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Epidemiologia e Serviços de Saúde

versão impressa ISSN 1679-4974versão On-line ISSN 2237-9622

Epidemiol. Serv. Saúde v.12 n.1 Brasília mar. 2003

http://dx.doi.org/10.5123/S1679-49742003000100003 

REPUBLICAÇÃO

 

Áreas sentinelas: uma estratégia de monitoramento em Saúde Pública*

 

Sentinel areas: a monitoring strategy in Public Health

 

 

Maria da Glória Teixeira; Maurício Lima Barreto; Maria da Conceição Nascimento Costa; Agostino Strina; David Martins Júnior; Matildes Prado

Instituto de Saúde Coletiva - Universidade Federal da Bahia

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

As técnicas disponíveis para monitoramento da situação de saúde têm-se mostrado insuficientes, razão pela qual se discute a necessidade de aperfeiçoá-las com base no desenvolvimento de novas estratégias de coleta de informações, de modo a permitir seu uso pelos sistemas locais de saúde. Este artigo apresenta as bases metodológicas de uma estratégia de monitoramento de problemas de saúde que emprega espaços intra-urbanos delimitados – áreas sentinelas – para coleta de informações sociais, econômicas, comportamentais e biológicas fundamentais para a Saúde Pública, por permitirem uma maior aproximação com a realidade de espaços sociais complexos. Os autores apresentam uma experiência que está sendo desenvolvida em Salvador/Bahia, Brasil, para avaliação de impacto epidemiológico resultante da implantação de um programa de saneamento ambiental. Discutem-se os critérios de seleção das áreas e as potencialidades de uso dessa estratégia para possibilitar o emprego ágil dos recursos epidemiológicos pelos serviços de saúde de forma ágil e a aplicação oportuna de seus resultados na reorientação e aprimoramento das práticas de intervenção em saúde.

Palavras-chave: áreas sentinelas; monitoramento; saúde pública; vigilância sentinela.


SUMMARY

Because available techniques for monitoring the health situation have shown to be insufficient, this article discusses methods to improve these techniques based on the development of new strategies of data collection that permit their use by local health systems. The methodological basis of a strategy of health monitoring using well-defined inner-urban spaces, called sentinel areas, is presented. The proposed strategy permits the collection of social, economic, behavioral, and biological information essential for public health practice, including a better approach to the reality of complex social spaces. The authors present an experience developed in the city of Salvador, the capital of Bahia state, Brazil, which has been used to evaluate the epidemiological impact of an environment sanitation program. Criteria for area selection are discussed, as well as the potential use of this strategy by health services, as it allows the use of epidemiological resources and their results for improving health intervention programs in a timely manner.

Key words: sentinel area; monitoring, public health; sentinel surveillance.


 

 

Introdução

As discussões acerca da necessidade de novos modelos assistenciais para o processo de desenvolvimento do Sistema Único de Saúde (SUS) têm evidenciado a importância da articulação entre as ações de promoção, prevenção, recuperação e reabilitação nas dimensões individual e coletiva,1 na prestação de atenção integral à saúde. Nessa perspectiva, é de fundamental importância dispor de um mecanismo de geração de dados e informações que possam orientar as ações que se fizerem necessárias. O aprimoramento e ou desenvolvimento de outras formas de coleta de informações que atendam às necessidades dos sistemas locais de saúde tem sido uma das proposições das agendas do setor.2-5

Embora a Vigilância Epidemiológica compreenda um conjunto de atividades que contribuam para a atenção integral à saúde, suas funções e técnicas operacionais têm escopo limitado que precisa ser superado, entendendo-se como imprescindível dispor de métodos capazes de serem operados pelos níveis locais do sistema, para tornar possível a formulação de diagnósticos mais completos das condições de vida e saúde das populações. A expectativa é de que se avance na direção da elaboração e implantação de modelos de atenção voltados para a melhoria da qualidade da assistência e conseqüente resolução de problemas de saúde de grupos populacionais, não limitando as suas intervenções apenas ao elenco de doenças que compõem a lista de notificação compulsória.

Atualmente, no Brasil, a disseminação das ferramentas computacionais e a disponibilização dos bancos de dados nacionais6 via CD-rom e internet têm facilitado, em parte, o uso mais sistemático dos dados pelos níveis locais; mas, os subsistemas que compõem o Sistema de Informações em Saúde (SIS), existentes aqui e em muitos outros países latino-americanos, são compartimentalizados e não se compatibilizam, dificultando a sua utilização, principalmente pelos profissionais da rede de serviços. Em geral, a conformação desses subsistemas tem obedecido a uma lógica centralizadora e vertical, de modo que a desagregação das informações a partir dessas bases é complexa; ou, muitas vezes, não exeqüível. As informações existentes, que permitem a captação dos contextos sociais, econômicos e culturais nos espaços onde os eventos ocorrem, são oriundas de sistemas extra-setoriais, o que dificulta ou retarda o acesso a elas.

O potencial do uso eventual de questionários e a simplificação de muitos testes biológicos tornam factível a coleta, processamento e análise de fatores de risco e de marcadores biológicos dos mais diversos problemas de saúde. Em geral, essas abordagens têm sido restritas ao campo da pesquisa epidemiológica; entretanto, entende- se que pode ser estendida para uso rotineiro no monitoramento de problemas de saúde, facilitando a incorporação de princípios técnicos e científicos ao escopo de atuação da rede de serviços.

Este artigo apresenta as bases metodológicas de uma estratégia para monitoramento de problemas de saúde que emprega espaços intra-urbanos delimitados, denominados áreas sentinelas. São discutidas as potencialidades do uso dessa estratégia, como forma complementar aos sistemas de informações existentes com vistas ao aperfeiçoamento das análises de situação e ao planejamento e avaliação de impacto das ações de saúde, particularmente no nível local de grandes centros urbanos.

Monitoramento em Saúde: Áreas Sentinelas

O termo monitoramento é utilizado em vários campos do conhecimento, com diversos significados, como acompanhar e avaliar, controlar mediante acompanhamento, olhar atentamente, observar ou controlar com propósito especial.7 Neste artigo, assume-se uma das definições para monitoramento no campo específico da Saúde Pública apresentadas por Last:8 "elaboração e análise de mensurações rotineiras visando detectar mudanças no ambiente ou no estado de saúde da comunidade". Seguindo essa linha, descrevem-se princípios e procedimentos fundamentais para se instituir um sistema de coleta de dados para acompanhamento de alguns problemas de saúde típicos de grandes cidades, visando aportar subsídios ao diagnóstico e análise de situação de saúde na perspectiva de implantação do novo modelo de assistência à saúde denominado Vigilância da Saúde.3

Uma técnica clássica de monitoramento em Saúde Pública é a vigilância epidemiológica, desenvolvida com os objetivos de acompanhar e analisar, sistematicamente, um elenco de doenças predefinidas; e orientar as intervenções necessárias ao seu controle, eliminação ou erradicação. Trata-se de um sistema inicialmente condicionado ao conhecimento das notificações universais das doenças sob vigilância, as quais são obtidas por meio da coleta contínua de dados articulada à condução e avaliação dos Programas de Prevenção e Controle em Saúde Pública.

Para a vigilância epidemiológica, o conhecimento de todos os casos suspeitos ou confirmados de uma doença ou agravo é de fundamental importância, principalmente para doenças que dispõem de instrumentos de intervenção capazes de interromper a cadeia de transmissão dos agentes. Reconhece-se, todavia, que muitos dos problemas de saúde das populações prescindem do conhecimento de todos os casos para o planejamento e execução de intervenções coletivas efetivas; e portanto, demandam a organização de outras formas de coleta de dados e de monitoramento, operacionalmente mais ágeis.

O termo "sentinela", quando utilizado em Saúde Pública, vem antecedido de diversos substantivos como unidades de saúde, eventos, populações, que têm como eixo comum a coleta de informações com sensibilidade para monitorar um certo universo de fenômenos.9 Essa designação foi empregada pela primeira vez em 1976, quando Rutstein e colaboradores10 chamaram a atenção para a necessidade de identificar "eventos sentinelas" em saúde, definindo-os como doença prevenível, incapacidade ou óbito evitável. Partindo desse princípio, vários países incluíram essa prática nos seus sistemas de vigilância, prática essa que foi sendo ampliada, passando a considerar não só eventos únicos como também eventos raros localizados e mudanças em padrões lógicos de ocorrência.11

Com essa conotação, os sistemas de vigilância epidemiológica vêm utilizando hospitais especializados em doenças transmissíveis como "unidades de saúde sentinelas", que funcionam como alerta para investigação e adoção de medidas de controle de doenças graves que exigem atenção hospitalar.

Nas duas últimas décadas, têm sido desenvolvidas, em vários países, novas modalidades especiais de coleta de informações de morbidade de doenças transmissíveis e não transmissíveis e de padrões comportamentais, organizadas de modo diversificado de acordo com os problemas que se quer monitorar.12,13 Entre elas, encontram- se os sistemas que coletam dados mediante informantes-chave, especialistas ou clínicos gerais que formam redes de profissionais sentinelas. Uma recente avaliação de algumas dessas redes de coleta de dados constatou a validade das informações geradas por este método, apontando inclusive para a possibilidade de estender seu uso para estudos epidemiológicos analíticos além dos descritivos, para os quais já vinham sendo aplicadas.14

A área de saúde ambiental também se apropriou da estratégia de identificação de eventos sentinelas, a exemplo de malformações congênitas, tipos específicos de cânceres, alergias não usuais, visando investigar a associação com riscos ambientais e promoção de intervenções conseqüentes.11

Na América Latina, vêm sendo desenvolvidas experiências localizadas da estratégia de acompanhamento de problemas de saúde mediante a seleção e delimitação de espaços intra-urbanos, denominados "áreas sentinelas", diferenciados entre si de modo a representar as características de uma determinada situação, problema ou mesmo a identificação de necessidades sociais, particularmente de saúde.9,15

Monitoramento de Áreas Sentinelas: a experiência de Salvador

Em uma grande e complexa cidade brasileira – Salvador, Bahia – adotou-se a estratégia de monitoramento de "áreas sentinelas" com o objetivo de avaliar o impacto sobre a saúde da população resultante da implantação de um extenso projeto de intervenção ambiental centrado em esgotamento sanitário, ampliação da rede de abastecimento de água e melhoria do sistema de coleta de lixo, denominado de Programa Bahia Azul.16

No curso dessa experiência, cujo desenho será apresentado no próximo item, foi-se constatando a riqueza de informações que estavam sendo obtidas e as possibilidades de utilização desses espaços para responder a algumas perguntas demandadas pela equipe de vigilância epidemiológica da cidade.

Diante da necessidade de se obterem registros sistemáticos sobre os episódios e duração de diarréias infantis agudas, prevalência de geoelmintoses e influência dessas condições sobre o crescimento e desenvolvimento infantil para se proceder à avaliação de impacto do Programa Bahia Azul, constatou-se a importância de se instituir um sistema de coleta de dados primários. Entretanto, a extensão geográfica e densidade populacional da cidade não permitia a implantação de um sistema universal. Elegeu-se, então, a utilização de um conjunto limitado de áreas intraurbanas – áreas sentinelas – para se efetuar o monitoramento de doenças e agravos à saúde de interesse, por ser uma estratégia mais simples e sensível à avaliação do impacto de uma intervenção no padrão de saúde, de custo operacional compatível com os recursos disponíveis para a avaliação.

Constituição das Áreas Sentinelas de Salvador

Para uma primeira aproximação com a realidade de saúde e saneamento, foi feito um levantamento dos dados oficiais e de publicações científicas existentes sobre a estrutura social e econômica da cidade, sua extensão geográfica, recursos disponíveis para o empreendimento, dentre outros. Para a caracterização e delimitação inicial das áreas, utilizou-se parte dos dados secundários disponíveis.

Para a seleção das "áreas sentinelas", no contexto de avaliação do impacto epidemiológico de um programa de saneamento ambiental, predominantemente direcionado para a expansão da rede de esgotamento sanitário da cidade, considerou-se que as variáveis – condições sanitárias do domicílio e renda – em nível de agregados espaço-populacionais constituíam- se em um proxy das condições de vida da população. Utilizando-se dados do Censo Demográfico de 1991, os 1.765 Setores Censitários (SC) de Salvador foram classificados em três níveis, no que se refere ao padrão de esgotamento domiciliar: 1) predominantemente saneados, quando 80% ou mais dos domicílios do setor apresentavam solução adequada de esgotamento sanitário (considerou-se solução adequada quando o domicílio estava ligado a rede de esgotamento ou possuía fossa séptica); 2) moderadamente saneados, quando a proporção de domicílios do setor que apresentavam solução adequada de esgotamento sanitário era de 50 a 70%; e 3) não saneados, quando menos de 50% dos domicílios do setor apresentavam solução adequada de esgotamento sanitário. Da mesma forma, com relação ao padrão de renda familiar, esses setores foram também classificados em três níveis:1) alto, quando em mais de 50% dos domicílios a renda familiar era maior que cinco salários mínimos; 2) médio, quando mais de 50% dos domicílios apresentavam renda familiar de um a quatro salários mínimos; 3) baixo, quando em mais de 50% dos domicílios a renda familiar era inferior a um salário mínimo. A superposição dessas duas classificações resultaria em nove diferentes possibilidades de estratificação dos SCs. Entretanto, como no grupo com nível de renda familiar alto não houve nenhum setor que se enquadrasse nos níveis moderadamente saneado ou não saneado, constituíram-se apenas sete tipos de estratos de SCs, de acordo com o esgotamento sanitário e renda: a) renda familiar alta e predominantemente saneado; b) renda familiar média e predominantemente saneado; c) renda familiar média e moderadamente saneado; d) renda familiar média e não saneado; e) renda familiar baixa e predominantemente saneado; f) renda familiar baixa e moderadamente saneado; e g) renda familiar baixa e não saneado. O fato de os SCs apresentarem grande variabilidade no número de habitantes criou a necessidade de uma etapa intermediária de agrupamento. Como uma das populações-alvo, importante para o monitoramento do impacto do referido programa de saneamento ambiental, era de crianças menores de três anos de idade, decidiu-se que os SCs que apresentassem população nesta faixa etária em número menor que 200 fossem agregados a outros que se situassem no mesmo estrato (esgotamento sanitário/renda) e fossem geograficamente contíguos. Esse processo gerou 1.100 agregados, constituídos por um ou mais SCs, os quais denominamos de "microáreas".

Quando dos procedimentos da seleção da amostra de microáreas que seriam utilizadas como áreas sentinelas, optou-se por privilegiar condições extremas de renda e saneamento para maximizar a capacidade de apreensão do impacto epidemiológico que porventura ocorresse, em função da implementação progressiva do Programa Bahia Azul. Por questões operacionais, definiu-se que seriam selecionadas 30 áreas sentinelas. Por outro lado,as unidades de intervenção do Programa Bahia Azul são as bacias de esgotamento (BEs), que em Salvador são em número de 41. Foram previstas intervenções em 18 delas, dentre as 38 que ainda não dispunham de rede de esgotamento sanitário.

Assim, três das áreas sentinelas foram sorteadas entre as microáreas da bacia de esgotamento da Barra, área com altas condições de vida e classificada no estrato "a", que passou a ser utilizada como "padrão ideal" de referência para os aspectos ambientais e de saúde a serem monitorados. Três áreas sentinelas foram selecionadas em diferentes estratos na Bacia de Armação, área com boas condições de vida, classificada no estrato "b", pertencente ao grupo que seria beneficiado, mas que já se encontrava com as obras de esgotamento sanitário em fase de implantação no início da investigação. As 24 áreas sentinelas restantes foram sorteadas nos últimos estratos da classificação utilizada ("e", "f " e "g"), localizadas em oito das 18 BEs a serem beneficiadas pelo Programa Bahia Azul (Calafate, Cobre, Lobato, Mangabeira, Médio Camurujipe, Paripe, Periperi e Tripas) e correspondiam aos setores mais pobres da cidade.17

 

Discussão

Esta experiência vem aportando algumas importantes contribuições ao sistema de saúde de Salvador, como o acompanhamento de ocorrência de diarréia na população de zero até três anos nas áreas sentinelas, que mostram a não-uniformidade na distribuição da prevalência e da incidência desses episódios nas diferentes áreas, sendo os valores mais baixos observados em crianças residentes nas áreas com melhores condições de saneamento. 18 A comparação desses resultados com aqueles que serão obtidos após a implantação da intervenção ambiental irá indicar o impacto alcançado pelas obras de saneamento.17,19 Também estão sendo conduzidos estudos de prevalência de parasitoses intestinais e de taxas de reinfecção em populações de escolares,20 sobre a situação de saneamento ambiental, soroprevalência e incidência das infecções pelo vírus da dengue,21 fatores de risco da soronegatividade para anticorpos IgG contra o sarampo,22 estudo antropológico do processo perceptivo quanto à situação ambiental,23 entre outros. A partir das características ambientais e sociais das áreas sentinelas e utilizando-se de técnicas classificatórias multi-variadas (análise de componente principal e de cluster), essas 30 áreas sentinelas foram agrupadas em quatro estratos que mostraram forte correlação entre as condições ambientais e sociais e os níveis de saúde de suas populações.24

Os resultados preliminares de alguns desses estudos já estão apontando para a riqueza e oportunidade de uso dessa estratégia, subsidiando a vigilância epidemiológica da cidade com informações até então desconhecidas, enriquecendo as análises de situação de saúde e propiciando o desenvolvimento de estudos epidemiológicos especiais desenhados pela equipe de investigadores.

Em analogia com a escolha de pontos estratégicos para o monitoramento de poluição ambiental, as áreas sentinelas constituem pontos hierárquicos de observação, representados pelos espaços populacionais, onde se acompanham traçadores específicos de problemas de saúde, econômicos e sociais com potencial para gerar conhecimentos que contribuam para o entendimento da estrutura epidemiológica das populações sob vigilância, em cada contexto.9

Essa dinâmica alimenta a formulação de diagnósticos dos problemas de saúde e conseqüentes definições de processos de intervenção específicos para cada situação particular.

A generalização ou extrapolação a partir de informações geradas com o emprego dessa estratégia é possível, à medida que se incorpore ao conceito de áreas sentinelas a noção de "representatividade qualitativa". Para possibilitar a inferência, ao invés de utilizar argumentos formais como acontece na "representatividade" estatística, baseados em probabilidades estimadas a partir das propriedades das distribuições estatísticas obtidas de grande número de amostras, a representatividade sustenta-se em argumentos substantivos, considera os conhecimentos pré-existentes sobre o universo e as unidades espaço-populacionais estudadas para formar elementos de juízo sobre diferenças e semelhanças encontradas. A pertinência deste argumento encontra-se no fato de essa estratégia não estar direcionada para o conhecimento quantitativo e, sim, para a detecção de indícios de alterações nos padrões normais ou de ocorrência de novos problemas de saúde. As modificações dos padrões epidemiológicos devem servir como "vozes de alerta" para motivar e orientar a intervenção, detectar impacto ou mesmo indicar a necessidade de execução de estudos especiais.9

Estratégia dessa natureza foi implantada pelo UNICEF, em 1986, na Guatemala, e, posteriormente, na Nicarágua e Honduras, para estudar tendência de mortalidade infantil, cobertura vacinal, conhecimento e uso de terapia de reidratação oral, grau de alfabetização, entre outros, cujos resultados se vêm constituindo em fonte complementar e elemento irradiante do sistema rotineiro de informações.15

 

Comentários finais

A essência dessa estratégia está na possibilidade de permitir uma maior aproximação com a realidade concreta dos fenômenos interativos que permeiam o processo saúde-doença, ao privilegiar o espaço geográfico enquanto categoria de estudo, incorporado do caráter histórico e social do seu processo de ocupação, parte inerente aos determinantes das condições de vida. Especialmente quando se trata de grandes metrópoles, a importância do espaço reveste-se de maior significado por conter elementos de diversas origens e idades com multiplicidade de relações de capital, trabalho e cultura.25 São inerentes às áreas sentinelas duas características fundamentais que evidenciam as potencialidades desta metodologia como estratégia complementar para superação de alguns limites e deficiências dos sistemas de informações em saúde. A primeira diz respeito à própria concepção: permite a identificação dos problemas de saúde em uma escala temporal mais próxima da ocorrência dos eventos; possibilita proceder a levantamentos e análises de informações nos diferentes contextos sociais representados pelas distintas tipologias de cada área sentinela; contribui para o estudo de processos e condições que estão fora do alcance das estratégias tradicionais; e viabiliza a incorporação de outros elementos (percepção, comportamentos e atitudes) nas análises e intervenções. A segunda característica refere-se à sua operacionalidade e custo que são passíveis de ser absorvidos pelos níveis locais do sistema de saúde, desde quando utilizem a infra-estrutura de recursos humanos e materiais pré-existentes e limitem-se a um pequeno universo localizado no interior dos seus territórios de abrangência.

O estudo em profundidade de áreas delimitadas pode possibilitar procedimentos de análises de um grande número de variáveis, importantes para a orientação dos processos de intervenção no campo da Saúde Pública, na medida em que a cada perfil de necessidade corresponde um perfil de problemas; e que estes podem estar expressos diferentemente em distintos espaços sociais compreendidos como expressão das condições de vida da população.26

Pela oportunidadade de oferecer outros elementos não captados pelo sistema de informações tradicional, aliada à possibilidade de utilização do potencial facultado pelos recursos da epidemiologia, essa estratégia permite o desenvolvimento de estudos de forma mais simples, mantendo-se o rigor científico e a rapidez na incorporação das inovações, tecnologias e informações geradas no sistema de produção técnico-científica, além de informar sobre fatores de exposição, freqüência, distribuição espacial dos fenômenos de saúde-doença, viabilizando o delineamento de um quadro mais próximo da realidade.

Entre as aplicações dessa estratégia, destacam-se: o acompanhamento de eventos de elevada magnitude que componham ou não a relação das doenças sob vigilância; o levantamento oportuno de dados sobre assistência à saúde individual e coletiva; os inquéritos específicos, abrangendo desde informações sobre a percepção dos problemas de saúde até as estimativas de prevalência de marcadores biológicos específicos; os levantamentos de dados sobre o contexto ambiental e socioeconômico das populações; e, principalmente, as contribuições para as análises de situação de vida e saúde. Entende-se, portanto, que essa estratégia poderá contribuir para o redirecionamento e aprimoramento das práticas de intervenção em saúde.

 

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Endereço para correspondência:
Instituto de Saúde Coletiva
Rua Padre Feijó, 29, 4o andar,
Salvador-BA,
CEP: 40110-170.
E-mail:magloria@ufba.br

 

*Publicado anteriormente em inglês, em: Cadernos de Saúde Pública 2002 Set-Out; 18(5):1189-1195.

Reprodução autorizada pelos editores.