e do tratamento, e a aplicação de moluscicida no rio piscoso poderia resultar em graves conseqüências para o ambiente (natural e social).

A necessidade de contribuir para o enfrentamento das doenças infecciosas e parasitárias de origem socioambiental por intermédio da viabilização de vários níveis de diálogo para prevenção e solução de conflitos e impasses motivou a realização do presente trabalho, cujo objetivo é promover uma reflexão teórico-metodológica que conduza a propostas e avaliações de metodologias de diálogo apropriadas.

 

Metodologia

O grupo de trabalho

O grupo responsável pelas reflexões formou-se a partir de dezembro de 1999, por iniciativa do Programa Institucional Saúde e Ambiente no Processo de Desenvolvimento, da Fundação Oswaldo Cruz. Seu objetivo anti-reducionista exigia que fosse composto por indivíduos afeitos ao diálogo. Seus coordenadores eram três pesquisadores e professores da Fundação, atuantes na interface entre biologia, ciências sociais e tecnologias em saúde e ambiente, sendo um deles formado em engenharia, um em engenharia e psicologia e o outro em biologia.

Aos coordenadores reuniram-se, paulatinamente, profissionais de municípios que têm lidado de modos variados com o desenvolvimento social, os problemas ambientais e as doenças de origem socioambiental, pessoas experientes na busca de soluções para problemas socioambientais por meio de saneamento e de controle de vetores, pesquisadores de campo ou de laboratório, gestores e profissionais em biossegurança, antropologia, sociologia, psicologia, geografia e parasitologia. Todos os integrantes do grupo percebiam a necessidade de enfrentar as doenças de origem socioambiental por meio de ações integradas.

Bases para a reflexão

A consulta a uma bibliografia básica, multidisciplinar, proposta pelos vários integrantes a partir de experiência pessoal em relação ao tema, foi um instrumento fundamental para a realização de discussões teórico-metodológicas. Realizaram-se discussões por correio eletrônico, uma oficina de trabalho e uma reunião durante o I Seminário Nacional Saúde e Ambiente no Processo de Desenvolvimento, onde foram trocadas experiências sobre o tema, com realização de um inventário das vivências de cada participante do grupo na procura de soluções.

Um texto elaborado preliminarmente pelos coordenadores do grupo, e que vem sendo aperfeiçoado coletivamente, tem documentado esse processo de reflexão.

A partir do inventário realizado e com a base teórico-metodológica, buscou-se a identificação de um problema concreto, que se apresentasse em algum município brasileiro, e a elaboração de uma proposta de trabalho do grupo para solução desse problema.

 

Resultados

Os resultados mais importantes desse processo, até o momento, foram: a) o amadurecimento do grupo quanto ao diálogo interno, à troca de informações, ao envolvimento com o tema e com a proposta. Esse resultado é de suma importância para viabilizar os demais; b) o início da elaboração coletiva de um anteprojeto sobre o comportamento humano diante da transmissão de doenças de veiculação hídrica nos municípios fluminenses de Paracambi, Sumidouro e Guapimirim; e c) o aprofundamento da discussão teórico-metodológica sobre o tema, com produção coletiva do texto que se segue.

Prevenção de impasses pelo diálogo entre disciplinas, setores e sujeitos

No Brasil, o processo de desenvolvimento econômico tem-se caracterizado, no plano social, por profundas desigualdades e pela insuficiência de investimentos políticos e financeiros. Entre as muitas conseqüências desse fato, destaca-se a degradação socioambiental que precede e mantém inúmeros agravos à saúde humana.

As doenças transmissíveis de origem socioambiental merecem atenção especial por acometer em números absolutos,4 cada vez mais indivíduos e se refletirem, também, nas taxas de incidência das demais doenças.5 Mais relevante ainda é o fato de que os indivíduos acometidos geralmente estão expostos também a outros incômodos de ordem ambiental e psicossocial. A esquistossomose, a filariose, a dengue, as parasitoses intestinais e a hepatite A, que assumem dimensões preocupantes em grandes centros urbanos brasileiros, são algumas das mais de 50 doenças infecciosas e parasitárias de origem socioambiental relacionadas ao modelo de desenvolvimento.

Um exemplo de conseqüência perniciosa desse modelo é a geração de demandas sociais complexas (como saneamento, educação e serviços de saúde) que acompanha o processo de urbanização brasileiro. A exclusão socioeconômica das populações rurais, agravada pela “modernização incompleta e excludente”,6 que reduz as oportunidades de emprego no campo, é o maior estímulo à urbanização desordenada e incompleta. É, em grande parte, graças a esse fenômeno, que o Brasil tem, hoje, cerca de 85% da sua população vivendo em áreas urbanas,7 freqüentemente em condições insalubres de moradia e trabalho. A situação é mais grave nas periferias dos grandes centros, sempre desprovidas dos benefícios da urbanização para atendimento das necessidades básicas.

Outra conseqüência da falta de eqüidade e de investimentos sociais no processo de desenvolvimento econômico é a exploração agropecuária ou imobiliária da terra às custas do desmatamento de áreas com extensão ou características bioecológicas relevantes, fonte de desequilíbrios que freqüentemente acarretam domiciliação e proliferação de vetores e agentes infecciosos.

Alguns dos efeitos da falta de investimentos à altura dessas demandas sociais podem ser visualizados em pesquisas realizadas, até 2001, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística,7 que mostram as condições precárias a que estava exposta grande parte da população brasileira. Cerca de 81% dessa população é atendida por sistemas coletivos de abastecimento de água, verificando-se uma significativa variação de cobertura entre os Estados. A situação do esgotamento sanitário é mais grave: apenas 66% da população é atendida por redes coletoras e o volume de esgotos tratados é extremamente baixo, com apenas 8% dos municípios, possuindo unidades de tratamento.

A esses problemas somam-se outros não revelados pelas estatísticas e que certamente estão mais relacionados a pressões administrativas e orçamentárias, compatíveis com o modelo de desenvolvimento, do que a causas técnicas e desinformação da população. Entre eles destacam-se:

a) o não cumprimento dos padrões de potabilidade e a intermitência no abastecimento, que comprometem a quantidade e a qualidade da água fornecida à população;

b) a distribuição pela rede pública de água não tratada;

c) as perdas por vazamentos e outros desperdícios;

d) a disposição de esgotos in natura em coleções hídricas utilizadas pelas populações para lazer, abastecimento de residências, lavouras;

e) carências graves na drenagem urbana, resultando em enchentes e na proliferação de vetores; e

f) deficiências na coleta e disposição do lixo, que contamina o solo, o ar e a água, além de atrair vetores de doenças e facilitar sua proliferação.

As conseqüências desse quadro para a saúde são insidiosas, porque fazem parte do dia a dia da população, tal qual “fatalidade” com a qual o indivíduo acaba se acostumando a conviver.

Um fator que influenciou esse quadro foi a idéia da transição epidemiológica, segundo a qual as doenças relacionadas ao estilo de vida e à velhice substituiriam as doenças infecciosas como principal causa de morbidade e de mortalidade. No Brasil, essa previsão não se confirmou pela falta de controle efetivo sobre as condições ambientais e pela não difusão do acesso aos conhecimentos e aos recursos necessários. Ao contrário, contribuiu para esse perfil sanitário inaceitável, na medida em que justificou a ênfase nas ações individuais baseadas no atendimento médico em detrimento das ações de ordem coletiva, tendente a carecer de investimentos financeiros e políticos.

Essa situação é desconcertante por ser aparentemente incompatível com o desenvolvimento científico-tecnológico mundial e mesmo brasileiro que, no período, disponibilizou tecnologias teoricamente capazes de afastar ou reduzir substancialmente os riscos de contaminação, morbidade e mortalidade por agentes etiológicos transmissíveis vetorialmente ou por meio de esgotamento sanitário, lixo ou águas acumuladas. É também preocupante porque, constatando-se tanto a persistência das condições ruins que frustraram os prognósticos do passado como a maior complexidade socioambiental da sociedade brasileira atual, torna-se impossível fazer prognósticos otimistas.

Do ponto de vista da ciência ou, melhor dizendo, dos cientistas, outra dificuldade para lidar com essas doenças é a concepção do saneamento como utopia. Essa idéia faz com que, em princípio, se abandone, a possibilidade de empregá-lo, quando já se sabe que, em muitos casos, bastariam soluções focais, sem necessidade de grandes investimentos.8 Esse posicionamento reforça o direcionamento das ações de controle para o nível individual, por meio da quimioterapia e, em uns poucos casos, da educação para a higiene pessoal, desprestigiando-se novamente as perspectivas coletiva e ambiental, o que equivale a culpar a vítima.9

Aos problemas mencionados somase um, da maior importância, mas que ainda não tem merecido o devido destaque nos trabalhos sobre enfrentamento de doenças transmissíveis de origem socioambiental: trata-se da dificuldade de diálogo entre setores, disciplinas e sujeitos. Como resultado, costumam surgir conflitos e, até mesmo, impasses que dificultam e muitas vezes impedem a tomada de decisão para as medidas necessárias. Esse problema tem contribuído decisivamente para que o enfrentamento dessas doenças no Brasil privilegie interesses imediatistas e hegemônicos (hegemonia de disciplinas, setores, indivíduos), em detrimento da busca do equilíbrio possível entre os vários interesses em jogo.

Em resumo, a falta de diálogo reforça ainda mais os efeitos das distorções de ordem econômica, política e ideológica que estão por trás das dificuldades de enfrentamento dessas doenças.

No plano científico-tecnológico, a dificuldade de diálogo expressa-se nas abordagens apoiadas em disciplinas isoladas. As equipes profissionais tendem a examinar e enfrentar os problemas de origem socioambiental segundo conceitos e metodologias próprios à sua formação. Mas, como esses problemas são complexos e demandam soluções baseadas em diferentes áreas do conhecimento, essa postura dificulta o diálogo e as negociações entre os vários “saberes” (inclusive o “saber popular”), necessários à formulação de propostas mais realísticas, capazes de originar soluções mais efetivas e duradouras.

Dessa postura reducionista, que desconsidera a multiplicidade de fatores bioecológicos, socioecológicos, socioeconômicos, culturais, psicológicos, envolvidos na transmissão, morbidade e mortalidade dessas moléstias, resultam análises distorcidas da situação, que acabam fundamentando decisões e métodos geralmente insuficientes para enfrentar o problema de forma adequada.

Freqüentemente, o diagnóstico da situação dá-se pela justaposição entre duas ou mais disciplinas, mas de forma inconsistente, agregando disciplinas afins, inseridas exclusivamente nos campos da biologia, da química ou da engenharia. Quando muito, apenas a educação, em sentido estrito, tem acesso a esses “quase guetos” de idéias e práticas. Mas, mesmo quando há essa articulação parcial, a educação costuma ser utilizada para “treinamento”, considerando-se o “receptor” como alguém passivo, a seguir “instruções” preconizadas por cérebros pretensamente capazes de saber o que é melhor para a sua vida.

Essas concepções, que privilegiam o imediatismo e impedem o diálogo, estão também fortemente presentes na cultura político-administrativa brasileira. No caso do controle das doenças transmissíveis de origem socioambiental, elas se expressam tanto na imprevisibilidade sobre a continuidade dos programas como nas ações verticais e setoriais, na desarticulação das diversas instâncias e nas decisões calcadas em interesses econômicos hegemônicos.

Para que o Brasil enfrente satisfatoriamente essas doenças e o quadro sanitário que as favorece, o que falta não são mudanças metodológicas pertinentes a cada um dos vários campos do conhecimento científico-tecnológico. A quantidade e a qualidade das informações produzidas neste século e os benefícios sociais resultantes atestam que as metodologias próprias a cada área têm sido bem-sucedidas. As disciplinas relacionadas às moléstias aqui em questão (como a parasitologia e a microbiologia) vêm sofrendo importantes avanços com a incorporação de novas técnicas oriundas de outras áreas do conhecimento biológico, que têm permitido lidar com a dimensão molecular dos agentes infecciosos, vetores e hospedeiros intermediários e definitivos. A engenharia tem produzido soluções inventivas e de baixo custo, aplicáveis a diferentes situações.10-12 Por outro lado, a complexidade do modelo de desenvolvimento brasileiro é uma barreira insofismável a qualquer tentativa de interferência por um empreendimento meramente baseado no método científico.

Na alçada da ciência, as condutas possíveis a médio prazo e capazes de contribuir para modificar o quadro sanitário brasileiro, ainda que a longo prazo, dizem respeito a mudanças de ótica e de postura por quem atua na área de saúde e ambiente, que resultem no estabelecimento de diálogo em vários níveis. Algumas das mudanças desejáveis para estimular o diálogo estão implícitas nos conceitos de “comunidade ampliada de pares” e de “transdisciplinaridade”, apresentados a seguir.

Diálogo entre as disciplinas: o conceito de transdisciplinaridade tem implícita uma metodologia teoricamente capaz de viabilizar o diálogo entre as disciplinas e, por analogia, entre setores e sujeitos. Segundo Almeida Filho,13 na transdisciplinaridade, a comunicação não se faz entre campos disciplinares, mas entre pessoas (agentes) em cada campo e isso se dá pelo trânsito dos sujeitos dos discursos, e não pela tradução e circulação do discurso. Ela depende de uma condição nem sempre presente: a existência de pessoas com habilidade natural para transitar entre as disciplinas, indivíduos “transversais”, que se sentem à vontade nos diferentes campos, capazes de ultrapassar fronteiras, permitindo m diálogo mais genuíno. Esse autor os chama de “agentes transformadores e transformantes”.

Para o enfrentamento das doenças transmissíveis de origem socioambiental, a transdisciplinaridade seria a abordagem mais compatível com a complexidade do tema, mas as condições, já descritas, para que ela possa ocorrer raramente estão presentes. Para esses casos, deve ser adotada a interdisciplinaridade, mais viável nas condições normais e menos complexa. A interdisciplinaridade pressupõe horizontalização das relações de poder entre os campos disciplinares, identificação de uma problemática comum e geração de “uma fecundação e aprendizagem mútua, que não se efetua por simples adição ou mistura, mas por uma recombinação de elementos internos”.14 Ela representa um avanço em relação às metodologias apenas multidisciplinares, ou seja, em que as disciplinas estão presentes lado a lado, sem, entretanto comunicarem-se efetivamente.

Na prática, grande parte dos trabalhos sobre doenças infecciosas e parasitárias de origem socioambiental tem adotado abordagens interdisciplinares, tendo a ecologia e a epidemiologia como disciplinas integradoras.

Ainda que a interdisciplinaridade ou a multidisciplinaridade sejam a única opção viável em determinada circunstância, dadas as complexidades e incertezas e, sobretudo, a importância política, social e econômica das decisões que acompanham a investigação científica no caso dessas doenças, seria desejável que sempre se perseguisse a criação de condições que viabilizassem a abordagem transdisciplinar, com participação expressiva das ciências sociais, além da participação tradicionalmente presente das ciências biológicas e da participação, hoje crescente, de disciplinas da área tecnológica, como a engenharia sanitária. Não se deve perder a perspectiva da transdisciplinaridade, fazendo evoluir o diálogo entre as disciplinas para aumentar a capacidade de lidar com o as diferenças.

Diálogo em vários níveis: “Comunidade Ampliada de Pares”

Funtowicz e Ravetz15 contribuíram para a promoção do diálogo efetivo entre disciplinas e setores e para a prevenção de impasses, abordando o tema por intermédio de uma perspectiva que enfatiza os conceitos de complexidade, incerteza e avaliação. Para enfrentar os problemas ambientais e outros problemas científicos, que se distinguem dos tradicionais pelas complexidades e incertezas envolvidas e pelas decisões em jogo, eles sugerem uma estratégia que definem como “ciência pós-normal”. Para eles, a ciência dita “normal” não está apta a lidar com estas características inerentes à quase totalidade dos problemas ambientais, por não admitir, por exemplo, um controle de qualidade dos resultados baseado em conhecimentos adquiridos por outra via que não o método científico.

Como alternativa, propõem a ampliação dos grupos e “saberes” relacionados ao empreendimento científico, por meio da formação de “comunidades ampliadas de pares”, que admitam todos os setores (populares, públicos ou privados) envolvidos na questão. Essa parceria “radical” seria o caminho mais proveitoso para alcançar três metas fundamentais, capazes de viabilizar mudanças de rumo necessárias à qualidade do trabalho, quais sejam: o enriquecimento de habilidades, o controle de qualidade dos resultados e a avaliação crítica do processo.

Uma vez que as decisões em jogo geralmente envolvem questões éticas, além de políticas, essa prática seria, também, a mais conveniente para prevenção de impasses, entre outras possibilidades de fortalecimento do diálogo. E o diálogo, segundo esses autores, é imprescindível às transformações para promoção da saúde ambiental.15

Para o enfrentamento das doenças em questão, a complexidade e as incertezas são notórias, pois têm relação com o modelo econômico, com decisões políticas, com condições climáticas e ecológicas, com deslocamentos populacionais, com comportamentos, com a cultura e a história.

A busca de soluções adequadas freqüentemente envolve questões delicadas, dependentes de decisões políticas de alto custo, ainda que apenas em nível local. De modo geral, como não costuma haver um campo adequado para circulação de informações e para negociações, como o que pode ser oferecido pelas “comunidades ampliadas de pares”, as situações de risco, suas causas e conseqüências costumam permanecer ignoradas pela população e outras partes interessadas, a despeito de serem de grande interesse público.

Funtowicz e Ravetz15 chamam a atenção para a necessidade de se avaliar, em cada caso, se a “ciência pós-normal” é a estratégia mais adequada e, no que concerne à distribuição social de conhecimentos e habilidades, se estão maduras as condições para enriquecer a pesquisa com esse novo tipo de prática.

Diálogo e ética

Para que o diálogo frutifique, é necessário que ele saia do nível do discurso e assuma características de negociação ética, com as partes interessadas predispostas a ceder, na prática, diante de argumentos contrários convincentes. Além dessa disposição, que em muitos casos é impensável, é necessário que haja instrumentos metodológicos adequados para permitir e fomentar o diálogo. Em todos os casos apresentados, as ciências sociais e a educação apresentam-se como os instrumentos ideais a esse intento. Mas, é preciso que se entenda a educação como uma via de mão dupla, de entendimento global das situações pelo exercício da troca virtual de papéis e não como via de mão única para imposição de informação que visem apenas facilitar intervenções posteriores (quimioterapia, saneamento e controle de vetores).

 

Conclusões preliminares

Partindo-se das considerações acima, pode-se chegar às seguintes conclusões e questionamentos a respeito do controle das doenças transmissíveis de origem socioambiental.

Uma doença transmissível de origem socioambiental é um objeto complexo e, como tal, seu enfrentamento provavelmente envolve certo grau de incertezas e de conflito de interesses.

A ciência não é auto-suficiente para enfrentar esse tipo de doença, pois seus métodos são insuficientes para lidar com a multiplicidade de fatores a considerar e com os impasses a evitar.

Nesses casos, as soluções não devem ser buscadas somente a partir de compêndios e normas, nem devem basear-se totalmente na excelência técnicocientífica de setores e disciplinas isolados. Não que estes sejam dispensáveis, mas por serem inócuos ante o problema.

Essa “busca de soluções” deve significar invenção, criação de saídas éticas e lúcidas a partir de diferentes visões, considerando-se, tanto quanto possível, todas as partes envolvidas.

Para dar conta deste desafio, as experiências de interdisciplinaridade e, ousando ainda mais, as de transdisciplinaridade, são altamente desejáveis e cada vez mais imprescindíveis. Entretanto, essas abordagens são raras na prática do tratamento das questões socioambientais. O trabalho interdisciplinar ou transdisciplinar pressupõe uma atitude aberta e humilde perante a vida.

A prevenção e a solução de possíveis conflitos e impasses resultantes do seu enfrentamento depende de diálogo em vários níveis (entre disciplinas, setores, indivíduos).

Essa impossibilidade de resolver plenamente os problemas de saúde e ambiente de forma reducionista é, hoje, amplamente reconhecida, como também o são as dificuldades de promoção efetiva do diálogo entre as diferentes áreas do conhecimento e setores envolvidos.

Um diálogo genuíno tem que comportar o controle de qualidade dos resultados pelas partes envolvidas, tem que contar com avaliação crítica do processo e tem que admitir e viabilizar justificadas mudanças de rumo. Essa proposta está inserida na idéia de “comunidade ampliada de pares”.

Não há fórmulas para compatibilizar teoria e prática, nesse caso. Uma tentativa seria levar para a nova experiência as convicções (e o sentimento) resultantes de vivências prévias e reflexões no campo teórico-metodológico.

Nesse enfrentamento, o papel dos cientistas não pode se resumir a fornecer argumentação técnico-científica para enfatizar o óbvio: a necessidade de intervenção sanitária e controle de vetores. Há que participar de uma engrenagem suficientemente bem montada para sustentar discussões e negociações políticas pautadas pelo conhecimento científico e outros saberes, mas balizadas pela ética, para que os interesses em jogo resultem no bem comum.

É desejável que o enfrentamento dessas doenças se dê por meio de empreendimentos transdisciplinares ou, pelo menos, interdisciplinares, realizados por uma “comunidade ampliada de pares”.

Apesar dessas conclusões, as seguintes reflexões merecem ser aprofundadas:

a) como criar e garantir o funcionamento de uma comunidade ampliada de pares, apesar da cultura políticoadministrativa brasileira?

b) até que ponto as ciências sociais e a educação são instrumentos adequados para permitir e fomentar o diálogo, considerando-se essa cultura político-administrativa?

c) que estratégias poderiam ser alternativas à comunidade ampliada de pares?

d) dadas as complexidades e incertezas e os interesses em jogo, talvez seja mais realística a substituição de idéia de soluções definitivas pela idéia de processo de reequilíbrio possível somente sob certas condições reais e específicas? e

e) esse grupo de trabalho está reunindo, efetivamente, as condições necessárias a um empreendimento transdisciplinar? Quais as mudanças de rumo necessárias?

 

Agradecimentos

Antônia Maria Martins, Bianca Antunes Cortes, Dalton Marcondes Silva, Elba Regina Sampaio de Lemos, Gláucia Oliveira da Silva, Leon Rabinovitch, Luiz Gomes F. Jr., Paulo Sérgio D’Andréa, Selene Herculano, Danielle Grynszpan, Silvana Carvalho Thyengo e Mônica Amon Fernandez pelas importantes sugestões.

 

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15. Funtowicz S, Ravetz J. Ciência pósnormal e comunidades ampliadas de pares face aos desafios ambientais. História, Ciências, Saúde: Manguinhos 1997;4(2):219-230.

 

 

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