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Epidemiologia e Serviços de Saúde

versão impressa ISSN 1679-4974versão On-line ISSN 2237-9622

Epidemiol. Serv. Saúde v.14 n.2 Brasília jun. 2005

http://dx.doi.org/10.5123/S1679-49742005000200007 

ARTIGO ORIGINAL

 

Avaliação das casas de apoio para portadores de HIV/aids do Município de Ribeirão Preto, Estado de São Paulo, Brasil

 

Evaluation of support houses for patients with HIV/AIDS in the Municipality of Ribeirão Preto, São Paulo State, Brazil

 

 

Marisley Vilas Bôas SoaresI; Aldaísa Cassanho ForsterI; Manoel Antônio dos SantosII

IDepartamento de Medicina Social, Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto-SP
IIDepartamento de Psicologia e Educação, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto-SP

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este estudo traz uma avaliação da estrutura, funcionamento e caracterização das práticas administrativas e assistência biopsicossocial das casas de apoio para portadores de HIV/aids (duas destinadas a adultos e uma para crianças) no Município de Ribeirão Preto, Estado de São Paulo, Brasil. Foi realizada pesquisa quantitativa e qualitativa, avaliativa e exploratória mediante observações livres, diário de campo e aplicação de instrumento contendo perguntas fechadas e abertas, elaborado com base na Norma Técnica do Centro de Vigilância Sanitária, do Centro de Referência e Treinamento em DST e Aids da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo (CVS/CRT/AIDS/SES-SP). Trata-se de organizações regidas por entidades assistencialistas e humanitárias – majoritariamente mantidas com recursos da sociedade civil –, parcialmente adequadas às normas e exigências dos órgãos de saúde e vigilância sanitária. As suas coordenações e os recursos humanos envolvidos são constituídos, predominantemente, por mulheres, funcionários remunerados em coexistência com voluntários. Foi possível refletir sobre o importante papel que essas organizações não governamentais (ONG) desenvolvem no campo dos direitos sociais referentes aos portadores de HIV/aids, cobrindo lacunas não preenchidas por instituições governamentais.

Palavras-chave: avaliação; assistência à saúde; síndrome da imunodeficiência adquirida; organizações não governamentais.


SUMMARY

This study was an evaluation of structure, functioning and characterization of administrative and biopsychosocial practices of support houses (two dedicated to adults and two for children) for patients with HIV/AIDS in the Municipality of Ribeirão Preto, São Paulo State, Brazil. The methodology used was quantitative-qualitative, evaluative and exploratory research by free observations, a field diary and application of an instrument containing closed and open questions elaborated based on the Technical Norm of Health Surveillance Center, of the Center for Reference and Training on STD and AIDS, of the State Health Department (CVS/CRT/AIDS/SES-SP). These organizations are run by an assistance and humanitarian entity – mostly maintained with resources from the civil society – partially following the norms and requirements of health agencies and health surveillance. Their coordination and human resources consist predominantly of women, paid employees as well as volunteers. This work illustrates the important role of these non-governmental organizations (NGO) in the field of social rights related to HIV/aids patients, filling gaps not contemplated by governmental institutions.

Key words: evaluation; health care; acquired immunodeficiency syndrome; non-governmental organizations.


 

 

Introdução

A abordagem da epidemia de aids no Brasil, particularmente na década de 1980, recebeu fortes influências do contexto sociopolítico e cultural do país, ao mesmo tempo em que se observava, no cenário mundial, a importante contribuição da epidemiologia sobre os mecanismos de transmissão, medidas de prevenção e controle do HIV/aids no nível populacional. Àquela época, o conhecimento científico sobre a síndrome da imunodeficiência adquirida ainda era incipiente. Em meio às mudanças e crises que agitaram o cenário político e econômico das últimas décadas, emergiram, da sociedade civil, organizações e movimentos voltados para causas tidas, até então, como minoritárias – o meio ambiente, as relações de gênero e as questões raciais,1 por exemplo.

A situação sociossanitária dos segmentos atingidos e vulneráveis à síndrome evoluiu com a disponibilidade do tratamento, surgindo novas demandas assistenciais dos portadores de HIV/aids – adultos, crianças e adolescentes – que o Estado tem mostrado dificuldades para atender. Como resposta a essas limitações, a mobilização de entidades religiosas e da sociedade civil deu origem a organizações como as chamadas Casas de Apoio, entidades sem fins lucrativos e de interesse público.2

Esses equipamentos sociais visam "oferecer assistência multidisciplinar ao portador do HIV/aids sem recursos financeiros e apoio familiar".2 São de interesse direto às questões de saúde, extensivas à educação e assistência no caso do público infantil e adolescente, por razões legais ou por orfandade – daí, também, a denominação de Casas de Solidariedade.3

As casas de apoio podem ser consideradas locus de uma teia complexa de relacionamentos de diferentes atores sociais implicados – administradores dos serviços, população assistida –, com reflexos nas instâncias sociais atingidas por sua intervenção.

Considerando-se a reconhecida relevância social desses equipamentos e a escassez de estudos voltados à avaliação desse tipo de organização, a proposta de uma investigação que aborde os serviços assistenciais organizados pela sociedade civil torna-se imprescindível para a sistematização do conhecimento acerca da sua atuação. Ela permitirá analisar o alcance e as limitações encontradas no desempenho de seu papel social como promotoras do exercício da cidadania, em uma sociedade sob contínuo processo de transformação.

O objetivo deste estudo é avaliar e caracterizar as três casas de apoio para portadores de HIV/aids (duas destinadas a adultos e uma a crianças) existentes no Município de Ribeirão Preto, Estado de São Paulo, cidade que apresenta incidência expressiva de indivíduos acometidos pelo HIV/aids.

 

Metodologia

Delineamento

Trata-se de um estudo descritivo e exploratório que utiliza uma estratégia teórico-metodológica quantitativa e qualitativa, para avaliar a estrutura, funcionamento e caracterização das práticas administrativas e de assistência biopsicossocial das casas de apoio. A avaliação da garantia da qualidade pode ser realizada em diferentes níveis: estrutura (recursos e instalações); processo (organização das funções para o alcance do resultado desejado); e resultado (verificação do grau de atendimento do objetivo esperado).4

Participantes

Foram definidas como participantes as responsáveis pela coordenação de cada uma das casas, em função da posição gerencial que ocupavam dentro da organização e da designação de seu papel: "reunir e sincronizar atividades e pessoas de forma que funcionem harmoniosamente, na realização dos objetivos da organização".5

Materiais e instrumentos

Para a avaliação e caracterização das casas de apoio, foram utilizados os seguintes instrumentos:

- questionário aplicado, sobre as condições estruturais das casas de apoio;

- observação livre, iniciada após cada entrevista; e

- diário de campo, elaborado ao longo de todo o processo de coleta dos dados.

O questionário aplicado foi desenvolvido com base na Norma Técnica [Portaria Conjunta no 2, do Centro de Vigilância Sanitária (CVS)/Centro de Referência e Treinamento em DST e Aids da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo (CRT-AIDS/SES-SP), 2001]3 e no Guia de Recomendações: casa de apoio em HIV/aids, do Ministério da Saúde (MS).2 Sua finalidade foi avaliar a estrutura das instituições. O roteiro constituiu-se de 23 perguntas, em sua maioria questões fechadas, que podem ser assim classificadas:

Estrutura física, financeira e social

As questões desse tópico abrangiam: condições da sede (doada, alugada, própria ou cedida); verificação da existência do número de cômodos (banheiros, duchas, quartos e critérios de divisão), área comum, luz, água, ventilação; fontes financeiras e sua importância na composição da receita; benefício fiscal concedido; e situação legal junto aos órgãos oficiais – alvará, estatuto social, regimento interno e informações disponíveis sobre os objetivos do equipamento social.

Recursos disponíveis e seu manejo

Número de refeições por dia, funcionário responsável pelo cardápio e sua preparação; higiene (número de vezes ao dia em que é realizada a limpeza da casa, dos quartos, dos banheiros); existência de meio(s) de transporte para os serviços de saúde; serviços disponíveis de atenção à saúde (serviços odontológicos, discussão de casos clínicos em equipe, assistência ao paciente acamado, existência de sala de curativos); ações educativas para prevenção de infecções sexualmente transmissíveis; educação continuada aos funcionários; e fornecimento de cesta básica aos familiares dos moradores.

Clientela da casa e sua permanência

Grupo-alvo da atenção; período de tempo estipulado para permanência; atividades desenvolvidas pelos moradores; e condições de reintegração do morador ao contexto familiar e social.

Quadro de recursos humanos

Funcionários e voluntários; funções desempenhadas; quantidade de horas trabalhadas por dia; tipo de vínculo e tempo de permanência na casa; quantidade de funcionários por leito; e, em relação aos voluntários, critérios de seleção e breve discussão sobre seus objetivos.

Normas de biossegurança

Aqui, foi verificado in loco o cumprimento ou não dos itens questionados: cozinha (tela instalada, vedação de borracha sob as portas, cestas e lixo tampados, condições adequadas ao trabalho dos funcionários, acesso exclusivo para preparo de alimentos); lavanderia (uso de sacos vedados para roupas com secreções, janelas com telas, recipientes diferenciados para roupa suja e para roupa limpa, uso de luva e avental pelo funcionário responsável); condições de armazenamento dos medicamentos (cômodo reservado, uso de fichas de identificação e quadro clínico dos moradores, responsabilização sobre a administração dos remédios e aplicação endovenosa).

O instrumento desenvolvido foi submetido a um estudo-piloto e incorporou sugestões de coordenadores de outras entidades onde foi aplicado. Não era seu objetivo funcionar como um meio de fiscalização, mas levantar informações sistemáticas que permitissem conhecer melhor a estrutura das casas de apoio e suas condições objetivas de funcionamento.

Foram feitas observações, na modalidade livre, ao longo de três visitas de uma hora cada (em média), em diferentes períodos do dia e da semana – inclusive fins de semana. A realização da observação permitiu acompanhar o desenvolvimento das atividades diárias das casas, o manejo de situações concretas e o contato com o cotidiano dos moradores e funcionários. Foi possível aproximar as questões técnicas avaliadas dos seus desdobramentos nas práticas de assistência realizadas, suas limitações e potencialidades.

O cenário da pesquisa foi construído com a ajuda do diário de campo. Os momentos que antecederam o período das observações e sua realização, propriamente dita, foram registrados nesse diário,6 onde também foram feitas anotações sobre o contato com os sujeitos observados – expressões, reflexões, comentários.

A análise dos dados foi feita mediante a elaboração de relatórios específicos para cada uma das casas visitadas, desenvolvidos e apresentados de forma a auxiliar na caracterização, apoiada em evidências, das singularidades e semelhanças dessas instituições. Adotando a observação como princípio desses relatos, foram traduzidas as inter-relações das condições existentes para a realização da assistência – estrutura física, financeira e social, recursos e manejo, população moradora e sua permanência, quadro de funcionários e condições de biossegurança – com as vivências cotidianas das casas. Os parâmetros utilizados foram os mesmos recomendados pelas normas adotadas.2,3

Considerações éticas

Buscando atender ao item IV da Resolução no 196 do Conselho Nacional de Saúde (CNS)/MS, de 10 de outubro de 1996, os participantes formalizaram sua anuência com o presente estudo mediante assinatura de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, previsto pela norma do Conselho de Ética em Pesquisa com Seres Humanos do Ministério da Saúde, aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Centro de Saúde da Escola da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo.

 

Resultados

Os dados obtidos e aqui apresentados visaram delinear as estruturas e a dinâmica de funcionamento das três casas de apoio para portadores de HIV/aids de Ribeirão Preto-SP, cuja finalidade é oferecer assistência biopsicossocial à saúde, desenvolvendo ações relacionadas ao bem-estar social de uma população específica. Optou-se por ampliar os aspectos técnicos e adentrar esses locais com o olhar disposto a conhecer serviços de interesse direto para a Saúde, mantidos por entidades civis que buscam oferecer, além de um abrigo, um lar para as pessoas portadoras de uma doença que traz profundas marcas sociais. Características comuns a esses três equipamentos e informações sobre o cumprimento de alguns parâmetros exigidos estão sistematizadas na Tabela 1.

 

 

As casas de apoio em questão deram início ao seu funcionamento em períodos próximos (com diferença de um ano), duas das quais instaladas em imóveis doados. A Casa 3, recém-instalada, ainda estava sendo adaptada às condições de biossegurança – diferentemente das outras duas, já regularizadas.

Ao todo, chegavam a oferecer 68 vagas, contando com 44 moradores no período da coleta de dados. A Casa 3 apresentava uma ocupação próxima à metade das vagas disponíveis, ao passo que as demais se encontravam com ocupação acima da metade da sua capacidade.

Juntas, somavam 33 funcionários e 24 voluntários. A Casa 2 – de público infantil –, a de maior oferta de vagas, proporcionalmente, apresentava o maior quadro de pessoas contratadas, em contraste com a Casa 1, que dependia do trabalho voluntário de um maior número de pessoas.

Observaram-se três condições diferentes, relacionadas às fontes de recursos: exclusivamente da comunidade (Casa 1); de pessoas físicas e jurídicas (Casa 2); e de uma fundação institucional (Casa 3) (Tabela 1).

A Casa 1 recebia um público adulto, mantida por uma entidade de cunho religioso. Seus funcionários eram voluntários, oriundos, principalmente, da mesma comunidade religiosa, vinculados à instituição há um ano e meio, em média.

As outras duas casas pertenciam a uma mesma entidade assistencial, que mantinha outras atividades simultaneamente, possibilitando repasses de doações entre elas. A seguir, são apresentados, com maiores detalhes, os dados oriundos do questionário e da observação livre, para que se dimensionem as atividades e as estruturas disponíveis nessas entidades.

Tijolos, cimento... Qual é o teor dessa construção?

As três entidades avaliadas possuíam instalações físicas amplas, em condições estruturais adequadas às atividades propostas. A Casa 1 caracterizava-se por dispor de uma ampla área verde, com restrições de acesso para coibir o uso de drogas pelos moradores – falta de uma vigilância permanente. Possuía, ao todo, 11 cômodos e três quartos, um deles reservado para uso como enfermaria, e contava com 11 moradores no período da coleta dos dados. Na Casa 2, foram observadas as reformas realizadas no local para adaptação e adequação das instalações às necessidades das crianças. A coordenação denominou os detalhes exigidos para a adequação do imóvel como "muitas coisinhas". Nem por isso, deixou de providenciá-las. Possuía quartos decorados para meninos, meninas e bebês. A Casa 3, por sua vez, possuía um total de 14 cômodos, com três quartos. Assim como a Casa 1, os quartos da Casa 3 eram divididos por sexo; e o terceiro quarto, reservado para ocupação em casos de agravamento das condições de saúde.

Todas as três casas encontravam-se regulamentadas junto aos órgãos de fiscalização municipal, mas referiram que o regimento interno se encontrava em fase de elaboração; a Casa 2 já contava com esse documento prestes a ser finalizado. As normas de biossegurança eram cumpridas: na cozinha e na lavanderia, instaladas em cômodos semi-abertos; e no armazenamento dos medicamentos.

A construção do espaço privado

As atividades diárias nesses locais eram voltadas, preponderantemente, para os cuidados de saúde, como realização de consultas, exames ou acompanhamento de rotina. Foi observado que uma das atribuições das coordenações era a organização dos horários de saída e dos locais de destino (relativos às atividades citadas) para todos os moradores. Poderiam tanto manter um mural com um quadro atualizado dessas atividades, acessível a todos, como uma agenda sob a responsabilidade da coordenação. Todas três dispunham de veículo próprio para transporte aos serviços de saúde.

A limpeza era provida com regularidade, para manter o ambiente sempre limpo. Ela podia ser feita por funcionários ou moradores com boas condições de saúde, como pelas próprias coordenadoras, se assim fosse necessário. Segundo a coordenadora do abrigo infantil, as crianças colaboravam com a organização de seus quartos e da brinquedoteca e desenvolviam pequenas atividades diversas, sentindo-se valorizadas com esse tipo de encargos. Na Casa 1, entretanto, havia dificuldade de adesão dos adultos, seus moradores, no desempenho de tarefas diárias, de acordo com a sua coordenadora. Nas duas casas para adultos, foram acompanhadas as atividades de limpeza realizadas pelos próprios moradores, o que criava um clima de intensa mobilização e envolvimento da maioria. Esses momentos, mesmo sem contar com a participação de todos por livre e espontânea vontade, e apesar da ausência de alternativas de atividades planejadas, proporcionaram certa descontração no desempenho das rotinas, perpassados pelo objetivo comum de recuperação da saúde.

Entre as responsabilidades específicas das coordenações, estava a monitoração da administração dos medicamentos e das refeições, de modo que agradasse ao maior número possível de moradores. Eram oferecidas, em média, seis refeições diárias para os adultos; e para as crianças, até oito refeições.

O assunto sexualidade foi avaliado pelas coordenadoras como alheio às competências das casas, que se limitavam a atender a demanda do morador ou deixar essa incumbência para os serviços de saúde freqüentados. Não foi encontrada uma atividade sistemática de educação para prevenção de doenças sexualmente transmissíveis. A sexualidade dos moradores, adultos e crianças, não era abordada abertamente, o que denotou uma dificuldade das coordenações em lidar com as singularidades de cada um em relação ao sexo – dessa forma, elevado à condição de tabu, principalmente quando associado ao contexto da epidemia de aids.

As mãos que geram as obras

As coordenações eram desempenhadas por mulheres, inicialmente voluntárias, que, por diferentes motivos, engajaram-se na formação desses equipamentos sociais. A presença feminina na constituição dos recursos humanos (funcionários e voluntários) foi predominante nas casas de apoio. Como a sua qualificação não era elevada, eram oferecidos cursos, treinamentos e atividades de educação continuada por profissionais da área.

No quadro geral da equipe de trabalho das três casas, foi observado um predomínio do número de funcionários em detrimento do número de voluntários. Separadamente, enquanto a Casa 1 possuía mais voluntários do que funcionários, acontecia o inverso na Casa 2. O voluntariado permite oferecer serviços especializados de diferentes profissionais, mas também pode servir de válvula de escape para "chorar sua própria dor", segundo relatou uma das coordenadoras. Assim, essas pessoas eram, previamente, entrevistadas e avaliadas quanto ao seu real interesse e o significado, para elas, do trabalho voluntário.

Os turnos eram de oito horas, em média; contudo, as coordenações referiram uma jornada de trabalho maior, dado o intenso envolvimento, com responsabilidades e caráter emocional, nas suas atividades. A convivência permanente com as dificuldades também se fez presente nessas organizações. A principal provisão de recursos era obtida por meio de doações da comunidade civil e de benefícios públicos, ambos insuficientes para garantir o atendimento às necessidades de custeio.

Os tripulantes da nau

Os moradores dessas casas de apoio foram qualificados pelas coordenações como pessoas que não possuíam "estrutura física, social e familiar" para lidar com as decorrências da infecção por HIV/aids. Provinham de famílias sem condições materiais ou recursos para sobrevivência; ou de uma história referida de vínculos frágeis, que inviabilizavam as condições adequadas e necessárias à boa convivência, em família, com a aids e seu portador.

O período de permanência nessas casas mostrou-se variável – de três a seis meses –, segundo a definição dos regimentos internos. Entretanto, muitos moradores passavam anos sob o abrigo da entidade, fazendo dela o seu próprio lar. A promoção de atividades de integração social e/ou familiar do morador dava-se durante as visitas feitas pelos parentes, pouco freqüentes; ou na participação em cursos externos, ainda que limitada pela escassez de meios de transporte próprios da casa. Na Casa 1, como medida de reintegração, alguns moradores eram autorizados a sair nos finais de semana, para visitar parentes e amigos. Na casa-abrigo infantil, a escola, assim como os passeios à sorveteria, shopping center ou circo, tinham a função de promover a interação das crianças com o mundo externo. Nos fins de semana, eram raros os momentos em que as crianças se encontravam desocupadas, já que grupos de voluntários promoviam festas com freqüência.

Os moradores apresentavam-se em diferentes condições de saúde, sendo comum o convívio daqueles em estado mais preservado com os que apresentavam risco iminente de morte. Um relato oferecido pela coordenação da Casa 2 ilustrou essa situação de proximidade com o desenlace fatal, quando o falecimento de uma das funcionárias (um evento recente, à época da coleta dos dados) favoreceu um contexto propício para as crianças abordarem outras perdas pelas quais já haviam passado, como a morte de outras duas crianças da casa. Segundo a coordenadora, esse acontecimento inusitado repercutiu positivamente, funcionando como um catalisador para que os pequenos pudessem explicitar suas dúvidas, angústias e temores diante da proximidade ou mesmo da presença do espectro da morte na sua realidade cotidiana.

A avaliação de estrutura das casas de apoio

Tendo em vista os materiais disponíveis para normatização do funcionamento desses equipamentos sociais, foi possível verificar as seguintes características:

- as casas de apoio para portadores adultos avaliadas eram estabelecimentos definidos como de pequeno e médio porte (com até 20 vagas), enquanto a capacidade da casa de apoio à população infantil era de até 40 crianças;

- nas três casas, o período de permanência era definido como de longa duração (superior a 30 dias), apesar de essa norma não ser seguida rigidamente;

- as casas de apoio para adultos não eram passíveis de classificação como a prevista pela Norma Técnica do CVS/CRT-AIDS/SES-SP, em que um dos critérios de diferenciação referia-se às condições de manifestação e agravo dos sintomas; porém, foi observada a coexistência de pessoas com sua capacidade de autonomia preservada e outras que apresentavam um maior nível de dependência;

- a casa de apoio para abrigo de crianças caracterizava- se, também, como uma casa de solidariedade, abrigando crianças órfãs ou cujos pais, na condição de portadores do HIV/aids, encontravam-se em difícil situação social e econômica;3 igualmente, a casa se responsabilizava pelo encaminhamento para adoção, em casos de destituição do pátrio poder;

- as três casas possuíam sistemas de referência e contra-referência estabelecidos (hospital e centros de saúde), para a assistência em casos de maior complexidade e, em contrapartida, para o abrigo de eventuais novos moradores egressos desses serviços;

- as casas de apoio definidas como de Tipo II careciam, segundo a Norma Técnica do CVS/CRT-AIDS/SES-SP, de responsáveis técnicos – deveriam ser médicos – junto aos órgãos competentes; uma das casas informou que o responsável técnico da organização era o enfermeiro da equipe, ao passo que as demais não o especificaram;

- nas três casas de apoio, não foi observado qualquer documento específico onde constassem as atividades realizadas (de assistência e supervisão, entre outras) pelas unidades ambulatoriais de referência especializada; os documentos de organização e gerência da assistência eram de incumbência exclusiva das próprias coordenadoras e não de profissionais de nível superior lotados nos serviços de referência da área da Saúde, como preconizam as normas referidas.

 

Discussão

As casas de quem não tem casa

À frente dessas casas, na função de coordenação da entidade, encontravam-se mulheres que, ainda que não apresentassem curso de nível superior na área da Saúde, contavam com um preparo técnico adquirido. Os fazeres construídos apontam para a condição do papel da mulher como cuidadora,7-10 vista como decorrente da divisão sexual do trabalho. As funções de cuidado foram inseridas ao longo de décadas, no exercício do papel social feminino no contexto familiar. O caráter afetivo do cuidar, que envolve a dimensão da maternagem, foi construído e somado às características consideradas como restritas ao gênero feminino (por exemplo, ter filhos). É esperado, socialmente, que mulheres assumam os cuidados e a atenção aos aspectos físicos e afetivos relacionais da família, especialmente no cuidado de pessoas mais vulneráveis.10

Os dados sugeriram que não é possível reduzir a capacidade de funcionamento das casas apenas ao estágio de formação específica que cada coordenadora atingiu. A capacidade de gerência das casas de apoio também se aprimorou, como conseqüência da identidentificação pessoal da responsável pela coordenadoria com os ideais e objetivos da organização.

Um último aspecto a ser destacado concerne à natureza não governamental desses serviços, sujeitos a incertezas constantes em relação à disponibilidade de recursos suficientes para o seu custeio. Foi necessário aprender a lidar com o difícil jogo do equilíbrio entre a premência das necessidades e as reais possibilidades da sua satisfação. Essa exigência foi definida por uma das entrevistadas como "improviso de qualidade". A incorporação do estudo das fontes de receita na avaliação de estrutura, tal como foi feito neste trabalho, deve-se à importância dessa medida para conferir maior legitimidade às organizações não governamentais (ONG).11

A disponibilidade de um serviço – público, privado ou não-governamental – requer parâmetros de estruturação que possibilitem a melhor forma de atividade e de alcance de seus objetivos/fins. Nesse percurso, a definição de indicadores de adequação é um meio para se atingir a qualidade do serviço.

É importante salientar que um estudo avaliativo pode contar com índices e parâmetros pré-definidos; ou partir para a sua elaboração, com base em outros estudos já realizados, embora a definição de um ou mais indicadores possa ser difícil, ante a complexidade do fenômeno da ação em saúde.12

Este trabalho, de natureza exploratória, orientou-se pelas normas técnicas, sem eleger um indicador específico. As três casas de apoio foram avaliadas por intermédio da aplicação de um questionário desenvolvido com base em materiais técnicos estabelecidos a priori, uma vez que não se dispôs de um recurso de creditação ou de atribuição de parâmetros específicos para esses serviços. Ao elaborá-lo, deu-se importância à contextualização desses equipamentos sociais, tanto do ponto de vista da sua história como da sua concepção social e política. Também a observação livre, na qualidade de um dos três instrumentos utilizados, possibilitou a identificação dos conteúdos obtidos das entrevistas no seu próprio contexto – o "aqui e agora", onde e quando as situações acontecem –, além de fornecer informações passíveis de serem captadas somente nessa modalidade de coleta de dados. Afinal, a apreensão e compreensão do contexto do serviço é essencial para uma perspectiva holística de avaliação.6

Aperfeiçoar uma proposta de avaliação para serviços e programas, cujo enfoque esteja na desinstitucionalização – como é o caso das entidades estudadas – deve considerar, como necessário, que se contemple a multiplicidade de opiniões pela inclusão de julgamentos que partam de grupos envolvidos no programa ou serviço.13

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS),14 a avaliação tem como princípios: (I) possibilidade de conhecer os serviços e melhorá-los; (II) flexibilidade para abarcar as distintas situações; e (III) exigência de um processo em constante adaptação às condições da realidade à qual se aplica.

A proposta de verificação da adequação dessas organizações às Normas Técnicas do Ministério da Saúde e do Centro de Vigilância Sanitária do Estado de São Paulo não implicou, conforme esclarecido às coordenações, fiscalização ou emissão de juízo de valor sobre as suas condições de instalação e funcionamento. A realidade mostrou ser maior do que seria possível prever nos termos deste relato. Se, em muitos pontos, não houve uma correlação ipsis litteris com as Normas Técnicas, é indiscutível o benefício institucional e o reconhecimento da importância que esses equipamentos sociais adquiriram para o justo acolhimento dessa demanda social.

 

Agradecimentos

Os autores agradecem o apoio das entidades participantes, especialmente a colaboração das suas coordenações, sem o que não seria possível a realização deste trabalho.

 

Referências bibliográficas

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2. Ministério da Saúde. Coordenação Nacional de DST e AIDS. Guia de recomendações: casa de apoio em HIV/Aids. Brasília: MS; 1998.

3. Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo. Centro de Vigilância Sanitária. Portaria Conjunta n. 2 CVS/CRT-DST/AIDS; 2001. [acessada em 2002 Jul 4]; [cerca de 18 p.]. Disponível em: http://www.cvs.saude.sp.gov.br/01pcvs02.htm/.

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8. Durham ER. Família e reprodução humana. In: Durham ER. Perspectivas antropológicas da mulher 3. 1a ed. Rio de Janeiro: Zahar; 1983, p.15-44.

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10. Romanelli G. O Processo saúde/doença em famílias de baixa renda e a ação do Estado. In: Anais do 23o Encontro Anual da Anpocs; 1999; Caxambu, Brasil. Caxambu: Anpocs; 1999.

11. Marques DSP, Merlo EM, Nagano MS. Legitimacy and NGOS: a case study of two NGOS of São Paulo State. In: Proceedings of the Business Association of Latin American Studies (BALAS); 2003; São Paulo, Brasil. São Paulo: Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas; 2003.

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Endereço para correspondência:
Departamento de Medicina Social,
Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto/USP,
Hospital da Clínicas, 2o andar, Unidade
Campus, Av. Bandeirantes, 3900,
Campus Universitário, Ribeirão Preto-SP.
CEP: 14049-900
E-mail:marisley@usp.br