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Epidemiologia e Serviços de Saúde

versão impressa ISSN 1679-4974versão On-line ISSN 2237-9622

Epidemiol. Serv. Saude v.14 n.3 Brasília set. 2005

http://dx.doi.org/10.5123/S1679-49742005000300006 

ARTIGO ORIGINAL

 

Diagnóstico laboratorial da difteria e a prática da coleta de material de comunicantes como estratégia da vigilância epidemiológica – grande São Paulo, 1987 a 1996

 

Laboratorial diagnosis of diphtheria and the practice of material collection from contacts as a strategy of epidemiological surveillance – metropolitan area of São Paulo, 1987 to 1996

 

 

Silvana Tadeu CasagrandeI; Maricene GarbellotiI; Alice Mori KobataI; Maria Lúcia Rocha de MelloII; Neuma T. HidalgoIII

 

ISeção de Bacteriologia, Instituto Adolfo Lutz, Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, São Paulo-SP
IICentro de Vigilância Epidemiológica, Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, São Paulo-SP
IIIDivisão de Respiratória, Centro de Vigilância Epidemiológica, Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, São Paulo-SP

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Difteria é uma doença aguda causada pelo Corynebacterium diphtheriae. Apesar do conhecimento sobre sua etiopatogenia, seus aspectos clínico, terapêutico e profilático, a difteria permanece endêmica no Brasil. A ampla utilização da vacina tríplice bacteriana há mais de 25 anos, ao lado de melhorias nas condições sanitárias da população, é responsável pela mudança na situação epidemiológica da difteria, particularmente no Estado de São Paulo, promovendo uma drástica redução no número de casos e óbitos pela doença. Embora possa prescindir da confirmação laboratorial valendo-se dos dados clínicos, cada vez mais, a investigação laboratorial é fundamental para o aumento da especificidade do diagnóstico clínico e para que se conheça a freqüência da infecção, a participação de cepas toxigênicas e demais características do agente etiológico. Foram analisados os dados laboratoriais referentes ao período de 1987 a 1996, para a Grande São Paulo, de pacientes suspeitos de difteria e de seus comunicantes, com o objetivo de avaliar a prática da coleta de material como estratégia da vigilância epidemiológica para o controle da doença e diagnóstico dos casos. Na análise do número de casos suspeitos, observou-se, a partir de 1992, significativa diminuição do número de casos, seguida da sua estabilidade em níveis mais baixos a partir de 1994. A análise da toxigenicidade mostrou que eram toxigênicas 91,2% das cepas isoladas dos casos suspeitos e 63,3% das cepas isoladas dos comunicantes. Os resultados apresentados reforçam a norma vigente de que a coleta de material de comunicantes e demais medidas de prevenção da doença não podem aguardar os resultados laboratoriais. Os resultados negativos não devem interferir na decisão do número de amostras a serem coletadas em comunicantes.

Palavras-chave: Corynebacterim diphtheriae; difteria; comunicantes; casos suspeitos.


SUMMARY

Diphtheria is an acute disease caused by Corynebacterium diphtheriae. In Brazil, diphtheria continues to be endemic despite information about its etiology and pathogenicity, clinical aspects, treatment, and prophylaxis. The wide utilization of the diphtheria-pertussis-tetanus vaccine (DPT) for more than 25 years, along with improved sanitary conditions of the population, is responsible for the change in the epidemiological situation of diphtheria, especially in São Paulo State, with a dramatic reduction in the number of cases and deaths from the disease. Although laboratory confirmation is not always required to validate clinical data, laboratory investigation is essencial for increasing the specificity of the clinical diagnosis and for the determination of frequency of infection, toxigenic strains, and other characteristics of the etiological agent. In the present study, laboratory data concerning patients with suspected diphtheria and their contacts were analyzed for the period from 1987 to 1996 for the Metropolitan Area of São Paulo to assess the practice of sample collection as a strategy of epidemiological surveillance for the control of the disease and the diagnosis of cases. Analysis of the number of suspected cases showed an important decrease in the number of diphtheria cases starting in 1992, and stability at still lower levels beginning in 1994. Analysis of toxigenicity showed that 91.2% of the strains isolated from suspected cases and 63.2% of the strains isolated from contacts were toxigenic. These results support the validity of current regulations concerning the collection of samples from contacts and the remaining measures for disease prevention, which should not be delayed until confirmation. Negative results should not interfere with the decision about the number of samples to be collected from contacts.

Key words: Corynebacterium diphtheriae; diphtheria; contacts; suspected cases.


 

 

Introdução

Difteria é uma doença aguda causada pelo Corynebacterium diphtheriae e transmitida pelo contato direto com gotículas ou secreção da nasofaringe. Portadores são importantes na transmissão da doença, pois a imunidade, vacinal ou natural, não previne o estado de portador.1,2 A letalidade diminui, marcadamente, com um diagnóstico precoce, intervenção terapêutica e mudanças na imunidade populacional.2-4

Os Estados Unidos da América, o Canadá e muitos países da Europa Ocidental alcançaram, com a prática da vacinação infantil – iniciada na década de 30 –, uma redução gradual da incidência da difteria. Muitos países europeus não notificam casos da doença há mais de 20 anos.1,2

Nos anos 90, uma epidemia ocorrida na Comunidade dos Estados Independentes da antiga União Soviética marcou o ressurgimento da difteria como doença epidêmica em países industrializados. A difteria havia-se mantido controlada naqueles países por mais de duas décadas, a partir da vacinação de crianças em larga escala.2

Na América Latina, também na década de 90, foram observados surtos de difteria. Na Venezuela, foram registrados 742 casos. No ano 2000 e em 2001, foram relatados casos de difteria na Colômbia e no Paraguai, respectivamente. É provável que esses casos estivessem associados a inadequadas condições socioeconômicas da população.5-7

Apesar do conhecimento sobre sua etiopatogenia, seus aspectos clínicos, terapêutica e profilaxia, a difteria permanece endêmica no Brasil.3,4,8,9 No Estado de São Paulo, a doença vem apresentando queda persistente na sua incidência, desde meados da década de 70. De um coeficiente de incidência da ordem de cinco casos por 100.000 habitantes, rapidamente passou-se para dois casos/100.000 hab. na metade daquela década e iniciou-se os anos 80 com menos de um caso por 100.000 habitantes.

Esse comportamento pode ser atribuído à melhoria das condições de vida da população do Estado e ao aumento e manutenção de altos níveis de cobertura vacinal (vacina tríplice bacteriana) na população menor de cinco anos, a partir do final da década de 70.10 Paralelamente à diminuição do número de casos, observou-se uma tendência de aumento relativo da doença nas faixas etárias maiores,10,11 fato também observado no Rio de Janeiro, no ano de 1999.12

A acentuada diminuição de casos tem trazido dificuldades adicionais ao diagnóstico clínico da difteria, desde que, a partir dos anos 80, um número significativo de profissionais não teve oportunidade de ver ao menos um caso da doença em sua formação acadêmica. Por outro lado, a modificação no quadro clínico da doença, pela alteração do padrão de circulação de cepas toxigênicas ou pelo uso indiscriminado de antimicrobianos ou, ainda, pela modificação do perfil de imunidade da população, também podem estar exercendo papel importante na identificação de casos nos últimos anos.8,10,11

Embora possa prescindir da confirmação laboratorial valendo-se dos dados clínicos, a investigação laboratorial é, cada vez mais, fundamental para o aumento da especificidade do diagnóstico clínico e para que se conheça a freqüência da infecção, a participação de cepas toxigênicas e demais características do agente etiológico.

O Instituto Adolfo Lutz (IAL), da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo (SES/SP), referência laboratorial para difteria nos âmbitos estadual e nacional, realiza o diagnóstico dos casos suspeitos de difteria e a vigilância laboratorial de seus comunicantes para o Município de São Paulo e a Grande São Paulo. O objetivo deste trabalho é analisar os dados laboratoriais dos casos suspeitos de difteria e de seus comunicantes, referentes ao período de 1987 a 1996, e a prática da coleta desses materiais como estratégia da vigilância epidemiológica para diagnóstico dos casos e controle da doença.

 

Metodologia

População de estudo

No período de 1987 a 1996, 964 amostras de nariz ou garganta de pacientes suspeitos de difteria foram submetidas ao diagnóstico laboratorial para o Corynebacterium diphtheriae. Na sua maioria, os pacientes eram provenientes do Instituto de Infectologia Emílio Ribas (IIER) e residiam no Município de São Paulo ou na Grande São Paulo. Em função desses casos suspeitos de difteria, 2.167 comunicantes também foram analisados, perfazendo um total de 3.131 amostras submetidas a diagnóstico. A coleta de material de comunicantes, até 1988, era feita de forma não sistemática e apenas pelo IIER; a partir daquele ano, o procedimento de coleta foi incorporado às ações de vigilância e realizado pelas equipes da vigilância epidemiológica local.13

Construção do banco de dados

O banco de dados foi construído com base no programa Epi Info, versão 6,14 cujo arquivo foi denominado dif.rec. Os dados de identificação, dados epidemiológicos e informações relativas às amostras foram obtidos da requisição de exame laboratorial, complementados com informações do prontuário do Serviço de Arquivo Médico (Same), do IIER. As variáveis coletadas foram: nome; gênero; idade; sítio de colheita da amostra; procedência do paciente; diferenciação entre amostra de comunicante e de caso suspeito; e data da coleta. Os dados laboratoriais registrados foram os resultados da coloração de Albert-Laybourn, cultura, prova de toxigenicidade e caracterização do biótipo.

Procedimentos laboratoriais

Isolamento e identificação do agente

A investigação laboratorial foi realizada na Seção de Bacteriologia do IAL-Central. As amostras de casos suspeitos e de comunicantes foram semeadas, diretamente, do swab utilizado para colheita em meio de Pai e incubadas, por 24 horas, a 37oC. Nas amostras de casos suspeitos, foram processados esfregaços, submetidos à coloração de Albert-Laybourn, com o objetivo de observar, microscopicamente, a presença de bacilos com características morfotintoriais do Corynebcterium spp. Essa etapa do diagnóstico laboratorial, para fins de apresentação dos resultados neste trabalho, será denominada “bacterioscopia”.

A partir do crescimento bacteriano em meio de Pai, foi semeado em ágar-sangue-cistina-telurito (ASCT), com a finalidade de se obterem colônias isoladas. Após incubação, por 48 horas, a 37oC, as colônias de coloração negra ou acizentada foram semeadas em outros tubos com meio de Pai e incubadas, por 24 horas, a 37oC. Do crescimento bacteriano nesse meio – após a incubação, por 24 horas, a 37oC –,15-17 foi realizado o teste presuntivo utilizando o meio de Pisu, que detecta produção de H2S.

O diagnóstico definitivo de Corynebacterium diphtheriae é dado pela identificação bioquímica, baseada na fermentação de açúcares, hidrólise da uréia, redução do nitrato, oxidase e catalase.

Biotipagem

A caracterização em biotipos foi realizada pela fermentação do glicogênio e hemólise em ASCT. Os biotipos encontrados em Corynebacterium diphtheriae são: gravis; intermedius; mitis; e belfanti.

Prova de toxigenicidade (Elek)

O teste de toxigenicidade foi realizado in vitro, por difusão em ágar, no meio de Elek.16 As cepas de Corynebacterium diphtheriae foram submetidas à prova de toxigenicidade. A cepa de Corynebacterium diphtheriae ATCC 13812 foi usada como controle positivo.

Critério para definição de caso

No presente trabalho, utilizou-se a mesma definição de caso adotada pela vigilância epidemiológica, constante do manual de difteria,17 a saber:

- Caso confirmado laboratorialmente: quando o quadro clínico é compatível com difteria e é identificado, mediante exames laboratoriais, o bacilo diftérico toxigênico em material obtido do doente ou cultura positiva com prova da toxigenicidade negativa ou não realizada.

- Caso confirmado clínico-epidemiologicamente: quadro clínico compatível com difteria e resultados dos seus exames laboratoriais negativos – ou não realizados –, e que seja comunicante de um outro caso confirmado laboratorialmente; ou quando identificado o agente etiológico em pelo menos um de seus comunicantes.

- Caso confirmado clinicamente: quando o paciente preenche os critérios de caso suspeitos, os resultados dos seus exames resultam negativos ou não foram realizados e não se conseguiu nenhum outro diagnóstico etiológico.

Comunicantes

Assim são definidos: indivíduos assintomáticos, independentemente de idade e situação vacinal, que convivem com o paciente intradomicílio ou, eventualmente, no ambiente de trabalho ou escola; e aqueles que mantinham contato íntimo com o caso. A seleção destes últimos fica a critério da equipe da vigilância epidemiológica, fundamentada na forma de transmissão da doença e na relação com o caso suspeito. A investigação dos comunicantes terá o seu início, imediatamente, após a notificação do caso suspeito de difteria.

Análise dos dados

A análise de dados e as tabelas foram construídas com base nos dados do arquivo dif.rec, por meio do programa Epi Info, versão 6. Os cálculos do qui-quadrado (x2) para tendência linear também foram realizados a partir do programa Epi Info, versão 6.14

Resultados

A Tabela 1 apresenta, ano a ano, os resultados obtidos pela “bacterioscopia”, cultura e número total de suspeitos submetidos ao diagnóstico laboratorial. Observa-se que, para o período, não há diferença estatística na diminuição do número de “bacterioscopia” positiva (p=0,567), diferentemente dos resultados da cultura, que apresentaram significância no declínio da positividade (p=0,009).

 

 

A Tabela 2 mostra a distribuição anual da “bacterioscopia”, cultura e número total de exames colhidos para os comunicantes, bem como a média de comunicantes submetidos a exame por caso suspeito. Observa-se uma diminuição do número de exame positivo na “bacterioscopia” a partir da década de 90, que não se mostra significativa (p=0,567). Em relação à cultura, apresenta-se uma tendência significativa de diminuição dos casos positivos nesse período (p=<0,001).

 

 

De acordo com os dados apresentados na Tabela 3, a positividade da cultura e da prova de Elek para os casos de difteria tem variado, a partir de 1989, mostrando números de isolamento de C. diphtheriae inferiores aos anos de 1988 e 1987. O isolamento de cepas toxigênicas nos comunicantes é observado até o ano de 1994, e, nos três anos precedentes, todas as cepas isoladas eram produtoras de toxina. Durante o período de estudo, 91,2% das cepas isoladas de casos apresentaram prova de toxigenicidade positiva; para os comunicantes, essa prova foi positiva em 63,3% das cepas isoladas.

 

 

A Tabela 4 apresenta o número de casos de difteria e respectivos percentuais, segundo o critério de confirmação. No período, observa-se variação em relação aos critérios de confirmação laboratorial e clínico-epidemiológico.

 

 

Na Tabela 5, para o período de 1987 a 1996, são enumerados os casos confirmados, por critério laboratorial ou clínico-epidemiológico, em que houve a colheita de amostras de comunicantes; e o número de comunicantes positivos e negativos no período, acompanhados da sua representação em percentuais. A diminuição do número de culturas positivas entre os comunicantes mostrou ser significativa (p=0,006). No período de estudo, dos 45 casos confirmados, em 71,1% deles houve colheita de comunicantes. Do total de comunicantes colhidos, em 10,1% deles houve isolamento do C. diphtheriae. Dos 2.167 comunicantes coletados (Tabela 2), para 21,1% (455, conforme a Tabela 5), foi possível estabelecer relação com caso confirmado.

 

 

A Tabela 6 mostra os resultados de “bacterioscopia” e cultura, assim como especificidade, sensibilidade, valor preditivo positivo e negativo da “bacterioscopia” em relação à cultura.

 

 

Observa-se que a “bacterioscopia” tem sensibilidade (67,6%), especificidade (96,1%), valor preditivo positivo (38,9%) e valor preditivo negativo (98,7%).

Entre os 3.121 pacientes, a média de idade foi de 14,59 anos, apresentando um desvio-padrão (dp) de 15,91 anos, com 52,9% pertencentes ao gênero feminino e 46,9% ao gênero masculino. Em relação aos comunicantes, com uma média de idade de 16,6 anos (dp: 17,05 anos), 55,6% eram do gênero feminino e 44,3% do gênero masculino. E em relação aos comunicantes positivos, a média de idade foi de 12,5 anos (dp: 14,10 anos), 42,8% deles pertencentes ao gênero feminino e 57,2% ao gênero masculino. Nos pacientes definidos como caso, a média de idade foi de 10,1 anos (dp: 11,8 anos), com 46,9% pertencentes ao gênero feminino e 52,9% ao gênero masculino. Dos casos com cultura positiva, a média de idade foi de 11,2 anos (dp:12,16 anos), 58,8% pertencentes do gênero feminino e 41,2% ao masculino. A diferença nos desvios-padrão em relação à média deve-se a subinformação sobre a idade dos pacientes.

Em relação a biotipagem dos casos confirmados, 43,2% das cepas de C. diphtheriae isoladas pertencem ao biotipo intermedius, 40,5% ao mitis e 16,2% ao gravis. Com referência às cepas isoladas de comunicantes, 43,5% pertencem ao biotipo mitis, 42,3% ao intermedius e 14,1% ao gravis.

 

Discussão

Em 1988, a introdução da coleta de material de comunicantes íntimos de casos suspeitos, inicialmente proposta como estratégia de orientação das medidas de controle da doença, também mostrou ser um importante recurso para o diagnóstico etiológico, dada a dificuldade de isolamento do bacilo diftérico no caso, em função da utilização prévia de antibióticos quando da suspeita clínica. No período estudado, 11 (24,4%) casos foram confirmados mediante a identificação do C. diphtheriae em seus comunicantes.

A pequena experiência clínica com a difteria que os profissionais dispõem, atualmente, aliada a uma apresentação clínica da doença pouco característica, atribuída, em parte, ao amplo uso de antibióticos e à possível mudança do perfil imunitário da população, têm representado uma grande dificuldade para o diagnóstico dos casos, aumentando, conseqüentemente, a responsabilidade do diagnóstico laboratorial.8,10,17,18

Entretanto, o diagnóstico laboratorial sofre prejuízos com a utilização de antibióticos prévia ao momento em que a hipótese diagnóstica é levantada, dificultando o crescimento bacteriano. Assim, a prática de pesquisar portadores do bacilo entre comunicantes de um caso suspeito tem-se mostrado de grande importância no Brasil, seja como medida de controle da disseminação da doença, seja como possibilidade de confirmação etiológica. Para que essa medida permita a recuperação do bacilo, é fundamental que se definam, com precisão, os indivíduos a serem submetidos ao exame; e que a coleta de material ocorra em condições apropriadas.3,4

O diagnóstico laboratorial requer técnica adequada de colheita de amostras. Ele é dependente da viabilidade dos bacilos, fortemente afetada pela utilização de antimicrobianos e por inúmeros procedimentos laboratoriais. Essas variáveis, todas relativas ao processo de diagnóstico laboratorial, podem ser responsáveis por resultados falsamente negativos.3,15,16 O laboratório deve fornecer métodos simples, rápidos e confiáveis para complementar o diagnóstico clínico da difteria e auxiliar na eliminação de casos suspeitos ou comunicantes, evitando, assim, medidas de controle como o isolamento, por exemplo.15

Na Tabela 5, observa-se, a partir da década de 90 e em todos os casos confirmados, colheita de comunicantes, análise e resultado de 10% de cultura positiva entre eles. A partir da década de 90, a pesquisa de portadores entre os comunicantes de casos suspeitos vem-se intensificando, o que tem contribuído para a confirmação de casos pelo critério clínico-epidemiológico. Dos casos confirmados, em 24,4% (Tabela 4), o critério de confirmação foi clínico-epidemiológico; houve colheita de comunicantes em 32 dos casos confirmados (Tabela 5), reforçando a importância dessa prática.

O número de casos confirmados clínico-laboratorialmente, no período, foi de 3,5%. A Tabela 1 mostra, a partir do final da década de 80, uma tendência significativa de declínio do risco de positividade na cultura, nos casos suspeitos (p=0,009).

A “bacterioscopia” no diagnóstico da difteria tem sido utilizada como um resultado parcial, de disponibilidade rápida (em torno de 24 horas), para orientação inicial do caso. Posteriormente, o diagnóstico é confirmado pelo isolamento do C. diphtheriae.17 Os resultados da Tabela 6 reforçam a recomendação do Manual de Vigilância Epidemiológica de que o caso pode ser confirmado mediante “bacterioscopia” positiva e quadro clínico compatível com a doença e cultura para o C. diphtheriae negativa.17 Embora a especificidade seja expressiva (98,7%), a confirmação do teste – de forma correta – deve identificar a doença quando ela estiver presente. O valor preditivo positivo (VPP), nesse sentido, é importante porque indica o percentual de falso-positivos na amostragem: como se pode observar na Tabela 6, o VPP foi de 38,9%, demonstrando que 61,1% dos casos suspeitos apresentaram resultado falso-positivo. O VPP depende não somente da acurácia do teste mas também da prevalência.19,20 Estimando-se uma prevalência de 1%, o VPP seria de 14,6%; e o valor preditivo negativo (VPN), de 99,7%. Utilizando-se a sensibilidade e especificidade obtida no teste, teríamos, então, 85,4% de falso-positivos, corroborando a nova recomendação do Manual de Vigilância de que a confirmação laboratorial do caso de difteria deva ser feita pelo isolamento do C. diphtheriae.21

Os resultados apresentados reforçam a norma vigente de que a coleta de material de comunicantes e demais medidas de prevenção da doença não podem aguardar o resultado da “bacterioscopia”; e que resultados negativos não devem interferir na decisão do número de amostras coletadas, porque a sensibilidade é da ordem de 67,6% e o VPP de 38,9%, mostrando que somente 38,9% dos casos serão confirmados como verdadeiros casos positivos.

Conforme a Tabela 1, o número de casos tem diminuído nas últimas décadas, fato que se deve, em muito, à queda da incidência da difteria no Brasil e no mundo.4 No País, no ano de 1999, essa incidência foi de 0,03 por 100.000 habitantes. A introdução da vacina tríplice e DPT no Brasil ocorreu a partir do ano de 1973, o que levou a uma relativização da importância das ações de vigilância desse agravo entre nós, nos últimos anos.22

À medida que a doença torna-se um evento raro, novos desafios são apresentados à sua vigilância e controle. Entre eles, observa-se a existência de regiões e Municípios com baixas coberturas vacinais para a vacina tríplice e dupla bacteriana, o deslocamento de faixa etária mais atingida pela doença para jovens e adultos, a mudança das características dos casos da doença pelo uso da vacina, a piora das condições de vida da população com a formação de núcleos de conglomeração de indivíduos suscetíveis.2,11,22

Embora a difteria seja considerada uma doença da infância, essa característica apresenta-se de forma diferente, principalmente na epidemia ocorrida a partir da década de 90, nos Estados Independentes da União Soviética, onde 70% dos casos ocorreram em pessoas maiores de 15 anos.4,2,11,23 Neste estudo, a média de idade dos 3.131 pacientes foi de 14,59 anos, entre as culturas positivas; para os casos e comunicantes, a média foi de 11,2 anos e de 12,5 anos, respectivamente. No Estado de São Paulo, os maiores coeficientes são em crianças de 1 a 4 anos e de 5 a 9 anos. A partir do final da década de 80, contudo, observa-se o deslocamento da proporção de casos para os maiores de 15 anos.24

Nas Américas, há relatos de surtos de difteria descritos, o mais recente no Paraguai: 47 casos confirmados, com a maior incidência em crianças na faixa etária de 5 a 14 anos.7 Esses casos refletem a condição socioeconômica da população, uma vez que os casos foram relatos em áreas pobres daquele país. No Brasil, áreas de pobreza distribuem-se em todo território e um surto de difteria em país próximo e de condições socioeconômicas semelhantes pode ser fator contributivo para um surto de difteria no nosso país.

As mudanças nas distribuições das idades nos casos de difteria, freqüentemente, são explicadas pelo impacto de um programa de imunização. Dados históricos demonstram, porém, que as mudanças aqui analisadas ocorreram antes da introdução da imunização.1,11 O risco de infecção é semelhante, tanto para a pessoa vacinada como para a não vacinada, mas o risco da doença é maior em não vacinados ou submetidos a um esquema de vacinação incompleto. Observe-se que a cobertura vacinal do Estado de São Paulo vem declinando nos últimos anos.24

Um dos fatores que contribuiu para a emergência da difteria nos Estados Independentes da União Soviética, na década de 90, foi a baixa cobertura vacinal em crianças.2,11 A implementação da rotina de dose-reforço para adultos, a cada dez anos, e a melhoria nas condições de vida de uma população poderão manter a difteria na condição de raridade.1,2,11,24

A recente epidemia nos Estados Independentes da União Soviética demonstra que a difteria pode ressurgir depois de anos de declínio ou mesmo da sua eliminação. Embora o risco de ressurgência da difteria em muitos países possa ser remoto, a capacidade de controle deve ser mantida. O controle e prevenção da difteria é função importante da Saúde Pública, não só para o fortalecimento da vigilância da doença, servindo, também, de estratégia de identificação – e entendimento – do caráter emergente e reemergente desse agravo.

A análise da toxigenicidade mostrou que, das cepas isoladas em casos suspeitos, 91,2% eram toxigênicas, enquanto entre as cepas isoladas dos comunicantes, apenas 63,3% eram toxigênicas. Durante a recente epidemia na Ucrânia, estudo encontrou 82% de cepas toxigênicas em 1994, 81% em 1995 e 71% em 1996.23 A comparação desses dados reforça a hipótese de que apenas os casos mais exuberantes, clinicamente, estão sendo diagnosticados; e que infecções por cepas de C. diphtheriae não toxigênicas não estão sendo devidamente diagnosticadas.

O laboratório necessita fornecer resposta rápida para a investigação de casos suspeitos e de comunicantes e implementar técnicas de monitoração das possíveis mudanças no perfil do C. diphtheriae em nível molecular. A experiência de dez anos, aqui apresentada, também indica a necessidade de incorporação de novas técnicas laboratoriais como a reação de polimerase em cadeia [Polimerase Chain Reaction (PCR)], amplamente utilizada em outros países, para que se aumente a sensibilidade do diagnóstico laboratorial. A reação da polimerase em cadeia é um excelente método, que, no caso do C. diphtheriae, deve ser utilizado em conjunto com os métodos fenotípicos.11,25,26 O isolamento do agente é de grande relevância, principalmente para a confirmação da toxigenicidade e caracterização molecular do agente, bem como para o aprimoramento do diagnóstico da difteria e para a implementação das ações da vigilância.

 

Agradecimentos

Os autores agradecem aos profissionais do Instituto de Infectologia Emílio Ribas, pelo atendimento aos pacientes, e aos profissionais do Same pelo apoio técnico no manuseio das fichas dos pacientes; à Rede de Vigilância Epidemiológica do Estado de São Paulo, que realizou a coleta dos comunicantes; a Ângela Pires Brandão, pela valiosa contribuição na elaboração do banco de dados; ao Dr. José Leopoldo Ferreira Antunes, pelo auxílio nas análises estatísticas; e ao Dr. José Cássio de Moraes, pelas sugestões e revisão deste manuscrito.

 

 

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Endereço para correspondência:
Seção de Bacteriologia,
Instituto Adolfo Lutz,
Av. Dr. Arnaldo, 351,
São Paulo-SP.
CEP:01246-902
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