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Epidemiologia e Serviços de Saúde

versão impressa ISSN 1679-4974versão On-line ISSN 2237-9622

Epidemiol. Serv. Saúde v.15 n.4 Brasília dez. 2006

http://dx.doi.org/10.5123/S1679-49742006000400005 

RELATÓRIO

 

Indicadores socioeconômicos e recursos odontológicos em Municípios do Estado de São Paulo, Brasil, no final do século XX

 

Socio-economic indicators and dental resources in Cities of São Paulo State, Brazil, at the end of the 20th century

 

 

Simone Rennó JunqueiraI; Maria Ercília de AraújoI; José Leopoldo Ferreira AntunesI; Paulo Capel NarvaiII

IDepartamento de Odontologia Social, Faculdade de Odontologia, Universidade de São Paulo, São Paulo-SP
IIDepartamento de Prática de Saúde Pública, Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo, São Paulo-SP

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Sabendo-se que indicadores sociais influenciam o processo saúde-doença, buscou-se analisar se eles modularam os serviços públicos municipais odontológicos no Estado de São Paulo, no final do século XX. Características socioeconômicas da população foram relacionadas aos recursos de gerenciamento dos serviços. As variáveis foram submetidas à análise bivariada e de regressão linear múltipla. O número de profissionais públicos revelou-se maior quanto piores mostraram-se os indicadores de renda e analfabetismo e quanto maiores foram as receitas e despesas em saúde. O número de auxiliares de odontologia manteve-se inadequado para o trabalho em equipe. O número de equipamentos equivaleu ao de cirurgiões-dentistas, indicando ociosidade da capacidade instalada; e esteve relacionado com a menor renda média e melhor receita municipal. Os cirurgiões-dentistas inscritos no Conselho Regional de Odontologia de São Paulo (CRO/SP) acompanharam as melhores condições socioeconômicas da população. Tem havido, no setor público, o direcionamento dos recursos humanos e materiais de acordo com as necessidades da população, caracterizando-se a eqüidade do sistema de saúde brasileiro.

Palavras-chave: indicadores sociais; saúde bucal; serviços de atendimento.


SUMMARY

Socio-economic characteristics of the population were related to the resources of oral health services in the cities of São Paulo State, Brazil, at the end of the 20th century. The variables were submitted to a multiple linear regression analysis. The number of professionals in the public oral health system increases as the indicators of income and illiteracy get worse and expenditures in health increase. The number of dental attendants is still inadequate to introduce a new practice of team work in the heath system. In public services, the amount of dental equipment is equivalent to the number of dentists, which can indicate idleness of installed capacity. This variable is related to the lowest average income rate of the population and high income of the city. Dentists registered at the CRO/SP (responsible for the legalization of all oral health professionals in São Paulo State) are provided with the best socio-economic conditions. Public policy of oral health services is conducted according to the population needs and these resources are proportionally higher in cities presenting low socio-economic indicators.

Key Words: social indicators; oral health; answering services.


 

 

Introdução

O substrato para a melhora das condições de vida e, em especial, dos indicadores de saúde, fundamenta-se, segundo Waldman,1 na capacidade dos Estados oferecerem, a todos os cidadãos, acesso às condições básicas de sobrevivência.

Para Drachler e colaboradores, “saúde é definida pela qualidade de vida e pela capacidade de ser e agir (...) e desigualdade social, pelas diferenças produzidas socialmente que sejam moralmente injustas. Assim, desigualdade social em saúde refere-se às diferenças produzidas socialmente na qualidade de vida e na capacidade de ser e agir dos grupos sociais e indivíduos (...).” A saúde de uma população, genericamente, depende da qualidade e do acesso ao consumo de bens e de serviços de subsistência, como moradia, alimentação, educação, trabalho e assistência à saúde; portanto, diferenças no acesso a esses bens e serviços resultam na desigualdade social em saúde.2

A transformação dos serviços de saúde contida nas propostas políticas dos governos da Região das Américas é expressa pela busca de um compromisso de universalidade e eqüidade que atenda as necessidades de assistência à saúde de acordo com o perfil epidemiológico, compreendido a partir das determinações históricas e sociais em que se inserem esses serviços.3

Frente aos quadros sociais e epidemiológicos brasileiros, admitindo-se que a qualidade de vida possa ser avaliada mediante indicadores ligados à instrução, renda e desigualdade em sua distribuição, entre outros, as políticas públicas devem ser direcionadas para a promoção da saúde. Suas estratégias devem enfatizar a criação de condições favoráveis ao desenvolvimento da saúde e capacidade dos indivíduos, o que demanda uma abordagem intersetorial,4,5 em conjunto com ações e serviços na área da Saúde.

A evolução favorável de uma série de indicadores sociais no Brasil dos anos 80 esteve relacionada à ampliação dos dispêndios e à transformação nas formas de implementação das políticas públicas de saúde e nutrição,6 o que coincide com a criação do Sistema Único de Saúde (SUS) no País, em 1988.

Ruffino Netto, durante o II Congresso Brasileiro de Epidemiologia, alertou para “(...) a desigualdade da distribuição dos serviços que não corresponde às necessidades” e afirmou que “a distribuição de recursos é inversamente proporcional às necessidades da população”.7

Com a perspectiva de conhecer alguns indicadores sociais que, sabidamente, influenciam o processo saúde-doença, busca-se analisar, neste estudo, se tais indicadores modularam os serviços públicos municipais de saúde bucal no Estado de São Paulo, no final do século XX. Investigou-se a associação de algumas características socioeconômicas da população paulista (referentes ao ano de 1991) e do gerenciamento dos serviços de saúde (referentes ao ano de 1995) com os recursos humanos e físicos em saúde bucal (referentes aos anos de 1996, 1997 e 1999).

 

Metodologia

Trata-se de um estudo transversal englobando todos os 645 Municípios do Estado de São Paulo, Brasil. O material foi constituído por dados secundários oficiais, sistematizados para subsidiar o diagnóstico situacional da população, da produção e do gerenciamento do sistema de saúde dos Municípios paulistas, relativos a anos próximos do final do século XX, entre 1991 e 1999.

Os dados, obtidos da Pesquisa Municipal Unificada,8 do Atlas do Desenvolvimento Humano,9 do Perfil Municipal de Saúde 10 e do Conselho Federal de Odontologia,11 podem ser divididos em:

a) Características socioeconômicas

(referentes ao ano de 1991)

- índice de condições de vida (ICV) – uma extensão do índice municipal de desenvolvimento humano (IDH-M); incorpora, além das dimensões Longevidade, Educação e Renda, outros indicadores destinados a avaliar as dimensões Infância e Habitação;

- renda familiar média per capita – razão entre o somatório da renda familiar per capita de todos os indivíduos e o total desses indivíduos; os valores da renda familiar per capita estão expressos em salários mínimos de 1o de setembro de 1991;

- porcentagem de pessoas com renda insuficiente – proporção dos indivíduos com renda familiar per capita inferior a 50% do salário mínimo de 1o de setembro de 1991;

- taxa de analfabetismo da população adulta – refere-se ao percentual da população maior de 20 anos que não é capaz de ler e escrever um bilhete simples, que assina apenas o próprio nome ou que declarou ter aprendido a ler e escrever mas esqueceu;

- Índice de Gini – indicador de desigualdade elaborado a partir das informações referentes ao rendimento médio, em salários mínimos, dos chefes de família; ele compara a proporção do rendimento total auferido por uma parcela da população em relação ao peso relativo dessa parcela no conjunto da população geral; em um situação de perfeita igualdade, a cada fração da população corresponderia uma parcela equivalente dos rendimentos;

b) Gerenciamento dos serviços

(embora o gerenciamento seja complexo e envolva outras variáveis de avaliação, para a finalidade deste trabalho, a análise restringiu-se ao investimento dos Municípios em saúde no ano de 1995);

- despesa realizada em saúde per capita – corresponde à despesa total em reais, realizada no âmbito do Programa de Saúde Bucal, por habitante;

- receita municipal total em reais – indicador transformado em valores per capita, que engloba as receitas próprias das prefeituras e as receitas transferidas, provenientes das esferas dos governos estadual e federal e de outras instituições, inclusive privadas; além de operações de crédito (recursos captados junto ao sistema financeiro);

c) Recursos humanos

- profissionais universitários para cada 10.000 habitantes – cirurgiões-dentistas (CD) sob a gerência das prefeituras em 1997;

- profissionais não universitários para cada 10.000 habitantes – auxiliares de odontologia sob a gerência das prefeituras em 1997;

- número de cirurgiões-dentistas inscritos no Conselho Regional de Odontologia de São Paulo (CRO/SP) em 1999, para cada Município do Estado, ajustado para cada 10.000 habitantes;

d) Recursos físicos

- número de equipamentos odontológicos para cada 10.000 habitantes – refere-se ao total de equipamentos odontológicos registrado pelo Sistema de Informações Ambulatoriais do SUS (SIA/SUS) em 1996.

Análise

Para estabelecer a relação de algumas variáveis por habitante e facilitar posteriores comparações, considerou-se a população residente nos Municípios segundo o Censo Demográfico de 1991, realizado pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), e a Contagem Populacional de 1996, também do IBGE.

As variáveis independentes caracterizam a condição socioeconômica da população, assim como os aspectos do gerenciamento financeiro das prefeituras referentes aos serviços de saúde. As variáveis dependentes refletem o resultado das políticas públicas relacionadas à saúde bucal adotadas nos Municípios; neste trabalho, estão relacionadas aos recursos humanos e físicos. A utilização de variáveis de anos distintos foi necessária, para que se pudesse criar um banco de dados completo, pelo aplicativo Microsoft Excel, com informações de todos os 645 Municípios de São Paulo. Como etapa intermediária à construção dos modelos estatísticos, as variáveis dependentes foram correlacionadas entre si e entre as variáveis independentes – análise bivariada –, para um nível de significância de 5%. Posteriormente, realizou-se análise de regressão linear múltipla – modelo Stepwise – pelo aplicativo SPSS, para delinear modelos estatísticos que mostrassem quais variáveis independentes interferem nas dependentes.

 

Resultados

Os resultados da análise de correlação bivariada estão apresentados na Tabela 1, onde é possível avaliar o sentido e a magnitude da associação entre as variáveis. A distribuição das variáveis dependentes é ilustrada em mapas do Estado de São Paulo apresentados segundo Direção Regional de Saúde (DIR), para facilitar sua visualização; referem-se a quintis de distribuição (figuras 1 a 4). Em seguida a cada mapa, são apresentadas as tabelas resultantes da análise de regressão linear múltipla da variável em questão, com relação às características socioeconômicas e de gerenciamento dos serviços (tabelas 2 a 5).

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

De acordo com a Figura 1, a Região Central e a Região Norte do Estado são as que apresentam maior número de auxiliares de odontologia no serviço público municipal. Essa proporção, todavia, ainda é muito pequena: existem de 2,55 a 13,10 profissionais para cada 10.000 habitantes, nas melhores situações. No modelo estatístico multivariado resultante (Tabela 2), o número de auxiliares é tão maior quanto piores são os indicadores de renda e o grau de analfabetismo; e tanto quanto maiores se apresentam as despesas e receitas municipais per capita. Com relação ao ICV, este indica que, quanto melhores as condições de vida, mais auxiliares há – lógica inversa à dos outros indicadores. Por se tratar de um indicador que reflete as dimensões Longevidade, Educação, Renda, Infância e Habitação, entretanto, ele pode refletir uma condição municipal favorável à própria contratação de profissionais, por exemplo. Pela análise bivariada, a variável é inversamente proporcional ao ICV, o que poderia confirmar o exposto.

Percebe-se uma maior proporção de cirurgiões-dentistas em toda a Região Norte do Estado. A maioria dos Municípios com 7 a 20 profissionais para cada 10.000 habitantes encontra-se nessa Região (Figura 2). Pela análise de regressão (Tabela 3), o modelo apresentou-se de maneira similar à variável anterior.

Com relação aos cirurgiões-dentistas inscritos no CRO/SP, percebe-se um padrão um pouco diferente (Figura 3): a Região Norte continua mantendo uma maior proporção de profissionais por 10.000 habitantes (entre 7,81 e 43,50), embora isso também seja observado nas Regiões Central e Sudeste, o que demonstra o caráter predominantemente privado dos profissionais que atuam nessas áreas; na Região Sul, predominam Municípios com até 7,81 CD por 10.000 habitantes. A variável está fortemente associada, pela análise de correlação bivariada, aos melhores ICV e renda média da população; e é inversamente proporcional ao maior grau de analfabetismo e renda insuficiente (Tabela 1). A análise de regressão mostra que o número de cirurgiões-dentistas registrados no CRO/SP relaciona-se com o Índice de Gini (desigualdade na distribuição da renda), o ICV e a renda média da população: quanto mais elevados esses indicadores sociais, maior é o número desses profissionais nos Municípios (Tabela 4). Essa é a lógica do setor privado, sustentado pelas melhores condições socioeconômicas da população.

A distribuição do número de equipamentos odontológicos (Figura 4) segue o mesmo padrão do número de profissionais do serviço público. A melhor proporção observa-se na Região Norte do Estado: 4 a 26 equipamentos para cada 10.000 habitantes, aproximadamente. O número de equipamentos, contudo, é equivalente ao número de cirurgiões-dentistas (0,95 equipamentos: 1 CD), em torno de 5 a 20 profissionais por 10.000 habitantes; o que indica ociosidade da capacidade instalada, pois esses funcionários públicos trabalham, majoritariamente, em jornadas de 20 horas semanais, ou seja, apenas meio período do dia. O mesmo se observa na maioria dos Municípios das Regiões Central, Sul e Sudeste, que apresentam entre 0,01 a 4,34 equipamentos por 10.000 habitantes. A análise bivariada (Tabela 1) mostra que o número de equipamentos é proporcional à maior porcentagem de analfabetismo e de renda insuficiente; e aos piores índices de renda média e de condições de vida. De acordo com a Tabela 5, quanto melhor a receita municipal per capita, maior é o número de equipamentos odontológicos adquiridos pelos Municípios. A análise de regressão mostra, ainda, que os Municípios com menor renda média, porém com Índice de Gini maior, tendem a possuir maior proporção de equipamentos odontológicos.

 

Discussão

O Estado de São Paulo, que ocupa uma área aproximada de 250 mil km2, possuía, em 1996, pouco mais de 34 milhões de habitantes. A taxa de analfabetismo da população adulta era de 11,3% em 1991; caiu para 6,1% em 1998. Embora esse indicador tenha apresentado uma melhora no final do século XX, não se pode dizer o mesmo do desemprego. Em 1994, 13,3% dos paulistanos estavam desempregados, valor que subiu para 16,5% em 1998.10

O acesso a bens e serviços essenciais à sobrevivência ainda depende da possibilidade de pagar por eles. Embora a noção de bem-estar não se restrinja ao fator renda, é inegável sua importância para uma sociedade como esta.12 A renda média da população do Estado mais rico do País foi de 2,2 salários mínimos, em que 8,0% da população vivia com renda insuficiente (até meio salário mínimo) e quase metade das pessoas dispunham de até três salários mínimos.9

O conjunto de reflexos da desigualdade social sobre as condições de saúde constitui objeto de estudo da área da Saúde, como as correlações entre indicadores epidemiológicos e socioeconômicos; pessoas e áreas de pior nível socioeconômico apresentam, quase invariavelmente, piores condições de saúde.13 Essa associação também se aplica à saúde bucal, pois a prevalência de cárie mostra-se maior em populações de baixo nível socioeconômico.14-16

Lalloo e colaboradores17 exploraram a relação entre níveis de desenvolvimento socioeconômico [de acordo com o índice de desenvolvimento humano (IDH) e o produto nacional bruto (PNB)] de diferentes países e o desenvolvimento de políticas nacionais de saúde bucal. Os autores relataram que as populações de países em transição socioeconômica apresentam os maiores índices de cárie.

Alguns estudos relacionaram ser tão maior a experiência de cárie, medida pelo índice CPO-D (média de dentes cariados, perdidos e obturados em populações) quanto piores são os indicadores sociais, como IDH, índice de condições de vida, índice de salubridade, índice de desenvolvimento infantil, percentual de casas ligadas à rede de abastecimento de água,18 aglomeração familiar por domicílio,18,19 localização e tipo de escola19-21 e renda familiar.18,19,22,23

A Inglaterra, apesar de o índice de cárie em dentes permanentes de suas crianças ser baixo, mostra iniqüidades entre classes sociais, regiões do país e grupos étnicos minoritários de pré-escola. A experiência de cárie dos adultos ingleses já não é tão desigual quanto em suas crianças; entre os edêntulos, contudo, a diferença é maior segundo a classe social.24 Para esses autores, as melhorias na saúde bucal dos ingleses nos últimos 30 anos são resultado de dentifrícios fluoretados e fatores ambientais, sociais e econômicos. O estudo conclui que as desigualdades em saúde só seriam reduzidas se houvesse a implementação efetiva e apropriada de políticas de promoção da saúde. Apenas com a atuação dos serviços de saúde, nunca seria possível enfrentar – com êxito – as causas fundamentais das doenças bucais.

Em outro artigo, Watt e Fuller25 acrescentam que, para melhorar a saúde bucal e reduzir iniqüidades, é vital que o profissional de saúde bucal seja um participante ativo na implementação de políticas para essa área.

Em toda política de saúde bucal, portanto, faz-se presente a questão dos recursos humanos. Antes, no Estado de São Paulo, havia um auxiliar para cada dois cirurgiões-dentistas, em média; vale ressaltar que esse profissional não é, necessariamente, o atendente de consultório dentário. Muitas vezes, é o auxiliar de enfermagem quem se encarrega dessa função.

Não obstante essa proporção ter aumentado nos últimos anos – em 1988, era de 0,08 auxiliares para cada cirurgião-dentista no serviço público –,26 o número de auxiliares do serviço público ainda é inadequado para a adoção de práticas de sistemas de trabalho de alta cobertura, tão desejado em Saúde Pública, para simplificação e racionalização do trabalho odontológico.27

Considerando-se o número de CD inscritos no CRO/SP, pode-se dizer que, à exceção da Região Sul do Estado, a concentração de profissionais está bem distribuída: 65% deles exercem a atividade no setor público e se concentram, mais acentuadamente, na Região Norte do Estado. Em 1992, 68,3% dos vínculos empregatícios oferecidos em odontologia eram do setor público.28

Sobre a compatibilidade dos recursos humanos com as necessidades da população, ainda existe um grande desafio a ser vencido. O Brasil apresenta um indesejável desequilíbrio estrutural na distribuição de CD pelas macrorregiões em relação a suas respectivas populações. Em 2002, o Sudeste concentrava 61% dos profissionais e 42% da população total; já o Nordeste apresentava 13% dos CD e 28% da população total.29

Adotar como critério a necessidade de se aumentar a quantidade de cirurgiões-dentistas no mercado de trabalho, com a alegação de que muitos não têm acesso a serviços de saúde bucal por falta de profissionais, não foi – e não será – suficiente para reverter o quadro epidemiológico de saúde bucal dos brasileiros.30

Para Pack,31 nos países em desenvolvimento, programas de intervenção focalizando a atenção primária e a prevenção deveriam ser planejados e implantados com urgência; e suas efetividades monitoradas e analisadas cientificamente. Segundo o autor, esses países são muito susceptíveis a doenças bucais – particularmente doença periodontal –, agravadas pela pobreza, condições de vida, ignorância em relação à educação em saúde; e por lacunas de investimentos e de profissionais suficientes para a Saúde.

Há uma equivalência entre o número de equipamentos odontológicos e o número de profissionais no serviço público. Pela Figura 4, no último quintil, chega-se a contar mais equipamentos para cada 10.000 habitantes do que CD do serviço público (Figura 2). Sabendo-se que os profissionais trabalham por 20 horas semanais e que as unidades de saúde podem funcionar por dois ou até três períodos, esse mesmo equipamento poderia ser utilizado por dois ou três cirurgiões-dentistas. Portanto, admitindo-se que todos os equipamentos relacionados no banco de dados estejam em condições de funcionamento, há uma ociosidade nos serviços de saúde.

Para Junqueira,32 ainda é elevada a taxa de ociosidade dos profissionais da área da Saúde; conseqüentemente, há deficit de consultas médicas e odontológicas no Estado de São Paulo. Essa situação é confirmada quando se observa o superavit de empregos médicos – o que não ocorre com o emprego odontológico. Com respeito às consultas, considerou-se a capacidade instalada para o atendimento ambulatorial no setor público, principal responsável pela atenção básica. Segundo o autor, não adianta apenas ampliar a capacidade instalada, deve-se buscar novas formas de gerenciamento que garantam a eficácia dos serviços de saúde.

Segundo esta pesquisa, não é o profissional que está ocioso mas o equipamento, fundamental para as ações assistenciais em odontologia. O presente trabalho não coloca sob questionamento a produtividade do profissional, que poderia ilustrar ou não a correspondência de atendimento com a carga horária; porém, certamente, a cobertura de procedimentos clínicos odontológicos poderia ser aumentada se esses equipamentos fossem utilizados por todo o período de funcionamento das unidades básicas de saúde.

Mais do que realizar procedimentos odontológicos, o funcionamento desses equipamentos significa ampliação da cobertura dos serviços odontológicos. De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD),33 realizada pelo IBGE, 18,7% da população brasileira nunca tinha consultado o cirurgião-dentista até 1998. Em estudo de Barros e Bertoldi,34 após a análise dos dados da PNAD, 3,7% dos entrevistados não tiveram acesso algum a um serviço quando procuraram atendimento; essa proporção, entretanto, foi maior entre os pobres mais idosos (12,6%), dependentes, em sua maioria, dos atendimentos realizados pelo Sistema Único de Saúde. O SUS é responsável por 68,0% dos atendimentos a esse segmento da população.

É possível incorporar equipes de saúde bucal – e preencher as lacunas de recursos humanos salientadas por Pack –31 nos locais com estrutura física já instalada, o que, certamente, reverteria em benefício da população, sem custo imediato de investimento para a construção de salas, compra de equipamentos e instrumental odontológico.

Mudanças socioeconômicas têm causado maior impacto na redução de agravos em saúde bucal do que a própria oferta de serviços odontológicos,24 embora isso não justifique sua ociosidade. O fato de o processo saúde-doença ser determinado pelas relações sociais e econômicas não exime o serviço de saúde de sua responsabilidade social na disponibilidade de equipamentos adequados, segundo Akerman e Nadanovsky.35

O estudo de Baldani e colaboradores22 demonstrou uma correlação positiva entre o índice CPO-D e o número de consultórios disponíveis no serviço público no Estado do Paraná. Segundo os autores, o achado poderia indicar uma tendência dos Municípios em oferecer maior cobertura assistencial onde se encontram os piores indicadores sociais.

Sobre a associação de características socioeconômicas, o presente estudo indicou que quanto piores os indicadores sociais (renda insuficiente, analfabetismo e renda média familiar), maior é o número de auxiliares e de CD no serviço público municipal. O número de equipamentos do setor público também foi mais significativo tanto quanto pior foi a renda média da população. Para Fernandes e Peres,36 ao associar atenção básica em saúde bucal e indicadores socioeconômicos municipais do Estado de Santa Catarina, maiores coberturas foram associadas ao aumento do número de dentistas no SUS; outrossim, os Municípios catarinenses com piores condições socioeconômicas (menor índice de desenvolvimento humano) foram associados a maiores proporções de exodontias (tratamento mutilador).

Quando considerados os profissionais inscritos no CRO/SP, eles acompanharam os melhores índices de Gini e de condições de vida, assim como a renda média da população. Essa é a lógica do setor privado, sustentado pelas melhores condições socioeconômicas da população.

Conclui-se que tem havido, no setor público, o direcionamento dos recursos humanos e materiais de acordo com as necessidades da população, sendo esses recursos públicos maiores, proporcionalmente, nas regiões que apresentam piores indicadores socieconômicos. Eis aqui a efetivação de um dos princípios do Sistema Único de Saúde brasileiro, a Eqüidade.

 

 

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