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Epidemiologia e Serviços de Saúde

versión impresa ISSN 1679-4974versión On-line ISSN 2237-9622

Epidemiol. Serv. Saúde v.12 n.3 Brasília sep. 2003

http://dx.doi.org/10.5123/S1679-49742003000300002 

ENSAIO

 

Promoção da saúde e intersetorialidade: a experiência da vigilância em saúde do trabalhador na construção de redes

 

Health promotion and intersectoriality: experience of occupational health surveillance in the construction of networks

 

 

Jorge Mesquita Huet MachadoI; Marcelo Firpo de Souza PortoII

ICoordenação de Saúde do Trabalhador/Fiocruz, Rio de Janeiro-RJ
IICentro de Estudos da Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana da Escola Nacional de Saúde Pública/Fiocruz, Rio de Janeiro-RJ

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo deste trabalho é sistematizar a experiência do campo da Saúde do Trabalhador diante das temáticas da promoção da saúde e da intersetorialidade. São apresentados os limites, possibilidades e avanços da introdução do conceito de vigilância como organizadora das ações de saúde, e a possibilidade de construção de redes institucionais a partir da definição de um objeto – no caso, a relação entre processo de trabalho e saúde, objeto da saúde do trabalhador. Essa possibilidade é caracterizada por uma vasta gama de instituições, setores governamentais e atores sociais envolvidos no campo da saúde do trabalhador. As estratégias de vigilância em saúde do trabalhador (VST) desenvolvidas têm servido para demonstrar as possibilidades e dificuldades de ações intersetoriais de promoção e prevenção. A trajetória da saúde coletiva no país – e da saúde do trabalhador em particular – possui origens históricas e conceituais paralelas às da promoção da saúde, sendo ainda necessárias uma maior reflexão crítica e capacidade de síntese resultantes das discussões conceituais e práticas de saúde no âmbito do SUS. O campo da Saúde do Trabalhador, certamente, pode contribuir nesse debate, principalmente no que tange às ações intersetoriais e coletivas de promoção da saúde voltadas às estratégias de transformação dos processos e ambientes de trabalho, por meio da construção de redes sociais e institucionais que dêem suporte às ações de VST.

Palavras-chave: promoção da saúde; intersetorialidade; vigilância em saúde do trabalhador.


SUMMARY

This article aims to systematize the experience in the area of occupational health in Brazil in connection with the discussions about health promotion and intersectoriality. It introduces the limits, possibilities and progress related to the concept of surveillance as the organizer of health actions, and the possibility of the construction of institutional networks starting from the definition of a subject – in this case, a relation between work and health with a focus in occupational health. This field is characterized by a vast array of institutions, government sectors and social actors involved in occupational health. The surveillance strategies developed in this field can be used to demonstrate the possibilities and difficulties in implementing health promotion practices through intersectorial and preventive actions. The path of the Brazilian collective health – and in particular the occupational health field – possesses historical and conceptual origins which are not exactly the same as health promotion. We consider a larger critical reflection necessary resulting in conceptual discussions and practices of health praxis in the context of the National Unified Health System (SUS). The field of worker's health can certainly contribute to this debate, mainly related to intersectorial and collective actions of health promotion which aim to transform the processes environment at work by the construction of social and institutional networks supportive of occupational health surveillance.

Key words: health promotion; intersectoriality; occupational health surveillance.


 

 

Introdução

O objetivo deste trabalho é sistematizar a experiência do campo da Saúde do Trabalhador diante da temática da promoção da saúde e da intersetorialidade. Esse campo, assim como o campo da Saúde Ambiental, é caracterizado por uma vasta gama de instituições, setores governamentais e atores sociais envolvidos. As estratégias de promoção e vigilância em saúde do trabalhador, desenvolvidas nos últimos 15 anos de práticas do SUS, têm servido para demonstrar as possibilidades e dificuldades de ações intersetoriais de promoção e prevenção. Além das instituições públicas envolvidas – como o SUS, os Ministérios do Trabalho e da Previdência Social, os Ministérios Públicos, o órgão ambiental regional e o poder legislativo – o conceito de intersetorialidade inclui a participação dos trabalhadores e suas representações como elemento fundamental para a garantia de qualidade técnica e política das ações em saúde do trabalhador. Uma das estratégias desenvolvidas pela área consiste na construção de redes de cooperação entre diversas instituições, sindicatos e organizações não-governamentais (ONG) visando garantir a continuidade e qualidade das ações, bem como potencializá-las diante de problemas concretos de saúde do trabalhador. Algumas experiências de vigilância envolvendo a construção de redes interinstitucionais são analisadas neste trabalho.

 

Limites e possibilidades de avanço da(s) vigilância(s)

Uma questão fundamental para a promoção da saúde refere-se à mudança dos modelos médico-assistencialista e assistencial-sanitarista, ainda hegemônicos na Saúde Pública.1

Em consonância com esses modelos, a vigilância está baseada no modelo ecológico da doença e na epidemiologia clássica, tendo por objeto o controle dos modos de transmissão das doenças e dos fatores de risco, o qual possibilita uma certa governabilidade e eficácia de suas ações no âmbito intra-setorial da Saúde, principalmente para as doenças infectocontagiosas clássicas. Nessa concepção, a vigilância inclui o monitoramento do ambiente (como vetores, alimentos e água para consumo humano) e de possíveis casos de doenças, que passam a servir como eventos sentinelas, em articulação com análises epidemiológicas. Uma série de estratégias pode ser utilizada para o controle e prevenção das doenças, como vacinação, controle de vetores, de alimentos e de água para consumo humano; ou ainda, a criação de barreiras de isolamento de regiões ou pessoas contaminadas.

A eficácia desse modelo restrito às ações intra-setoriais do setor Saúde foi questionada pela medicina social, base da saúde coletiva brasileira, que coloca como paradigma uma outra visão de processo saúde-doença, centrada nos processos sociais que promovem ou agravam a saúde das populações de uma dada sociedade. Novos focos de análise passaram a fazer parte da Saúde Pública, reorientada pela incorporação das ciências sociais e humanas. Nessa perspectiva, os limites das ações de vigilância esbarram em características da própria sociedade, como o nível de eqüidade, de distribuição de renda e de participação da população na construção das políticas públicas e no controle das ações de governo.

Os princípios de construção do SUS desenvolveram-se à luz dessa visão: a melhora da qualidade de vida e saúde da população não se limita apenas ao sistema de saúde em si, mas depende de como a sociedade se organiza e prioriza suas necessidades. É preciso universalizar a Saúde, descentralizar suas ações e abrir a gestão do sistema à participação da população. Muitos avanços têm ocorrido desde então, em especial com a criação dos conselhos de saúde, nos três níveis de gestão, e com o processo de preparação e realização das Conferências Nacionais de Saúde.

Contudo, tais avanços não são, em si, suficientes para redirecionar os paradigmas médico-assistencialista e sanitarista que compõem as ações clássicas do setor Saúde. De um lado, o contexto político internacional e nacional da década de 90 não chegou a ser favorável a mudanças sociais mais radicais, com um quadro socioeconômico que vem mantendo – ou mesmo ampliando – a exclusão social. O sistema de saúde continua pressionado pela demanda assistencial das populações mais carentes e por uma crise financeira agravada pelo déficit público e pela política econômica em curso.

De outro lado, as práticas clássicas de vigilância ainda não sofreram mudanças estruturais, embora tenham ocorrido avanços localizados, como, por exemplo, na formação de recursos humanos e na infra-estrutura institucional. Essas práticas ainda se mantêm isoladas entre os próprios setores clássicos da vigilância, com recortes específicos de objeto de controle e intervenção. Na vigilância epidemiológica, pelo controle das doenças, definição de eventos sentinelas, implementação de medidas emergenciais de tratamento e isolamento dos pacientes, bem como pelo direcionamento das ações de vigilância sanitária e ambiental. Na vigilância sanitária, enfoca-se o controle dos serviços de saúde, dos fármacos e dos produtos gerais de consumo humano, como alimentos e produtos de uso doméstico. Por fim, na vigilância ambiental, privilegia-se o controle de fatores ambientais biológicos e não biológicos como vetores, animais transmissores da raiva, água de consumo humano e, mais recentemente, fatores físicos e químicos relacionados à contaminação ambiental.

Essa setorialização da vigilância refere alguns problemas centrais para o desenvolvimento das ações de promoção e prevenção. Não ficam claros o papel e os limites das ações intra-setoriais da Saúde, como, quando e de que forma devem ser desenvolvidas ações intersetoriais.

A lógica clássica de intervenção sanitária, simplesmente, não dá conta de uma série de problemas de saúde que não cabem nos “compartimentos setoriais” das vigilâncias, como as causas externas e as doenças crônico-degenerativas, os campos da Saúde do Trabalhador e da Saúde Mental.

Obviamente, quanto mais distantes da lógica do modelo assistencial-sanitarista são os processos saúde-doença, maior será a necessidade de serem construídas práticas alternativas que superem seus limites intrínsecos. Não existem “vacinas” contra acidentes de trânsito, tampouco substâncias que possam “higienizar” ambientes gerais ou de trabalho contaminados que, mais tarde, podem levar ao câncer as pessoas expostas. Nesses casos, quanto mais são analisadas as gêneses desses riscos e seus efeitos, mais se encaminha para um emanharado de políticas públicas, práticas sociais e processos decisórios que se encontram fora do âmbito do setor Saúde.

Epistemologicamente, trata-se de verificar os atuais reducionismos e possibilidades de avanços conceituais e metodológicos perante os processos saúde-doença mais complexos. Em termos políticos e institucionais, significa avançar nas práticas intersetoriais e de relação com a sociedade, para que os critérios de saúde estejam cada vez mais presentes no conjunto dos processos decisórios e nas políticas públicas que acabam por afetar a saúde das comunidades. Em outras palavras, a saúde da população encontra-se menos na rede assistencial e mais no modelo de desenvolvimento de um país e região, que propicia ou não condições e recursos para que as pessoas vivam mais e bem.

O entendimento dos processos mais importantes, em termos de determinantes e condicionantes da saúde, é a principal base para a construção de novas práticas de promoção. Esse conhecimento deve incluir a compreensão tanto das características do modelo de desenvolvimento quanto da gênese dos riscos e respectivas populações expostas, em um determinado período e região, a partir dos processos sociopolíticos, socioeconômicos, culturais, tecnológicos, produtivos, legais, institucionais, entre outros.

A discussão sobre Vigilância da Saúde1 segue nessa direção, ao propor as bases de um novo modelo de vigilância que busque superar os paradigmas médico-assistencialistas e sanitários, em consonância com a propostas de promoção da saúde. Nessa nova concepção, o objeto das ações de saúde caminharia no sentido do dano para os riscos, necessidades e determinantes dos modos de vida e saúde. A forma de organização desse modelo privilegiaria a construção de políticas públicas, atuação intersetorial e intervenções particulares e integradas de promoção, prevenção e recuperação em torno a problemas e grupos populacionais específicos, tendo por base do planejamento das ações as análises de situações de saúde nos territórios.

Entretanto, essa proposta ainda necessita de uma maior reflexão conceitual e metodológica, pois não discute o significado e a operacionalização das ações intersetoriais, restringindo-se às ações intra-setoriais do setor Saúde, muitas vezes não articuladas entre si. Um exemplo pode ser observado na implantação dos programas de Saúde da Família (PSF) e dos Agentes Comunitários de Saúde (PACS), ainda voltados para uma perspectiva que enfatiza as ações assistenciais e intra-setoriais. Por sua vez, o atual estágio de implementação da vigilância ambiental pelos Estados e municípios, bem como as mudanças organizacionais que acontecem em diversas Secretarias de Estado de Saúde, que visam integrar as distintas vigilâncias em função das concepções mais abrangentes de promoção e de vigilância à saúde, deverão fornecer subsídios permanentes para a reorientação do modelo assistencial-sanitarista, ainda hegemônico em nosso sistema de saúde.

 

Vigilância em saúde do trabalhador e a construção de redes

O conceito de Vigilância em Saúde apresenta distintas formulações e entendimentos. Pode ser visto de forma restrita, como monitoramento de doenças resultante da conjugação do atendimento clínico e do acompanhamento de populações expostas por meio de indicadores biológicos de exposição e de efeitos subclínicos – como induz a tradução da expressão inglesa medical surveillance.2 Esse entendimento, a nosso ver, refere-se exclusivamente à vigilância médica3 ou vigilância da saúde.4

Por outro lado, o conceito de Vigilância também está associado às ações sistemáticas de coleta, análise e disseminação de dados, de acordo com a XXI Assembléia Mundial de Saúde de 1968 e, mais genericamente, às recomendações de articulação com serviços, programas de saúde e pesquisas epidemiológicas enunciadas pelo conceito de Vigilância em Saúde Pública proposto por Thacker e Berkelman5 – e adotado pelos Centros de Controle e Prevenção de Doenças nos EUA (CDC). Essas concepções podem ser sintetizadas no entendimento de que “vigilância é informação para ação”, conforme apresentado por Wunsch Filho e colaboradores,6 tendo como referência a vigilância epidemiológica restrita à coleta, análise e programação de ações de detecção de situações de risco. Essa referência pode servir de ponto de partida para ações de intervenção, que, teoricamente, encontram-se no campo de ação da vigilância; sua prática, porém, ao requerer outros métodos e técnicas, não se adequa ao modelo de organização de serviços existentes nos sistemas de saúde. Vigilância é informação para ação, pressupondo que as ações pertençam ao campo da vigilância.

Deve ser destacado o fato de que equiparar a vigilância em saúde – e, em conseqüência, a vigilância em saúde do trabalhador (VST) – às concepções restritas de vigilância da saúde (ou vigilância médica) e vigilância epidemiológica, mais do que configurar questões semânticas, tem conseqüências importantes na definição de competências institucionais relativas à possibilidade de incorporação de ações de intervenção nos ambientes de trabalho, limitando as possibilidades de ação e seu impacto na saúde dos trabalhadores.

Essas definições estão em consonância com o conceito de Vigilância em Saúde definido por Mendes,7 que situa as ações de saúde no âmbito de um dado território, o distrito sanitário, propondo uma mudança de referência em relação ao modelo assistencial tradicionalmente adotado. A nova perspectiva inclui promoção de saúde, atuação nos determinantes sanitários, coleta, análise e disseminação de informações sanitárias e atenção clínica. De acordo com esse modelo, estabelecer o território como elemento integrador das ações de registro e análise da informação, de promoção, de prevenção e de assistência à saúde dos trabalhadores é essencial na concepção de VST aqui apresentada.

As ações em saúde do trabalhador no Brasil iniciaram-se em meados dos anos 80, influenciadas pelas contribuições da medicina social latino-americana e da reforma sanitária italiana.

De acordo com vários autores,8-10 as características básicas do campo de práticas e saberes denominado Saúde do Trabalhador são:

• a busca da compreensão das relações entre o trabalho, a saúde e a doença dos trabalhadores, para fins de promoção e proteção – nesta, incluída a prevenção de agravos, além da assistência mediante o diagnóstico, o tratamento e a reabilitação;

• a ênfase na necessidade de transformações dos processos e ambientes de trabalho, com vistas à sua humanização;

• a abordagem multiprofissional, interdisciplinar e intersetorial, para que a relação saúde-trabalho seja entendida em toda a sua complexidade;

• a participação fundamental dos trabalhadores como sujeitos no planejamento e implementação das ações; e

• a articulação com as questões ambientais, já que os riscos dos processos produtivos também afetam o meio ambiente e a população geral.

No SUS, a vigilância em saúde do trabalhador vem sendo construída com esse espírito, conforme prevê a Lei No 8.080/90, nas diversas experiências desenvolvidas por programas, centros de referência, serviços, núcleos ou coordenações em Estados e municípios. Essas experiências possuem diferentes graus de organização, competências, atribuições, recursos e práticas de atuação. O processo é desencadeado por grupos institucionais localizados em vários pontos do Brasil e as diferenças observadas estão relacionadas às potencialidades regionais, que giram em torno da força e qualidade da organização dos trabalhadores diante das questões de saúde. Em termos institucionais, essas potencialidades dependem das políticas regionais e da estrutura organizacional, da capacidade instalada, da qualificação dos profissionais envolvidos e de influências advindas das instituições acadêmicas.

Essas experiências deram-se paralelamente aos modelos assistencial e sanitarista vigentes, gerando desconfortos para a inserção dessas atividades dentro das estruturas clássicas do SUS e da vigilância, com atuações freqüentemente periféricas às ações das vigilâncias epidemiológica e sanitária. Além disso, houve muitas dificuldades de inserção na estrutura assistencial, com falhas na cobertura do conjunto dos trabalhadores pela rede regionalizada, hierarquizada e integral proposta para o SUS.

Entretanto, a saúde dos trabalhadores constitui um dos objetos integradores das ações de Saúde Pública, por seu potencial articulador das ações de vigilância sanitária, de vigilância epidemiológica e de serviços de saúde, as três grandes áreas de atuação do setor Saúde, segundo Cordoni.11 Essa rede interna, de caráter intra-setorial, é estabelecida pelo desenvolvimento sistemático das ações de VST e amplia-se para um conjunto de instituições e atores sociais, configurando uma série de pontes intersetoriais.

Esquematicamente, a Figura 1 apresenta uma rede de vigilância em saúde do trabalhador a partir do foco das ações em saúde do trabalhador, ou seja, a relação entre o processo de trabalho e a saúde, e as esferas que condicionam a qualidade do trabalho nas empresas.

 

 

No centro dessa rede, como objeto em torno do qual ela é tecida, estão os trabalhadores e o ambiente de trabalho. Essa estrutura apresenta dois pólos dinâmicos e fundamentais: o dos representantes dos trabalhadores e o das empresas. As instituições constituem pontos de encontro e de desencadeamento de ligações em várias camadas concêntricas e polares, que correspondem ao tipo de poder de intervenção no núcleo em questão.

Freqüentemente, as redes de VST são constituídas, a partir de seus núcleos, por denúncias dos trabalhadores envolvidos diretamente em situações de risco ou que se tornaram casos de doenças relacionadas com o trabalho. Essas denúncias chegam às instituições via representantes e comissões dos trabalhadores, Comissões Internas de Prevenção de Acidentes (CIPA), associações, sindicatos, centrais sindicais, ONG e mídia em geral.

As instâncias executivas da rede de VST representam a primeira camada ou nível de contato direto com o núcleo – trabalhador e ambiente de trabalho –, sendo as duas instituições principais o SUS e o Ministério do Trabalho.

O SUS exerce função múltipla, configurando um espaço estruturador de conexões das redes. Em sua estrutura encontram-se, basicamente, os serviços assistenciais, de vigilância epidemiológica e sanitária e os programas de saúde do trabalhador. Esses programas representam os focos de articulação de ações do próprio SUS, e deste com outras instituições. Eles executam, diretamente, as funções de referência clínica, vigilância sanitária e epidemiológica dos agravos relacionados ao trabalho, constituem um subsistema de vigilância em saúde do trabalhador e desencadeiam um processo de vigilância por meio da integração das ações em torno de casos específicos.

O Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) compõe com as Delegacias Regionais de Trabalho (DRT), na qualidade de ator, a rede que gravita entre o pólo empresarial e o dos trabalhadores, em contato direto com seu núcleo. Desenvolve ações de inspeção aos locais de trabalho; de articulação, por meio da coordenação de fóruns; e de mediação de acordos entre trabalhadores e empresas. Sua característica institucional mais relevante é o amplo reconhecimento do seu poder de policiamento e normatização no campo das relações entre trabalho e saúde – embora suas ações de inspeção ainda sejam criticadas por se restringirem às normas, em um processo fiscalizador pontual e pouco participativo.9

As ações desenvolvidas pela própria empresa correspondem ao segundo pólo do núcleo da rede de vigilância. São exercidas, nas grandes empresas, pelos Serviços Especializados em Engenharia de Segurança e Medicina do Trabalho (SESMT); ou, nas pequenas empresas, pela própria gerência. Essas ações de cuidados imediatos com o ambiente e com os trabalhadores são as primeiras a serem analisadas e modificadas em um processo de vigilância. Os processos de vigilância têm ocasionado mudanças significativas nas práticas gerenciais e nos serviços especializados em engenharia de segurança e em medicina do trabalho das empresas, particularmente daquelas de maior porte e com alto risco.

Instituições que compõem uma rede de vigilância em saúde do trabalhador, como os órgãos ambientais, as Secretarias de Estado de Trabalho, as instâncias ligadas à previdência social – como a perícia médica e a reabilitação – e os órgãos de planejamento e de desenvolvimento econômico e social, entre outros, situam-se, pelo aspecto executivo e complementar de suas ações, no interstício entre a primeira e a segunda camada.

Ainda nesse nível, destacam-se as articulações com o Ministério Público Estadual e o Ministério Público do Trabalho. São atores com maior poder de investigação e persuasão, que impulsionam processos de negociação com as empresas e de conscientização do empresariado, utilizando como instrumento de compromisso os chamados termos de ajustamento de conduta. As ações do Ministério Público ocorrem, principalmente, em situações críticas de maior conflito e resistência, e funcionam como elemento desestabilizador de práticas gerenciais atrasadas e ainda freqüentes em vários setores econômicos e regiões do país.

Em uma segunda camada de apoio, destacam-se as ações desencadeadas por projetos acadêmicos e de ensino, desenvolvidas principalmente por instituições da saúde coletiva. Elas têm colaborado na estabilização de experiências mediante suporte técnico-científico, divulgação e apoio interdisciplinar em casos de maior complexidade. São, ainda, fundamentais na formação de novos profissionais e na legitimação técnica, possibilitando uma contraposição ao saber empresarial. A relativa estabilidade de algumas ações regionais do SUS constitui, na cooperação com instituições acadêmicas, um importante componente contra a vulnerabilidade institucional.

Em uma terceira camada, encontra-se a esfera estratégica de negociação e definição de políticas públicas, de leis e acordos desenvolvidos por ações intersetoriais em diferentes níveis de agregação, do local ao global, como o geográfico (distrito/município/Estado/país/âmbito internacional), institucional (saúde, trabalho, meio ambiente, previdência social, Ministérios Públicos, representações políticas no Congresso Federal/assembléias estaduais/câmaras de vereadores) e econômico (empresa/ramo econômico ou grupo de empresas por tipo de risco).

As instâncias interinstitucionais de integração – convênios, comissões, grupos gestores, câmaras técnicas e conselhos – são elementos de condução política do processo de vigilância que desenvolvem ações de planejamento e avaliação das atividades, representando espaços formais de fortalecimento das ligações entre os pontos da rede de vigilância e compondo o seu tecido. Elas estabelecem uma ponte entre a VST e a sociedade organizada, como sindicatos e ONG. Uma das razões da força de algumas ações de VST em certos Estados e municípios encontra-se na existência e continuidade dessas instâncias – como conselhos estaduais e municipais de saúde do trabalhador –, viabilizando tais articulações.

A mídia, última camada no esquema proposto, desempenha função de contato com a sociedade em que estão inseridos os processos de vigilância, sendo, portanto, estrategicamente importante para a visibilidade e a legitimização social das ações. A mídia contribui para a formação de consensos sociais em torno de certas situações de risco, apresentando-as como inaceitáveis e transformando-as em prioridades. Aqui, o setor Saúde possui um importante papel, fornecendo à sociedade informações sobre o sofrimento de trabalhadores e seus familiares em função de mortes e doenças decorrentes dos riscos existentes – e mal gerenciados – nos processos de trabalho.

A colaboração da mídia tem sido, freqüentemente, restrita e contraditória, com a publicação de histórias e dados descontextualizados e descontínuos que banalizam a morte de trabalhadores “subcidadãos” e não enfrentam empresas de grande poder econômico. Mas, quando esse bloqueio é furado e escândalos são divulgados por órgãos de imprensa e jornalistas com maior independência, a imagem de confiabilidade da empresa é questionada pela revelação dos perigos e efeitos, colocando em xeque o gerenciamento empresarial artificial adotado, que nega a existência dos riscos e tenta responsabilizar os próprios trabalhadores por suas mortes e doenças.

As estratégias de vigilância e construção de redes devem passar a levar em consideração a opinião pública, em especial nas regiões de maior concentração de riscos, como os pólos industriais, onde as populações de seus entornos sejam alvo de programas educacionais específicos, gerando uma consciência ecológica e uma preparação para situações de emergência.

As redes construídas a partir das ações de VST devem ser compreendidas como extremamente dinâmicas, de estabilidade provisória, traduzindo a conjunção e integração de diferentes protagonistas e interesses nas ações frente a determinados problemas específicos, bem como a força dos trabalhadores e do setor Saúde na sociedade. A construção de redes, nesses casos, surge como estratégia de fortalecimento de um ator – o SUS – incapaz, isoladamente, de dar conta de problemas freqüentemente complexos, tanto na sua origem quanto na sua solução.

Essa articulação em redes associando, de diferentes formas, inúmeros e heterogêneos atores, não significa a diluição da importância do papel do SUS. O setor Saúde, nesse modelo, funciona mais propriamente como um catalisador do que um executor das várias ações de promoção, dependentes de outros setores.

Ao construir determinadas redes, também podem ser desarticuladas outras, dado que o comportamento vigente dos vários atores reflete estruturas de poder e práticas culturais que precisam ser superadas, para que outras, mais efetivas, tomem o seu lugar.

Nesse processo, inevitavelmente, ocorrem transformações dos objetivos iniciais, pois a construção de uma rede de protagonistas heterogêneos, a partir de diferentes relações (formais e informais), implica um processo simultâneo de negociação. Como resultado desse processo por excelência, transformam-se os objetivos iniciais de um ator em objetivos definidos coletivamente, a partir das diversas possibilidades e necessidades dos diferentes atores. A base ética de defesa da Saúde é a mola propulsora dessas ações.

Varias ações e redes construídas em referência a casos com características comuns, ou o aprofundamento das relações interinstitucionais, podem e devem gerar instâncias mais estruturadas, como núcleos institucionais permanentes em torno de problemas específicos de saúde. Esses núcleos, por sua vez, passam a ser pólos de construção de novas redes e de formulação metodológica interdisciplinar e interinstitucional. Esse processo ainda se encontra bastante incipiente e a função de formulação tem-se concentrado, freqüentemente, em instâncias acadêmicas com práticas de apoio às ações de VST.

Entretanto, o modelo de Rede de Vigilância em Saúde do Trabalhador, aqui apresentado, tem um desafio maior do que esse, de integração institucional, que é o de permear as práticas das empresas tornando-se referência para a transformação das políticas e culturas empresariais no sentido da defesa da saúde dos trabalhadores nos locais de trabalho.

 

Conclusão

São muitos os exemplos, em todo o país, de experiências de ações intersetoriais de saúde do trabalhador. O poder legislativo tem sido cenário importante para discutir problemas, indicar políticas públicas e definir leis, gerando diretrizes a serem seguidas pelos órgãos executivos e empresas. Os espaços interinstitucionais de negociação e estabelecimento de políticas públicas no poder executivo, como o Grupo Executivo Interministerial de Saúde do Trabalhador (GEISAT), que reúne os Ministérios da Saúde, Trabalho e Previdência Social, têm sido, sistematicamente, inviabilizados pela falta de políticas integradas para essa área na esfera federal.

Os limites constatados nas ações regionais de VST refletem a fragmentação e descontinuidade políticas, com instituições que possuem culturas e práticas diferenciadas. Outra limitação refere-se ao nível local da Saúde, seus programas e unidades, que deveriam ampliar as concepções de território e análises de situação de saúde visando incluir, além dos moradores e usuários dos serviços locais, os trabalhadores e ambientes de trabalho como objetos de investigação e intervenção no conjunto das questões locais de saúde, integrando-os em uma concepção ampliada de desenvolvimento regional e local sustentável.

Nesse sentido, os modelos emergentes no interior do SUS, como os programas de Saúde da Família e de Agentes Comunitários de Saúde, tendem a excluir importantes problemas de saúde da população por não corresponderem ao modelo baseado na moradia como foco da clientela do serviço. Consideramos de grande importância a articulação desses programas a um sistema de vigilância à saúde mais abrangente, que leve em consideração o território como base operacional e de planejamento, incorporando problemas como, por exemplo, os traumas por atropelamento, a poluição ambiental e as condições de vida nos canteiros de obras.

As cidades produzem distintas dinâmicas de exposição das populações a diferentes situações de risco e as pessoas passam grande parte de suas vidas nos seus locais de trabalho. Portanto, esses ambientes devem ser encarados como espaços privilegiados para a ação pública.

Na situação atual, em termos gerais, poderíamos afirmar que o modelo de Vigilância em Saúde do Trabalhador brasileiro possui um caráter híbrido, calcado em experiências institucionalizadas e generalizadas de múltiplas facetas, repletas de ações voluntaristas e de personalismos, em contexto institucional desestabilizado. No âmbito das empresas, essa influência tem sido limitada e focal, constituída de ações setoriais e em grandes empresas, na sua relação com os chamados Programas de Saúde do Trabalhador ou Centros de Referência em Saúde do Trabalhador. As ações interinstitucionais, freqüentemente, decorrem de parcerias do SUS com o MTE, os Ministérios Públicos e o poder legislativo.

Como exemplos positivos dessas práticas nos anos 90, podemos destacar a intervenção interinstitucional regional comandada pelo SUS, a partir da lei de substituição de jateamento de areia no setor naval no Rio de Janeiro; e a abordagem da questão do benzeno, substância reconhecidamente carcinogênica, tendo sido criada a Comissão Nacional Permanente de Acompanhamento do Acordo do Benzeno (CNP-Benzeno), comissão tripartite coordenada pelo Ministério do Trabalho e com a participação do Ministério da Saúde, a qual tem procurado eliminar e restringir ao máximo o uso do benzeno, hoje limitado aos setores siderúrgico, químico e petroquímico.

O problema da intersetorialidade é semelhante ao da interdisciplinaridade e envolve as diferentes perspectivas e espaços de poder de corporações e instituições. Além disso, a formação de redes põe em xeque tais concepções, exigindo novos conceitos que contribuam à construção de um diálogo mais amplo e à transformação das práticas sociais e institucionais. Em outras palavras, a construção de redes e de ações interinstitucionais implica, também, a construção de uma nova linguagem integradora entre os campos profissionais e institucionais envolvidos. Uma dificuldade adicional para esse processo refere-se às disputas de poder nos diferentes níveis de governo, que, em função de mudanças na sua condução, vulnerabilizam as instituições pela descontinuidade das políticas setoriais/institucionais em curso e tendem a traçar ações identificadas com o gestor de plantão.

A melhor saída para tais conflitos e descontinuidade de ações que caracterizam essas vulnerabilidades é a construção de instâncias estratégicas articuladoras das redes de vigilância em saúde do trabalhador. Formadas com uma ampla participação institucional e popular, elas permitirão uma flexibilidade e durabilidade das redes constituídas em torno de problemas concretos de saúde. Tais fóruns não se encontram apenas nos conselhos de saúde (ou subconselhos ou comitês de saúde do trabalhador, por exemplo), mas também em outras instâncias articuladoras, como os conselhos estaduais e municipais de meio ambiente e desenvolvimento sustentável. É a busca pela efetivação desses espaços de organização da sociedade que permite a elaboração e implementação de políticas públicas saudáveis, em consonância com a construção da democracia, da cidadania e da justiça social em nosso país.

 

Referências bibliográficas

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Endereço para correspondência:
Av. Brasil, 4365,
Manguinhos, Rio de Janeiro-RJ.
CEP: 21045-900
E-mail:jorgemhm@malaria.procc.fiocruz.br