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Epidemiologia e Serviços de Saúde

versión impresa ISSN 1679-4974versión On-line ISSN 2237-9622

Epidemiol. Serv. Saúde v.12 n.4 Brasília dic. 2003

http://dx.doi.org/10.5123/S1679-49742003000400004 

ARTIGO ORIGINAL

 

A subnotificação de mortes por acidentes de trabalho: estudo de três bancos de dados

 

Sub-notification of deaths due to occupational accidents: a study of three databases

 

 

Paulo Roberto Lopes Correa; Ada Ávila Assunção

Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte-MG

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo do presente estudo é comparar três sistemas oficiais de registros de eventos relacionados à saúde do trabalhador, cruzando as informações existentes dos óbitos por acidentes de trabalho no ano de 1999 e as discrepâncias entre os registros nos bancos consultados. Foi realizado um estudo em três bancos: Sistema de Informação em Mortalidade (SIM), da Secretaria Municipal de Saúde de Belo Horizonte; Sistema de Informação em Acidentes de Trabalho, do SUS de Belo Horizonte (SIAT-SUS/BH); e Sistema de Comunicação de Acidente de Trabalho, do Instituto Nacional de Seguro Social (INSS). Selecionaram-se as declarações de óbito (DO) registradas no SIM, referentes a residentes do Município de Belo Horizonte falecidos no ano de 1999, e estudados os acidentes de trabalho fatais registrados no SIAT-SUS/BH. Finalmente, obteve-se uma lista de benefícios referentes às pensões por morte ocasionada por acidente de trabalho, concedidos pelo INSS. Os resultados do estudo evidenciam uma subnotificação de mortes por acidentes de trabalho. Viu-se que, para uma mudança na situação de saúde dos trabalhadores do país, seria necessário definir o fluxo sistemático das informações entre os órgãos oficiais que agregam esses dados vitais.

Palavras-chave: acidente de trabalho; informação; óbito.


SUMMARY

The objective of this study is to compare three official database systems with information about worker´s health, matching data of deaths due to occupational accidents in 1999 and the discrepancies between the three registration systems. The study was performed using the following databases: The Mortalitiy Information System (SIM) at the Municipal Health Department of Belo Horizonte City, the Occupational Accident Information System of Belo Horizonte (SIAT-SUS/BH) and the Occupational Accident Communication System of the National Institute of Social Security (INSS). The analysis included the death certificates (DO) of Belo Horizonte residents in 1999 registered in SIM, the fatal occupational accidents registered in SIAT-SUS/BH, and a list of indemnification payed by INSS for deaths caused by occupational accidents. The results indicate a sub-notification of deaths due to occupational accidents. It was observed that, to change the situation of workers health in Brazil, it would be necessary to define a systematic information flow among the official instituitions where these relevant data are compiled.

Key words: occupational healths; injuries; information; death.


 

 

Introdução

No Brasil, são escassos os dados diretos que permitem a construção de indicadores gerais e específicos das condições de trabalho e saúde da população.1,2

O número dos acidentes de trabalho fatais permite quantificar e construir alguns indicadores, sendo uma das fontes fidedignas para estimar o potencial de gravidade desses eventos que acometem os trabalhadores. Entre eles, estão os coeficientes de mortalidade, a taxa de letalidade e os riscos potenciais de acidentes graves em determinado ramo de atividade ou empresa.

Os indicadores de saúde dos trabalhadores, baseados nos acidentes de trabalho, permitem uma avaliação das relações entre o homem e o ambiente onde ele exerce o seu trabalho, seu equilíbrio e grande deterioração. São indicadores de fácil identificação e mensuração, desde que o fluxo das informações pertinentes seja bem definido, abrangente e sistemático.

Apesar de os acidentes de trabalho fatais serem indicadores de gravidade de eventos heterogêneos e ocorridos em diferentes momentos do processo de trabalho, eles permitem levantar hipóteses causais de associação com as condições de risco existentes e a sua ocorrência serve para avaliar as medidas adotadas.

Atualmente, é difícil estimar a magnitude dos acidentes fatais ocorridos em situação de trabalho, visto que algumas fontes de informações limitam seus dados a populações circunscritas de trabalhadores. Além disso, nos ambientes de trabalho, a comunicação do acidente sofre as restrições dos contratos de trabalho fragilizados, nos casos da mão-de-obra terceirizada e outros.

Os profissionais da área, incluindo os auditores fiscais e os profissionais da vigilância em saúde do trabalhador, enfrentam dificuldades para avaliar os ambientes de trabalho e acessar os arquivos das empresas.3-5

Soma-se aos fatores citados a parcela significativa de trabalhadores descoberta pela Previdência Social e não contemplada nas estatísticas oficiais de acidentes de trabalho. Ora, os acidentes de trabalho podem atingir tanto a população previdenciária (vinculada ao INSS) quanto a não previdenciária. Portanto, subestima-se o número de acidentes fatais de trabalho ao se analisarem apenas os dados disponibilizados pelos órgãos oficiais.

Não se pode negar que a própria estrutura do sistema de vigilância epidemiológica é muito mais direcionada às doenças infecto-contagiosas, o que contribui para a manutenção da dificuldade em construir informações sobre a situação de saúde dos trabalhadores no Brasil. No conjunto, a mão-de-obra sem cobertura de proteção social e o sub-registro colocam sob suspeita a qualidade, a fidedignidade e a cobertura dos dados oficiais sobre acidentes de trabalho.

Uma alternativa para a busca de informação sobre mortes ocorridas em situação de trabalho, objeto deste artigo, é a consulta combinada de dados armazenados em bancos construídos com objetivos distintos entre si e não diretamente voltados para os indicadores de saúde da população trabalhadora.

A utilização de diferentes fontes de dados para compor indicadores de saúde é uma das estratégias visando aprimorar o conhecimento técnico-científico e possibilitar o planejamento e a avaliação das ações em Saúde Pública.

Para a construção desses indicadores, vários instrumentos e fontes de dados podem ser utilizados, cada um com suas limitações e abrangências. Entre eles, citam-se:

a) o instrumento oficial de registro de acidentes de trabalho no Brasil, denominado Comunicação de Acidente de Trabalho (CAT), e os benefícios que ela pode gerar, uma vez reconhecida pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). No conjunto, a CAT e os benefícios dela decorrentes são registrados no banco de dados da Empresa de Processamento de Dados da Previdência Social (Dataprev), permitindo a elaboração de relatório dos registros compilados no Boletim Estatístico de Acidentes de Trabalho (até 1995) e no Anuário Estatístico da Previdência Social (após 1996);6,7

b) o banco de dados do Sistema de Informação em Mortalidade (SIM) do Ministério da Saúde;8

c) os estudos descritivos originados nos setores de vigilância à saúde do trabalhador do Sistema Único de Saúde (SUS) de secretarias municipais ou de Estado da Saúde. Por exemplo, o Sistema de Informação de Acidentes de Trabalho da Secretaria Municipal de Saúde de Belo Horizonte (SIAT-SUS/BH),1,4 que utiliza a cópia da CAT enviada pelos postos do INSS; e

d) os estudos que realizam cruzamentos de dados registrados nas CAT e nas Declarações de Óbitos (DO).9-12

As Comunicações de Acidentes de Trabalho-CAT

Acidentes de Trabalho-CAT O Sistema de Comunicação de Acidente do Trabalho, desenvolvido pela Empresa de Tecnologia e Informações da Previdência Social (Dataprev), tem o objetivo de processar e armazenar as informações contidas na CAT. Ele supõe um processo de alimentação de informações obrigatório por parte do setor de pessoal da empresa ou empregador, que as envia aos postos de benefícios do INSS para proceder à sua entrada no sistema.

A utilização da CAT com objetivo de estimar a magnitude dos acidentes fatais no Brasil encontra algumas limitações. Entre elas, o fato de os dados restringirem-se aos trabalhadores inseridos na força de trabalho formal, sendo excluídos os funcionários públicos civis e militares das três esferas governamentais, os trabalhadores autônomos, domésticos, liberais, dirigentes de micro, pequenas, médias e grandes empresas que, apesar de terem vínculo previdenciário, não possuem cobertura do seguro social. Assim, a CAT, criada com o propósito de registro legal do trabalhador acidentado, necessita ser aprimorada para cumprir um duplo papel: contribuir como base legal do acidentado; e servir aos objetivos dos sistemas de informação e vigilância em saúde.9,11,13

Lembre-se de que sistemas como o SIAT-SUS/BH, que alimenta o seu próprio banco a partir de cópias das CAT enviadas ao INSS, sofrem os efeitos dos limites citados, existentes na própria fonte do dado. E que também há problemas nas informações reunidas pela Dataprev, pois, além de estarem atreladas à lógica contábil da Previdência Social,3 apresentam falhas de atualização e a subnotificação já é amplamente reconhecida.

O Sistema de Informação em Mortalidade-SIM

Quanto ao SIM, trata-se de um sistema de informação para mortalidade de abrangência nacional, desenvolvido pelo Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (Datasus). Ele consolida todas as declarações de óbito (DO) emitidas pelos profissionais de serviços de saúde e por cartórios de registro civil.

Além de seu caráter jurídico-civil, a DO é um instrumento oficial importante para a quantificação dos agravos fatais na população,9-11 que, recentemente, vem-se tornando uma fonte ágil para enumerar e quantificar os acidentes relacionados ao trabalho, identificar riscos e subsidiar os serviços que trabalham com Vigilância em Saúde do Trabalhador.

Outras fontes

Outras fontes de informação são os inquéritos e levantamentos populacionais, na sua maioria realizados por instituições de pesquisa envolvendo análises conjuntas dos dados do INSS e do SIM, associados ou não à investigação individual ou amostral dos eventos; ou, ainda, a busca ativa de dados em arquivos ou prontuários médicos, entrevistas com trabalhadores, familiares ou empregadores, entre outros.

O presente estudo tem o objetivo de comparar três sistemas oficiais de registros de eventos relacionados à saúde do trabalhador, cruzando informações existentes nos registros de benefícios de pensão por morte decorrente de acidente de trabalho do INSS, no SIM e no SIAT-SUS/BH, quantificando os óbitos por acidentes de trabalho e identificando as coerências e as possíveis discrepâncias existentes entre eles.

 

Metodologia

Foi realizado um estudo descritivo mediante o cruzamento das informações disponíveis em três bancos de dados oficiais: Sistema de Comunicação de Acidente de Trabalho do INSS, por meio do cadastro de benefícios concedidos por morte por acidente de trabalho; Sistema de Informação em Mortalidade (SIM); e Sistema de Informação de Acidentes de Trabalho da Secretaria Municipal de Saúde de Belo Horizonte (SIAT-SUS/BH).

Para construção da base de dados do estudo, obteve-se uma lista de benefícios de espécie B93 (codificação do INSS) referentes às pensões por morte ocasionada por acidente de trabalho, concedidas em 1999. Essa base de dados foi colocada à disposição pela Dataprev do Município do Rio de Janeiro, haja vista que, nos registros dos postos do INSS de Belo Horizonte, não havia o nome do previdenciário que gerou o processo de pensão por morte no trabalho (instituidor). Foram excluídos os pedidos de pensão deferidos pelo INSS em 1999, referentes a instituidores que faleceram em anos anteriores.

Quanto ao SIM, selecionaram-se as declarações de óbito registradas no referido banco e que diziam respeito aos residentes do Município de Belo Horizonte, falecidos no ano de 1999.

Finalmente, foram selecionados os acidentes de trabalho fatais do ano de 1999 registrados no SIAT-SUS/ BH, a partir das cópias das CAT enviadas pelos postos do INSS à Secretaria Municipal de Saúde.

Adotou-se a seguinte metodologia para cruzamento dos três bancos de dados:

a) a lista de benefícios de pensão por acidentes de trabalho (B93) continha o nome do instituidor, a data do óbito e do nascimento do trabalhador, o nome da mãe e os registros de identidade civil. Foi realizado o cruzamento dessa lista com os óbitos existentes no SIM e no SIAT-SUS/BH, utilizando as seguintes variáveis: nome do instituidor/falecido – validados pelas data de nascimento e de óbito – e nome da mãe, presentes nas três fontes de dados pesquisadas;

b) reciprocamente, realizou-se o cruzamento dos óbitos existentes no SIM com os dados dos outros dois bancos; e

c) os registros do SIAT-SUS/BH foram cruzados com os dados do SIM e da lista de benefícios B93 do INSS.

 

Resultados

Análise dos dados disponíveis no SIM

Em 1999, no Município de Belo Horizonte, ocorreram 13.010 óbitos (excluídos os óbitos fetais), sendo 7.099 (55%) no sexo masculino e 5.904 (45%) no feminino (excluídos sete óbitos com sexo ignorado).

Desse total de óbitos, 5.719 (44%) ocorreram na faixa etária de 15 a 64 anos de idade, sendo 3.671 (64%) no sexo masculino e 2.048 (36%) no feminino – uma razão homem:mulher de 1,8:1.

Entre as causas básicas de mortalidade, tendo por referência a classificação da Décima Revisão da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde,14 as causas externas foram responsáveis por 1.445 (11%) do total de óbitos. Considerando a faixa etária de 15 a 64 anos, ocorreram 1.167 (20%) óbitos por causas externas. Em apenas 134 (2%) das DO correspondentes a essa faixa etária, o campo acidente de trabalho estava preenchido.

Dos 29 óbitos relacionados ao trabalho registrados no INSS ou no SIAT-SUS/BH, encontrou-se, no SIM, o campo acidente de trabalho da DO em branco para 21 casos. Para os 8 restantes, em 2 casos, o campo estava preenchido como causa ignorada; em 3 casos, o campo estava preenchido com causa não relacionada ao trabalho; e em apenas 3 casos, o campo registrava causa relacionada ao trabalho (Tabela 1).

 

 

Observou-se que 4 óbitos causados por acidentes de trabalho, registrados no campo acidente de trabalho do SIM, não foram encontrados nos outros bancos estudados.

Análise dos dados disponíveis no SIAT-SUS/BH

No banco do SIAT-SUS/BH, encontrou-se o registro de 3.940 acidentes de trabalho ocorridos entre residentes do Município no ano de 1999, sendo 6 registrados como fatais. Entre eles, apenas 2 estavam registrados no banco do INSS.

A discrepância pode ser explicada pela própria base de alimentação do SIAT-SUS/BH. Utilizado pela Secretaria Municipal de Saúde, esse sistema é alimentado com dados fornecidos pelas CAT, informalmente e sem periodicidade definida. Registram-se, portanto, os acidentes de trabalho comunicados, não implicando, necessariamente, que tenham sido reconhecidos pelo INSS. Ou seja, nem sempre a emissão da CAT é garantia da pensão por morte relacionada ao trabalho; e, em não havendo concessão do benefício, o dado não aparece no relatório do INSS, mas pode aparecer no banco do SIAT-SUS/BH. Por outro lado, o estudo chamou atenção para o registro, no SIAT-SUS-BH (Tabela 2), de apenas 2 entre os 25 óbitos causados por acidentes de trabalho segundo o relatório do INSS.

 

 

Quanto ao SIM, não foi encontrado, nesse sistema, qualquer dos 6 óbitos causados por acidente de trabalho registrados no SIAT-SUS/BH, dos quais, em 5 DOs, o campo acidente de trabalho encontrava-se em branco; e na outra DO, o campo estava preenchido como causa não relacionada ao trabalho. A incoerência torna-se mais evidente quando se verifica que nenhuma das 7 mortes por acidentes de trabalho, segundo registra o campo da declaração de óbito do SIM, havia sido declarada no SIAT-SUS/BH.

Análise dos dados disponíveis no INSS

Entre 20 óbitos por acidentes de trabalho registrados no SIM ou no SIAT-SUS/BH, 8 não foram encontrados no banco do INSS (Tabela 3).

 

 

Em 1999, a relação de pensões deferidas pelo INSS em Belo Horizonte pode estar subestimada pela não-incorporação daqueles instituidores com direito a pensão por acidentes de trabalho, mas que fizeram a solicitação em anos posteriores, apesar de o óbito ter ocorrido naquele ano. Além disso, é possível que a concessão do benefício solicitado em 1999 não tenha sido deferida no mesmo ano.

Ainda é importante ressaltar a possibilidade de o instituidor da pensão, efetivamente, ser domiciliado em Belo Horizonte, mas o responsável pela sua solicitação (cônjuge, filhos, etc.) residir ou ter mudado para outro município – o que, igualmente, acarreta uma perda de informação no banco do INSS, visto que a entrada do processo dá-se pelo local de residência do solicitante. O inverso também pode ocorrer: o instituidor residir noutro município e o solicitante à pensão morar em Belo Horizonte, existindo o registro no banco do INSS no município em tela, porém ausente no SIM.

Partindo das 25 pensões de instituidores que faleceram e receberam o benefício por acidente de trabalho em 1999, foi observado, no banco do SIM: em apenas 3, o campo da DO referente a acidente de trabalho confirmava causa relacionada ao trabalho; em 18, o mesmo campo encontrava-se em branco; em 2, havia sido preenchido como sendo ignorado; e em outras 2, lia-se causa não relacionada ao trabalho.

Lembre-se que, no banco do SIAT-SUS/BH, estavam reproduzidos apenas 2 entre os 25 registros encontrados no banco do INSS.

Análise combinada dos três bancos de dados

Na Tabela 4, foram agrupados os 33 acidentes fatais encontrados em pelo menos um dos 3 bancos consultados. Após o cruzamento, vê-se que nenhum acidente fatal identificado na pesquisa foi encontrado registrado, concomitantemente, nos três bancos oficiais pesquisados (Tabela 4). Quatro acidentes fatais foram identificados exclusivamente no SIM, 4 só foram encontrados no SIAT-SUS/BH e 20 tiveram o seu registro apenas no INSS. Dois óbitos por acidentes de trabalho foram registrados, simultaneamente, no SIM e no SIAT-SUS/BH; e outros 3, no SIM e no INSS.

 

 

 

Discussão

Apesar de a declaração de óbito ser um instrumento de alta sensibilidade para detectar os eventos fatais na população de trabalhadores,9,10,12 os dados analisados por este estudo mostraram a incoerência entre os pedidos de pensão por acidentes de trabalho deferidos pelo INSS e os registros nas DO como sendo mortes relacionadas ao trabalho, podendo refletir tanto um desconhecimento do nexo causal entre a atividade exercida e o evento fatal quanto a pouca importância atribuída a essa informação no momento da coleta dos dados. Essa hipótese é confirmada pelo fato de haverem sido encontradas apenas 134 (11,5%) das DO referentes aos óbitos por causas externas – na faixa de 15 a 64 anos – com o campo acidente de trabalho preenchido.

A análise de pensões concedidas para os autores dos requerimentos solicitados ao órgão, naquele ano, abrangendo somente a população previdenciária, identificou que apenas 3 dos 25 óbitos que geraram pensão por morte constavam no SIM como relacionados ao trabalho.

A subnotificação identificada é, provavelmente, muito maior. No banco do INSS, ainda não foram incorporadas as pensões solicitadas após 1999 referentes a instituidores que faleceram naquele ano.

No SIM de Belo Horizonte, para o mesmo período, foram registrados 7 óbitos por acidentes relacionados ao trabalho, 4 destes não encontrados em outro banco. É importante comentar que todos os 33 óbitos relacionados a trabalho, encontrados após o cruzamento dos três bancos de dados pesquisados, tiveram causas externas de óbito notificadas pelo SIM. O que é relevante, visto que, em algumas situações – não detectadas por este estudo –, a causa do óbito pode ser outra doença ou evento que não se encontra no capítulo de causas externas de mortalidade da Classificação Internacional das Doenças.14 Entre essas causas, citam-se aquelas relacionadas a algumas doenças agravadas pelo trabalho, as causas mal definidas ou ignoradas e aquelas doenças ou lesões relacionadas ao trabalho desencadeadoras de outros processos que levaram diretamente à morte. Essas causas, entretanto, foram desconsideradas no preenchimento da declaração de óbito.

Os resultados descritos são coerentes com os achados de pesquisas que utilizaram estratégias semelhantes, driblando a ausência de informações para permitir o dimensionamento da situação dos acidentes fatais de trabalho no país. Oliveira e Mendes,9 avaliando as DO do Município de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, como instrumento de registro dos óbitos relacionados ao trabalho, utilizaram metodologia que incluiu uma amostra sistemática de óbitos devidos a causa externa (aproximadamente 19,35% dos óbitos por causas externas ocorridos entre abril de 1992 e março de 1993). Por meio de visitas domiciliares e entrevistas semiestruturadas com familiares, amigos ou testemunhas próximas dos casos investigados, reconstituíram a história de ocorrência, o diagnóstico da causa da morte e outras informações consideradas relevantes (técnica de necropsia verbal). Identificaram 31 óbitos relacionados ao trabalho, enquanto os dados do INSS, para o mesmo período da amostra, registraram apenas 28 casos; como a amostra estudada atingiu apenas a quinta parte dos óbitos por causa externa, os autores estimaram que teriam ocorrido aproximadamente 155 mortes por acidentes de trabalho em Porto Alegre.

Note-se que a ausência de preenchimento do campo acidente de trabalho, identificada por esta pesquisa em Belo Horizonte, também foi encontrada por Oliveira e Mendes (op. cit). Os autores mostraram que apenas 2 entre as 31 DO investigadas apresentam o campo referente a relação do óbito com o trabalho preenchido.

As discordâncias entre os dados registrados na CAT e na DO também foram referidas por outros autores, como Beraldo e Lee Bok,8,10 quando compararam os registros entre as duas fontes de informação para os acidentes de trabalho fatais.

Uma explicação para o fato seria o local de moradia do instituidor não ser o mesmo daquele do solicitante da pensão, justificando as discordâncias dos registros do banco do SIM, quando comparados àqueles do INSS.

O SIM é um banco de dados oficial de grande potencial para análise de políticas e vigilância em saúde do trabalhador, devendo ser incorporado às demais fontes de informação existentes no país. Entretanto, a DO também apresenta problemas de cobertura e fidedignidade, que devem ser analisados e quantificados para a sua utilização como fonte de informações sobre os eventos que incidem na saúde da população. Em relação à situação específica dos acidentes de trabalho fatais, citam- se: erros de registro e falta de preenchimento de vários campos do instrumento, principalmente daquele reservado à informação sobre a associação do óbito ocorrido com o trabalho (campo acidente de trabalho); a forte subnotificação de óbitos em algumas regiões do país; a incoerência entre o registro da causa básica do óbito e as circunstâncias do acidente ou violência que produziram a lesão fatal; e, finalmente, a dificuldade do médico legista em identificar a causa externa da lesão que conduziu ao óbito.9,11 A sua plena utilização e confiabilidade, no que se refere aos acidentes relacionados ao trabalho (típico, de trajeto ou de doenças do trabalho), implicaria uma política agressiva que tivesse por objetivo preparar os profissionais responsáveis pelo preenchimento da DO.

As 5 pensões que não foram concedidas pelo INSS em 1999, apesar de os óbitos constarem no banco de dados do SIAT-SUS/BH como acidente de trabalho fatal, podem decorrer de não-solicitação de pensão pelos familiares, da inexistência de familiares, de indeferimento ou de análise ainda não concluída pelo órgão oficial de processo. São fatores que alertam para a fragilidade de pesquisas baseadas apenas nos registros das pensões deferidas pelo INSS.

Estudos sistemáticos de morbimortalidade poderão fomentar e aprimorar as informações indispensáveis à avaliação e análise das políticas de intervenção em curso, bem como à proposição de medidas preventivas contra eventos ocupacionais indesejados. Entretanto, os resultados aqui apresentados confirmam a fragilidade do sistema de vigilância em acidentes e doenças do trabalho no Brasil, que tende a provocar uma distorção na análise do perfil de adoecimento e morte dos seus trabalhadores.

A dificuldade de obtenção de dados relativos à morbimortalidade dos trabalhadores pode ser atribuída, em parte, à falta de integração entre os órgãos oficiais, que mantêm centralizadas as informações pertinentes.13,15

A divulgação de dados qualitativos relativos aos acidentes contribuiria para a mudança do quadro de precariedade das informações, visto que os dados quantitativos limitam o próprio desencadeamento de ações preventivas por parte dos trabalhadores e profissionais envolvidos com essas ocorrências.2,11

Reduzir a subnotificação dos eventos de saúde que atingem a população trabalhadora, melhorar a qualidade de preenchimento dos instrumentos de notificação dos agravos fatais, definir o fluxo sistemático entre os órgão oficiais que agregam os dados vitais e, finalmente, devolver a informação aos gestores e à sociedade são elementos importantes à mudança, para melhor, na situação de saúde dos trabalhadores do país.

 

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Endereço para correspondência:
Departamento de Medicina Preventiva e Social,
Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais,
Av. Alfredo Balena, 190, 8o andar,
Belo Horizonte-MG.
CEP: 30180-100.
E-mail:adavila@medicina.ufmg.br