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Epidemiologia e Serviços de Saúde

versão impressa ISSN 1679-4974versão On-line ISSN 2237-9622

Epidemiol. Serv. Saúde v.15 n.3 Brasília set. 2006

http://dx.doi.org/10.5123/S1679-49742006000300003 

ARTIGO ORIGINAL

 

Prevalência de diarréia na população do Distrito Docente-Assistencial do Tucumã, Rio Branco, Estado do Acre, Brasil, em 2003

 

Prevalence of diarrhoea in the population of the Medical Care and Training District of Tucumã, Rio Branco, Acre State, Brazil, in 2003

 

 

Raquel Rangel CesarioI; José Tavares-NetoII

ICurso de Pós-graduação em Medicina e Saúde da Faculdade de Medicina da Bahia, Universidade Federal da Bahia, Salvador-BA, mediante convênio com o Governo do Estado do Acre
IIFaculdade de Medicina da Bahia, Universidade Federal da Bahia, Salvador-BA

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo deste estudo transversal foi determinar a prevalência da diarréia em amostra da população urbana da cidade de Rio Branco, Estado do Acre, Brasil, abrangendo pessoas de todas as faixas etárias. Após validação do questionário-padrão pelo estudo-piloto, foi selecionada amostra aleatória de 159 pessoas de 0 a 77 anos de idade. A prevalência geral da diarréia no dia da entrevista foi de 5,7%; e nos últimos 15 dias, de 14,1%, dos quais 33,3% em menores de 5 anos e 10,5% em maiores de 4 anos (p<0,05). As variáveis – sexo; presença ou não do Programa Saúde da Família adstrito ao domicílio; e nível socioeconômico – foram semelhantes entre os grupos com ou sem diarréia. No grupo com diarréia, predominaram, significativamente, as seguintes características: maior número de residentes por domicílio; casa de madeira; residência sem água encanada; residência com vaso sanitário fora da casa ou sem descarga. A prevalência geral de diarréia encontrada foi alta: nos menores de 5 anos, representou cerca de três vezes aquela encontrada na literatura; e nos adolescentes e adultos, contribuiu para minimizar a carência de informações sobre essas faixas etárias. Os resultados deste trabalho reforçam a necessidade de estudos mais aprofundados sobre o tema, especialmente associados às precárias condições socioeconômicas e ambientais, bem como de políticas públicas voltadas à prevenção dos agravos à saúde.

Palavras-chave: diarréia; prevalência; saúde da família.


SUMMARY

The objective of this cross-sectional study was to determine the prevalence of diarrhea in a sample of the urban population of the Municipality of Rio Branco, Acre State, Brazil, including strata of all ages. After questionnaire vali-dation by the pilot-study, a random sample of 159 people of 0-77 years of age was selected. The general prevalence of diarrhea on the day of the interview was 5.9%. In the last 15 days before the interview, the prevalence was 14.1%, of which 33.3% were cases occurred in subjects less that five years of age, and 10.5% of which occurred in subjects over four years of age (p<0.05). Gender, socioeconomic level, and household coverage by the Family Health Program were similar among the groups with and without diarrhea. In the group with diarrhea, the following characteristics were prevalent: household with large number of residents, residence made of wood, residence lack of piped water, and toilet outside the house or non-flushing toilet. The general prevalence found was high: in those under 5 years of age it was about three times the one described in the literature, and the prevalence found in adolescents and adults contributed to minimize the need for information in these age groups. The results of this work reinforce the necessity of deeper studies on this subject, specially associated with socio-economic and environmental precarious conditions, as well as public policies towards the prevention of health hazards.

Key-words: diarrhea; prevalence; family health.


 

 

Introdução

A doença diarréica é, em geral, autolimitada.1,2 Ocorre, predominantemente, nas populações de áreas com precárias condições de desenvolvimento humano.3-5 Com base em dados dos últimos 30 anos, Parashar e colaboradores 6 verificaram, em populações de países em desenvolvimento, que, entre menores de 5 anos de idade, houve redução da mortalidade associada à síndrome diarréica da ordem de 4,6 para 1,4 milhões de óbitos anuais. Eles atribuíram esse resultado ao crescente uso e divulgação da terapia de reidratação oral (TRO), aumento na prática de aleitamento materno, melhor suplementação dos alimentos, educação da mulher, intensificação de programas de imunização contra sarampo e melhorias no saneamento. Não obstante, esses mesmos fatores não têm contribuído para o declínio, na mesma proporção, da morbidade por diarréia.6,7

No mundo, vários estudos vêm demonstrando pequena alteração nas taxas de incidência da síndrome diarréica entre menores de 5 anos de idade.6,8 No Brasil, estudo realizado em Salvador, Estado da Bahia, observou a redução do coeficiente de mortalidade infantil por doenças intestinais de origem infecciosa de 25,9 por 1.000 menores de 1 ano em 1977 para 2,1/1.000 menores de 1 ano em 1998, ou declínio de 98,9%; no mesmo período, a mortalidade infantil caiu 78,8%.9 Em São Paulo, Benício e Monteiro,10 ao estudar a tendência secular dos casos de diarréia na capital paulista, verificaram redução expressiva na prevalência no dia da entrevista, de 1,7% em 1984-1985 para 0,9% em 1995-1996.

A Pesquisa Nacional de Saúde e Nutrição (PNSN) apontou a freqüência global de diarréia nas crianças brasileiras menores de 5 anos de idade, no período de 15 dias anteriores à entrevista, de 10,5%, variando de 10% no meio urbano a 11,6% no meio rural.11 Entre as macrorregiões do País, aquela prevalência foi de 5,9% na Região Sul, 15,4% na Região Nordeste e 12,4% na Região Norte, onde não foram levantados os dados das áreas rurais.11 Linhares e colaboradores 12 observaram média de 2,5 episódios diarréicos agudos por criança/ano, após acompanharem 80 crianças na cidade de Belém, Estado do Pará, desde o nascimento até os 3 anos de idade.

Na população adulta (>18 anos), são escassos os estudos de prevalência, tanto no Brasil como no mundo.13 No Estado do Acre, esses estudos são ainda mais escassos e nenhum teve como população de referência pessoas na idade adulta. A constatação motivou o presente estudo, cujo objetivo é determinar a prevalência da diarréia em população urbana constituída de diferentes classes socioeconômicas, em todas as faixas etárias, bem como identificar fatores sociais e ambientais associados à diarréia em áreas do Distrito Docente-Assistencial do Tucumã, na cidade de Rio Branco, capital do Estado.

 

Metodologia

A população de referência do estudo (n=11.000) foi composta pelos residentes em cinco bairros do Distrito Docente-Assistencial do Tucumã, na cidade de Rio Branco-AC: Tucumã I, Tucumã II, Rui Lino, Jardim Primavera e Mocinha Magalhães – os três últimos, cobertos pelo Programa Saúde da Família (PSF), cada um deles dispondo de uma unidade (ou módulo) de saúde do PSF com a equipe completa.14 Os cinco bairros têm como unidade de referência (policlínica) o Centro Estadual de Formação de Pessoal em Saúde da Família do Tucumã (CEFPSF-Tucumã), localizado no bairro Tucumã I, o qual, por sua vez, tem por referência o hospital da Fundação Hospital Estadual do Acre (Fundhacre).

O Distrito Docente-Assistencial do Tucumã foi criado em julho de 2000. É o campo de prática dos cursos de graduação em medicina e enfermagem da Universidade Federal do Acre; também situa os programas de residência médica, especialmente de Medicina de Família e Comunidade, da Fundhacre, além de constituir área de estudo de linha de pesquisa desenvolvida pela extensão do Curso de Mestrado da Faculdade de Medicina da Bahia, da Universidade Federal da Bahia, em convênio com o Governo do Estado do Acre. Esse Distrito foi selecionado porque representa, de forma razoável e satisfatória, nos cinco bairros que o compõem, a população da cidade de Rio Branco em sua atual diversidade de estratos socioeconômicos, condições ambientais e saneamento.

O tamanho amostral mínimo de 137 pessoas considerou o intervalo de confiança de 95%, a prevalência estimada de 10% e o erro tolerável de amostragem de ±5%, mais possíveis perdas (15%). A estimativa da prevalência (10%) teve por base os valores descritos em recentes publicações,5,8,10,13,15 apesar de apenas Herikstad e colaboradores13 haverem incluído pessoas adultas (>18 anos) em seu estudo.

Na área do Distrito Docente-Assistencial, todas as famílias encontram-se cadastradas, inclusive aquelas residentes nos bairros não adstritos ao PSF (Tucumã I e II), distribuídas em 2.829 domicílios numerados seqüencialmente (CEFPSF-Tucumã, dados não publicados). De cada 19 domicílios, um foi sorteado para participar da pesquisa. Posteriormente, após o consentimento do (a) chefe da família, sorteou-se um dos moradores para ser o sujeito da pesquisa.

Após o sorteio, apresentou-se a essa pessoa (ou responsável legal) o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido; mediante sua concordância, levantaram-se os dados de preenchimento do questionário-padrão.16 Quando a pessoa sorteada não se encontrava em casa, entrevistava-se o morador presente com data de nascimento mais próxima. Finalmente, se a pessoa sorteada ou o (a) chefe da família não concordasse em participar do estudo ou, ainda, se não houvesse morador na casa, passava-se à casa imediatamente seguinte, de acordo com a ordem de numeração crescente.

O critério de exclusão de pessoa para entrevista, definido antes do levantamento dos dados, foi o de "ter viajado ou participado de festas comunitárias/populares nos 20 dias anteriores ao dia da pesquisa". Esse critério justifica-se porque tanto as viagens quanto as festas comunitárias costumam apresentar associação com infecções veiculadas por alimentos, o que altera a curva endêmica de adoecimento na região estudada e pode ser um fator de confundimento na estimativa de prevalência.17 Em caso de exclusão da primeira pessoa a ser entrevistada, a reposição da pessoa excluída observou procedimento idêntico ao descrito anteriormente.

No questionário-padrão adotado, que considerou o período dos últimos 15 dias, definiu-se caso de diarréia em pessoas a partir dos seis meses de idade como "pelo menos três evacuações, de consistência líquida ou semilíquida, durante um período de 24 horas".18 Para as crianças menores de seis meses de idade, aceitou-se a definição da mãe sobre diarréia, qual seja, "número aumentado de dejeções, com consistência reduzida, que deixasse a mãe preocupada".10,19 Também perguntou-se aos entrevistados (ou responsáveis legais) se estavam com diarréia no dia da entrevista. Nos casos com história positiva de diarréia (presente ou recente), perguntava-se sobre suas características: freqüência – número médio de dejeções por dia –; cor; odor; e comemorativos clínicos associados (por exemplo: sangue e/ou muco nas fezes, vômitos, dores abdominais, síndrome febril, etc.).

Além dos dados demográficos de cada pessoa entrevistada (sexo, idade extraída de documento de identidade, grupo racial e local de residência), levantaram-se as características da família ou do domicílio, em que 17 tiveram seus escores somados para efeito de cálculo de estrato socioeconômico, em ordem crescente, do pior (escore zero) ao melhor qualificado (escore 1, 2 ou 3, conforme a variável). A variável "destino das fezes na residência", por exemplo, teve os seguintes escores: 0, se a céu aberto; 1, se em buraco no terreno da residência ou em local próximo; 2, se para fossa séptica; e 3, no caso de domicílio servido pela rede pública de esgoto.15 Dessa forma, ao utilizar as 17 características (relação pessoas/cômodo, tipo de moradia, vaso sanitário dentro ou fora de casa, vaso sanitário com descarga, destino das fezes, tipo e freqüência de coleta de lixo, disponibilidade da água usada em casa, origem da água, escolaridade do sujeito da pesquisa ou da mãe ou responsável e presença, no domicílio, de geladeira, freezer, fogão, televisão, CD-player, telefone e carro ou moto), a pessoa seria avaliada, segundo a variável estrato socioeconômico, em até 54 pontos.16

Os dados foram analisados aplicando-se o software SPSS (versão 9.0),20 conforme o tipo ou a distribuição da variável, mediante o teste qui-quadrado (com ou sem correção de Yates), o teste exato de Fisher e/ou o teste de Mann-Whitney. Para a análise das variáveis quantitativas com distribuição normal, utilizou-se o teste t de Student. Nesses testes, o resultado foi considerado de significância estatística quando a probabilidade (p) do erro tipo I foi igual ou inferior a 5% (p=0,05).

Considerações éticas

Este estudo transversal ou de prevalência, de base populacional, realizou-se no período de 1o de setembro a 30 de outubro de 2003, após a consecução de projeto-piloto e parecer favorável concedido pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Fundação Hospital Estadual do Acre.

 

Resultados

Foram sorteados 164 domicílios e entrevistadas 164 pessoas, das quais cinco foram excluídas por não responderem a todas as perguntas; das 159 pessoas incluídas no estudo, a prevalência de diarréia no dia da entrevista foi de 5,7% (9/159). Posteriormente, outras três pessoas foram excluídas das análises subseqüentes, por não se lembrarem de haver – ou não – tido diarréia nos últimos 15 dias.

Observou-se uma prevalência da doença da ordem de 14,1% (22/156). Das 22 pessoas com diarréia nos últimos 15 dias, apenas uma descreveu dois episódios diarréicos distintos, enquanto quatro moradores referiram até três episódios no período. Desses quatro moradores, em um, a diarréia teve duração de sete dias, em outro, de 12 dias, e nos demais casos, foi igual ou inferior a quatro dias. Do total de casos (n=22) com diarréia nos últimos 15 dias, 50% (n=11) teve duração da doença de até 48 horas. Em todos os 22 casos, inclusive naqueles com duração superior a seis dias, a síndrome diarréica apresentou características propedêuticas de tipo "alta".

Eventuais casos de diarréia com evolução clínica mais grave e que tenham exigido internação hospitalar ou evoluído para óbito não foram referidos por qualquer morador das casas sorteadas.

Nos 156 domicílios pesquisados, residiam de uma a dez pessoas – média de 4,1 e mediana de 4,0 pessoas/domicílio. Nos domicílios (n=134) sem portadores de diarréia, a proporção daqueles com quatro ou menos moradores foi de 67,9% (n=91); e com mais de quatro moradores, de 32,1% (n=43). No grupo de domicílios com casos de diarréia (n=22), as proporções daqueles com quatro ou menos moradores foi de 40,9% (n=9); e com mais de quatro moradores, de 59,1% (n=13). Nesta comparação, observa-se a diferença significante (X2=5,987; p<0,05), estatisticamente.

Nos 156 moradores incluídos no estudo, 36,5% eram homens e 63,5% mulheres; e a média de idade, de 28,2 (±18,1) anos, com limites de 4 meses a 77 anos (mediana de 26,9 anos).

Na Tabela 1, os portadores (n=22) de diarréia nos últimos 15 dias foram comparados àqueles sem a mesma história (n=134). Esses dois grupos foram semelhantes quanto a sexo (p>0,05), idade (p>0,05), grupo racial (p>0,05) e bairro da residência (p>0,05) – este, classificado segundo a existência na área, ou não, do PSF.

 

 

A freqüência da diarréia também foi estudada segundo cinco faixas etárias (Tabela 2); observou-se variação de 0% a 33,3%, apesar das distorções em razão do pequeno número de casos em algumas delas. Ainda assim, as freqüências de diarréia foram comparadas entre si e observou-se diferença estatística significativa (p<0,05) entre aqueles com 4 anos ou menos de idade, cuja freqüência foi de 33,3%, e o conjunto das faixas etárias (5 a 77 anos), com freqüência de 10,5%. Na faixa etária de 21 a 60 anos, a freqüência de diarréia nos últimos 15 dias foi de 11,2% (10/89); e entre os de 61 anos ou mais, de 20% (2/10).

 

 

Na estimativa do nível (ou estrato) socioeconômico, o somatório das pontuações variou de 10 a 46, com mediana de 27 pontos, embora apenas nove (5,8%) pessoas alcançassem 40 ou mais pontos. Aqueles com pontuação igual ou abaixo da mediana (<27) foram classificados como de nível socioeconômico "baixo" (n=78) e os demais como "médio" (>28 pontos). As freqüências de diarréia nos dois estratos foram de 19,2% (15/78) e 9,0% (7/78), respectivamente, embora a diferença permanecesse no limite da significância estatística (p>0,05). Tampouco verificou-se diferença significativa (p>0,05) quando da aplicação do teste de Mann-Whitney, em que se utilizou o total de pontos de cada pessoa (mean rank: 67,55 entre o grupo com diarréia versus 80,30 entre aqueles sem diarréia). Na Tabela 3, encontram-se descritas as variáveis do cálculo do nível socioeconômico (NSE) que tiveram distribuição desigual (p<0,05) entre os dois grupos estudados: houve, significativamente, mais pessoas com diarréia entre aqueles sem disponibilidade de água dentro do domicílio (p<0,05), com o vaso sanitário fora da casa (p<0,05) ou sem descarga (p<0,001). Histórico de diarréia nos últimos 15 dias também esteve associado (p<0,01) à variável de material predominante com que são feitas as residências, madeira (26,5%; 13/49), comparativamente às outras duas variáveis similares, construção em madeira e alvenaria (11,8%; 2/17) ou, exclusivamente, em alvenaria (7,8%; 7/90). Outra variável associada à história de diarréia (p<0,05) foi o número maior de residentes no domicílio (mean rank de 97,32 versus 75,41, segundo o teste de Mann-Whitney). As demais variáveis incluídas no cálculo do NSE apresentaram distribuição semelhante (p>0,05) entre os grupos com ou sem diarréia – exceção para a diferença entre as pessoas cujo domicílio apresentava destino inadequado das fezes (22,2%; 10/45) e as que habitavam residências em que esse destino fora considerado pelos autores como adequado (10,8%; 12/111), observada no limite da significância estatística (p>0,05).

 

 

Discussão

Este estudo tem como principal limitação metodológica o tamanho da amostra, assim mantida por ser uma investigação exploratória para avaliar a exeqüibilidade de futuro projeto de pesquisa na área do Tucumã e ter como população de referência os maiores de 11 anos de idade e a população adulta. No Brasil, há carência de estudos sobre diarréia entre essas faixas etárias, o que, por sua vez, também limita a comparação dos presentes resultados com os de outras publicações.

A concentração de casos de diarréia nos domicílios com maior número de pessoas (59,1% versus 32,1%) pode ter subestimado as prevalências observadas de residentes com história de diarréia (5,7% no dia da entrevista; e 14,1% para os últimos 15 dias), porque pessoas que viviam em domicílios com menor número de moradores tiveram maior probabilidade de serem sorteadas, comparativamente às pessoas residentes em domicílios com maior ocupação. Não obstante, essa outra limitação metodológica não foi possível de ser sanada previamente, haja vista a falta de informações sobre o número de moradores de cada domicílio e sua distribuição por sexo e idade, na base de dados da Policlínica do Tucumã, Rio Branco-AC. Uma futura investigação, em fase de planejamento, deverá considerar não só a distribuição dos moradores em cada quadra ou quarteirão como também a proporção de moradores a ser incluída no cálculo do tamanho da amostra, tendo em conta o número total de residentes em cada domicílio e sua distribuição por sexo e faixa etária. Em relação à idade, esse futuro estudo deverá estabelecer o tamanho mínimo adequado a análises posteriores, especialmente nas faixas etárias de menores de 1 ano e de mais de 60 anos, com maiores prevalências de problemas de saúde.

A prevalência geral de diarréia observada nos últimos 15 dias (14,1%) não pôde ser comparada às descritas na literatura (10% ± 5%),5,8,10,13,15 pois a maioria dos trabalhos publicados tem como população de referência menores de 5 anos de idade. Ao estratificar a amostra por faixa etária, os menores de 5 e os maiores de 60 anos foram responsáveis por prevalências muito acima do que já fora estimado, enquanto adolescentes e adultos apresentaram prevalência de 10,3% e 11,2%, respectivamente, coincidindo com a taxa encontrada em outros estudos com menores de 5 anos no Brasil10,11,15 e na Região Norte.11 A prevalência de diarréia (33,3%) em menores de 5 anos de idade, encontrada no presente estudo, foi maior do que a descrita por Benício e colaboradores11 para a Região Norte (12,5%) e para o Brasil (10,5%); Vásquez e colaboradores15 encontraram 10,2% de prevalência de diarréia na população infantil de Pernambuco – 16,9% na população infantil da região metropolitana de Recife.21 Na cidade de São Paulo, a prevalência da doença nessa fase da infância foi de 4,7%, quando consideradas todas as crianças dos diversos estratos socioeconômicos; e de 9,3% em crianças de famílias mais carentes.10

Além dos efeitos atribuídos a outras variáveis ambientais, socioeconômicas e culturais, os resultados observados de prevalência sofreram, provavelmente, o efeito do período do ano em que foi realizado este estudo, setembro-outubro de 2003. Nessa época do ano, ocorrem as maiores temperaturas ambientes, que chegam a atingir seu nível máximo por volta dos 34oC (outubro), após três meses consecutivos de baixa pluviosidade (Instituto Nacional de Meteorologia e Universidade Federal do Acre, 2003, dados não publicados). Em Rio Branco, nesses meses de elevada temperatura e aumento da precipitação pluviométrica, verifica-se maior incidência de diarréia, segundo uma série histórica de 1994 a 2003 (Secretaria de Estado da Saúde do Acre, dados não publicados). Achados semelhantes foram encontrados no Estado do Pará.22 Esses resultados são contraditórios à hipótese corrente de que, na população de Rio Branco, ocorreria a maior incidência de diarréia no chamado "inverno acreano" (de dezembro a março), quando a precipitação pluviométrica, o dobro daquela no período enfocado por este estudo, provoca transbordamento dos igarapés, de parte da bacia hidrográfica da cidade de Rio Branco e do já precário sistema de esgotamento sanitário; e, por extensão, a contaminação da água servida à população. Um futuro estudo, outrossim, deverá considerar essa variação sazonal e, provavelmente, concluirá que a prevalência geral de 14,1% observada neste trabalho será superior à de outras épocas do ano.

Metade dos casos de diarréia verificados no Distrito Docente-Assistencial do Tucumã teve duração de até 48 horas, em que a mediana e a média, respectivamente, foram de 2 e 2,71 dias; em apenas duas pessoas, a duração foi de 7 e 12 dias. Outros dados clínico-epidemiológicos caracterizaram todos os casos como de diarréia aguda, de tipo "alta". Resultados semelhantes foram observados por Vásquez e colaboradores15 em Pernambuco e por Waldman e colaboradores23 em São Paulo, os quais verificaram mediana da duração da diarréia de três dias.

Em São Paulo, entre crianças menores de 5 anos de idade, a prevalência de diarréia no dia da entrevista caiu de 1,7% em 1984-1985 para 0,9% em 1995-1996.10 Apesar das diferenças demográficas e ambientais entre as cidades de São Paulo e Rio Branco, além das distintas metodologias aplicadas a cada um dos estudos, a prevalência de diarréia entre a população de referência deste estudo, no dia da entrevista, pode ser considerada como muito elevada. No Distrito Docente-Assistencial do Tucumã, no caso de se extrapolar a prevalência encontrada de diarréia nas últimas 24 horas (5,6%) para a população de referência (11.000 hab.), poder-se-ia, hipoteticamente, estimar a ocorrência de 616 pessoas-doentes em um único dia. Se a maioria dessas pessoas não buscasse a automedicação, mediante procedimentos alternativos da medicina popular, essa possibilidade transformaria o sistema local de saúde em um caos. A ocorrência dos casos de diarréia na área de estudo não teve associação com as variáveis sexo e grupo racial, o que corrobora os resultados descritos em outras publicações.10,15,24

Diversos autores relatam a existência de relação inversa entre nível socioeconômico e prevalência de diarréia.11,15,23 Neste estudo, especificamente, a diferença entre as freqüências de diarréia correspondentes aos grupos de nível socioeconômico baixo (19,2%) e médio (9,0%) manteve-se no limite de significância estatística (p>0,05), apesar de a razão ser 2,1 vezes maior no primeiro estrato. Coerentemente, confirmou-se associação estatística entre relato de diarréia nos últimos 15 dias e residência em domicílio sem água encanada, sem vaso sanitário dentro de casa ou sem vaso sanitário com descarga. São resultados que reforçam os comentários anteriores; ademais, confirmam os achados de Vázquez e colaboradores,15 de maior prevalência de diarréia entre pessoas que viviam em casas com água encanada fora da casa. No Município de São Paulo, a freqüência de diarréia infantil caiu 60% entre 1973 e 1985, período durante o qual a cobertura da rede de água expandiu-se de 52% para 95%.11 Na Região Sudeste do Brasil, crianças residentes em domicílios sem instalações sanitárias e água encanada apresentavam elevada incidência anual de diarréia, com risco relativo de 4,5.23 De forma semelhante, no Estado do Maranhão, a prevalência de diarréia foi maior entre famílias que se abasteciam de água de poço descoberto.25 No continente africano, associações semelhantes também foram descritas.5

Já na cidade de Manacapuru, Estado do Amazonas, a prevalência de infecção pelo Vibrio cholerae (O1) não sofreu interferência do tipo da fonte de água para consumo doméstico ou do destino dado ao lixo,24 o que, possivelmente, se deve à elevada poluição ambiental a que se expõe a população e, conseqüentemente, a uma elevada chance de infecção, igualmente distribuída no espaço geográfico. A esse propósito, deve-se lembrar que as práticas de higiene podem independer da situação socioeconômica das famílias ou das pessoas estudadas.

Características do ambiente doméstico, associação mais freqüente de casos de diarréia com residência em casas de madeira, predominantemente, e com pertencimento a famílias mais numerosas, indicam serem esses elementos co-fatores da história natural da doença, predisponentes ou facilitadores da transmissão de agentes patogênicos vinculados à água e/ou aos alimentos – fortemente associados aos baixos indicadores de desenvolvimento humano. Waldman e colaboradores23 verificaram que crianças residentes em barracos, na cidade de São Paulo, tinham 2,5 vezes mais chances de ter gastroenterite aguda do que aquelas sob condições mais adequadas de vida.

Não se confirmou a hipótese inicial levantada por estes autores de que a presença de unidades do Programa Saúde da Família (PSF) em alguns dos bairros estudados diminuiria a prevalência de diarréia, embora a qualidade do trabalho das equipes do PSF não houvesse sido objeto do estudo. A impossibilidade dessa associação, muito provavelmente, decorre da presença das unidades do PSF nas áreas (bairros) mais vulneráveis do Distrito Docente-Assistencial do Tucumã, de piores condições sanitárias. Assim, é possível especular que a prevalência de diarréia fosse, todavia, mais elevada antes da implantação do PSF, acontecida no ano 2000.

A alta prevalência diária de diarréia, sua história nos últimos 15 dias e marcante associação com os indicadores de pobreza justificam medidas públicas de prevenção e de controle na área do Distrito Docente-Assistencial do Tucumã. O aprimoramento constante das condições sanitárias, o fortalecimento da atenção básica (que inclua atividades de vigilância epidemiológica, educação em saúde e terapia de reidratação oral) e o fomento à pesquisa (que ajude a esclarecer pontos controversos ou ainda não estudados no Estado do Acre) são algumas das medidas necessárias para diminuir a prevalência das doenças diarréicas. Como sugestões para pesquisas futuras, estes autores propõem estudos prospectivos em áreas sentinelas, em diferentes períodos do ano, identificação dos agentes etiológicos envolvidos e das formas de tratamento utilizadas (que incluam manipulação e uso do soro caseiro) e estudos de caso-controle para verificar a validade das associações sugeridas por esta pesquisa e a influência do comportamento humano sobre o processo de adoecimento por diarréia.

 

Agradecimentos

A Danilo Cerqueira do Espírito Santo, aluno do PET-Medicina da Faculdade de Medicina da Bahia (UFBA), e ao Professor Vicente Cruz Cerqueira, da Universidade Federal do Acre, pela revisão lingüística.

 

Referências bibliográficas

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