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Informe Epidemiológico do Sus

versão impressa ISSN 0104-1673

Inf. Epidemiol. Sus v.11 n.4 Brasília dez. 2002

http://dx.doi.org/10.5123/S0104-16732002000400005 

 

Avaliação de riscos como ferramenta para a vigilância ambiental em Saúde

 

Risk assessment as a tool for environmental health surveillance

 

 

Carlos Machado de Freitas

Centro de Estudos da Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana/ENSP/FIOCRUZ

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A avaliação de riscos vem se constituindo como importante ferramenta para a vigilância ambiental em saúde. Neste artigo, tomando como exemplo as situações que envolvem agentes químicos, situamos historicamente seu surgimento para, em seguida, apresentar os princípios básicos que regem sua aplicação. A partir daí, são descritas as etapas básicas que compõem essa ferramenta, sendo: identificação do perigo; estabelecimento do nível de dose-resposta; avaliação da exposição; e caracterização dos riscos. Ao final, discute-se quando e em que situações a avaliação de riscos pode e deve ser utilizada no âmbito da vigilância ambiental em saúde. Conclui-se que o maior desafio para essa avaliação tornar-se uma ferramenta efetiva para a vigilância ambiental em saúde é que ela seja contextualizada à nossa realidade e baseada em abordagens integradas e participativas.

Palavras-Chave: Avaliação de Riscos; Vigilância Ambiental; Vigilância em Saúde.


SUMMARY

Risk assessment is becoming an important tool in environmental health surveillance. Historical aspects and the principles of its application, taking as example situations involving chemical substances, are presented in this article. The basic steps, which comprise this approach, are described: hazard identification; dose-response assessment; exposure assessment;and risk characterization. Situations in which risk assessment can and should be applied in environmental health surveillance are discussed. The use of risk assessment as an effective tool constitutes a challenge that needs to be contextualized and based on integrated and participatory approaches.

Key Words: Risk Assessment; Environmental Surveillance; Health Surveillance.


 

 

Introdução

A avaliação de riscos tem-se constituído em importante ferramenta, com o objetivo de subsidiar os processos decisórios, de controle e prevenção da exposição de populações e indivíduos aos agentes perigosos à saúde que estão presentes no meio ambiente por meio de produtos, processos produtivos ou resíduos. Trata-se de um conjunto de procedimentos que possibilitam avaliar e estimar o potencial de danos a partir da exposição a determinados agentes presentes no meio ambiente. Sendo assim, embora tenha suas origens relacionadas aos processos de produção, de produtos e resíduos radioativos e químicos, essa avaliação pode, enquanto ferramenta, ser estendida a outras situações, como as que envolvem agentes biológicos, por exemplo.

Quando trata de processos produtivos, a noção de risco está relacionada à probabilidade de eventos ou falhas de componentes. Nesses casos, a avaliação de riscos serve de ferramenta para a identificação de perigos, probabilidades de ocorrência, desenvolvimento de cenários e análise de conseqüências dos acidentes industriais, particularmente em instalações em que eventos podem resultar em emissões de poluentes no meio ambiente. É utilizada como ferramenta para o licenciamento ambiental de instalações.1 Nas situações que envolvem produtos ou resíduos perigosos, a noção de risco está relacionada ao estabelecimento das relações entre a exposição a determinados agentes e os potenciais danos causados à saúde dos seres humanos e outros organismos vivos.

A avaliação de riscos constitui uma forma de aprofundamento da compreensão dos problemas ambientais que ocasionam efeitos indesejáveis sobre a saúde. Pode ter início quando dados ambientais e dados de saúde indicam haver a presença de agentes perigosos (químicos, físicos ou biológicos) no ambiente, cujos efeitos sobre a saúde devem ser avaliados quantitativa e qualitativamente. Seu objetivo é oferecer ao tomador de decisão (ministro de estado ou secretário de saúde ou meio ambiente) elementos para o estabelecimento de estratégias de gerenciamento de riscos.

A possibilidade de relacionar os dados ambientais e os de saúde torna-se fundamental para a compreensão das interrelações entre os níveis de exposição aos agentes e os efeitos sobre saúde. Porém, conforme observam Corvalán e Kjellström,2 para que avaliações de riscos sejam realizadas, sem a necessidade de novas e substantivas pesquisas, torna-se vital que existam informações detalhadas acerca da relação exposição-efeitos. Isso implica o conhecimento acerca das vias de exposições, estimativas da população exposta e dos efeitos à saúde associados com a exposição na forma da relação dose-resposta. Para os autores, na atualidade, essa abordagem é possível para muitos poluentes, porém a ausência de informações em muitas partes do mundo, especialmente nos países em processo de industrialização limita sua aplicação.

No caso dos países em processo de industrialização, a maioria das avaliações quantitativas de riscos só pode ser realizada pela extrapolação dos resultados dos estudos disponíveis nos países industrializados. O limite da extrapolação é que a extensão dos níveis de exposição e a distribuição de alguns determinantes podem diferir substancialmente entre populações, reduzindo inevitavelmente a validade dessa abordagem.

Apesar dos limitantes apontados anteriormente, a avaliação de riscos é, na atualidade, sem dúvida, importante ferramenta para tomada de decisão em saúde e meio ambiente. Neste texto, primeiro contextualizaremos historicamente o seu surgimento. Em seguida, tendo como referência as substâncias químicas, apresentaremos seus princípios e as etapas que a constituem. Ao final, apontamos como e quando deve ser realizada para servir como ferramenta a ser utilizada na vigilância ambiental em saúde.

Breve histórico

O termo risco tem sua origem na palavra italiana riscare, cujo significado original era navegar entre rochedos perigosos. O conceito de risco que se conhece atualmente provém da teoria das probabilidades, sistema axiomático oriundo da teoria dos jogos na França do século XVII. Pressupõe a possibilidade de prever determinadas situações ou eventos por meio do conhecimento - ou, pelo menos, possibilidade de conhecimento - dos parâmetros da distribuição de probabilidades de acontecimentos futuros por meio da computação das expectativas matemáticas. O conceito de risco está associado ao potencial de perdas e danos e de magnitude das conseqüências.3

Covello e Mumpower,4 em abordagem histórica de análise e gerenciamento de riscos, principalmente nos Estados Unidos, apontaram nove fatores importantes, que distribuímos em quatro grupos, para a compreensão das transformações que levaram ao modo contemporâneo de pensar e enfrentar os riscos nos países centrais da economia mundial.

O primeiro grupo de fatores envolve os relacionados à mudança na própria natureza dos riscos. Mudanças no perfil das principais causas de óbito, que deixaram progressivamente de ser atribuídas às doenças infecciosas para privilegiar as crônico-degenerativas, aumento na média de expectativa de vida e o crescimento de novos riscos (radioativos, químicos e biológicos, todos gerados pelo desenvolvimento da ciência e da tecnologia) que passaram a fazer parte do quotidiano de milhões de pessoas, na forma de acidentes ou não.

O segundo grupo está relacionado ao próprio desenvolvimento científico e tecnológico. Por um lado, o desenvolvimento de testes laboratoriais, métodos epidemiológicos, modelagens ambientais, simulações em computadores e avaliação de riscos na engenharia, os quais possibilitaram avanços na habilidade dos cientistas em identificar e medir os riscos. Em paralelo, houve o crescimento no número de cientistas e analistas que passaram a ter como foco de seu trabalho os riscos à saúde, segurança e ao meio ambiente.

O terceiro grupo diz respeito aos processos de regulamentação e decisão. O desenvolvimento científico e tecnológico contribuiu para o crescimento do número de análises quantitativas formais produzidas e utilizadas para os processos decisórios sobre gerenciamento de riscos, associado à ampliação do papel do governo federal na avaliação e no gerenciamento de riscos. Esse crescimento deu-se mediante: a) o desenvolvimento da legislação no campo da saúde, segurança e do meio ambiente; b) o crescimento das agências públicas encarregadas do gerenciamento desses riscos; e c) o aumento dos casos relacionados ao assunto que alcançaram a esfera judicial.

O quarto grupo envolve as respostas da sociedade organizada. A ampliação do interesse e da preocupação com os riscos, por parte do público em geral, demandando cada vez mais proteção, contribuiu, substancialmente, para o crescimento de movimentos sociais e grupos de interesses que procuravam participar cada vez mais no gerenciamento social do risco. Esse processo tornou bastante politizadas as atividades de análise e gerenciamento de riscos à saúde, à segurança e ao meio ambiente, com intensa participação daqueles segmentos representando a indústria, os trabalhadores, os ambientalistas, as organizações científicas, entre outros.4

Particularmente a partir dos anos 70, alguns fatores, contribuíram, de diferentes modos, para a mudança no status social dos riscos: a) a publicização na imprensa de crianças com deformações congênitas, como no caso da talidomida; b) a publicação de livros, como “Primavera Silenciosa” (sobre a revolução verde e os altos riscos para a saúde e o meio ambiente gerados pelo uso intensivo de agrotóxicos), de Rachel Carson; c) a “descoberta” da dioxina como substância química altamente perigosa e presente no herbicida “Agente Laranja”, utilizado de modo intensivo em plantações e na Guerra do Vietnã; d) acidentes químicos e radioativos, como os de Seveso (1976), de Three Mile Island (1979), de Bhopal (1984) e de Chernobyl (1986); e e) as controvérsias entre os especialistas sobre os riscos à saúde e ao meio ambiente, tornadas públicas mediante a cobertura da imprensa e massificação dos meios de comunicação.

Essa mudança no status social dos riscos significou o fortalecimento da oposição pública aos riscos que vinha desde os anos 60, particularmente em relação aos de origem industrial e tecnológica. Possibilitou, ainda, o fortalecimento de argumentos favoráveis ao maior controle social do desenvolvimento industrial e tecnológico, bem como a intervenção de novos atores, como organizações ambientalistas, associações de moradores, grupos de interesse, organizações não-governamentais e partidos políticos nos debates e processos decisórios acerca de situações ou eventos de riscos, além dos próprios sindicatos de trabalhadores que, desde a II Guerra Mundial, vinham se organizando de maneira mais intensa para manifestar sua insatisfação e seus questionamentos aos riscos, particularmente àqueles de origem química e radioativa a que se encontravam expostos.5

As avaliações de riscos emergem em determinado período histórico como resposta técnica a um problema simultaneamente social. Essa resposta dá-se por meio da formalização de técnicas qualitativas e quantitativas com o objetivo de avaliar as causas e conseqüências das exposições ambientais aos agentes perigosos para, a partir daí, estabelecer as estratégias de gerenciamento dos riscos. Essa maior formalização ocorre em paralelo com o processo de institucionalização da avaliação de riscos, tornando-se, por meio de legislações, instrumento para as tomadas de decisões, principalmente nos EUA e em alguns países da Europa.

Exemplo desse processo de institucionalização, atingindo níveis internacionais, encontra-se na Agenda 21,6 que tem, como uma das áreas programáticas, a “expansão e aceleração da avaliação internacional dos riscos químicos”.

Princípios e etapas básicas

Na sua forma clássica, a avaliação de riscos constitui etapa intermediária entre a pesquisa e o gerenciamento de riscos. Suas etapas são (Figura 1): 1) identificação de perigo; 2) avaliação da relação dose-resposta; 3) avaliação de exposição; e 4) caracterização de riscos. É somente a partir dessa última etapa, a caracterização de riscos, que são tomadas as decisões para o desenvolvimento de estratégias de gerenciamento de riscos, havendo aí mais explícita interferência dos fatores culturais, sociais, políticos e econômicos,5 em que as decisões, objetivando a redução de riscos, se encontram mediadas por processos que envolvem simultâneamente as avaliações de riscos e a legitimação política.7

 

 

É um procedimento utilizado para sintetizar as informações disponíveis e os julgamentos sobre elas com o objetivo de estimar os riscos associados à exposição aos agentes perigosos. Essa estimativa é expressa em termos probabilísticos, variando entre 0 e 1, sendo o valor igual a 0 indicador da certeza de que não ocorrerá dano e o valor igual a 1 indicador da certeza de que ocorrerá dano.8 Tem como objetivo: a) determinar a possibilidade de efeitos adversos em humanos, outras espécies e ecossistemas expostos aos agentes químicos; e b) proporcionar a mais completa informação possível aos responsáveis por controlar os riscos, especificamente àqueles que estabelecem políticas e normas.

Etapas básicas

Embora se possa considerar que a avaliação de riscos, enquanto ferramenta, pode aplicar-se a diversas situações, vamos nos deter, neste artigo, às circunscritas aos agentes químicos, uma vez que, na atualidade, a avaliação tem sido amplamente difundida e aplicada nos casos que envolvem esse tipo de agente perigoso. Conforme observamos anteriormente, a avaliação, na sua forma clássica, divide-se em quatro etapas básicas. Para melhor compreensão delas e de sua relação com a vigilância ambiental em saúde, detalharemos cada uma.

a) Identificação de perigo

A etapa de identificação do perigo tem por objetivo obter e avaliar as informações relacionadas às propriedades tóxicas inerentes a cada substância, ou o potencial para causar dano biológico, doença ou óbito, sob certas condições de exposição. Também pode incluir a caracterização do comportamento de uma substância dentro do corpo e as interações que esta tem com órgãos, células ou componentes celulares.

Informações desse tipo podem ser valiosas para que se possa confirmar se efeitos comprovadamente tóxicos de determinada substância, em certas condições experimentais, também podem ser produzidos em seres humanos, ou seja, se é cientificamente correto inferir que os efeitos tóxicos observados em certo meio ocorram em outros. Exemplo desse questionamento refere-se à possibilidade de substâncias carcinogênicas ou teratogênicas em animais produzirem o mesmo efeito em seres humanos.9

As informações sobre as propriedades tóxicas das substâncias químicas são obtidas a partir de estudos em animais, investigações epidemiológicas controladas em populações humanas expostas e estudos clínicos ou informes de casos sobre seres humanos expostos. Outras informações toxicológicas são obtidas por meio de estudos experimentais em sistemas que não são completos (órgãos isolados, células ou componentes celulares) e da análise da estrutura molecular da substância de interesse.9

Para algumas substâncias, a base de dados disponível pode incluir informações valiosas sobre os efeitos em seres humanos e em animais experimentais, assim como informações sobre os mecanismos biológicos básicos para a produção de uma ou mais forma de toxicidade. Em outros casos, a base de dados pode ser sumamente limitada e incluir somente alguns estudos de experimentação animal.9

Há situações onde todos os dados disponíveis podem apontar claramente em uma só direção, deixando pouca ambigüidade acerca da natureza da toxicidade associada a determinada substância. Entretanto, em alguns casos, os dados podem incluir conjuntos de estudos epidemiológicos ou experimentais aparentemente em conflito. A avaliação apropriada do perigo deve conter uma revisão crítica de cada conjunto de dados pertinentes e da base total de informações sobre toxicidade. Também deve incluir a avaliação das inferências sobre toxicidade em populações humanas que podem ter sido expostas.9

As informações sobre toxicidade a partir de estudos em animais baseiam-se na suposição de que os efeitos em seres humanos podem ser previstos a partir dos efeitos em animais. Entretanto, apesar do princípio geral de inferir efeitos para seres humanos a partir de efeitos em animais de experimentação ser bem fundamentado, existem numerosas exceções. Muitas delas estão relacionadas às diferenças na maneira como diversas espécies interagem com a substância a que estão expostas e com as diferenças de metabolismo, absorção, distribuição e eliminação (os aspectos toxicocinéticos) dessas substâncias no organismo. Devido a essas diferenças potenciais, é essencial avaliar cuidadosamente todas as diferenças entre espécies ao inferir toxicidade para seres humanos a partir de resultados de estudos toxicológicos em animais.9

As informaçãos a partir de estudos em seres humanos são obtidas a partir de quatro fontes: 1) estudos epidemiológicos; 2) estudos de correlação, nos quais as diferenças nas taxas de doença em populações humanas estão associadas a diferenças de condições ambientais; 3) informes de casos preparados por equipes de saúde; e 4) resumo dos sintomas informados pelas próprias pessoas expostas.9

Os estudos clínicos ou informes de casos de uma investigação, apesar de serem muito importantes, raramente constituem o corpo central de informações para a avaliação de risco. Estas duas últimas fontes de informação são consideradas indicadores menos seguros e precisos do potencial tóxico.9

As provas oriundas de estudos experimentais em animais e os resultados de estudos epidemiológicos constituem as principais fontes de dados sobre toxicidade, porém, ainda assim, apresentam dificuldades interpretativas que, por vezes, são bastante sutis e controversas. Nos estudos de laboratório, embora se possa ter maior controle das variáveis, há o fato de se tratar de outra espécie que não a humana. Nos estudos epidemiológicos, embora sejam baseados em situações reais de exposição de seres humanos, existem problemas relacionados a variabilidade genética e ao não controle de todas as variáveis.9

b) Avaliação da relação dose-resposta

O passo seguinte é estimar as relações entre dose e resposta para as diversas formas de toxicidade mostradas pela substância em estudo. Ainda que se disponha de bons estudos epidemiológicos, raramente há dados quantitativos confiáveis sobre a exposição. Na maioria dos casos, os estudos dose-resposta são obtidos a partir de estudos em animais. A avaliação dose-resposta implica considerar três problemas: 1) geralmente, os animais em estudos experimentais estão expostos a doses altas e os efeitos a doses baixas em humanos devem ser previstos, utilizando-se teorias relativas na forma da curva dose-resposta; 2) os animais e os seres humanos freqüentemente diferem em suscetibilidade, ao menos em diferença de tamanho e metabolismo; e 3) a população humana é muito heterogênea, sendo alguns indivíduos mais suscetíveis do que a média.9

É importante observar que as respostas tóxicas podem ser de vários tipos, independente do órgão ou do sistema afetados. Para algumas, a gravidade do dano aumenta à medida que aumenta a dose, ou seja, o efeito é proporcional à dose. Como exemplo dessa situação, podemos imaginar certa substância que afete o fígado. As doses mais altas podem destruir células hepáticas, talvez tantas o suficiente para destruir o fígado e causar a morte de alguns ou todos os animais de experimentação. Com a diminuição das doses, menos células são destruídas, mas pode haver outras formas de dano que causam alterações em seu funcionamento, pois ainda que não haja destruição de nenhuma célula, podem surgir leves alterações de função ou da estrutura celular. Finalmente, pode-se chegar à determinado nível de dose onde não se observe nenhum efeito ou no qual existam somente alterações bioquímicas que não produzam efeitos adversos conhecidos.9

Em outros casos, a gravidade do efeito pode não aumentar com a dose, mas a incidência do efeito aumentará com a elevação do nível da dose. Assim, o número de seres vivos (humanos ou animais) que experimentam um efeito adverso à determinada dose é menor que o número total e à medida que a dose aumenta, a fração que experimenta efeitos adversos, ou seja, a incidência da enfermidade ou dano, aumentará. Para doses suficientemente altas, todos os expostos apresentarão o efeito.9

Nesta etapa, o pressuposto básico é que a cada nível de dose corresponderá determinada resposta ou efeito do organismo. Assim, estabelecer os níveis críticos encontrados na literatura para estimar os riscos a partir dos dados das situações reais de exposição é passo fundamental.

c) Avaliação da exposição

As medições e estimativas da exposição de seres humanos em contato com substâncias químicas, associadas com as apropriadas suposições acerca dos efeitos à saúde, constituem método padrão utilizado para determinar os níveis de exposições de determinadas populações sob determinadas condições. A exposição é definida como o contato que uma pessoa tem ao(s) agente(s) (químicos, físicos ou biológicos) ao nível dos limites exteriores do seu organismo durante determinado período de tempo. A avaliação da exposição envolve a determinação ou estimativa da magnitude, da freqüência, da duração, da quantidade de pessoas expostas e a identificação das vias de exposição. Seu objetivo é fornecer subsídios para a proteção e a promoção da saúde pública.9

De modo geral, considera-se mais rápido medir diretamente a exposição em humanos, seja medindo os níveis das substâncias perigosas por meio do monitoramento ambiental ou utilizando monitoramentos biológicos e pessoais. Entretanto, na maioria dos casos, necessita-se de conhecimento detalhado dos fatores que contribuem para a exposição humana, incluindo não só aqueles que determinam o comportamento dos seres humanos, mas também os que determinam o comportamento da substância ao atingir o meio ambiente em que as pessoas vivem e trabalham. Dependendo da substância e do problema em questão, a quantidade de informação disponível pode variar bastante, limitando o valor do monitoramento ambiental, pessoal ou biológico empregado de forma isolada.

As principais questões que orientam a avaliação da exposição em seres humanos, são: a) onde se encontra a substância? b) como as pessoas se encontram expostas? c) quais são as vias de exposição? d) qual o grau de absorção pelas diversas vias de exposição? e) quem está exposto? f) há grupos de alto risco? e g) qual a magnitude, duração e freqüência da exposição?8

É importante notar que os diversos aspectos que contribuem para que determinados grupos populacionais se encontrem expostos aos perigos de certas substâncias devem ser considerados nesta etapa. Isso envolve, necessariamente, outras áreas de conhecimento além da toxicologia e da epidemiologia, como a antropologia e a sociologia, para a compreensão dos processos e das práticas sociais envolvidas na exposição dos diferentes grupos poulacionais.10,11

d) Caracterização de riscos

O processo de caracterização do risco inclui a análise integrada dos resultados mais importantes da avaliação de riscos. Essa análise integra e reúne as informações das etapas de identificação de perigo, da avaliação da relação doseresposta e da avaliação de exposição, para fazer estimativas do risco para os cenários de exposição de interesse. Seu propósito é fornecer o relato dos objetivos, do alcance e nível de detalhamento dos resultados e da abordagem utilizada na avaliação, identificando o(s) cenário(s) de exposição utilizado(s). As forças e limitações (incertezas) dos dados e métodos de estimativas são expostas de forma clara.9,12 Ao final, apresenta o perfil qualitativo e ou quantitativo do excesso de risco em seres humanos provocados pela exposição a substâncias tóxicas. Seus objetivos são: a) integrar e resumir a identificação do perigo, a avaliação da relação dose-resposta e a avaliação de exposição; b) desenvolver estimativas de riscos para a saúde pública; c) desenvolver um marco para definir o significado do risco; e d) apresentar as suposições, incertezas e juízos científicos.9

É importante observar que a caracterização do risco é etapa absolutamente necessária na geração de qualquer relatório sobre risco, que será usado de forma preliminar para dar suporte à alocação de recursos para estudos mais avançados ou dar suporte às decisões reguladoras. No primeiro caso, os detalhes e a sofisticação da caracterização são apropriadamente pequenos, enquanto que no último devem ser mais extensos. Mesmo que um documento cubra somente algumas partes da avaliação de risco (por exemplo, identificação do perigo e da dose-resposta), os seus resultados devem ser caracterizados.

A avaliação de risco é um processo interativo que cresce em profundidade e alcance nos diversos estágios em que busca estabelecer prioridades, realizar estimativas preliminares e examinar a situação do modo mais completo possível para dar suporte à tomada de decisões regulamentadoras. Considerações padronizadas são utilizadas em todos os estágios, apesar de se ter em conta o fato de que nenhuma base de dados é completa. Conhecido o espectro de prioridades e de problemas, bem como o alcance e a profundidade das avaliações, nem todas as caracterizações do risco podem ou devem ser iguais. O avaliador de risco precisa decidir cuidadosamente quais questões, em particular, são importantes para serem apresentadas, selecionando aquelas que são dignas de atenção pelo seu impacto nos resultados.

 

Conclusão

Conforme observam Corvalán e Kjellström,2 a exposição humana, crônica ou aguda, aos poluentes ambientais presentes no ar, nas águas, no solo e na cadeia alimentar, contribui para diversos modos de morbidade e mortalidade. Ainda que para muitos casos se conheçam as doenças atribuídas aos poluentes ambientais, os níveis de poluição são bastante flutuantes e os métodos para analisar as relações entre exposição e efeitos não são suficientemente desenvolvidos e a qualidade dos dados é bastante pobre, particularmente nos países em industrialização. O desafio encontra-se na possibilidade de relacionar os dados ambientais e de saúde, fundamental para a compreensão da interrelação entre níveis de exposição e efeitos na saúde.

No caso da adoção da avaliação de riscos como ferramenta para a vigilância ambiental em saúde, esse desafio é ainda maior para países em industrialização como o Brasil, considerando-se dois aspectos importantes. O primeiro é a afirmativa de Corvalán e Kjellström,2 que considera fundamental a existência de informações detalhadas acerca da relação exposição-efeitos para que avaliações de riscos sejam realizadas nos países em industrialização sem que implique novas e custosas pesquisas. O segundo é a constatação, na Agenda 21,6 de que, entre os principais problemas para o emprego das avaliações de riscos nos países em industrialização se encontram: a) falta de dados científicos para avaliar os riscos inerentes à utilização de numerosos produtos químicos; e b) falta de recursos para avaliar os produtos químicos para os quais se dispõe de dados.

Dentro do Paradigma da Saúde Ambiental,13 a avaliação de riscos possui um papel absolutamente estratégico de permitir cruzar as informações referentes às exposições - que resultam de determinadas fontes de emissões de poluentes e resultam em concentrações ambientais - com as referentes aos potenciais efeitos sobre a saúde das populações expostas - morbidade e mortalidade resultantes das doses absorvidas (Figura 2). Assim, tornam-se fundamentais, a busca e a combinação de informações mais gerais como a identificação das fontes de emissões, passando pela identificação das rotas ambientais, vias de exposição e populações, até as mais específicas sobre dose-resposta.

 

 

Apesar de ser esta avaliação considerada importante ferramenta, deve-se considerar que algumas críticas colocam a necessidade de se ampliar esta abordagem. A primeira se refere ao fato da avaliação ser caso a caso, em que cada situação é examinada separadamente, tendo como pressuposição que os efeitos identificados serão adicionados aos outros, sendo o efeito total o resultado da soma dos diversos efeitos individuais identificados. Os efeitos interativos são considerados menores e as margens de segurança são aplicadas à avaliação individual. O surgimento de um novo agente e ou efeito não implica necessidade de se reavaliar todo o sistema.14,15

A segunda é o fato de serem considerados apenas os perigos para os quais existem provas. Somente efeitos adversos para os quais existem relação causal e que tenham sido cientificamente demonstrados e aceitos pela comunidade de pares científicos são considerados. A terceira refere-se a tendência das medidas do riscos serem expressas em termos quantitativos (número de óbitos, perdas financeiras, etc.), restringindo o debate à probabilidades de ocorrências ou de exposições. A quarta refere-se ao fato de a avaliação de riscos ser separada da fase de gerenciamento de riscos. A quinta é o fato de a avaliação de riscos ser tarefa somente dos especialistas. A sexta e última é a restrição de avaliar somente os riscos em termos toxicológicos e epidemiológicos, deixando aos tomadores de decisões a responsabilidade pelas considerações adicionais de ordem política, econômica, social, cultural e moral que necessariamente serão levadas em conta.14,15

Em resposta a essas críticas, particularmente as três últimas, vêm sendo desenvolvidas abordagens como a proposta, nos Estados Unidos, pela Comissão Presidencial-Congressional sobre Avaliação de Risco e Gerenciamento de Risco.16 De acordo com esta comissão, a avaliação de riscos não pode ser separada do gerenciamento de riscos e este processo envolve seis etapas encadeadas de forma circular (Figura 3), que são: 1) definir o problema colocado em contexto; 2) analisar os riscos associados com problema no contexto; 3) examinar as opções disponíveis para gerenciar os riscos; 4) tomar decisões acerca de quais opções implementar; 5) realizar ações para a implementar as decisões; e 6) conduzir uma avaliação das ações.

 

 

Diferentemente da estrutura linear das etapas clássicas da avaliação de riscos (Figura 1), a estrutura circular dessa proposta (Figura 3) permite visualizar a recolocação do problema no contexto ou introduzir novos problemas. Todas as etapas são realizadas, envolvendo a colaboração dos diferentes atores e interesses que são ou serão afetados pelo problema, o que vem sendo enfatizada inclusive em outras propostas alternativas para a avaliação de riscos.15-17

Jasanoff 9 observou que, na busca de integrar as diversas disciplinas e perspectivas que atuam na relação entre avaliação e gerenciamento de riscos (Figura 4), não podemos separar “o que se deseja conhecer acerca de determinado problema” - o que é realizado pelas avaliações técnicas de riscos - do que se deseja fazer acerca desse mesmo problema - o que é proposto e realizado no desenvolvimento das estratégias de gerenciamento de riscos. Para Jasanoff,9 o modo de se perceber a realidade e organizar os fatos a ela pertinentes, o que, conforme demonstra a Figura 4, envolve a seleção da unidade básica de análise, as escolhas meto-dológicas, a complexidade das medidas de risco (quantitativas ou qualitativas, unidi-mensionais ou multidimensionais), a função instrumental e social da abordagem adotada e seus objetivos, tem implicações, embora nem sempre visíveis, tanto nas avaliações de riscos, como nos aspectos das políticas públicas e da justiça social: quem se deve proteger de determinados riscos, a que custo e deixando de lado que alternativas.

 

 

As questões apontadas no parágrafo anterior não podem ser deixadas de lado quando se considera que as avaliações de riscos passarão, cada vez mais, a desempenhar importante papel nos níveis e na extensão das regulamentações acerca de agentes perigosos à saúde presentes no meio ambiente. Porém, para que possam ser realizadas, torna-se imperativa a definição de prioridades para investigação, o que só será possível a partir da existência de bases de dados e sistemas de informação em saúde e meio ambiente de boa qualidade, que permitam estabelecer indicadores, apontando problemas que devem ser avaliados com maior profundidade.

O maior desafio para que a avaliação de riscos possa tornar-se uma ferramenta efetiva para a vigilância ambiental em saúde é que ela seja contextualizada à nossa realidade e baseada em abordagens integradas e participativas que possam incluir a análise de “reações” químicas, físicas e biológicas combinadas com “reações” sociais, políticas, culturais, éticas e morais, contribuindo para a busca de soluções mais amplas e duradouras.6,18

 

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Endereço para correspondência:
Av. Leopoldo Bulhões, 1.480
Manguinhos - Rio de Janeiro/RJ.
CEP: 21.041-210.
E-mail:carlosmf@ensp.fiocruz