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Epidemiologia e Serviços de Saúde

versão impressa ISSN 1679-4974versão On-line ISSN 2237-9622

Epidemiol. Serv. Saúde v.13 n.2 Brasília jun. 2004

http://dx.doi.org/10.5123/S1679-49742004000200003 

ARTIGO ORIGINAL

 

Prevalência da hepatite B em área rural de município hiperendêmico na Amazônia Mato-grossense: situação epidemiológica*

 

Prevalence of hepatitis B in a hiperendemic rural area in the Amazon region of Mato Grosso State: epidemiological situation

 

 

Francisco José Dutra Souto**I; Cor Jésus Fernandes FontesI; Sérgio Souza OliveiraI; Fábio Yonamine**I; Débora Regina Lopes dos SantosII; Ana Maria Coimbra Gaspar**II

INúcleo de Estudos de Doenças Infecciosas e Tropicais de Mato Grosso, Faculdade de Ciências Médicas/Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá-MT
IIDepartamento de Virologia, Instituto Oswaldo Cruz/Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro-RJ

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Em 1995, foi identificada epidemia comunitária de hepatite B entre colonos agrícolas recentemente assentados em Cotriguaçu, noroeste de Mato Grosso. Houve campanha de vacinação nos municípios da região. Nos anos seguintes, manteve-se a estratégia de vacinar a população e os migrantes que continuaram chegando àquele município. Em 2001, foi realizado novo inquérito sorológico de marcadores da hepatites B com o objetivo de avaliar a magnitude do problema e o impacto das medidas tomadas previamente. A comunidade de Nova União foi escolhida por ser a área de maior atração de migrantes a partir do final da década de 90. Foram estudados 838 indivíduos, encontrando-se 40,0% já infectados pelo vírus da hepatite B (VHB), 2,1% de portadores do vírus e 40,8% protegidos por vacinação. A maioria dessa população era composta de migrantes vindos de Rondônia. Entre os portadores do VHB, 28,0% tinham marcadores de hepatite D. As variáveis associadas à infecção pelo VHB foram: atividade sexual; etilismo; contato com caso de hepatite; e ter vivido em garimpo. Esse padrão de moderada prevalência é diferente do observado em 1995, ocasião em que se evidenciou alta prevalência. Observou-se associação do VHB com aumento da idade e com início da atividade sexual. Como a migração para aquela área continua intensa, recomenda-se que a atual estratégia de vacinação continue. Especial atenção deve ser dedicada à progressiva entrada do vírus da hepatite Delta (VHD) na região.

Palavras-chave: epidemiologia da hepatite B; movimentos migratórios; Amazônia.


SUMMARY

An outbreak of hepatitis B was identified in 1995, involving farmers recently settled in Cotriguaçu county, in northwestern Mato Grosso State, Brazil. A vaccination campaign was performed after the report. In the following years the vaccination strategy remained, specially focused on the new immigrants still arriving. To assess the current epidemiological situation and the impact of prior vaccination a new survey of hepatitis B virus (HBV) markers was carried out in 2001. Nova União community was chosen because at present it has been the most attractive site to migrants. The study included 838 subjects. The overall seroprevalence of HBV markers was 40.0%; 2.1% were HBV carriers, and 40.8% were protected by vaccine. Among HBV carriers, 28% had serological marker for hepatitis B. The HBV markers-associated variables were: sexual activity; regular use of alcohol; hepatitis case communicant; and having lived in gold mining camps. The moderate prevalence of HBV markers observed in the current study is lower than the high HBV prevalence noted in 1995. HBV was associated with increasing age and initiation of sexual activity. Since immigration to this area remains intense, it is recommended that mass vaccination should be continued. The progressive entry of HDV in this region should keep public health authorities on alert.

Key words: epidemiology of hepatitis B; migration; Amazon.


 

 

Introdução

A hepatite B é uma infecção viral universalmente prevalente, embora com distribuição geográfica heterogênea.1 Ela é responsável por grande número de casos de cirrose hepática e carcinoma primário do fígado, em conseqüência de infecção crônica que parte de suas vítimas desenvolve – estado de portador.2 A Organização Mundial da Saúde (OMS) credita à infecção pelo vírus da hepatite B (VHB) cerca de um a dois milhões de mortes anuais em todo o mundo.3 Os países mais afetados são aqueles com baixo desenvolvimento socioeconômico. Conseqüentemente, vastas regiões tropicais estão entre os territórios de mais alta prevalência da infecção.

No Brasil, com toda a sua diversidade étnica, econômica e regional, a infecção pelo VHB também tem distribuição muito heterogênea, com tendência a aumentar no sentido sul-norte.4 De modo geral, a Região Sul do Brasil é considerada área de baixa prevalência, enquanto a Amazônia está entre as regiões de maior prevalência do mundo. Entretanto, esse padrão não deve ser generalizado, uma vez que já foram identificadas áreas de prevalência elevada no Espírito Santo, Paraná e Santa Catarina, e de baixa prevalência no Estado do Amazonas.4 Um outro aspecto importante da hepatite B na Amazônia é que a região também é hiperendêmica para o vírus da hepatite D ou Delta (VHD), especialmente o Estado do Acre e o sul do Estado do Amazonas.5,6

As principais vias de transmissão da hepatite B são a sanguínea, a sexual, a vertical e por contato íntimo com portadores.3 Nos países desenvolvidos, a transmissão concentra-se em grupos de risco para patógenos transmitidos por sangue e em indivíduos expostos a sexo sem proteção.7 Nas áreas de alta prevalência, como os trópicos, a transmissão do VHB assume padrão menos definido. Sabe-se, por exemplo, que a transmissão vertical foi muito importante no Sudeste Asiático.8 Na Amazônia, a promiscuidade domiciliar e as más condições higiênico-sanitárias, associadas a fatores ambientais pouco esclarecidos, geraram um padrão epidemiológico no qual os indivíduos são precocemente infectados. As curvas de prevalência por idade indicam, porém, que a exposição é progressiva durante os primeiros anos de vida, minorando a importância da transmissão vertical na região.5

A partir dos anos 80, amplos programas de vacinação foram implementados em algumas das áreas de alta prevalência, especialmente no Sudeste Asiático.9 Recentemente, relatos avaliando essas medidas de Saúde Pública têm mostrado resultados muito animadores, permitindo antever o controle da infecção pelo VHB e suas complicações em futuro próximo.9-11 No Brasil, a vacinação regular e obrigatória para crianças passou a figurar no calendário do Programa Nacional de Imunizações (PNI), em 1997, sendo implantada, de fato, em 1998.

O sul da Amazônia Brasileira, que compreende o norte do Estado de Mato Grosso, é uma região de colonização recente. Nos últimos trinta anos, recebeu amplas levas de migrantes vindos especialmente da Região Sul do país. Nos anos 90, foram relatados surtos de hepatite B em populações de colonos recém-chegados a assentamentos no extremo noroeste do Estado.12,13 Um desses surtos, no Município de Cotriguaçu, Estado de Mato Grosso foi investigado por alguns dos autores em 1995-1996.13 A alta prevalência do VHB e a sua intensa circulação foram atestadas pelos altos índices de pessoas já infectadas (75,1%), de portadores do VHB (10,4%) e de pessoas com infecção recente (9,6%).13 Na ocasião, não foi possível encontrar associação com qualquer fator de risco clássico. Mesmo com alta prevalência da hepatite B, não foram identificados casos de hepatite D, sugerindo que a introdução do VHB na região teve outra fonte que não a transmissão por habitantes mais antigos da Amazônia.13 Como resultado dessa investigação, o Ministério da Saúde e a Secretaria de Estado da Saúde de Mato Grosso realizaram campanha especial de vacinação meses depois. Apesar de não haver vacinação regular contra hepatite B no Brasil àquela época, as autoridades sanitárias regionais dedicaram grandes esforços para regularizar o fornecimento de vacinas e ampliar ao máximo a cobertura vacinal. A contínua chegada de novos migrantes, as precárias condições de moradia, os fatores ecológicos mal definidos e a prevalência elevada de portadores do VHB nas comunidades da região justificavam os esforços realizados para manter alto o nível de vacinação nos anos seguintes.

Em Cotriguaçu-MT, com as campanhas de vacinação e ampla cobertura vacinal de crianças e até de adultos, houve diminuição do número de notificações de casos novos e aparente estabilização da situação epidemiológica local (notificação de casos à Secretaria de Estado). Entretanto, como a região continua atraindo migrantes interessados nos loteamentos de terras promovidos pelo Instituto Nacional de Colonização e Desenvolvimento Agrário (Incra) – e graças à situação habitacional precária –, muito dos fatores ligados à transmissão do VHB na região ainda podem estar presentes. Outrossim, uma grande parcela das infecções pelo VHB é assintomática, prejudicando uma avaliação mais realista da magnitude epidemiológica, caso não haja busca ativa de novos casos.

Com o intuito de avaliar a atual situação epidemiológica da infecção pelo VHB na região rural de Cotriguaçu, foi planejado um novo estudo com o objetivo de identificar a prevalência dos marcadores do VHB no município. Além disso, avaliou-se a proteção conferida pela vacina mediante a titulação de anticorpos anti-HBs nos indivíduos soropositivos para esse marcador.

Em maio de 2001, a população de uma comunidade rural (denominada Vila de Nova União) do Município de Cotriguaçu foi investigada, assim como duas outras comunidades menores localizadas ao seu redor, Ouro Verde e Jacaré.

 

Metodologia

O Município de Cotriguaçu localiza-se no noroeste do Estado de Mato Grosso e faz fronteira com o Estado do Amazonas. Em 1996, a sua população era de 4.45814 habitantes. No censo demográfico de 2000, já eram computados 8.474 habitantes.15 É difícil precisar o atual quantitativo de pessoas vivendo no Município de Cotriguaçu, pois o processo migratório é intenso e, a cada dia, chegam famílias buscando se increver no programa de assentamentos desenvolvido pelo Incra. Em maio de 2001, estimava-se que 1.000 a 1.200 pessoas viviam na Vila de Nova União.

O estudo foi desenhado para rastrear todos os habitantes das vilas. Os moradores foram avisados e convidados a participar com antecedência. Consecutivamente, foram montados postos de coleta e entrevista nas unidades de saúde das três maiores concentrações de habitantes da área. Cinco dias foram despendidos nessa fase do estudo. Foram considerados elegíveis todos os moradores com idade igual ou superior a dois anos, para poupar esses menores do desconforto da coleta de sangue e facilitar a participação das famílias. As razões do estudo e a sua metodologia foram suficientemente explicitadas aos participantes. Aos que aceitaram participar, foi solicitado consentimento por escrito. Os aspectos éticos da pesquisa foram aprovados pelo Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos do Hospital Universitário Júlio Müller, Universidade Federal de Mato Grosso, sendo ratificados pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP), Conselho Nacional de Saúde, Brasília (Parecer No 214/2000, registro 1.175).

Foi realizada entrevista com cada indivíduo para obtenção de dados epidemiológicos e demográficos, além de coleta de sangue para testes sorológicos. Alíquotas de soro foram congeladas, devidamente acondicionadas e enviadas ao Departamento de Virologia do Instituto Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro-RJ. Pesquisou-se, pelo teste imunoenzimático (ELISA, fabricação de Biokit®, Barcelona, Espanha), a presença do antígeno de superfície do VHB (HBsAg) e de anticorpos totais contra a proteína do core do VHB (anti-HBc). Os resultados desses testes foram analisados de forma qualitativa, tão-somente. Anticorpos contra o antígeno de superfície do VHB (anti-HBs) foram pesquisados e quantificados por meio de método imunoenzimático na forma “sanduíche” (Biokit®), em que os orifícios de uma microplaca são adsorvidos com HBsAg de subtipos ad e ay purificados. Para a titulação do anti-HBs, após resultado positivo no teste qualitativo em soro não diluído, os soros foram retestados em duas diluições: 1:10 e 1:100, de acordo com as especificações do fabricante. Os valores obtidos em densidade óptica (DO) foram plotados em uma curva- padrão, onde a DO é diretamente proporcional à mUI/mL. Nos casos em que a amostra apresentasse valores de concentração de anti-HBs dentro da curva-padrão – que alcança até 120 mUI/mL –, novas diluições eram realizadas. O antígeno e do VHB (HBeAg) e seu anticorpo correspondente (anti-HBe) também foram testados qualitativamente, por ELISA (Biokit®). Por fim, foram realizados testes qualitativos para anticorpos contra hepatite Delta (anti-HDV): de classe IgM nos portadores do HBsAg; e de classe IgG nos indivíduos já expostos ao VHB (Biokit®).

Foram considerados como expostos à infecção pelo VHB os indivíduos com anti-HBc positivo, independentemente de serem positivos ou não para o HBsAg ou anti-HBs. Para efeito de análise de resposta à vacina, foram considerados como respondedores os indivíduos com histórico de vacinação contra o VHB, mesmo que não apresentassem documento comprobatório, com títulos de anti-HBs acima de 10 mUI/mL e com resultado negativo na pesquisa de HBsAg e anti-HBc.

Os dados obtidos foram armazenados em banco de dados criado pelo software Epi-Info 6.04a.16 O teste de qui-quadrado foi utilizado para comparar proporções; e o teste de Student, para comparação de médias. O teste H de Kruskal-Wallis foi aplicado para comparação de variáveis contínuas, de distribuição não paramétrica. Quando apropriado, o teste exato de Fisher foi utilizado. Modelos de regressão logística e de regressão linear foram construídos para análise multivariada, utilizando-se o software Stata 6.0 para Windows.17 Foram incluídas, nesses modelos, variáveis que tivessem probabilidade de associação estatística em nível de significância superior a 80%. Intervalo de confiança (IC) de 95% foi calculado para todas as estatísticas. Foi construído modelo de regressão linear para avaliar determinantes dos maiores títulos de anti-HBs entre os indivíduos não suscetíveis ao VHB, protegidos por vacina ou pela infecção natural, controlados por idade e fatores de risco para a infecção, considerando-se a média geométrica das DO. Todos os cálculos foram considerados como tendo significado estatístico quando a probabilidade de a hipótese nula ser verdadeira revelou-se menor que 0,05.

 

Resultados

Foram incluídos 853 indivíduos, dos quais 838 foram analisados – os dados de 15 deles foram perdidos, por problemas com as amostras de soros. A Vila de Nova União, a mais populosa, teve 517 (61,7%) indivíduos representados. As vilas de Jacaré e Ouro Verde tiveram 119 (14,2%) e 65 (7,8%), respectivamente. As pessoas restantes espalhavam-se por comunidades rurais ainda menores. As recusas foram pouco freqüentes, mas não foram encontrados ou não compareceram aos locais de coleta as famílias que moravam mais distante das maiores vilas. Não é conhecida a perda total, uma vez que a própria Prefeitura Municipal não conhece o número exato de moradores da região. A estimativa de perda foi de 100 a 300 pessoas, já que se pretendia incluir todos os habitantes acima de dois anos de idade.

Dos 838 indivíduos que fizeram parte da análise dos dados, 462 (55,1%) eram do sexo masculino, dado que corresponde, proporcionalmente, à realidade de distribuição da população por sexo no município (sexo masculino: 55,6%), segundo o censo demográfico de 2000.15 A idade variou de 2 a 72 anos, com média de 25 e mediana de 22 anos. A distribuição dos participantes por faixa etária também foi proporcional à realidade do local. A amostra foi composta, basicamente, por migrantes (92%), fato comum em área de colonização recente. A maioria (270; 32,3%) desses imigrantes veio de Rondônia, do Paraná (125; 14,9%), de Minas Gerais (107; 12,8%) e do Espírito Santo (99; 11,8%). Os naturais de Rondônia e Mato Grosso eram, na sua predominância (83%), jovens com menos de 20 anos de idade, descendentes de migrantes vindos, principalmente, da Região Sudeste do Brasil (dados não apresentados). A maioria dos migrantes encontrava-se em Cotriguaçu há pouco tempo, 52% há menos de três anos e 83% há menos de cinco anos. Grande parcela da amostra (82%) teve Rondônia como último Estado de moradia.

Dos participantes, 335 (40%; IC95%=36,7; 43,4) já haviam sido infectados pelo VHB, dos quais 18 (5,4%; IC95%=3,3; 8,5) eram portadores do HBsAg, 2,1% (IC95%=1,3; 3,4) do total amostrado. Entre esses indivíduos, foi possível pesquisar HBeAg e anti- HBe em 16 deles, sendo cinco soropositivos para o HBeAg e dez para o anti-HBe. Com o aumento da idade, houve incremento da prevalência de marcadores de infecção pelo VHB (Tabela 1). O sexo masculino apresentou maior freqüência de marcadores de exposição passada ao VHB (43%) em relação ao feminino (35%), razão de 1,4:1. Entretanto, essa diferença apresentou significado estatístico apenas na análise univariada. Dos 18 indivíduos HbsAg-positivos, 14 pertenciam ao sexo masculino.

 

 

Foram considerados respondedores à vacina contra o VHB, 342 (40,8%; IC95%= 37,5; 44,2) indivíduos vacinados previamente e soropositivos para o anti-HBs isoladamente. Os outros 161 (19,2%; IC95%= 16,6; 22,1) ainda eram suscetíveis ao VHB (Tabela 1 e Figura 1).

 

 

 

Os índices de marcadores de exposição ao VHB foram semelhantes entre os moradores das diversas vilas (p=0,3). Os migrantes procedentes de Rondônia apresentavam menor prevalência de marcadores de infecção pelo VHB, quando comparados ao resto da amostra (37,6% versus 50,7%). Contudo, essa diferença não se manteve na análise multivariada.

Quinhentos e oitenta (580, 72,3%) de 802 indivíduos informaram vacinação prévia contra o VHB e 40,2% afirmavam ter tomado as três doses. Entre os que tomaram pelo menos uma dose de vacina, os marcadores de infecção prévia pelo VHB foram encontrados menos freqüentemente, em comparação aos não vacinados (35,3% versus 52,7%; p<0,0001). Entretanto, essa diferença não persistiu associada quando controlada por faixa etária. Quanto maior o número de doses de vacina recebidas, menor o índice de infecção prévia (Tabela 2). A taxa de pessoas completando o esquema vacinal foi inversamente proporcional à elevação da faixa etária. A mediana dos títulos de anti-HBs foi bem maior nos já expostos naturalmente ao VHB (635 mUI/mL), se comparada com a mediana dos protegidos por vacina (110 mUI/mL), (p<0,001). Dos 152 participantes com até dez anos de idade, 86,8% já haviam recebido pelo menos uma dose da vacina (Tabela 1).

 

 

 

Na análise univariada, não foi identificada associação entre exposição ao VHB com passado de doença sexualmente transmitida, uso de drogas endovenosas e presença de tatuagem. As seguintes variáveis, ter sido submetido a cirurgia (p<0,05), ter vivido em garimpo (p<0,001), ter feito tratamento dentário (p<0,001), viver a mais de dois anos em Cotriguaçu (p<0,05), fazer uso regular de bebida alcoólica (p<0,001), ter contato domiciliar com alguém com hepatite clínica (p<0,01) e já ter iniciado atividade sexual (0,001) foram todas associadas à exposição ao VHB.

Após análise multivariada, mantiveram associação independente com os marcadores do VHB: pertencer à faixa etária mais elevada, ter trabalhado ou vivido em garimpo (p<0,02), já ter iniciado atividade sexual (p<0,01), fazer uso regular de álcool (p<0,01), assim como manter contato domiciliar com caso de hepatite (p<0,02) (Tabela 3). Quando a regressão logística foi repetida, analisando-se, separadamente, os grupos por idade, não se identificou qualquer variável mais fortemente vinculada à infecção em algum dos extratos etários. Não há qualquer variável associada aos marcadores do VHB entre os menores de dez anos. Já na segunda década de vida (11-20 anos), encontram-se independentemente associadas: já ter iniciado atividade sexual (p<0,01); e convívio domiciliar com alguém que já teve hepatite (p<0,01).

 

 

 

A análise e avaliação dos determinantes dos maiores títulos de anti-HBs entre os indivíduos imunes ao VHB (protegidos por vacina ou pela infecção natural), controlados por idade e fatores de risco para a infecção (Tabela 4), demonstrou que o fato de haver tomado ao menos uma dose da vacina (p<0,001) esteve associado, de forma independente, a maiores títulos de anti-HBs, assim como ter tido a infecção natural pelo VHB (p<0,001).

 

 

 

A pesquisa de anti-HDV nos 335 indivíduos já expostos ao VHB foi positiva em 12 (3,6%; IC95%: 1,9; 6,3). Cinco desses 12 eram portadores do HBsAg. Quatro deles eram, também, soropositivos para o anti- HDV IgM. No total, cinco (28%) dos 18 portadores do HBsAg também apresentaram infecção pelo VHD. Os 12 indivíduos com sorologia positiva para o anti-HDV não diferiram do restante da amostra quanto à distribuição etária, gênero ou histórico de comportamento de risco para doenças transmitidas por sangue ou sexo. Oito deles viveram em Rondônia, assim como a maioria dos indivíduos estudados (p=0,5).

 

Discussão

Os surtos de hepatite B detectados no sul da Amazônia, envolvendo migrantes vindos de outras regiões do Brasil, representaram fenômeno raramente relatado no mundo. Ssituações semelhantes são de nosso conhecimento apenas em populações móveis da América Central. 18,19 No surto registrado em 1995, na Vila de Nova Esperança, em Cotriguaçu, não foi possível identificar fatores de risco que explicassem toda a cadeia de transmissão do VHB naquela localidade.13 Considerou-se que os aspectos ambientais, somados às más condições de moradia, facilitaram a disseminação do VHB naquela população. Os subtipos preponderantes do VHB, ayw3 e ayw2 (mais comuns no sul do país),20 e a ausência do vírus Delta à época do surto são fortes indicadores de que o VHB foi introduzido naquela comunidade pelos próprios migrantes.13

Uma vez que a região continuou atraindo migrantes, a estratégia utilizada para controlar o problema foi manter altos os níveis de cobertura vacinal contra o VHB da população já estabelecida e dos novos habitantes. Foi concedida prioridade aos menores de quinze anos; mas também foi estimulada a vacinação dos indivíduos mais velhos, sempre que houvesse vacina disponível para tal. Dessa forma, uma reavaliação da situação epidemiológica do VHB tornou-se necessária para analisar os resultados dessa estratégia vacinal.

A área escolhida para este estudo foi a comunidade da Vila de Nova União, uma vez que ela representa, atualmente, a maior concentração humana de Cotriguaçu depois da sede do Município, e para onde se dirige o maior número de migrantes. A população que habita a Vila de Nova União, e que continua a crescer, é formada, na sua maioria, por migrantes originários das regiões Sudeste e Sul do Brasil, que viveram por vários anos em Rondônia até serem atraídos pela distribuição de terra nessa área de Mato Grosso. Esse padrão migratório não foi verificado em qualquer dos estudos epidemiológicos prévios que relacionaram migração e infecção pelo VHB no Estado. Teme-se que essa migração propicie novas epidemias, uma preocupação especial que se justifica pela possibilidade da introdução de portadores da hepatite Delta oriundos de Rondônia. O VHD, que praticamente não existia em Cotriguaçu em 1995, pode provocar epidemias potencialmente graves entre portadores do VHB.13 Portanto, continuava a haver risco teórico de surgimento de novos surtos.

Prevalência da infecção pelo vírus da hepatite B

A amostra analisada, 838 indivíduos de todas as faixas etárias e de diferentes localidades rurais, foi representativa, pois incluiu mais de 60% da comunidade de Nova União.15 As perdas foram difíceis de analisar em razão da precariedade das informações sobre o contingente humano nas localidades estudadas. Porém, as famílias incluídas tiveram, praticamente, todos os seus componentes estudados, sugerindo que a maior parte da perda era de famílias inteiras, não diferentes daquelas examinadas.

Este inquérito demonstrou uma população com moderada prevalência de hepatite B (40% já expostos e 2% de portadores). São números bem inferiores aos observados na Vila de Nova Esperança, seis anos antes, quando do surto de hepatite B na região.13

Os fatores de risco analisados, como atividade sexual, uso regular de álcool, contato com caso de hepatite e ter vivido em garimpo estiveram associados à infecção pelo VHB de forma independente. Em 1995, no surto investigado em Nova Esperança, a única variável associada à presença de marcadores do VHB foi o tempo de residência na área do estudo.13 Todavia, quando ajustado por gênero, idade e fatores de risco, o tempo vivendo na região não mostrou associação com infecção pelo VHB no presente estudo, indicando que a situação epidemiológica já é outra, sendo provável que, atualmente, o risco de exposição seja menor. Outro aspecto interessante é que, na análise multivariada, elevação da idade e já ter iniciado atividade sexual aparecem associadas, independentemente, à presença de marcadores do VHB. Esse fato não foi observado durante o surto ocorrido em Nova Esperança, em 1995, quando todas as faixas etárias estiveram igualmente expostas. O atual padrão observado em Nova União é típico de populações e regiões de baixa ou moderada endemicidade para a infecção pelo VHB, com poucos infectados antes dos dez anos (6,6%) e aumento progressivo da prevalência dos marcadores do VHB a partir da adolescência.21

Ainda neste estudo, as outras variáveis associadas à infecção pelo VHB de maneira independente são classicamente reconhecidas como de risco, como ter história de contato domiciliar com caso de hepatite aguda ou referir uso regular de álcool. Do mesmo modo que observado em outros estudos, ter vivido em garimpo de ouro tem-se mostrado, de forma consistente, como um importante modo de se expor ao VHB na Amazônia brasileira.22-24 O uso de etanol e a vida em garimpo não são, em si, fatores de risco. Representam, na verdade, comportamentos de risco que levam à maior exposição ao agente. Em 1995, a prevalência durante o surto era tão elevada que esses fatores não influenciavam a transmissão. Agora, a associação dessas variáveis com a presença de sinais de infecção indica que o padrão epidemiológico é outro e a doença já se concentra em grupos reconhecidamente de maior risco.

Cobertura vacinal

O estudo chamou a atenção dos autores para a alta proporção (cerca de 40%) de indivíduos com sinais de proteção conferida por vacina. Mesmo entre os mais idosos, a proteção e a cobertura vacinal foram muito boas (55% para a idade acima de 50 anos). Análise desses índices de cobertura vacinal e de proteção adquirida pela profilaxia mostram que o pool atual de suscetíveis é pequeno na região e, dificilmente, sustentará novos surtos de hepatite B, como visto nas fases iniciais de ocupação do noroeste mato-grossense.13 Essa previsão poderá não se concretizar, caso ocorra futuro relaxamento do esforço vacinal e novas levas de migrantes introduzam mais suscetíveis e portadores na comunidade. De fato, com a obrigatoriedade de vacinação de crianças pelo atual Programa Nacional de Imunizações, podemos supor que o panorama favorável será mantido.

A cobertura vacinal pode ser considerada muito boa entre crianças (87%) e bastante razoável entre adolescentes (72%), especialmente quando comparada com a de outros municípios do interior de Mato Grosso.21 Do total de vacinados, 40% completou o esquema de três doses. Mesmo entre indivíduos que não completaram a vacinação, encontramos muitos com títulos de anticorpos classicamente considerados protetores para o VHB (>100 mUI/mL). Além daqueles com história positiva para vacinação prévia contra o VHB, foram identificados 36 indivíduos com perfil sorológico sugestivo de terem sido vacinados, mas que não souberam informar, com certeza, se realmente o foram. Esses 36 indivíduos, provavelmente, receberam a vacina mas não se recordavam de ter sido a vacina contra hepatite B.

Por outro lado, a melhoria nos índices de prevalência de marcadores do VHB poderia ser explicada pela atual situação habitacional dessas comunidades. Embora a pobreza e o isolamento justifiquem a continuidade das condições higiênico-sanitárias precárias, ocorreu diminuição da aglomeração por construção de mais casas e cômodos. Isso pode ter diminuído a exposição dos suscetíveis aos portadores do VHB na comunidade.

Observe-se que, apesar da cobertura vacinal atingir mais de 50% de todos os extratos etários, os mais idosos apresentaram menores índices de proteção pela vacina. Uma possível explicação para este fato é que esses indivíduos tinham maior probabilidade de terem sido expostos ao VHB anteriormente à vacinação, de forma que a imunidade que possuem teria sido conferida por infecção natural prévia. Em decorrência, a vacina não mostrou proteção na análise multivariada, quando controlada por idade, gênero e fatores de risco. Uma vez que a região não dispõe de infra-estrutura e recursos para realização de testes pré-vacina e identificação dos suscetíveis, a vacinação generalizada continua sendo defensável.

Vírus da hepatite Delta

Embora os dados apresentados sobre a queda da prevalência de infecção pelo VHB na Vila de Nova União e arredores sejam alentadores, o aumento proporcional no número de portadores do VHB com marcadores de hepatite Delta é um dado preocupante (28%), sendo considerado elevado pelo Centers for Disease Control and Prevention dos Estados Unidos, CDC.25 Como todo o norte de Mato Grosso tem um grande pool de indivíduos cronicamente infectados pelo VHB, resultado da situação epidemiológica das décadas passadas, a introdução do VHD na região coloca-os em risco de sofrer superinfecção por este agente. Não há como controlar esse panorama, uma vez que o único modo de prevenção da doença é a vacinação contra o VHB antes que esta infecção ocorra. O aumento do fluxo de migrantes entre os diferentes Estados da Região Norte e Mato Grosso, atraídos por oportunidade de trabalho ou de concessão de terras, faz com que o aumento da superinfecção VHB-VHD na região, conforme evidenciado no presente estudo, possa ser admitido como um fato, mais do que uma possibilidade.

Foram recomendadas as seguintes ações de Saúde Pública para as autoridades municipais de Cotriguaçu:

a) Manter a estratégia atual de vacinação contra o VHB para todos os novos grupos de migrantes que chegarem ao município.

b) Vacinar contra o VHB todos os recém-nascidos, adolescentes e jovens até os 20 anos de idade, conforme orientação do PNI.

c) Pesquisar a presença do VHD em todo indivíduo com diagnóstico confirmado de hepatite B aguda ou crônica na região, com vistas a instituir acompanhamento adequado e tratamento precoce, quando indicado.

É aconselhável estender essas ações estratégicas para outros municípios do noroeste mato-grossense, assim como a todos os demais que estejam funcionando como receptores de migrantes na Amazônia.

 

Referências bibliográficas

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Endereço para correspondência:
Núcleo de Estudos de Doenças Infecciosas e Tropicais de Mato Grosso,
Faculdade de Ciências Médicas/Universidade Federal de Mato Grosso

Av. Fernando Corrêa s/n,

Cuiabá-MT,
CEP: 78060-900
E-mail:fsouto@terra.com.br

 

 

*Pesquisa demandada por meio de edital e apoiada com recursos do projeto Vigisus, Secretaria de Vigilância em Saúde/Ministério da Saúde.
**Bolsistas do CNPq durante a realização deste trabalho.